História da Filosofia Antiga

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Universidade do Sul de Santa Catarina Palhoça UnisulVirtual 2008 História da Filosofia I Disciplina na modalidade a distância

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Palhoça

UnisulVirtual

2008

História da Filosofi a IDisciplina na modalidade a distância

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Apresentação

Este livro didático corresponde à disciplina História da Filosofi a I.

O material foi elaborado, visando a uma aprendizagem autônoma e

aborda conteúdos especialmente selecionados e relacionados à sua

área de formação. Ao adotar uma linguagem didática e dialógica,

objetivamos facilitar seu estudo a distância, proporcionando

condições favoráveis às múltiplas interações e a um aprendizado

contextualizado e efi caz.

Lembre que sua caminhada nesta disciplina será acompanhada e

monitorada constantemente pelo Sistema Tutorial da UnisulVirtual.

Assim, a designação “a distância” caracteriza tão-somente a

modalidade de ensino por que você optou para a sua formação, pois,

na relação de aprendizagem, professores e instituição vão estar em

conexão com você continuamente.

Então, sempre que sentir necessidade, entre em contato conosco;

você tem à disposição diversas ferramentas e canais de acesso

tais como o telefone, e-mail e o Espaço UnisulVirtual de

Aprendizagem, este o canal mais recomendado, pois tudo que

for enviado e recebido, fi ca registrado para seu maior controle e

comodidade. Nossa equipe técnica e pedagógica terá o maior prazer

em atendê-lo(a): sua aprendizagem é o nosso principal objetivo.

Bom estudo e sucesso!

Equipe UnisulVirtual

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Sérgio Sell

Palhoça

UnisulVirtual

2008

Design instrucional

Leandro Kingeski Pacheco

História da Filosofi a I

Disciplina na modalidade a distância

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109S46 Sell, Sérgio

História da fi losofi a I : livro didático / Sérgio Sell ; design instrucional Leandro Kingeski Pacheco. – Palhoça : UnisulVirtual, 2008.

218 p. : il. ; 28 cm.

Inclui bibliografi a.

1. Filosofi a - História. I. Pacheco, Leandro Kingeski. II. Título.

Ficha catalográfi ca elaborada pela Biblioteca Universitária da Unisul

Copyright © UnisulVirtual 2008

Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem a prévia autorização desta instituição.

Edição – Livro Didático

Professor ConteúdistaSérgio Sell

Design InstrucionalLeandro Kingeski Pacheco

Projeto Gráfi co e CapaEquipe UnisulVirtual

DiagramaçãoPedro Teixeira

RevisãoB2B

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Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .3

Palavras do professor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .9

Plano de estudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

UNIDADE 1 – A origem da fi losofi a . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

UNIDADE 2 – A fi losofi a pré-socrática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

UNIDADE 3 – Os sofi stas e Sócrates . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73

UNIDADE 4 – Platão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99

UNIDADE 5 – Aristóteles . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135

UNIDADE 6 – O período helenístico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181

Para concluir o estudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205

Sobre o professor conteudista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207

Comentários e respostas das atividades de auto-avaliação . . . . . . . . . . . . 209

Sumário

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Palavras do professor

Caro(a) estudante,

Você está iniciando o estudo da história da Filosofi a Antiga.

Ao conhecer os fatores que possibilitaram o surgimento e o

desenvolvimento da Filosofi a no mundo helênico, você estará

formando a base conceitual que lhe permitirá realizar uma

refl exão mais crítica, rigorosa e bem fundamentada da sua

própria visão de mundo e de certos modelos interpretativos

que nossa cultura nos oferece ou mesmo tenta nos impor.

Ao estudar a origem da Filosofi a, você verá como ela está

marcada por uma tentativa de explicar, de forma puramente

racional, tudo que está à nossa volta, promovendo um

“desencantamento” do mundo e uma ruptura com a

mentalidade religiosa.

Não que a Filosofi a tenha algo contra a religião. A história

está recheada de exemplos tanto de fi lósofos ateus quanto de

fi lósofos crentes. A fi losofi a, no entanto, não é nem contra

nem a favor da religião. Mas faz questão de ser diferente dela.

Nesta disciplina, você verá como os primeiros fi lósofos

realizaram esse processo de separação do pensamento racional

em relação aos conhecimentos fundamentados na fé e na

autoridade eclesiástica. Você poderá acompanhar as principais

difi culdades enfrentadas nessa transformação de mentalidade.

Ao estudar a fi losofi a clássica, você terá a oportunidade

de perceber a complexidade dos grandes sistemas de

conhecimento construídos no auge da cultura grega. Sócrates,

Platão e Aristóteles foram gênios que dedicaram suas vidas a

formular sistemas teóricos consistentes e bem fundamentados,

para orientar as escolhas humanas.

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Você também verá como a decadência de Atenas levou ao

surgimento das fi losofi as helenísticas.

A complexidade do assunto não permitirá que nos aprofundemos

em nenhum tópico específi co, mas construir uma base sólida

para a compreensão das outras disciplinas do curso já é uma meta

satisfatória.

Espero que este livro seja útil para o seu amadurecimento

intelectual.

Bom estudo!

Professor Sérgio Sell

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Plano de estudo

O plano de estudos visa a orientá-lo(a) no desenvolvimento

da disciplina. Possui elementos que o(a) ajudarão a conhecer o

contexto da disciplina e a organizar o seu tempo de estudos.

O processo de ensino e aprendizagem na UnisulVirtual leva

em conta instrumentos que se articulam e se complementam,

portanto a construção de competências se dá sobre a

articulação de metodologias e por meio das diversas formas de

ação/mediação.

São elementos desse processo:

o livro didático;

o Espaço UnisulVirtual de Aprendizagem - EVA;

as atividades de avaliação (a distância, presenciais e de auto-avaliação);

o Sistema Tutorial.

Ementa

História da Filosofi a Antiga. A tradição Mítica: Homero

e Hesíodo. A Pólis Grega. O nascimento da Filosofi a. Os

pensadores pré-socráticos. O período clássico. O período

helenístico.

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Objetivos da disciplina

Geral

Identifi car um panorama dos principais períodos, escolas,

fi lósofos e conceitos que marcaram os primeiros dez séculos

da história da Filosofi a, com destaque especial para a fi losofi a

clássica e seus principais representantes: Sócrates, Platão e

Aristóteles.

Específi cos

Identificar geográfica, histórica e culturalmente o

nascimento e desenvolvimento inicial da Filosofia.

Identificar as noções fundamentais da mentalidade

filosófica.

Compreender os avanços e limites de cada nova teoria

proposta pelos filósofos antigos em suas tentativas de

superar seus antecessores.

Desenvolver a formação de um vocabulário técnico de

Filosofia.

Refletir sobre as origens do pensamento filosófico,

observando a lenta, porém irreversível, superação da

mentalidade mítica e a consolidação da mentalidade

ocidental.

Carga horária

A carga horária total da disciplina é de 60 horas-aula.

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História da Filosofi a I

Conteúdo programático/Objetivos

Veja, a seguir, as unidades que compõem o livro didático desta

disciplina e os seus respectivos objetivos. Estes se referem aos

resultados que você deverá alcançar ao fi nal de uma etapa de

estudo. Os objetivos de cada unidade defi nem o conjunto de

conhecimentos que você deverá possuir para o desenvolvimento

de habilidades e competências necessárias à sua formação.

Unidades de estudo: 6

Unidade 1 – A origem da Filosofi a

O estudo desta unidade possibilita identifi car os principais

fatores históricos que permitiram o surgimento da Filosofi a e a

superação da mentalidade mítica pela mentalidade racional

Unidade 2 – A fi losofi a pré-socrática

Nesta unidade, você conhecerá as principais etapas do

desenvolvimento da fi losofi a pré-socrática e compreenderá

os fatores históricos e políticos que condicionaram o

desenvolvimento inicial da Filosofi a.

Unidade 3 – Os sofi stas e Sócrates

Aqui você estudará os acontecimentos que fi zeram de Atenas o

maior centro da cultura grega antiga. Você poderá acompanhar o

surgimento de uma nova classe intelectual, os sofi stas, bem como

o surgimento da fi losofi a clássica com Sócrates.

Unidade 4 – Platão

Esta unidade lhe permitirá conhecer vários aspectos do

pensamento de Platão, um dos fi lósofos mais infl uentes em toda a

história da Filosofi a.

Unidade 5 – Aristóteles

Nesta unidade, você encontrará os principais elementos teóricos

que compõem o sistema aristotélico, o qual representa o auge da

fi losofi a clássica grega.

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Unidade 6 – O período helenístico

Finalizando nossos estudos, você encontrará nesta unidade

um resumo das principais idéias defendidas pelos fi lósofos do

helenismo. Aqui você poderá identifi car os fatores da decadência

de Atenas e acompanhar o surgimento e desenvolvimento das

escolas cínica, cética, epicurista e estóica.

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Agenda de atividades/ cronograma

Verifi que com atenção o EVA e organize-se para acessar periodicamente a sala da disciplina. O sucesso nos seus estudos depende da priorização do tempo para a leitura, da realização de análises e sínteses do conteúdo e da interação com os seus colegas e tutor.

Não perca os prazos das atividades. Registre no espaço a seguir as datas com base no cronograma da disciplina disponibilizado no EVA.

Use o quadro para agendar e programar as atividades relativas ao desenvolvimento da disciplina.

Atividades obrigatórias

Demais atividades (registro pessoal)

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UNIDADE 1

A origem da fi losofi a

Objetivos de aprendizagem

Identifi car os principais fatores históricos que permitiram o surgimento da fi losofi a.

Comparar as narrativas de Homero e Hesíodo com o nascente discurso fi losófi co-racional.

Compreender as principais diferenças entre o pensamento mítico e o pensamento fi losófi co.

Compreender as noções de physis, causalidade, arqué, cosmo, lógos e crítica.

Seções de estudo

Seção 1 O mito como forma de conhecimento

Seção 2 Apogeu e declínio da mitologia grega

Seção 3 A origem histórica da fi losofi a

Seção 4 Noções fundamentais da mentalidade fi losófi ca

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo

Pensar é uma atividade que faz parte do ser humano. Tentar

compreender nós mesmos e a realidade que nos cerca faz parte

da nossa natureza. A necessidade de saber quem somos, de

onde viemos, para onde vamos, buscar uma explicação para os

acontecimentos e compreender o sentido da vida – tudo isso está

presente em todas as civilizações, de forma às vezes mais, às

vezes menos elaborada.

Mas os gregos antigos inventaram uma forma original de lidar

com essas questões.

Nesta unidade de estudo, você vai poder identifi car quais foram

as peculiaridades desse jeito grego de pensar: o jeito fi losófi co-

científi co-racional.

A partir de agora, você é o nosso convidado nessa jornada às

origens da fi losofi a.

SEÇÃO 1 - O mito como forma de conhecimento

Historicamente, cada civilização construiu suas próprias formas

de compreender e explicar a realidade. Nos primórdios do

processo civilizatório, a carência de informações sistematizadas,

de métodos de investigação e de instrumentos de pesquisa faz

com que a explicação dos fenômenos naturais seja simplista

(às vezes, simplória), parcial e com uma forte tendência ao

subjetivismo.

A vida em sociedade exige que se estabeleça um conjunto de

verdades aceitas coletivamente. Sem essa base compartilhada

de crenças, a convivência em grupo não seria viável.

Mas como fazer com que todos os indivíduos de uma

sociedade aceitem as mesmas explicações como sendo as

verdadeiras? Uma saída simples e efi caz para esse problema é o

mito.

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História da Filosofi a I

Unidade 1

O mito consiste numa narrativa passada de geração a geração, contendo, geralmente, elementos que podem ser utilizados na explicação de fenômenos naturais ou na prescrição de condutas morais.

O mito não é apresentado como verdade absoluta, e sim como

um conhecimento elaborado por antigos ancestrais ou indivíduos

extraordinários que, por sua grande sabedoria ou até mesmo por

poderes sobrenaturais, teriam compreendido a realidade de uma

forma mais profunda.

Em cada cultura, os mitos mais fundamentais são os chamados “mitos de origem”, aqueles que narram a forma como o mundo foi criado e, mais especifi camente, como o ser humano e o próprio grupo social foram criados. Esse tipo de mito tem sido encontrado nas raízes de todas as culturas que conhecemos atualmente.

Um bom exemplo de um mito de origem é a narrativa que

encontramos no Gênesis, o primeiro livro da Bíblia Sagrada.

Nessa narrativa, temos uma descrição da origem do mundo a

partir da vontade de Deus. Segundo o Gênesis, o Deus único

produz o universo a partir do nada e gera também um ser

especial, o ser humano, para reinar sobre os outros seres. Essa

narrativa descreve também a origem do bem (a vontade de Deus)

e do mal (desobediência humana) e estabelece as bases da ação

moral. Além disso, ela descreve o surgimento de diferentes povos

e culturas e estabelece a idéia de “povo escolhido”.

O mito de origem serve para dar uma resposta àqueles

questionamentos mais fundamentais que nos afl igem quando

buscamos encontrar um sentido para a nossa própria existência: a

origem do mundo e do ser humano, a vida e a morte, o bem e o

mal, a saúde e a doença, a guerra e a paz, etc. É uma explicação

que serve de fundamento para todas as outras explicações.

Além dos mitos de origem, há também mitos mais específi cos,

que servem para explicar fenômenos particulares, como os ventos,

por exemplo, ou mesmo um acontecimento particular, como

por exemplo, a guerra de Tróia. Em todas as suas variedades,

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Universidade do Sul de Santa Catarina

o conhecimento mítico é uma resposta para tudo aquilo que

é inexplicável, quando se utilizam apenas as experiências já

acumuladas.

O conhecimento mítico possui algumas características e

limitações que o diferenciam de outros tipos de conhecimento

mais elaborados, disponíveis atualmente. Vejamos essas

características:

o mito é uma representação alegórica da realidade, uma

fantasia. Enquanto conhecimento da realidade, o mito

não possui a intenção de ser uma explicação exata. Ao

contrário, ele possui apenas uma signifi cação simbólica.

Desta forma, o mito é uma fi cção que serve de analogia

para que se possa compreender a realidade;

o mito utiliza elementos sobrenaturais para explicar

os fenômenos naturais. Ele se torna útil justamente

quando não conseguimos dar uma explicação racional

para os fatos do cotidiano. Quando temos necessidade de

superar um problema cognitivo, o mito surge como uma

estratégia efi caz, que consiste em empurrar o problema

para fora do alcance das nossas angústias mais ordinárias.

Querer saber por que está ventando é uma pretensão

cognitiva legítima. Mas, se não houver nenhuma

resposta convincente para essa questão, uma boa saída é

afi rmar simplesmente que o deus do vento está fazendo

ventar. Por outro lado, querer saber por que o deus do

vento está fazendo ventar já extrapola os limites das

nossas pretensões cognitivas legítimas. O recurso ao

sobrenatural é a saída mais fácil e efi caz sempre que se

esgotam as possibilidades da explicação racional;

o mito é maleável. Embora tenha uma estrutura que

se mantém mais ou menos inalterada, certos detalhes

podem ser deixados de lado ou suprimidos, ou, ao

contrário, podem ser supervalorizados, dependendo de

cada situação ou da intenção de quem faz a narrativa.

Além disso, como vai passando de geração a geração, o

mito vai-se modifi cando ao longo do tempo e adaptando-

se a novas situações;

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História da Filosofi a I

Unidade 1

o mito envolve uma carga muito grande de

subjetividade. Já na sua origem, o mito é uma

representação subjetiva e arbitrária, dado que ele precisa

ser criado por alguém. Todo mito tem um autor, alguém

que contou a estória pela primeira vez. É claro que, ao

ser contada novamente por outra pessoa, essa estória vai

ganhar novas nuanças. Cada novo narrador torna-se co-

autor do mito. Cada um dá a sua contribuição subjetiva à

narração;

embora envolva uma grande dose de subjetividade, o

mito é sempre um fenômeno cultural. Trata-se de uma

narrativa de domínio público e funciona como uma

representação da verdade que é aceita, de forma implícita,

por cada um dos membros da coletividade. O próprio

fato da aceitação de um mito por um determinado

indivíduo pode ser tomado como critério para a sua

inclusão, ou não, em um determinado grupo social. A

aceitação geral do mito, sem questionamentos, serve

como um elemento que reforça a unidade de um povo.

Para que o mito possa alcançar plenamente a sua fi nalidade, é

comum o encontrarmos, no processo civilizatório, associado a

mecanismos de imposição social. Cada indivíduo, como membro

de um grupo marcado por uma identidade cultural, deve

aceitar como adequadas as explicações dadas pela tradição, sem

questioná-las.

Além disso, o mito possui vários mecanismos de convencimento.

O principal é a educação. Para garantir que os mitos não

se percam com o passar do tempo, eles são incorporados na

formação das novas gerações. Assim, as crianças precisam

conviver, desde pequenas, com as narrativas míticas. O

conhecimento dos mitos e a capacidade de narrá-los de forma

completa e detalhada passam a constituir um dos sinais de

refi namento cultural.

Mas só a educação não é sufi ciente para garantir a aceitação

universal do mito. Por isso um segundo mecanismo de sua

imposição social é a religião. É comum encontrarmos nas

sociedades mais antigas a função de explicação dos fenômenos da

realidade associada à função religiosa. Isso faz sentido na medida

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Universidade do Sul de Santa Catarina

em que ambas fazem referência a elementos sobrenaturais. Assim,

traçar os limites entre mitologia e religião pode ser uma tarefa

difícil ou mesmo impossível.

Um terceiro mecanismo de imposição do mito é o poder

político. Na maioria das civilizações o poder político surge e

se desenvolve intimamente associado ao poder religioso. Dessa

forma, a aceitação geral e incondicional de certos mitos interessa

ao Estado. Neste sentido, o poder político se encarrega de

estabelecer normas que obriguem a aceitação de certas versões de

um mito em detrimento de outras versões e de outros mitos.

Atenção!

Como você pode ver, o mito tem um papel fundamental no fl orescimento de uma cultura. Mas o conhecimento mítico tem muitas limitações também.

Entre as limitações do conhecimento mítico, podemos destacar

duas fundamentais: sua reduzida capacidade explicativa e sua

restrita abrangência populacional.

A primeira grande limitação do mito é a falta de uma base

concreta que sustente suas explicações. Como vimos, o

conhecimento mítico é elaborado para suprir as carências do

conhecimento empírico; trata-se de uma explicação alegórica

para aquilo que é inexplicável a partir dos dados da experiência.

O mito é uma explicação forjada, sem compromisso com a

verdade.

A outra grande limitação tem uma feição política. Todo mito é

sempre fruto de uma cultura. E toda cultura tem seus mitos. Isso

faz com que toda vez que ocorra um contato entre duas ou mais

culturas, surja um confl ito entre mitos. Quando o mito determina

a compreensão da própria existência de um grupo social e da

realidade que o cerca, um confronto entre mitos implica um

confl ito existencial para toda uma população. O choque entre

mitos concorrentes coloca em risco a própria identidade cultural

de um povo. Isso faz com que o diálogo intercultural torne-se

algo indesejável nas sociedades que se fundamentam sobre mitos,

levando-as ao fundamentalismo e à intolerância.

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História da Filosofi a I

Unidade 1

Atenção!

Como você pode ver, o mito possui qualidades e vantagens que seduzem o ser humano. Mas também apresenta desvantagens e riscos que não podem deixar de ser levados em consideração.

Na Antigüidade mais remota, todas as grandes civilizações

cresceram sustentadas pelos mitos. Entretanto, por volta do

séc. VI a.C., uma civilização emergente, que até então se

desenvolvera alicerçada nos mitos, vislumbrou um caminho

diferente. Era a civilização grega que, devido a uma confl uência

de fatores históricos, geográfi cos e culturais, tornou-se o berço da

democracia, da fi losofi a e da ciência. Eles não sabiam, mas esse

novo caminho mudaria a história da humanidade.

É essa nova proposta civilizatória que nós veremos a partir da

próxima seção.

SEÇÃO 2 - Apogeu e declínio da mitologia grega

A mitologia grega formou-se a partir da tradição oral popular.

Para facilitar a memorização, as narrativas mitológicas

eram transformadas em poemas, que se decoravam e eram

costumeiramente recitados como entretenimento. Com o passar

do tempo, surge na Grécia uma classe artística composta de

aedos (poetas que recitavam suas próprias composições) e

rapsodos (artistas que recitavam poemas de outros autores ou

mesmo poemas de domínio público). As comemorações religiosas

e cívicas costumavam ser abrilhantadas pela participação de aedos

e rapsodos, alguns dos quais se tornaram personalidades ilustres

da história grega.

Homero

O mais famoso poeta grego foi Homero (séc. IX a.C.). Costuma-

se atribuir a ele a autoria de dois poemas épicos: a Ilíada e a

Odisséia. Homero era cego e, talvez por isso, tenha desenvolvido

a habilidade de memorização de forma tão extraordinária: a

Ilíada é formada por 15.693 versos e a Odisséia, por 12.110. As

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Universidade do Sul de Santa Catarina

apresentações de Homero consistiam em espetáculos que

duravam vários dias e atraíam multidões. Homero tornou-se

um grande ídolo. Muitos poetas tentavam imitá-lo. O público

se esforçava em decorar pelo menos algumas dezenas de versos,

para conferir se o poeta era capaz de repetir exatamente os

mesmos versos em uma outra apresentação.

O sucesso de Homero ajudou a difundir o dialeto que ele usava

nos poemas, e isto foi decisivo para conferir certa unidade

lingüística à cultura grega. As histórias de deuses e heróis

passaram a fazer parte do imaginário coletivo. A memorização

dos versos mais famosos e a incorporação dos ideais neles

contidos tornaram-se a base da educação grega.

Mas qual era a concepção de mundo dos poemas de Homero?

Os poemas de Homero relatam os feitos dos grandes heróis, seres

extraordinários, de sangue nobre, notáveis por sua virtude (areté)

e que deveriam ser vistos como modelo para a ação humana. As

virtudes desse herói são a coragem, a força física, a habilidade

no uso de armas, o poder de persuasão através do discurso e,

principalmente, a lealdade. Para o herói das epopéias homéricas,

a honra vale mais que a própria vida. E, em busca dessa honra, o

herói deve esforçar-se para se sobressair e para que seu nome seja

lembrado por incontáveis gerações. O herói homérico é aquele

que luta continuamente para superar em qualidades todos que o

cercam e também para superar a si mesmo.

A ação do herói, no entanto, é limitada pelo destino e sofre

constantemente a interferência dos deuses. O destino, uma vez

traçado, não pode mais ser alterado. Além disso, o herói precisa

compreender que, sem a ajuda dos deuses, ele se torna incapaz de

alcançar seus objetivos. A pior desgraça na vida humana, mesmo

para um herói, é o ódio dos deuses. Portanto o complemento

necessário das virtudes do herói é a piedade (a devoção e o

respeito aos deuses).

Figura 1.1 – O poeta Homero.Fonte: <http://monomito.fi les.wordpress.com/2006/12/homero.jpg>.

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História da Filosofi a I

Unidade 1

Hesíodo

Outro poeta fundamental para o desenvolvimento da

mitologia grega foi Hesíodo (séc. VIII a.C.). Como

aedo, Hesíodo tornou-se famoso e reverenciado por toda

a cultura grega.

Em sua obra Teogonia (do grego theos: deus, e gonia:

origem), Hesíodo faz uma compilação bastante

completa da origem e genealogia dos deuses. Hesíodo

sistematizou os antigos mitos da criação e organizou as

relações entre deuses e heróis numa seqüência lógica.

A genealogia é composta por três gerações: a de Urano

(céu), a de Cronos (tempo) e a de Zeus.

Numa outra obra, Os Trabalhos e os Dias, Hesíodo situa

a origem da humanidade em uma etapa da sucessão de raças

em decadência: à raça de ouro seguem-se as raças de prata,

de bronze, a dos heróis e, por fi m, a raça de ferro, à qual nós

próprios pertencemos. Assim, Hesíodo desqualifi ca a origem

nobre como elemento fundamental da virtude. Se todos nós

somos descendentes decaídos de raças mais elevadas, não é

a origem familiar que nos torna melhores, ou piores. Dessa

forma, Hesíodo nivela todos os seres humanos. Para ele, o que

realmente nos diferencia é o esforço individual na busca da

excelência.

Em Hesíodo, a interferência dos deuses sobre a ação humana é

minimizada. Embora os deuses tenham interferido nas ações das

outras raças, inclusive nas ações dos heróis, nossa raça tornou-

se insignifi cante para eles e fi cou entregue a si mesma. A busca

da excelência (areté) através do esforço pessoal é a única forma

de que o ser humano agora dispõe para fugir dos infortúnios da

vida. Os deuses, embora existam e tenham poder para interferir

na vida humana, se distanciam e passam a se preocupar consigo

mesmos.

Essas duas inovações de Hesíodo, o nivelamento da espécie humana e o distanciamento dos deuses, formaram as bases ideológicas para o aparecimento da democracia e para a laicização da cultura grega.

Figura 1.2 – O poeta Hesíodo.Fonte: <www.ufmg.br/online/arquivos/Hesiodo-thumb.gif>.

Laicização: processo de tornar laico ou de desvincular de conotações religiosas.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

SEÇÃO 3 - A origem histórica da fi losofi a

A temática sobre as origens da fi losofi a é tão antiga como sua

consolidação em forma de pensamento (tipo de conhecimento).

Já, na Antigüidade, há o debate entre a tese orientalista e a

ocidentalista.

A primeira defende que os gregos nada fi zeram além de

aperfeiçoar elementos do pensamento oriental. A segunda

defende a tese do milagre grego, tomando a fi losofi a como uma

criação puramente grega.

Este debate perdurou até o fi nal do século XIX, mudando com

as novas descobertas arqueológicas do fi nal do século XIX e

início do século XX, com a confl uência de novas pesquisas da

lingüística e da antropologia, particularmente quanto ao estudo

da mentalidade primitiva ou arcaica.

Passa-se, então, a procurar entender de que modo, num dado

ambiente e em certas condições históricas, a mentalidade mítica

foi dando lugar à mentalidade fi losófi co-científi ca. Não se trata

mais de pensar a fi losofi a como um milagre, no sentido religioso;

tampouco pensá-la como mero legado do Oriente. Certamente os

gregos antigos desenvolveram o legado oriental e são devedores

deste: a matemática e a astronomia constituem bons exemplos

disto. Contudo muitos historiadores contemporâneos defendem

que a fi losofi a, enquanto uma forma de pensamento, uma

teorização, é uma invenção grega.

Jean-Paul Vernant, um helenista, defende ter sido uma série

de condições sociopolíticas que levaram a esta mudança de

mentalidade. Marilena Chaui (2000a, p. 31-32), em parte,

fundamentando-se neste helenista, resume essas condições:

Helenista: estudioso que se dedica a investigar a história e a cultura da Grécia antiga.

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História da Filosofi a I

Unidade 1

as viagens marítimas, que permitiram aos gregos descobrir que os locais que os mitos diziam habitados por deuses, titãs e heróis eram, na verdade, habitados por outros seres humanos; e que as regiões dos mares que os mitos diziam habitados por monstros e seres fabulosos não possuíam nem monstros nem seres fabulosos. As viagens produziram o desencantamento ou a desmistifi cação do mundo, que passou, assim, a exigir uma explicação sobre sua origem, explicação que o mito já não podia oferecer;

a invenção do calendário, que é uma forma de calcular o tempo segundo as estações do ano, as horas do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, com isso, uma capacidade de abstração nova, ou uma percepção do tempo como algo natural e não como um poder divino incompreensível;

a invenção da moeda, que permitiu uma forma de troca que não se realiza através das coisas concretas ou dos objetos concretos trocados por semelhança, mas uma troca abstrata, uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de abstração e de generalização;

o surgimento da vida urbana, com predomínio do comércio e do artesanato, dando desenvolvimento a técnicas de fabricação e de troca, e diminuindo o prestígio das famílias da aristocracia proprietária de terras, por quem e para quem os mitos foram criados; além disso, o surgimento de uma classe de comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos de poder e de prestígio para suplantar o velho poderio da aristocracia de terras e de sangue (as linhagens constituídas pelas famílias), fez com que se procurasse o prestígio pelo patrocínio e estímulo às artes, às técnicas e aos conhecimentos, favorecendo um ambiente onde a Filosofi a poderia surgir;

a invenção da escrita alfabética, que, como a do calendário e a da moeda, revela o crescimento da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que a escrita alfabética ou fonética, diferentemente de outras escritas -- como por exemplo, os hieróglifos dos egípcios ou os ideogramas dos chineses -- , supõe que não se represente uma imagem da coisa que está sendo dita, mas a idéia dela, o que dela se pensa e se transcreve;

a invenção da política, que introduz três aspectos novos e decisivos para o nascimento da Filosofi a:

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Universidade do Sul de Santa Catarina

a idéia da lei como expressão da vontade de uma

coletividade humana que decide por si mesma o que é

melhor para si e como ela defi nirá suas relações internas. O

aspecto legislado e regulado da cidade - da pólis - servirá de

modelo para a Filosofi a propor o aspecto legislado, regulado

e ordenado do mundo como um mundo racional;

o surgimento de um espaço público, que faz aparecer um

novo tipo de palavra ou de discurso, diferente daquele

que era proferido pelo mito. Neste, um poeta-vidente, que

recebia das deusas ligadas à memória (a deusa Mnemosyne,

mãe das Musas, que guiavam o poeta) uma iluminação

misteriosa ou uma revelação sobrenatural, dizia aos

homens quais eram as decisões dos deuses a que eles

deveriam obedecer. Agora, com a pólis, isto é, a cidade

política [cidade-estado], surge a palavra como direito de

cada cidadão de emitir em público sua opinião, discuti-la

com os outros, persuadi-los a tomar uma decisão proposta

por ele, de tal modo que surge o discurso político como a

palavra humana compartilhada, como diálogo, discussão

e deliberação humana, isto é, como decisão racional e

exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não

fazer alguma coisa. A política, valorizando o humano, o

pensamento, a discussão, a persuasão e a decisão racional,

valorizou o pensamento racional e criou condições para que

surgisse o discurso ou a palavra fi losófi ca;

a política estimula um pensamento e um discurso que não

procuram ser formulados por seitas secretas dos iniciados

em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário,

ser públicos, ensinados, transmitidos, comunicados e

discutidos. A idéia de um pensamento que todos podem

compreender e discutir, que todos podem comunicar e

transmitir, é fundamental para a Filosofi a.

[Uma versão deste texto está disponível no endereço eletrônico:

<http://www.cfh.ufsc.br/~wfi l/convite.pdf>. Acesso em: 31 jan. 2008.]

1.

2.

3.

Page 29: História da Filosofia Antiga

29

História da Filosofi a I

Unidade 1

Esta passagem de uma narrativa mítica (caracterizada por um

discurso sacralizante, que busca dar conta das origens, não

como produto de um ser humano transformador, mas de uma

divindade [ou divindades], que traça [ou traçam] o destino dos

seres humanos) para uma narrativa centrada na racionalidade

– o lógos – não se deu repentinamente, e muitos elementos que

encontramos nos primeiros fi lósofos – os pré-socráticos – ainda

carregam aspectos míticos.

SEÇÃO 4 - Noções fundamentais da mentalidade fi losófi ca

De acordo com Danilo Marcondes (2001, p. 22-27), algumas

noções são fundamentais para entendermos a diferenciação entre

o pensamento mítico e o fi losófi co-científi co. São elas: a physis, a

causalidade, a arqué (ou arkhé), o cosmo, o lógos e o caráter crítico.

Veja-as em detalhes, na seqüência.

1 - A physis

Esta palavra grega pode ser traduzida por natureza, entendendo

esta em, pelo menos, três sentidos, conforme Chaui (2000b, p.

257):

1) processo de nascimento, surgimento, crescimento

(sentido derivado do verbo phýomai); 2) disposição

espontânea e natureza própria de um ser; características

naturais e essenciais de um ser; aquilo que constitui a

natureza de um ser; 3) força originária criadora de todos

os seres, responsável pelo surgimento, transformação e

perecimento deles. Physis é o fundo inesgotável de onde

vem o Kósmos; e é fundo perene para onde regressão todas

as coisas, a realidade primeira e última de todas as coisas.

Assim, a physis é o mundo natural, a totalidade dos entes, a

totalidade daquilo que é.

Page 30: História da Filosofia Antiga

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Universidade do Sul de Santa Catarina

2 - A causalidade

Esta totalidade, reforça Marcondes (2001, p. 24-25), é

engendrada (produzida) por uma relação de causa e efeito.

A característica central da explicação da natureza

pelos primeiros fi lósofos é, portanto, o apelo à noção

de causalidade, interpretada em termos puramente

naturais. O estabelecimento de uma conexão causal

entre determinados fenômenos naturais constitui assim

a forma básica da explicação científi ca e é, em grande

parte, por esse motivo que consideramos as primeiras

tentativas de elaboração de teorias sobre o real como o

início do pensamento científi co. Explicar é relacionar um

efeito a uma causa que o antecede e determina. Explicar

é, portanto, reconstruir o nexo causal existente entre os

fenômenos da natureza, é tomar um fenômeno como

efeito de uma causa. É a existência desse nexo que torna a

realidade inteligível e nos permite considerá-la como tal.

É importante, entretanto, que o nexo causal se dê entre

fenômenos naturais. Isto porque podemos considerar

que o pensamento mítico também estabelece explicações

causais. Assim, na narrativa da guerra de Tróia na Ilíada

de Homero, vemos os deuses tomar o partido dos gregos

e dos troianos e infl uenciar os acontecimentos em favor

destes ou daqueles, portanto, fenômenos humanos e

naturais têm nesse caso causas sobrenaturais. Trata-se de

uma explicação causal, porém dada através da referência

a causas sobrenaturais. É por isso que o que distingue a

explicação fi losófi co-cientí fi ca da mítica é a referência

apenas a causas naturais.

A explicação causal possui, entretanto, um caráter

regressivo. Ou seja, explicamos sempre uma coisa por

outra e há assim a possibilidade de se ir buscando uma

causa anterior, mais básica, até o infi nito. Cada fenômeno

poderia ser tomado como efeito de uma nova causa, que

por sua vez seria efeito de uma causa anterior, e assim

sucessivamente, em um processo sem fi m. Isso, contudo,

invalidaria o próprio sentido da explicação, pois, mais

uma vez a explicação levaria ao inexplicável, a um misté-

rio, portanto, tal como no pensamento mítico.

Para evitar que isso aconteça, surge a necessidade de se

estabelecer uma causa primeira, um primeiro princípio, ou

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História da Filosofi a I

Unidade 1

No geral, para os gregos antigos, certos conceitos têm concomitantemente um sentido estético, ético, utilitário e ontológico. Mesmo assim, cabe salientar que, nos pensadores originários – os pré-socráticos -, a relação entre ética e estética ainda não está totalmente consolidada. É a partir de Sócrates, particularmente como a noção de kalokagathia – ser belo e bom – que isto se consolidará. Contudo este aspecto em particular será tema de outra disciplina: a Estética.

conjunto de princípios, que sirva de ponto de partida para todo o

processo racional. É aí que encontramos a noção de arqué.

3 - Arqué (ou arkhé)

A arqué é o princípio originário. Tem também o sentido de

comando e, como aponta Marcondes (2001, p. 25-26), serve para

resolver o problema da causalidade ao infi nito.

A importância da noção de arqué está exatamente na

tentativa por parte desses fi lósofos de apresentar uma

explicação da realidade em um sentido mais profundo,

estabelecendo um princípio básico que permeie toda a

rea1idade, que de certa forma a unifi que, e que ao mesmo

tempo seja um elemento natural. Ta1 princípio daria

precisamente o caráter geral a esse tipo de explicação,

permitindo considerá-la como inaugurando a ciência.

Mais à frente você verá como a arkhé foi tratada por cada um dos

fi lósofos originários – os pré-socráticos.

4 - O cosmo

Em grego, cosmo signifi ca ordenado, ornado. Tendo presente

estas acepções, podemos entender o cosmo como belo – logo,

um princípio, também, estético –, pois o que é bem ordenado,

harmônico, é belo e justo. Neste sentido, diz Marcondes (2001,

p. 26) que

O cosmo é assim o mundo natural, bem como o espaço

celeste, enquanto rea1idade ordenada de acordo com

certos princípios racionais. A idéia básica de cosmo é,

portanto, a de uma ordenação racional, uma ordem

hierárquica, em que certos elementos são mais básicos,

e que se constitui de forma determinada, tendo a

causalidade como 1ei principal. O cosmo, entendido

assim como ordem, opõe-se ao caos ( , que seria

precisamente a falta de ordem, o estado da matéria

anterior à sua organização. É importante notar que

a ordem do cosmo é uma ordem racional, “razão”

signifi cando aí exatamente a existência de princípios e leis

que regem, organizam essa rea1idade. É a racionalidade

deste mundo que o torna compreensível, por sua vez, ao

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Universidade do Sul de Santa Catarina

entendimento humano. É porque há na concepção grega

o pressuposto de uma correspon¬dência entre a razão

humana e a racionalidade do real – o cosmo – que este

real pode ser compreendido, pode-se fazer ciência, isto

é, pode-se tentar explicá-lo teoricamente. Daí se origina

o termo “cosmo1ogia”, como explicação dos processos e

fenômenos naturais e como teoria geral sobre a natureza e

fundamento do universo.

5 - O lógos

Lógos, a principal noção fi losófi ca, pode ser traduzida por

palavra, discurso, “razão”. É a narrativa explicativa, a qual supõe

encadeamento de juízos de forma coerente e o estabelecimento

das relações de causa e efeito racionalmente. Neste sentido,

difere-se de mythos – o discurso mítico, dos poetas, pois, neste,

certos princípios lógicos não são necessários. Para reforçar tudo

isto, tomemos Marcondes (2001, p. 26-27) novamente:

O lógos é fundamentalmente uma explicação, em que

razões são dadas. É nesse sentido que o discurso dos

primeiros fi lósofos, que explica o real por meio de causas

naturais, é um lógos. Essas razões são fruto não de uma

inspiração ou de uma reve1ação, mas simplesmente

do pensamento humano aplicado ao entendimento da

natureza. O lógos. É, portanto, o discurso racional,

argumentativo, em que as explicações são justifi cadas e

estão sujeitas à crítica e à discussão (ver tópico seguinte).

Daí deriva, por exemplo, o nosso termo “lógica”. Porém,

o próprio Heráclito caracteriza a realidade como tendo

um lógos, ou seja, uma racionalidade (ver o conceito de

cosmo acima) que seria captada pela razão humana.

Portanto um dos pressupostos básicos da visão dos

primeiros fi lósofos é a correspondência entre a razão

humana e a racionalidade do real, o que tomaria possível

um discurso racional sobre o real.

6 - O caráter crítico

Essa é a verdadeira essência da atitude fi losófi ca. Diferente das

noções anteriores, que são teóricas, esta é uma noção prática,

relacionada à atitude necessária para que se possa pensar

fi losofi camente. Baseado em Popper, Marcondes (2001, p. 27)

descreve assim esta noção:

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História da Filosofi a I

Unidade 1

Um dos aspectos mais fundamentais do saber que se

constitui nessas primeiras escolas de pensamento,

sobretudo na escola jônica, é seu caráter crítico. Isto é,

as teorias aí formuladas não o eram de forma dogmática,

não eram apresentadas como verdades absolutas e

defi nitivas, mas como passíveis de serem discutidas, de

susci tarem divergências e discordâncias, de permitirem

formulações e propostas alterna tivas. Como se trata de

construções do pensamento humano, de idéias de um

fi lósofo – e não de verdades reveladas, de caráter divino

ou sobrenatural –, estão sempre abertas à discussão,

à reformulação, a correções. O que pode ser ilustrado

pelo fato de que, na escola de Mileto, os dois principais

seguidores de Tales, Anaxímenes e Anaximandro,

não aceitaram a idéia do mestre de que a água seria o

elemento pri mordial, postulando outros elementos,

respectivamente o ar e o apeiron, como tendo esta função.

Isso pode ser tomado como sinal de que nessa escola

fi losófi ca o debate, a divergência e a formulação de

novas hipóteses eram estimulados. A única exigência era

que as propostas divergentes pudessem ser justifi cadas,

explicadas e fundamen tadas por seus autores, e que

pudessem, por sua vez, ser submetidas à crítica.

Síntese

Entre os séculos X e VI a.C., os gregos antigos inventaram uma

forma original de explicar a realidade. Essa nova forma de pensar

se caracteriza por uma valorização do ser humano enquanto

parâmetro para compreender o universo, e se opõe às explicações

baseadas em decisões divinas e em forças sobrenaturais.

Uma série de condições sociopolíticas contribuíram para o

desenvolvimento dessa nova mentalidade. Entre elas, podemos

destacar as viagens marítimas, o surgimento da vida urbana e

a invenção do calendário, da moeda, da escrita alfabética e da

política.

Esta passagem de uma mentalidade mítica para uma mentalidade

centrada na racionalidade ocorreu de forma lenta e gradual. Mas,

a partir do séc. VI a.C., já é possível identifi car algumas noções

fundamentais da mentalidade fi losófi ca: a physis, a causalidade, a

arqué, o cosmo, o lógos e o caráter crítico.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Atividades de auto-avaliação

Ao fi nal de cada unidade, você realizará atividades de auto-avaliação. O gabarito está disponível no fi nal do livro-didático. Mas se esforce para resolver as atividades sem ajuda do gabarito, pois, assim, você estará promovendo (estimulando) a sua aprendizagem.

1. Em relação às condições sociopolíticas que levaram ao declínio da mentalidade mítica e ao surgimento da mentalidade fi losófi ca, numere a 2a coluna de acordo com a 1a (alguns números se repetem):

1) Viagens marítimas a) ( ) produz uma capacidade de abstração nova, tornando a percepção do tempo como algo natural, e não como um poder divino.

2) Invenção do calendário b) ( ) estimula uma nova formulação das explicações, que seja acessível à compreensão de todos, e não mais apenas de uma minoria de iniciados.

3) Invenção da moeda c) ( ) produz o desencantamento e a desmistifi cação do mundo.

4) Surgimento da vida urbana

d) ( ) faz aparecer um novo tipo de discurso, fundado no diálogo, na discussão e na persuasão, diferente daquele que era proferido pelo mito e que pretendia ter sua origem em uma revelação sobrenatural.

5) Invenção da escrita alfabética

e) ( ) produz mudanças econômicas e sociais como a valorização do comércio e do artesanato e a diminuição do prestígio da aristocracia proprietária de terras, para quem os mitos foram criados.

6) Invenção da política f) ( ) revela uma nova capacidade de abstração e de generalização, que permite comparar coisas totalmente diferentes.

g) ( ) introduz a idéia de lei como expressão da vontade humana.

h) ( ) revela o crescimento da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que permite representar idéias abstratas.

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História da Filosofi a I

Unidade 1

2. A invenção da fi losofi a na Grécia antiga representou o surgimento de uma nova forma de pensar. Isto não signifi ca que as outras formas desapareceram totalmente. Ao contrário, até hoje encontramos formas de compreender e explicar a realidade que são amplamente difundidas e que não se enquadram nas exigências que caracterizam a fi losofi a. Um bom exemplo disto é a religião. O Livro Gênesis (1º livro da Bíblia), por exemplo, narra a origem do mundo e da humanidade, e o faz de uma forma totalmente diferente da forma fi losófi ca. Propomos, então, que você identifi que essa diferença, seguindo este roteiro:

a) identifi que as noções fundamentais da mentalidade fi losófi ca;

b) leia a parte inicial do Gênesis (Basta ler o capítulo 1. Caso você não tenha uma Bíblia, consulte o e-book respectivo, disponível na Internet, e acessível por seu buscador e navegador preferido);

c) verifi que, uma a uma, se as noções fundamentais da mentalidade fi losófi ca estão contempladas no texto bíblico.

Que resultado você encontrou?

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Universidade do Sul de Santa Catarina

3. Vamos aprender grego?

Escreva a palavra grega que corresponde a cada um dos vocábulos abaixo:

a) origem; elemento primordial:

b) natureza: _______________

c) razão:

d) cidade-Estado:

e) virtude/excelência:

f) ordenado [aquilo que está em ordem]:

g) desordenado:

Saiba Mais

Se você desejar, aprofunde os conteúdos estudados nesta unidade,

consultando as seguintes referências:

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da

fi losofi a: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 6. ed. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

CHAUI, Marilena. Convite à fi losofi a. São Paulo:

Ática, 2000a.

CHAUI, Marilena. Introdução à história da fi losofi a.

São Paulo: Companhia das Letras, 2000b.

Page 37: História da Filosofia Antiga

UNIDADE 2

A fi losofi a pré-socrática

Objetivos de aprendizagem

Identifi car as principais etapas de desenvolvimento da fi losofi a pré-socrática.

Diferenciar as principais escolas pré-socráticas.

Identifi car os principais representantes de cada escola e seus principais conceitos.

Compreender avanços e limites de cada teoria.

Identifi car e compreender fatores históricos e políticos que condicionaram o desenvolvimento inicial da Filosofi a.

Habituar-se ao vocabulário da fi losofi a grega.

Seções de estudo

Seção 1 Contexto histórico e localização geográfi ca

Seção 2 A escola jônica

Seção 3 A escola pitagórica

Seção 4 Xenófanes e a escola eleática

Seção 5 Os fi lósofos pluralistas

Seção 6 A escola atomista

Seção 7 O sentido geral da fi losofi a pré-socrática

2

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo

A partir do séc. VI a.C. ocorre na Grécia uma gradativa

laicização da cultura. Os poemas de Homero e Hesíodo, outrora

considerados fonte de conhecimento da realidade, perdem a sua

relevância explicativa pouco a pouco e vão passando à categoria

de “cultura supérfl ua” e, sobre certas questões, até mesmo

“danosa”.

A necessidade de compreender a natureza de forma racional

implica, então, buscar novas formas de explicar o que e como

as coisas são e por que são como são. Nessa busca, os primeiros

fi lósofos vão esbarrar em diversas difi culdades, mas também vão

alcançando algumas vitórias e vencendo etapas importantes.

É essa jornada que vamos acompanhar a partir de agora.

SEÇÃO 1 - Contexto histórico e localização geográfi ca

Antes de falar dos primeiros fi lósofos, é necessário fazer mais

alguns esclarecimentos sobre o contexto em que surgiu a

Filosofi a.

A Grécia antiga, o berço da Filosofi a, não era um país. Era, de

fato, um conjunto de dezenas de pequenos países, ou cidades-

Estado (pólis). O que ligava esses países era a sua cultura. O

idioma grego, com pequenas variações, era falado em todas as

poleis. Poetas e rapsodos iam de cidade em cidade, apresentando-

se em festivais e datas comemorativas, e disseminavam os mitos

de Homero, Hesíodo e de outros autores.

Essa unidade cultural teve origem em questões históricas (como

a formação do próprio povo heleno através de uma sucessão de

invasões do território grego por povos indo-europeus – Jônios,

Eólios, Aqueus e Dórios), características geográfi cas (relevo

acidentado, solo pouco fértil, proximidade do mar, grande

número de ilhas, etc.) e militares (as cidades-Estado eram

incapazes de enfrentar sozinhas as nações mais poderosas, mas,

quando unidas, eram consideradas invencíveis).

Poleis é o plural de pólis.

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História da Filosofi a I

Unidade 2

Os gregos se autodenominavam helenos, e a Grécia, que não era um país, e sim um conjunto de cidades-Estado, era chamada de Hélade.

A principal atividade econômica dos gregos era o comércio

marítimo. Para garantir seus interesses, os gregos fundaram

diversas colônias encravadas em territórios de outros países,

algumas delas implantadas através de guerras e invasões, outras

estabelecidas através de acordos pacífi cos com grandes reinos.

É nessas colônias que a Filosofi a surge e se desenvolve ao longo

de quase dois séculos, antes de chegar à pólis de Atenas, onde

encontra o seu apogeu na cultura helênica. Veja na fi gura 2.1

uma representação dos domínios helênicos.

Figura 2.1 - O mundo grego nos séculos V e IV a.C.Fonte: <http://www.cfh.ufsc.br/~wfi l/cienciagrega.htm>.

Hoje, os fi lósofos dessa fase inicial da história da Filosofi a

costumam ser chamados de pré-socráticos. Os pré-socráticos

são os “criadores” da Filosofi a. Infelizmente, todas as obras

escritas por esses pensadores acabaram perdendo-se ao longo

dos milênios que historicamente nos separam deles. O pouco

que nós conhecemos da fi losofi a dos pré-socráticos nos chegou,

principalmente, a partir de textos de autores clássicos os quais

citam trechos das obras que se perderam ou fazem alguma

referência clara ao conteúdo de tais obras.

Atualmente, temos dois tipos de fonte em que podemos nos

basear para reconstruirmos como foi o pensamento dos primeiros

fi lósofos: os fragmentos e a doxografi a.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Fragmento é uma parte de um texto que foi preservada, apesar de a obra completa ter-se perdido. Muitas vezes são frases transcritas em obras de outros autores antigos.

Doxografi a são comentários, avaliações e explicações que outros autores antigos fi zeram sobre as idéias defendidas por esses fi lósofos cujos textos se perderam. Às vezes são resumos que fi lósofos ou historiadores antigos fi zeram das idéias defendidas por algum outro pensador.

Os pré-socráticos podem ser classifi cados em cinco grupos: os

jônios, os pitagóricos, os eleatas, os pluralistas e os atomistas.

Para ampliar seus conhecimentos sobre a fi losofi a pré-socrática,

acompanhe explicações sobre cada um destes grupos.

SEÇÃO 2 - A Escola Jônica

A partir do séc. XII a.C., os gregos estabeleceram diversas

colônias nas ilhas do Mar Egeu e na costa oeste da Ásia Menor

(território que hoje faz parte da Turquia). Nos séculos VII e

VI a.C., essa região, na época chamada de Jônia, passa a ser

o principal pólo de desenvolvimento econômico da Grécia

devido à sua posição estratégica para o controle do comércio

no Mediterrâneo. Na mais importante dessas colônias, a pólis

de Mileto, nasceu a Filosofi a. Mileto foi o primeiro centro

intelectual da Filosofi a. Sua infl uência durou até a destruição

total da cidade pelos persas, no ano de 494 a.C. Além de

Mileto, a pólis de Éfeso também se destacou como um centro de

discussão fi losófi ca na Jônia.

Numa tradição que remonta a Aristóteles, costuma-se considerar

Tales de Mileto (640 -- 562 a.C.) como sendo o primeiro fi lósofo,

seguido de Anaximandro (610 -- 547 a.C.) e de Anaxímenes (585

-- 528 a.C.), ambos também de Mileto, e de Heráclito de Éfeso

(540 -- 470 a.C.).

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História da Filosofi a I

Unidade 2

Por que Tales é considerado o primeiro fi lósofo?

O que ele fez de diferente?

Caracteriza o trabalho de Tales e dos outros pensadores jônios

a tentativa de compreender a realidade sem fazer referência a

elementos sobrenaturais. O que eles procuram são explicações

para os fenômenos naturais, baseadas exclusivamente na

observação atenta e no raciocínio cuidadoso.

A Filosofi a nasce como uma tentativa de elaborar uma teoria sobre a natureza (physis), que explique os seus fenômenos sem falar em deuses, em magia ou em forças ocultas.

Mas surge aqui um primeiro problema conceitual:

O que é a natureza? Como diferenciar o natural do sobrenatural?

Em Grego, em Latim e também em Português, a palavra natureza é formada a partir de um radical que indica nascimento. Natureza é o conjunto de tudo aquilo que é natu (nascido).

Na realidade concreta, no entanto, às vezes é difícil determinar

quando ocorre o nascimento de algumas coisas. E, mais

ainda: às vezes a morte de uma coisa é o nascimento de outra.

Assim, a natureza passa a ser pensada como uma sucessão de

transformações, como devir. Não é difícil perceber que essas

transformações não são totalmente aleatórias; ao contrário, elas

parecem seguir certa ordem (cosmos).

Os seres concretos, os objetos, não surgem do nada, nem por

acaso. Também não podem ser totalmente destruídos. O processo

de geração e corrupção (produção e destruição) dos seres envolve

a combinação ou separação de elementos materiais, que não são

criados nem desaparecem totalmente nessa transformação.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Uma semente, ao germinar, passa a absorver água, elementos do solo e do ar. Toda essa matéria é absorvida, transformada e reorganizada, vai ganhando aos poucos a forma de uma planta que cresce, vive durante certo tempo e morre, se decompõe e vira matéria-prima para o surgimento de novos seres.

Toda a matéria que compõe a árvore foi retirada do solo e voltará a ser solo. A matéria-prima já existia e continuará existindo mesmo após a destruição total da árvore.

Essa é uma forma nova de compreender a realidade. Veja que, aqui, não se fala em quem criou a árvore.

Essa nova forma de compreender a realidade esbarra em um

problema: Qual é a matéria-prima elementar de que é feita a

natureza? Qual seria esse elemento primordial (arkhé), capaz de

se transformar em barro, em madeira, em carne, em pedra ou em

qualquer outra matéria? Esse é o problema que marca o início da

Filosofi a. É também o primeiro ponto de discordância entre os

fi lósofos jônios.

Para compreendermos as contribuições da chamada escola jônica,

precisamos dividi-la em duas fases. A primeira está centrada na

pólis de Mileto; a segunda na pólis de Éfeso.

A Física Milésia

Da contribuição original dos fi lósofos de Mileto, não restou

nenhum documento escrito. Tudo o que conhecemos de Tales,

Anaximandro e Anaxímenes nos chegou através de comentários

(doxografi a) feitos por fi lósofos e historiadores antigos, ou através

de pequenos trechos (fragmentos) citados por autores antigos

que, presumivelmente, tiveram acesso às obras originais. Uma

das principais fontes de acesso às elaborações intelectuais dos

pensadores milésios são as obras de Aristóteles. Em sua obra

Metafísica, Aristóteles refere-se a esses primeiros fi lósofos como

fi siólogos (estudiosos da physis).

Page 43: História da Filosofia Antiga

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História da Filosofi a I

Unidade 2

Tales de Mileto (fi m do séc. VI a.C.)

De Tales, o primeiro fi lósofo, sabemos hoje muito pouco.

Além de não dispormos sequer de fragmentos de suas

obras, até mesmo os testemunhos que nos chegam dele

são precários. Mesmo assim, ele é a mais antiga referência

histórica que temos de alguém que buscou unir, difundir

e estimular duas tradições: a tentativa de determinar com

precisão qual seria a matéria elementar de que é feita

a natureza e a tentativa de aprimorar continuamente o

conhecimento da natureza através da crítica racional das

teorias já disponíveis.

Sabia mais sobre Tales de Mileto!

Além de fi lósofo, Tales se destacou na astronomia e na matemática e foi considerado um dos sete sábios da Grécia Antiga.

A partir de suas pesquisas, Tales identifi cou a água como sendo

a arkhé, a substância primordial de que são feitas todas as outras

substâncias. Para ele:

tudo é água;

todas as substâncias materiais são obtidas ou por

condensação ou por evaporação da água;

a Terra é um disco (achatado e circular) feito de água

transformada em outros tipos de matéria;

esse disco fl utua no universo, que é todo feito de água.

Se levarmos essas idéias de Tales ao pé da letra, elas podem

parecer tolices. Mas, na verdade, a contribuição de Tales foi

revolucionária. Contando principalmente com a sua própria

observação e com uma linguagem ainda não desenvolvida para

a elaboração de teorias científi cas, Tales precisou ainda utilizar-

se de metáforas para dar início à construção de uma descrição

racional do cosmos. Ao dizer que tudo é água, ele não está

falando especifi camente de H2O, mas sim da umidade. Talvez

fosse mais exato traduzir a frase de Tales como: “Tudo vem do

úmido”.

Figura 2.2 – Tales de Mileto.Fonte: <www.moderna.com.br/.../imagem/talesdemileto.jpg>.

Page 44: História da Filosofia Antiga

44

Universidade do Sul de Santa Catarina

Após ter identifi cado a forma como a água se transforma em

todas as coisas (através da condensação e da evaporação), Tales

precisava explicar por que ocorrem essas transformações. Mais

uma vez, ele é obrigado a recorrer a uma metáfora: Tudo é cheio

de deuses.

Atenção!

Certamente, o pai da Filosofi a não estava usando a palavra “deuses” num sentido religioso. Tales se referia a certos fenômenos naturais observáveis, como a atração entre o ferro e o imã, ou como a gota de orvalho, que parece segurar-se a uma folha de árvore instantes antes de cair. A matéria, mesmo os minerais, parece ser dotada de uma força intrínseca, capaz de interferir naquilo que está à sua volta.

De acordo com o grau de condensação ou evaporação da matéria

e, principalmente, em função das combinações de porções de

matérias diferentes, essa força pode variar em intensidade e

manifestar-se de formas variadas. Por isso o grão de areia é

inerte, o fogo é inquieto, o ar é inconstante; por isso é que vemos

as diferenças entre os minerais, os vegetais, os animais e os

humanos. Mas tudo na natureza pode ser explicado a partir da

própria natureza.

Anaximandro de Mileto (fi m do séc. VI a.C.)

Anaximandro foi discípulo e continuador do trabalho de

Tales. Assim como o seu mestre, foi reconhecido como

importante astrônomo e matemático. Foi geógrafo e político.

Atribui-se a ele a confecção de um mapa-múndi, a introdução

na Grécia do uso do Gnômon (relógio solar), a medição das

distâncias entre as estrelas e a descoberta da obliqüidade do

zodíaco.

Mas, assim como Tales, sua principal contribuição está na

tentativa de identifi car com precisão o elemento primordial

do cosmos e as causas dos fenômenos naturais (astronômicos,

meteorológicos, físicos, biológicos, etc.).

No entanto, diferente de Tales, Anaximandro não identifi ca a

arkhé a nenhuma substância conhecida. Para ele, a substância

Figura 2.3 – Anaximandro de Mileto.Fonte: <www.mgrande.com/.../anaximandro.jpg>.

Page 45: História da Filosofia Antiga

45

História da Filosofi a I

Unidade 2

primordial não poderia ser nada que fosse específi co, nada que

tivesse propriedades determinadas. Caso contrário, não seria

possível explicar racionalmente o surgimento das propriedades

contrárias.

Se a arkhé fosse úmida, ela não poderia ser a origem do seco; se fosse clara, não seria possível a ela gerar o escuro, etc.

Deveria haver, portanto, uma substância primordial indefi nida,

eterna e indestrutível, da qual todos os elementos materiais se

formavam e para a qual todos voltavam. A essa substância, ele

deu o nome de ápeiron (ilimitado ou infi nito).

Anaximandro também propõe uma mudança na forma de se

explicar a origem e as transformações das coisas materiais. Na

busca de uma teoria cada vez mais racional, Anaximandro evita o

termo “deuses”, utilizado por seu antecessor, e propõe dois novos

princípios explicativos para o devir: o movimento eterno e a diké

(justiça).

De acordo com a teoria de Anaximandro, o ápeiron, por sua

própria natureza, está em eterno movimento, em constante

transformação. Essa transformação contínua não teve começo

e nunca terá fi m. É esse movimento implacável, em forma de

turbilhão, que faz surgir o universo das coisas materiais. Ou

melhor, é através desse fl uxo ininterrupto que surgem vários

universos. Cada um desses universos passa por incontáveis

transformações e, mais cedo ou mais tarde, todos voltam a

desaparecer no ápeiron. Dessa forma, a matéria que hoje compõe

o nosso mundo, pode já ter feito parte de um outro universo, e

poderá vir a formar diversos outros.

No entanto esse movimento não é totalmente caótico. Ele segue

um princípio geral inevitável: a diké (justiça). A justiça funciona

como um princípio de compensação obrigatória que é arbitrada

por um juiz: o tempo. O ápeiron tende a permanecer sempre

indeterminado. Cada vez que o seu movimento intrínseco gera

algo determinado, gera, como conseqüência, também o seu

contrário. Ou seja, o surgimento da luz precisa ser compensado

com um período de escuridão; o aparecimento de matéria seca

terá como conseqüência a geração de matéria umidade.

Page 46: História da Filosofia Antiga

46

Universidade do Sul de Santa Catarina

Assim, conforme Anaximandro, toda existência de algo materialmente determinado tem que ser compensada pela existência do seu contrário.

Dessa forma, embora seja possível para nós identifi car, em partes

diferentes do mundo a nossa volta, o frio e o calor, o duro e o

intangível, o leve e o pesado, a soma geral de tudo o que existe,

já existiu ou virá a existir é sempre neutra, é indiferenciada,

pois, ao se juntarem os contrários, eles anulam mutuamente suas

diferenças, voltando a ser ápeiron.

Acompanhe um fragmento atribuído a Anaximandro de Mileto:

Entre os que admitem um só princípio móvel e infi nito,

Anaximandro de Mileto, fi lho de Praxíades, sucessor

e discípulo de Tales, disse que o princípio e elemento

das coisas que existem era o ápeiron (indefi nido), tendo

sido ele o primeiro a introduzir este nome do princípio

material. Diz ele que tal princípio não é nem a água

nem qualquer outro dos chamados elementos, mas uma

outra natureza indefi nida, de que provêm todos os céus

e os mundos neles contidos. E a fonte da geração das

coisas que existem é aquela em que se verifi ca também a

sua destruição segundo a necessidade; pois pagam castigo e

retribuição umas às outras, pela sua injustiça, de acordo com

o decreto do tempo. (Simplício, Física, 24, 13 apud KIRK;

RAVEN; SCHOFIELD, 1994, p. 106-107).

Anaxímenes de Mileto (?585 a.C. – 529 a.C.)

Com Anaxímenes, a fi losofi a milésia chega ao seu ápice.

Seguidor de Tales e de Anaximandro, seu esforço estava

voltado para a elaboração de uma teoria sobre a natureza cada

vez mais abrangente e racionalizada. Anaxímenes aperfeiçoa a

tese de Tales do elemento primordial único, ao mesmo tempo

que incorpora algumas inovações propostas por Anaximandro.

Por outro lado, ele também propõe novas soluções teóricas que

tornam a sua fi losofi a mais simples e consistente que a de seus

antecessores.

Figura 2.4 – Anaxímenes de Mileto.Fonte: <www.pensament.com/.../anaximenes.jpg>.

Page 47: História da Filosofia Antiga

47

História da Filosofi a I

Unidade 2

Discordando de Tales, Anaxímenes defende a idéia de que tudo é

feito de ar. No entanto, se o ar se transforma em água (liquefação)

e a água pode transformar-se em ar (evaporação) – como já vimos

ao falar de Tales – a grande diferença entre esses dois fi lósofos

está na representação do universo feita por Anaxímenes: para ele

a Terra é um disco que fl utua no ar.

Aqui também é preciso deixar claro que “ar” não corresponde exatamente ao que chamamos contemporaneamente de ar. Refere-se mais propriamente a vapor.

Diferente de Anaximandro, Anaxímenes não propõe que a arkhé

seja um elemento diferente daqueles que já conhecemos. Mas,

se por um lado ele rejeita a solução de seu antecessor, não pode

deixar de buscar uma solução para as difi culdades levantadas por

Anaximandro contra a aceitação de que a substância fundamental

do universo pudesse ser algum elemento com características

determinadas.

A matéria primordial precisa, de fato, ser qualitativamente

indefi nida para ser capaz de originar os contrários. Mas o ar,

segundo Anaxímenes, é capaz de atender a essa necessidade: ele

pode tanto ser quente quanto pode ser frio; pode ser úmido, ou

seco. O ar não tem uma forma defi nida. Ele está em toda parte

e nele nada é determinado. Ou seja, o ar se parece muito com

o ápeiron, mas com uma vantagem em termos de consistência

teórica: embora possamos ter motivos racionais para crer que

o ápeiron exista, não é possível confi rmar empiricamente essa

existência. Já o ar pode ser sentido e percebido através da

experiência, e ninguém que estiver sendo razoável irá questionar

a sua existência. Assim, a escolha de Anaxímenes tem a seu favor,

em primeiro lugar, um grau maior de simplicidade em relação aos

princípios fundamentais sobre os quais se apóia. Essa nova forma

de conceber a arkhé exige menos da boa vontade daqueles que

estiverem dispostos a avaliar a razoabilidade de uma explicação

desmitifi cada da natureza.

Page 48: História da Filosofia Antiga

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Como surgem todos os demais elementos materiais?

Mais uma vez, Anaxímenes é minimalista: toda distinção é

sempre quantitativa. A diferença entre uma pedra e a pluma é a

quantidade de ar que cada uma contém. A diferença entre o calor

e o frio também é explicada pela maior ou menor quantidade de

ar. E o modo pelo qual o ar assume as mais diferentes formas

materiais é a condensação e a rarefação.

Mas a maior contribuição da fi losofi a de Anaxímenes foi ter

proposto uma explicação para a origem da vida de uma forma

totalmente desmistifi cada. Embora Tales já tivesse considerado

que as leis que regem a natureza são as mesmas que regem

os seres vivos (ao afi rmar que “tudo está cheio de deuses”),

Anaxímenes esmera-se em formular essa mesma idéia sem

recorrer a uma linguagem que contivesse referências, ainda que

metafóricas, a elementos sobrenaturais. “O mundo respira” − essa

é a solução encontrada por Anaxímenes.

Se tudo é feito de ar, é natural que, em maior ou menor

velocidade e intensidade, tudo esteja, continuamente, ou

absorvendo ou exalando ar. Tudo respira. Nos animais isso

é facilmente perceptível. E, mesmo em certos fenômenos da

natureza mineral, essa respiração é detectável. O fogo, por

exemplo, necessita de ar para manter-se aceso, ao mesmo tempo

que libera um outro tipo de ar, misturado com cinza, que é

chamado de fumaça.

Seguindo essa analogia, a evaporação da água e a chuva, o verão

e o inverno, o nascer do sol e o ocaso, a vida e a morte nada

mais são do que aspectos observáveis da respiração disseminada

por todas as partes do universo; nada mais são do que fases do

complexo e intrincado ciclo de compressões e descompressões de

ar.

Page 49: História da Filosofia Antiga

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História da Filosofi a I

Unidade 2

Tudo é, no fundo, a manifestação de um único princípio fundamental: o ar em movimento. Embora abstratamente possamos decompor este princípio único em dois - o ar e o movimento - , na realidade não há essa dualidade: tudo o que existe é ar, e o ar possui como característica essencial uma motilidade a qual, algumas vezes, o torna mais rarefeito, e, outras vezes, mais comprimido.

Acompanhe alguns fragmentos atribuídos a Anaxímenes de

Mileto.

Anaxímenes de Mileto, fi lho de Eurístrato, que foi

companheiro de Anaximandro, diz também que

a natureza subjacente é una e infi nita, porém não

indefi nida, como afi rmou Anaximandro, mas defi nida,

pois a identifi ca com o ar; e que ela difere, na sua

natureza substancial, pelo grau de rarefação e de

densidade. Ao tornar-se mais sutil, transforma-se em

fogo; ao tornar-se mais densa, transforma-se em vento,

depois em nuvem, depois (quando ainda mais densa)

em água, depois em terra, depois em pedra. E tudo o

mais provém dessas substâncias. Ele admite também o

movimento perpétuo através do qual ocorre a mudança.

(Simplício, Física, 24, 26 apud KIRK; RAVEN;

SCHOFIELD, 1994, p. 147).

A matéria que é comprimida e condensada é fria, e a que

é rarefeita e ‘frouxa’ é quente. (Plutarco, De Prim. Fig.,

7, 947 F apud KIRK; RAVEN; SCHOFIELD, 1994, p.

151).

Como a nossa alma, que é ar, nos mantém unidos, assim

também a respiração e o ar mantêm todo o cosmo.

(Aécio, I, 3. 4. Apud KIRK; RAVEN; SCHOFIELD,

1994, p. 161).

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Saiba mais sobre o sentido geral da fi losofi a milésia!

Será que a natureza foi criada? Será que um deus a criou? Tais questionamentos não interessam aos primeiros fi lósofos, pois qualquer explicação criacionista extrapolaria os limites da observação e do raciocínio, adentrando no campo da fé.

Essa é, de fato, a originalidade dos pensadores de Mileto que, ao invés de uma teogonia -- uma explicação da criação do mundo - , buscam uma cosmologia - uma explicação racional e científi ca dos fenômenos da natureza.

Heráclito de Éfeso (540 -- 470 a.C.)

Nos séculos VII e VI a.C. a pólis de Mileto havia sido

o principal centro econômico da Grécia. Mileto era

aliada do poderoso reino da Lídia, em cujo território

estava encravada. Quando a Lídia foi atacada pelos

persas, Mileto se opôs à invasão. Após ter vencido os

lídios, os persas destruíram Mileto completamente.

Uma outra pólis grega, no entanto, foi poupada e

recompensada. Era Éfeso, que durante o confl ito

tornara-se aliada dos persas. Éfeso assume, a partir de

então, um papel de destaque no comércio marítimo e

se torna a principal pólis grega da primeira parte do

séc. V a.C.

Foi justamente nesse período de rápidas mudanças no cenário

político e cultural da Jônia, e também de esplendor econômico de

Éfeso, que viveu um fi lósofo chamado Heráclito.

Legítimo representante da família real, Heráclito abdicou do seu

direito ao título de rei em favor de seu irmão. A partir de então,

Heráclito se tornou o principal representante da segunda fase

do pensamento jônico. Conhecido por sua misantropia e pelo

caráter enigmático da sua obra, foi chamado na Antigüidade

de “o obscuro” e de “o fazedor de enigmas”. Ele desprezava

praticamente tudo o que era enaltecido em sua época: os poetas

épicos (Homero e Hesíodo), a política grega como um todo e,

em particular, a democracia, e desprezava também os fi lósofos

Figura 2.5 – Heráclito de Éfeso.Fonte: <upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/...>.

Misantropia é aversão ao convívio social, desprezo pelos outros.

Page 51: História da Filosofia Antiga

51

História da Filosofi a I

Unidade 2

que o antecederam. Depois disso tudo, não é de estranhar que ele

também desprezasse a plebe.

Por outro lado, Heráclito desenvolveu uma nova forma de

pensar que marcou profundamente todo o pensamento fi losófi co

posterior.

Os pontos principais da fi losofi a de Heráclito são os seguintes:

a realidade deve ser buscada para além das aparências;o verdadeiro conhecimento provém da razão, e não da experiência;o princípio fundamental do cosmos é a “luta dos contrários”;tudo está em constante transformação, tudo é devir, tudo fl ui (panta rei);a substância primordial da natureza é o fogo (a arkhé da physis é pyr);o tempo é cíclico.

Heráclito foi um crítico severo em relação às teorias cosmológicas

dos fi lósofos milésios. Para ele, os fi siólogos de Mileto davam

muita atenção para a experiência e usavam pouco a razão como

possibilidade de ir além das aparências. Mais importante do

que ver é compreender o que se está vendo. “Os olhos e ouvidos

são más testemunhas para os homens, se as almas destes não

compreendem a linguagem daqueles.” (fragmento 107 apud

SOUZA, 2000, p. 99).

O real, para Heráclito, não é aquilo que é concreto, aquilo que

pode ser visto e tocado, pois nada se conserva eternamente. “Não

se pode entrar duas vezes no mesmo rio”, diz ele. (fr. 91 apud

SOUZA, 2000, p. 97).

Mais cedo ou mais tarde, tudo o que existe concretamente

deixará de existir. Só o devir (a transformação) é que sempre

permanece. Por isso, o fogo é a melhor imagem que podemos

fazer da matéria da qual o universo é composto. Embora

possamos vê-lo e senti-lo, ele não é uma “coisa”, ele é um

“fl uxo”. Tudo vem do fogo e pelo fogo tudo é consumido.

Page 52: História da Filosofia Antiga

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Como em Anaxímenes, esse processo ocorre através de

condensação e rarefação. Ao se condensar, o fogo se umidifi ca e

se torna matéria; ao se tornar mais rarefeita, a matéria se torna

incandescente.

Mas, por que acontece a condensação e a rarefação? Porque a

essência do cosmos é o confl ito (pólemos), a luta dos contrários.

Veja um exemplo.

Para se desenvolver adequadamente, a planta precisa da luz do dia e da escuridão da noite, precisa de dias com sol e dias de chuva, precisa crescer e precisa ser podada. Tudo na natureza surge da concorrência dos opostos.

Essa tese de Heráclito se parece com aquela idéia de

Anaximandro de que o ápeiron possui um movimento intrínseco

e de que tudo o que é gerado a partir dessa indeterminação

precisa ser compensado com o seu contrário. Mas Heráclito faz

três ressalvas a essa idéia:

não há na natureza um juiz nem injustiça alguma.

“O tempo é criança brincando” (fr. 52 apud SOUZA,

2000, p. 93). Assim como uma criança sente prazer em

construir um castelo de areia, logo em seguida ela sente

prazer também em destruí-lo – não há aqui nenhuma

injustiça;

tudo que existe é uno e duplo simultaneamente, tudo traz

em si mesmo o seu contrário. “A rota para cima e para

baixo é uma e a mesma” (fr. 60 apud SOUZA, 2000, p.

94);

todas as coisas possuem uma tensão intrínseca entre

os opostos; as coisas existem enquanto essa tensão se

mantém através do equilíbrio entre os opostos e são

destruídas quando a tensão é desfeita (por relaxamento

ou por ruptura), tal como um arco de atirar fl echas.

“O divergente consigo mesmo concorda; harmonia de

tensões contrárias, como de arco e lira” (fr. 51 apud

SOUZA, 2000, p. 93).

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História da Filosofi a I

Unidade 2

Heráclito fez algumas críticas aos fi lósofos anteriores, mas não

chegou a elaborar uma fi losofi a sistemática para substituir suas

teorias. Não acreditava que valesse a pena perder o seu tempo

escrevendo de forma didática o que sabia, pois se considerava

superior. No entanto acredita-se que ele tenha escrito uma

obra em que reunia frases soltas, que mais anunciavam do que

explicavam as suas idéias.

Considerado um dos “Sete Sábios da Grécia”, Heráclito

infl uenciou alguns aspectos da fi losofi a de Sócrates, de Platão e

dos estóicos.

Conheça alguns fragmentos atribuídos a Heráclito de Éfeso.

Os fragmentos abaixo seguem a numeração de Diels-Kranz

(DK), utilizada pelas principais traduções disponíveis em

português.

13. Porcos em lama se comprazem, mais do que em água

limpa.

29. Pois uma só coisa escolhem os melhores contra todas

as outras, um rumor de glória eterna contra as coisas

mortais; mas a maioria está empanturrada como

animais.

30. Este mundo, o mesmo de todos os (seres), nenhum

deus, nenhum homem o fez, mas era, é e será um fogo

sempre vivo, acendendo-se em medidas e apagando-se

em medidas.

36. Para almas é morte tornar-se água, e para água é morte

tornar-se terra, e de terra nasce água, e de água alma.

49. Um para mim vale mil, se for o melhor.

49a. Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e

não somos.

50. Não de mim, mas do logos tendo ouvido é sábio

homologar tudo é um.

52. Tempo é criança brincando, jogando; de criança o

reinado.

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53. O combate é de todas as coisas pai, de todas rei, e uns

ele revelou deuses, outros, homens; de uns fez escravos,

de outros livres.

60. A rota para cima e para baixo é uma e a mesma.

73. Não se deve agir nem falar como os que dormem.

90. Por fogo se trocam todas as (coisas) e fogo por todas, tal

como por ouro mercadorias e por mercadorias ouro.

101. Procurei-me a mim mesmo.

119. O ético no homem é o demônio e o demônio é o ético.

123. A natureza ama esconder-se.

Fonte: Souza (2000, p. 88 - 101).

SEÇÃO 3 - A Escola Pitagórica

Na segunda metade do séc. VI a.C., algumas colônias gregas

fundadas no sul da Itália e na Sicília começam a ganhar

importância no comércio marítimo. Aos poucos, essas colônias

começam a rivalizar com as potências jônicas tanto em termos

econômicos quanto em termos culturais. Além disso, Ciro, que

tornou-se rei da Pérsia em 559 a.C., passa a exigir a submissão

das colônias da Jônia.

Éfeso se submete e torna-se aliada dos persas, mas Mileto, como

você já leu, se opõe e é totalmente destruída em 494 a.C. Tudo

isso acaba estimulando a transferência de algumas famílias mais

abastadas para o sul da Itália (região que era chamada de Magna

Grécia na época). Entre esses migrantes, duas fi guras marcaram

a história da fi losofi a: Pitágoras (fundador da escola pitagórica)

e Xenófanes (inspirador da escola eleática). Nesta seção, vamos

falar do primeiro deles, na próxima seção falaremos do outro.

Em grego, demônio equivale ao que hoje nós chamaríamos de anjo-da-guarda.

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História da Filosofi a I

Unidade 2

Pitágoras de Samos (?571 a.C. -- 497 a.C.)

Pouco se sabe sobre o início da vida de Pitágoras.

Acredita-se que tenha nascido em Samos, na Jônia.

Por volta do ano 540, já adulto, transferiu-se para

Crotona, na Magna Grécia, onde fundou uma

fraternidade esotérica. Sabe-se muito pouco sobre essa

fraternidade, pois os ensinamentos de Pitágoras eram

mantidos em segredo e apenas os membros da escola

tinham acesso a eles. No entanto uma pequena parte

desses ensinamentos tornou-se conhecida e infl uenciou

profundamente o rumo posterior da ciência, da arte e da

Filosofi a.

A infl uência da escola pitagórica era tão grande que

chegou a provocar reações em alguns setores da política

de Crotona. Pitágoras transferiu-se então para Metaponto, onde

passou os últimos anos de sua vida. Mesmo após a morte de seu

fundador, a escola pitagórica manteve suas atividades, exercendo

profunda infl uência no desenvolvimento posterior da fi losofi a.

Os principais discípulos da escola foram Filolau e Alcmeon.

Acredita-se que as palavras fi lósofo e fi losofi a tenham sido criadas

por Pitágoras.

Duas concepções pitagóricas exerceram grande infl uência na fi losofi a:

a idéia de imortalidade da alma; a tese de que tudo é feito de números.

Pitágoras provocou uma grande mudança na Filosofi a. Ele

reintroduziu no discurso fi losófi co alguns temas que haviam sido

banidos por sua conotação mítica e, ao mesmo tempo, fez com

que a própria idéia de natureza e de matéria fosse repensada.

A “grande sacada” de Pitágoras foi perceber que nem tudo o que é

intangível é sobrenatural.

Uma descoberta atribuída a Pitágoras pode ter sido o ponto de

partida para a sua fi losofi a: a relação entre a harmonia musical

e a aritmética. Pitágoras descobriu que as cordas da lira, se

submetidas à mesma tensão, eram harmônicas entre si quando

Figura 2.6 – Pitágoras de Samos.Fonte: <www.biografi asyvidas.com/.../fotos/pitagoras.jpg>.

Page 56: História da Filosofia Antiga

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Universidade do Sul de Santa Catarina

obedeciam a proporções exatas, correspondentes a números

inteiros do tipo 1/1, 1/2, 1/3, 1/4, etc. A desarmonia (ou

desafi nação) ocorre quando essa proporção não é respeitada. Essa

possibilidade de explicar uma das propriedades do som através da

matemática deve ter levado Pitágoras a elaborar novas teorias e

buscar novas relações.

Pitágoras assumiu como princípio teórico a tese de que a ordem

do universo (cosmos) deveria ser como uma harmonia entre

cordas musicais. Ou melhor, que a harmonia das cordas era

apenas uma das manifestações da harmonia cósmica. Isso é

perceptível não apenas na música, mas em todas as artes: o belo

artístico é sempre obtido pela proporção (seja na arquitetura, no

ritmo, na métrica da poesia, etc.). A essência do cosmos (ordem),

portanto, é a proporção. E essa proporção é feita de números (o

que equivale a dizer que a arkhé é o número).

Os números podem ser combinados de várias formas. Através

da aritmética, os números formam proporções lineares. Através

da geometria, proporções planas. Através da estereometria (ou

geometria espacial), proporções tridimensionais.

Mas, como o número, que é uma entidade abstrata, pode tornar-se matéria?

A resposta para essa pergunta não foi divulgada para os não-

iniciados. Aqui, portanto, fi camos entregues à nossa própria

imaginação. O que sabemos é que os pitagóricos usavam

vários símbolos e, destes, dois eram especiais e, talvez, possam

constituir uma dica para chegarmos à resposta. Os dois símbolos

eram a tetractys e o pentagrama.

A tetractys é uma representação dos quatro primeiros números

através de pontos, somando 10 pontos no total. Este esquema é

uma representação da sucessão natural. É possível que a tetractys

fosse uma indicação do processo de transformações sucessivas que

levam da unidade originária à matéria física.

O pentagrama representa cosmo, a ordem perfeita. Representa

tanto o macrocosmo (o universo como um todo) quanto o

microcosmo (o ser humano).

No estudo das relações numéricas, a mais famosa descoberta de Pitágoras foi encontrada na geometria: é o teorema que leva o seu nome, o qual revela que “num triângulo retângulo, a soma do quadrado dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa”.

Figura 2.7 – Tetractys.Fonte: Elaboração do autor.

Figura 2.8 – Pentagrama.Fonte: <http://www.famat.ufu.br/revista/revistaset2006/artigos/Artigo_Giselle_Marcos.pdf>.

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História da Filosofi a I

Unidade 2

No pentagrama encontramos a proporção perfeita (ou

proporção áurea, ou divina proporção). Essa proporção é

amplamente encontrada na natureza e foi a base da arte

grega clássica e, mais tarde, da arte renascentista. Também

encontramos referências a ela na fi losofi a de Platão.

Em relação à imortalidade da alma, também não temos

nenhuma informação segura sobre o seu real signifi cado na

fi losofi a de Pitágoras. Parece certo que os pitagóricos aceitavam

a transmigração (metempsicose – ou reencarnação da alma, após

a morte do corpo, em um novo corpo humano ou animal).

Também parece certo que isso levava os pitagóricos a se absterem

de comer carne.

Como não temos acesso a vários elementos importantes da

fi losofi a pitagórica, muito se fantasiou sobre ela. Se seus

ensinamentos incluíam conotações místicas e religiosas, isso já

foge ao domínio de uma investigação fi losófi ca. O que realmente

interessa para uma compreensão da história da fi losofi a é saber

que ele não só uniu a matemática e a fi losofi a, mas fez com

que uma se confundisse com a outra. A partir de Pitágoras,

a racionalidade se separa cada vez mais da experiência e se

caracteriza principalmente como raciocínio abstrato, conceitual e

dedutivo.

SEÇÃO 4 - Xenófanes e a escola eleática

Além da Escola Pitagórica, a Magna Grécia contou

com um outro importante centro de formação fi losófi ca,

a Escola Eleática, cujo principal representante foi

Parmênides. Os eleatas, no entanto, sofreram uma forte

infl uência de Xenófanes, um poeta nômade, oriundo da

Jônia. Vejamos como foi o desenvolvimento dessa escola.

Xenófanes de Cólofon (570 a.C. – 475 a.C.)

Xenófanes nasceu em Cólofon, na Jônia. Ainda jovem,

viajou para a Magna Grécia, onde passou a viver como

rapsodo, compondo poemas e declamando-os, viajando

de cidade em cidade.

Figura 2.9 - Proporção áurea.Fonte: Elaboração do autor.

A+B

A

A

B=

Figura 2.10 – Xenófanes de Cólofon.Fonte: <www.ideayayinevi.com/.../xenofanes/xenofanes.jpg>.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Grande crítico da religião grega e dos mitos de Homero

e Hesíodo, Xenófanes ataca a imoralidade dos deuses da

mitologia grega; crítico dos pitagóricos, ridiculariza a crença na

transmigração da alma.

Defende em seus poemas a idéia de que “tudo é um e o um é

deus” (panteísmo).

Embora não tenha elaborado uma teoria fi losófi ca sistemática

(já que o seu interesse maior era a poesia e a crítica à religião),

Xenófanes infl uenciou, com sua temática e seu estilo, o

pensamento de Parmênides e seus seguidores.

Conheça o mais famoso fragmento atribuído a Xenófanes:

Mas se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos ou se fossem

capazes como os homens de pintar obras com as mãos, os cavalos

como os cavalos, os bois como os bois pintariam o aspecto dos

deuses, e fariam o corpo deles tal qual cada um deles o tem. (fr.

15 apud SOUZA, 2000, p. 70)

Parmênides de Eléia (530 a.C. – 460 a.C.)

Parmênides nasceu em Eléia, na Magna Grécia. Além de

fi lósofo, envolveu-se ativamente na vida política e teria inclusive

redigido a Constituição de Eléia.

Em parte infl uenciado por Pitágoras e por Xenófanes,

Parmênides fundou uma das mais infl uentes escolas pré-

socráticas, conhecida como escola eleática. Seus principais

seguidores foram Zenão de Eléia e Melisso de Samos.

Parmênides é o primeiro fi lósofo a utilizar sistematicamente o termo “ser”. Por isso ele também é conhecido como “o pai da metafísica” ou “o pai da ontologia”.

Em um poema intitulado Sobre a Natureza, Parmênides descreve

duas formas de se falar sobre a realidade: o caminho da verdade

(alétheia) e o caminho da opinião (doxa).

O caminho da verdade é aquele em que “o ser é, e o não ser não

é”. A verdade é o ser e o ser é a verdade. O ser é uno, limitado,

Figura 2.11 – Parmênides de Eléia.Fonte: <www.educ.fc.ul.pt/.../images/Parmenides.jpg>.

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História da Filosofi a I

Unidade 2

indivisível, imutável e eterno. Só o ser existe; só ele é pensado;

só ele pode ser dito, sem que haja engano em nossa fala. Mas,

embora o ser possa ser compreendido e comunicado, não há como

percebê-lo através da experiência.

O outro caminho é o da opinião (doxa). É o conhecimento

da experiência, conhecimento das coisas em constante

transformação, no qual nada é defi nitivo. Assim, aquilo que

agora é de um jeito, daqui a pouco já é diferente. A percepção da

realidade através dos cinco sentidos e da experiência é a fonte da

doxa e é um caminho para o engano. Na doxa, “o não-ser é, e o

ser não é”.

O caminho da verdade é o caminho da fi losofi a.

Veja um quadro comparativo das idéias de Heráclito e

Parmênides.

Podemos assinalar algumas semelhanças entre as fi losofi as de Parmênides e Heráclito. Observe.

A realidade deve ser buscada para além das aparências. O verdadeiro conhecimento provém da razão, e não da experiência.

No entanto, há também algumas diferenças fundamentais entre elas.

Heráclito defende: Parmênides defende:

o mobilismo; o monismo;

o ser é duplo e contraditório; o ser é uno;

a realidade é puro movimento; o ser é imóvel;

o tempo é cíclico. o ser é eterno (o tempo é uma ilusão).

Acompanhe um fragmento atribuído a Parmênides de Eléia:

Pois bem, eu te direi, e tu recebe a palavra que ouviste, os únicos

caminhos de inquérito são a pensar: o primeiro, que é e portanto

que não é não ser, de Persuasão é o caminho (pois à verdade

acompanha); o outro, que não é e portanto que é preciso não

ser, este então, eu te digo, é atalho de todo incrível; pois nem

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conhecerias o que não é (pois não é exeqüível), nem o dirias... ( fr.

2 apud SOUZA, 2000, p. 122)

Zenão de Eléia (?495 a.C. – 430 a.C.)

Zenão foi o principal discípulo de Parmênides (algumas

fontes indicam que ele era fi lho adotivo do fundador da

escola eleática). Também se envolveu com a política, mas na

condição de mártir: acusado de conspiração por um governante

de Eléia, foi torturado para que confessasse o nome de seus

companheiros, mas preferiu morrer a entregá-los. Após esse

fato, Zenão passou a ser venerado como um herói por seus

conterrâneos, e muitas lendas surgiram a seu respeito.

Na fi losofi a, Zenão entrou para a história principalmente por

ter elaborado um conjunto de argumentos contra o movimento

e a multiplicidade, conhecidos como paradoxos de Zenão.

Vejamos dois deles:

Argumento da dicotomia – Imagine uma fl echa disparada na

direção de um alvo. A ponta da fl echa está no ponto A; e o alvo,

no ponto B. Ora, a fl echa nunca poderá atingir o ponto B, pois,

antes de atingi-lo, teria que atingir o meio do caminho entre A

e B, isto é, um ponto C. Mas, para atingir C, teria que atingir

primeiro o meio do caminho entre A e C, isto é, um ponto D.

E, assim, sucessivamente, ao infi nito. Mas isso signifi caria que

a fl echa teria que percorrer infi nitos pontos, antes de chegar a

B. Como é impossível passar por infi nitos pontos (porque se

é um número infi nito, jamais se chega ao fi nal), deduz-se que

é logicamente impossível que a fl echa chegue ao alvo. Aliás, a

fl echa nem sequer sai do lugar.

Argumento de Aquiles – Imagine uma corrida entre um atleta

velocista (Aquiles) e uma tartaruga. Se Aquiles deixa a tartaruga

largar alguns metros à sua frente, ele jamais a alcançará, porque,

quando ele chegar ao ponto de onde a tartaruga partiu, ela já terá

percorrido uma nova distância; e, quando ele atingir essa nova

distância, a tartaruga já terá percorrido uma outra nova distância;

e assim, ao infi nito.

Figura 2.12 – Zenão de Eléia.Fonte: <www.eurosophia.com/.../fi losofos/fotos/zenao.jpg>.

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História da Filosofi a I

Unidade 2

Atenção!

Tais paradoxos são obviamente desmentidos pela experiência, mas, até hoje, não é fácil (há quem diga que não é possível) desmenti-los, usando apenas a lógica.

O objetivo dos paradoxos de Zenão não é provar que a fi losofi a

de Parmênides está correta, e sim mostrar as incoerências lógicas

de se acreditar na possibilidade do movimento. A maioria das

pessoas não percebe essas incoerências pelo simples fato de que

nunca pararam para refl etir sobre os fundamentos racionais das

suas crenças. Aliás, a maioria das pessoas está tão desacostumada

de refl etir racionalmente que acaba achando absurdo, não o

movimento, e sim a própria demonstração racional da sua

impossibilidade.

Melisso de Samos

Melisso nasceu em Samos (mesma cidade em que nasceu

Pitágoras). Além de fi lósofo, fi cou famoso por comandar

a esquadra que impediu um ataque ateniense em 441 a.C.

Isso é tudo que se sabe sobre a sua vida.

Quanto à sua produção fi losófi ca, sabe-se que defendia as

principais teses propostas por Parmênides, com exceção

de uma: para Melisso o ser é infi nito. Essa modifi cação

teórica foi necessária para resolver uma difi culdade

lógica: se o ser é limitado, o que haveria para além do

seu limite? Ou haveria o não ser (o nada, ou o vazio), ou

haveria outro ser. Aceitar a infi nitude do ser foi a saída

encontrada por Melisso.

Assim o ser é eterno, infi nito, uno, uniforme, imóvel e pleno.

Figura 2.13 – Melisso de Samos.Fonte: <paxprofundis.org/.../presocraticos3/melissus.gif>.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

SEÇÃO 5 - Os fi lósofos pluralistas

Os fi lósofos pluralistas, entre eles Empédocles e Anaxágoras,

representam o início de uma terceira fase na história da fi losofi a

pré-socrática (a primeira ocorreu na Jônia, a segunda na Magna

Grécia). Nessa nova etapa de desenvolvimento da fi losofi a,

os fi lósofos procuram resolver os problemas que foram sendo

identifi cados nas fases anteriores e tentam conciliar propostas

diferentes.

A fi losofi a já estava se aproximando da maturidade e não mais

precisava concorrer com o discurso mítico. A luta contra os

persas estimulou um ambiente de cooperação. A Grécia formava

cada vez mais uma unidade política, econômica e cultural. E os

fi lósofos ganhavam cada vez mais prestígio.

Empédocles de Agrigento (490 a.C. – 435 a.C.)

No séc. V a.C., a pólis de Agrigento (também chamada

de Acragas), no sul da Sicília, era um importante centro

econômico e cultural e uma potência militar.

Empédocles desempenhou um importante papel político em

defesa da democracia em sua pólis; é considerado o pai da

retórica e o fundador da escola de medicina italiana. Também

foi líder de uma escola esotérica semelhante à de Pitágoras (há

indícios de que ele teria sido um pitagórico e que tenha sido

expulso da ordem por defender idéias não-ortodoxas).

Sua morte está cercada de lendas. Alguns afi rmam que ele se

teria atirado na cratera do vulcão Etna para provar que era um

deus; porém o mais provável é que tenha morrido na região do

Peloponeso, na Grécia continental, onde se refugiou após uma

revolta da oligarquia de Agrigento contra o governo democrático.

Na fi losofi a, Empédocles se destacou por propor a teoria dos

quatro elementos e por defender a existência de dois princípios

que regem o movimento e a transformação no universo.

Figura 2.14 – Empédocles de Agrigento.Fonte: <www.thebigview.com/greeks/empedocles.jpg>.

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Unidade 2

Os fi siólogos jônios haviam defendido a existência de uma arkhé única, com a qual tudo na natureza era composto. Mas cada um havia proposto uma substância diferente. Empédocles propõe então que, ao invés de uma, haveria quatro substâncias primordiais: água, terra, fogo e ar. Esses quatro elementos constituem as “raízes” (rizómata) de todas as coisas.

Além dos quatro elementos fundamentais, Empédocles propôs também a existência de duas forças opostas, que produziriam o devir: o amor (philia) e a discórdia (neikos).

Juntando a idéia de quatro elementos e com a de duas forças

motrizes, Empédocles elabora a primeira síntese fi losófi ca.

Contempla as principais propostas dos jônios e concilia algumas

teses monistas com o mobilismo. Os quatro elementos não se

alteram, não se transformam, não deixam de ser o que são (o que

se aproxima do eleatismo): tudo é produzido por forças opostas (o

que o aproxima de Heráclito).

A teoria de Empédocles traz para a fi losofi a um grau de

complexidade e sofi sticação maior que o encontrado nas

propostas dos fi lósofos anteriores.

Anaxágoras de Clazômenas (500 a.C. – 428 a.C.)

Anaxágoras nasceu em Clazômenas, na Jônia.

Viveu na época em que Atenas despontava como

novo centro econômico, político e cultural da

Grécia. Sob o comando de Atenas, os gregos

derrotam os persas. À frente do governo

ateniense, Péricles canaliza os recursos obtidos

com a vitória militar para a construção de obras

públicas magnífi cas.

Artistas e intelectuais de todas as partes da

Hélade se dirigem a Atenas em busca desse

ambiente efervescente de cultura. Entre essa

multidão de homens ilustres estava Anaxágoras, que fundou

a primeira escola de fi losofi a de Atenas e teve entre os seus

discípulos o próprio Péricles. Mais tarde, no entanto, foi acusado

por adversários de Péricles de crime contra a religião. Foi preso

Figura 2.15 – Anaxágoras de Clazômenas.Fonte: <http://anaxagoras.navajo.cz/anaxagoras.png>.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

por negar a divindade do sol e da lua, mas consegue fugir e

refugia-se em Lâmpsaco, na Jônia, onde fundou outra escola de

fi losofi a. Da sua obra Sobre a Natureza, alguns fragmentos foram

preservados.

Anaxágoras aceita o princípio eleata da imutabilidade do ser. Diz

ele:

“o nascer e o perecer, os gregos não consideram

corretamente; pois nenhuma coisa nasce nem perece,

mas de coisas que são se mistura e se separa. E assim,

corretamente se poderia chamar o nascer misturar-se e o

perecer separar-se.” (fr. 17)

Para Anaxágoras, ao invés de uma ou quatro, há um número

infi nito de substâncias fundamentais, chamadas sementes

(spérmata), que nunca perdem suas propriedades essenciais e que

se assemelham, cada uma, ao “ser” de Parmênides e de Melisso.

Essas sementes não são visíveis aos olhos, mas podem ser

compreendidas pela mente.

As sementes não são compostas de partes (são unas) e mantêm-se

sempre íntegras, mesmo quando são separadas em porções: “nem

do pequeno há o mínimo (...) e do grande há sempre o maior;

e é igual ao pequeno em quantidade, e quanto a si mesma cada

coisa tanto é grande quanto é pequena” (fr. 3 apud SOUZA,

2000, p. 221). Devido a essa característica de cada porção manter

todas as propriedades do todo, Aristóteles, mais de um século

mais tarde, chamou essas sementes de homeomerias (partículas de

semelhança).

Anaxágoras também afi rma que não existe no universo a substância pura. Em todas as coisas, há sementes de todas as coisas.

Um boi se alimenta de pasto e de água. Deste alimento formam-se o sangue, a carne, os ossos, o couro, etc. É preciso, portanto, que as partículas geradoras de todas as partes do seu corpo já se encontrem no alimento.

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História da Filosofi a I

Unidade 2

Segundo Anaxágoras, além das sementes, existe no universo um

intelecto (nous) que organiza as sementes e forma as substâncias

perceptíveis aos nossos sentidos. As particularidades de cada coisa

que percebemos são determinadas pela forma como as sementes

estão organizadas. Assim, uma barra de ouro parece ouro porque

nela a organização das sementes faz prevalecer as partículas de

ouro, embora haja, nela, partículas de todas as outras substâncias.

A principal contribuição de Anaxágoras para a história da

fi losofi a decorre dessa afi rmação de um princípio inteligente

como causa da ordem do mundo (kósmos). Essa idéia será

retomada mais tarde por Sócrates e Platão e, a partir destes,

infl uenciará toda a refl exão fi losófi ca posterior.

SEÇÃO 6 - A escola atomista

Vimos que Anaxágoras e Empédocles procuram compatibilizar

as doutrinas dos jônios com as de Parmênides e Melisso. No

entanto as propostas dos fi lósofos pluralistas não resolvem os

paradoxos de Zenão. Leucipo e Demócrito assumem para si a

tarefa de buscar uma solução para as incoerências provocadas pela

divisibilidade infi nita.

Leucipo de Mileto (500 a.C. – ?)e Demócrito de Abdera (460 a.C. – 370 a.C.)

Abdera era uma colônia jônica na Trácia, para onde

muitos jônios migraram na época do confl ito com os

persas. Leucipo, que provavelmente era de Mileto, foi um

dos que se transferiram para lá, onde fundou uma escola.

Leucipo conhecia bem a fi losofi a dos Eleatas e buscou dar

respostas para alguns dos seus problemas teóricos. Não

restaram fragmentos de sua obra. Conhecemos as suas

idéia principalmente através de Demócrito.

Demócrito, natural de Abdera, foi o principal discípulo

de Leucipo e seu sucessor na direção da escola de Abdera.

Atualmente, não é possível estabelecer a contribuição

exata de cada um para a formulação da teoria atomista.

Figura 2.16 – Leucipo de Mileto.Fonte: <http://www.wielkaencyklopedia.com/pt/wiki/Leucipo.html>.

Page 66: História da Filosofia Antiga

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Leucipo foi o primeiro fi lósofo a defender a existência de espaço

vazio. Os jônios e os pitagóricos aceitavam que a matéria podia

apresentar-se em diferentes graus de densidade. Assim, entre

duas pedras, por exemplo, poderia haver água ou mesmo ar, mas

nunca o vácuo. Para os eleatas, a idéia de vácuo era mais absurda

ainda, pois representava o não-ser.

Leucipo também inovou ao propor que a matéria é constituída de partículas indivisíveis (átomos). Cada átomon possui praticamente todas as características do ser parmenídico: é uno, pleno, eterno, imutável, etc. O átomo só não é único.

Embora existam átomos de diferentes tamanhos, todos eles,

até mesmo os maiores, são pequenos demais para a percepção

humana; todos são invisíveis. Os átomos possuem um movimento

intrínseco que inclui a atração dos átomos semelhantes e a

repulsão entre os de tipo diferente. Os atomistas também

defendem que não há nenhuma ordem pré-estabelecida na

natureza que seja externa aos átomos. Para além do movimento

intrínseco dos átomos, há apenas o acaso.

Embora seja insufi ciente para explicar a racionalidade do kósmos,

a teoria atomista tem como principal vantagem a simplicidade e

a facilidade com que explica o movimento material. Ela esclarece

muito bem como a natureza se comporta, mas é defi ciente

quando se busca o por quê. Isso fez com que os fi lósofos

posteriores sempre olhassem para ela alternativamente como

a maior realização da fi losofi a nascente, ou como uma teoria

capenga, que apenas descreve as aparências sem ir aos problemas

fundamentais.

SEÇÃO 7 - O sentido geral da fi losofi a pré-socrática

A fi losofi a nascente englobava aquilo que hoje chamamos de

fi losofi a e também aquilo que hoje é chamado de ciência. A

principal marca distintiva dessa nova forma de pensar a realidade

é a tentativa de diferenciar-se das mitologias e teogonias.

Dois pontos fundamentais, com os quais todos os pré-socráticos

concordam, são:

Figura 2.17 – Demócrito de Abdera.Fonte: <www.ime.unicamp.br/.../democrito/democrito.html>.

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História da Filosofi a I

Unidade 2

a matéria-prima do universo não foi criada, ela sempre

existiu;

se é que existe alguma força sobrenatural, ela não tem

livre-arbítrio, ela age de forma regular e previsível.

Se existisse um deus onipotente, criador das próprias leis do

universo, a única forma racional de agir seria a obediência à sua

vontade. Deveríamos obedecer também aos seus representantes

(seu messias, seus profetas e sacerdotes, etc.) e reverenciar suas

revelações (os livros sagrados). As palavras que resumiriam a

sabedoria seriam: resignação, obediência, confi ança. O regime

político que melhor combina com tudo isso é a monarquia

absolutista e inquestionável – e de fato foi esse o modelo

historicamente adotado pelos hebreus e em todos os grandes

impérios antigos (Egito, Babilônia, Pérsia, etc.).

Por outro lado, a democracia se assenta na idéia de que ninguém

pode estar acima da lei. A própria idéia de Deus, numa

democracia, precisa ser adaptada a essa idéia fundamental. Não é

necessário abandonar totalmente a crença na existência de Deus.

Mas é fundamental que ele próprio esteja submetido às mesmas

regras que regem o universo.

Os primeiros fi lósofos, que hoje chamamos de pré-socráticos, foram aqueles homens que tomaram para si a tarefa de formular uma nova interpretação do universo, compatível com os ideais democráticos de respeito à lei, igualdade perante a lei e liberdade condicionada pela lei. Cada um do seu jeito, mas todos unidos pelo mesmo ideal. Pode-se dizer, metaforicamente, que a Grécia do séc. VI gerou três irmãs gêmeas: a fi losofi a e a ciência (irmãs siamesas) e a democracia.

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Síntese

A fi losofi a nasceu nas colônias gregas da Jônia (na Ásia Menor)

no séc. VI a.C.

Tales de Mileto é considerado o primeiro fi lósofo. Ele e os

demais fi lósofos jônios preocuparam-se fundamentalmente em

identifi car qual seria a substância primordial da natureza. Cada

um deles propôs uma substância diferente: água, ar, ápeiron e

fogo.

Numa segunda etapa, a refl exão fi losófi ca se desloca para as

colônias gregas do sul da Itália e da Sicília. Aí se desenvolvem

o pitagorismo e o imobilismo como tentativas de aprofundar

aspectos teóricos concernentes à racionalidade.

Num terceiro momento ocorrem várias tentativas de transformar

a fi losofi a em um conhecimento cada vez mais sistemático e

abrangente e de reconciliar as soluções mais teóricas da segunda

fase com as questões mais práticas da primeira. Surgem então os

fi lósofos pluralistas e as teorias atomistas.

Apesar de seus múltiplos aspectos, dois pontos fundamentais

caracterizam as primeiras especulações fi losófi cas:

a busca de uma explicação racional da realidade;

a sua íntima vinculação aos ideais democráticos gregos.

A fi losofi a nascente englobava aquilo que hoje chamamos de

fi losofi a e também aquilo que hoje é chamado de ciência.

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Unidade 2

Atividades de auto-avaliação

Ao fi nal de cada unidade, você realizará atividades de auto-avaliação. O gabarito está disponível no fi nal do livro-didático. Mas se esforce para resolver as atividades sem ajuda do gabarito, pois, assim, você estará promovendo (estimulando) a sua aprendizagem.

1. Indique os principais fi lósofos de cada um dos cinco grupos de pré-socráticos:

Jônios Pitagóricos Eleatas Pluralistas Atomistas

2. Aprendendo grego:

Escreva em português a tradução para as seguintes palavras e expressões em grego:

a) alétheia:

b) ápeiron:

c) arkhé:

d) átomon:

e) diké:

f) doxa:

g) kosmos:

h) logos:

i) neikos:

j) nous:

k) panta rei:

l) philia:

m) physis

n) pólemos:

o) pólis:

p) pyr:

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3. Os pré-socráticos, em sua maioria, envolveram-se ativamente na vida política de seus respectivos países. Levando isso em consideração, realize as tarefas propostas a seguir.

a) Faça uma dissertação sobre o tema “a democracia e o nascimento da fi losofi a”, com, no mínimo, 10 linhas; e máximo de 15.

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Unidade 2

b) Responda: que motivos teriam levado Heráclito a rejeitar qualquer envolvimento com a política?

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Saiba Mais

Se você desejar, aprofunde os conteúdos estudados nesta unidade,

consultando as seguintes referências:

BARNES, Jonathan. Filósofos pré-socráticos. São

Paulo: Martins Fontes, 1997.

BORNHEIM, Gerd A. Os fi lósofos pré-socráticos. 5.

ed. São Paulo: Cultrix, 1985.

BURNET, John. O despertar da fi losofi a grega. São

Paulo: Siciliano, 1994.

CHAUI, Marilena de Sousa. Introdução à história da

fi losofi a: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo:

Brasiliense, 1994. v.1.

GUTHRIE, W K C. Os fi lósofos gregos de Tales a

Aristóteles. Lisboa: Presença, 1987.

KIRK, G. S.; RAVEN, J. E; SCHOFIELD, M. Os

fi lósofos pré-socráticos: história crítica com seleção de

textos. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,

1994.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da

fi losofi a: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 9. ed. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

REALE, Giovanni. História da fi losofi a antiga. 4. ed.

São Paulo: Loyola, 2002.

SOUZA, José Cavalcante de. Os pré-socráticos:

fragmentos, doxografi a e comentários. São Paulo: Nova

Cultural, 2000.

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UNIDADE 3

Os sofi stas e Sócrates

Objetivos de aprendizagem

Identifi car os principais eventos históricos que provocaram o deslocamento da Filosofi a das colônias gregas para a pólis de Atenas.

Identifi car as características do ambiente cultural de Atenas no séc. V a.C.

Compreender a importância dos sofi stas como uma nova classe intelectual na Grécia antiga.

Comparar a sofística e a atitude fi losófi ca.

Identifi car os principais conceitos da fi losofi a de Sócrates.

Seções de estudo

Seção 1 Contexto histórico

Seção 2 Os sofi stas

Seção 3 Sócrates

3

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Para início de estudo

A discussão sobre a possibilidade de se conhecer a realidade de

forma racional levou a duas atitudes intelectuais antagônicas na

Grécia clássica: a dos sofi stas e a da fi losofi a socrática.

Antes, com os fi lósofos das colônias gregas da Jônia e da Magna

Grécia, a necessidade de construir uma explicação racional para

a realidade, uma interpretação que, diferente dos mitos, não

envolvesse o sobrenatural, fez com que a natureza fosse o tema

principal a ser discutido pelos fi lósofos. Com os sofi stas e com

Sócrates, os problemas do conhecimento e da ética tornaram-se

centrais.

Os sofi stas, diante da diversidade das teorias propostas pelos

fi lósofos anteriores, concluíram que não podemos conhecer nada

de forma defi nitiva e que só podemos ter opiniões subjetivas

sobre a realidade. Por isso elegem como elemento fundamental

da sabedoria o bom uso da linguagem. O sábio é aquele que,

dominando os recursos da linguagem, é capaz de persuadir os

outros de suas próprias idéias e opiniões. Para eles, a verdade

não depende da razão nem da experiência: ela é uma questão de

opinião e de persuasão.

Em oposição aos sofi stas, Sócrates defende a busca da verdade

através da identifi cação e superação das ilusões dos sentidos e

das armadilhas da linguagem. Para Sócrates, os sentidos nos dão

apenas as aparências das coisas e a linguagem pode ser usada para

formular opiniões sobre elas. Mas nada disso é conhecimento.

Conhecer é passar da aparência à essência, da opinião ao

conceito, do ponto de vista individual à idéia universal.

SEÇÃO 1 - Contexto histórico

Na Unidade 1, vimos como alguns fatores históricos dos séculos

IX ao VI a.C. contribuíram para que os gregos inventassem uma

forma original de pensar a realidade. Na Unidade 2, tivemos

um panorama dos acontecimentos que, ao longo do século VI

a.C., propiciaram o desenvolvimento da Filosofi a nas colônias

gregas, inicialmente na Jônia e mais tarde na Magna Grécia.

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História da Filosofi a I

Unidade 3

No século V a.C. a história da Grécia passou por uma grande

reviravolta. No centro dessa grande mudança estava a Filosofi a

que, deslocando-se para Atenas, alcança a sua maturidade.

As reformas políticas de Sólon e Clístenes

Enquanto a Filosofi a se desenvolve nas colônias gregas, a

pólis de Atenas, na Grécia continental, passa por uma grande

reforma política. Até então, Atenas vivia sob um regime político

aristocrático-escravocrata. Mas durante o século VI a.C., como

na maior parte da Grécia, a cidade sofre com problemas de

ordem agrária: grande concentração de terras na mão de poucos

e a escravização de atenienses por atenienses, em função de

dívidas fundiárias. Tais problemas e a ascensão de novas classes

sociais geram uma série de reformas na estrutura política e social

da pólis ateniense, culminando com a implantação do regime

democrático. As reformas são introduzidas, em ordem, por Sólon

e por Clístenes.

Os atenienses gabavam-se de serem autóctones, isto

é, inteiramente ori ginários da Ática. Desde seus

primórdios, a cidade se organizara em peque nas vilas,

onde se formaram uma classe de agricultura e outra de

artífi ces; os indivíduos eram remunerados segundo seu

trabalho e tratavam coleti vamente dos negócios comuns.

Pouco a pouco, surgiu uma nobreza agrária, famílias

(génos) de proprietários fundiários e de guerreiros, ligadas

por laços de sangue, formando a aristocracia e instituindo

um regime es cravista, comum em todo o mundo antigo.

Em 594 a.C., Sólon destruiu as barreiras que separavam

a família (o génos) e a pólis, isto é, criou leis válidas para

todos e que não poderiam ser violadas pelas tradições

e costumes patriarcais em que o pai era chefe absoluto

e senhor da vida e da morte da esposa, dos fi lhos e dos

escravos. A divisão de clã já não se fazia por famílias,

mas pelas fortunas. Por fi m, a partir de 510 a.C., Atenas

conhece a grande reforma de Clístenes, após a derruba da

da tirania de Pisístrato (CHAUI, 1994, p. 109-110).

Clístenes foi o responsável pela introdução da maioria das

instituições democráticas que caracterizam a política ateniense.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

A reforma de Clístenes institui o espaço cívico ou a pólis

propriamente dita. Combinando elementos de aritmética,

geometria e de demografi a, Clís tenes redistribui os

géne ou famílias, de modo a retirar deles, pelo modo

de distribuição no espaço, os poderes aristocráticos

e oligárquicos. Em ou tras palavras, faz com que a

unidade política de base e a proximidade terri torial não

coincidam, de sorte que os vizinhos não constituem

uma base po lítica legalmente reconhecida. A divisão

política do espaço impede o pode rio dos géne vizinhos

que, fortalecidos, sempre produziam tiranos ou pequenos

grupos extremamente poderosos. Cria as trítias: uma

circunscrição territorial de base; reúne as trítias em

tribos, cada qual com três trítias (uma do litoral, uma da

cidade e uma do interior). Cada trítia é formada por um

conjunto de demos, cada grupo de cem demos forma a

unidade política de base, cada qual com suas assembléias,

seus magistrados e suas festas re ligiosas, espaço onde os

atenienses fazem o aprendizado da vida política. Cria a

mais importante instituição política de Atenas: a Boulé,

o conselho de quinhentos cidadãos que são sorteados

entre os membros de todos os demos, sorteio que

garante a todos o direito de, periodicamente, participar

diretamente das decisões da pólis. Estabelece um espaço

circular onde se reú nem a Boulé (que cuida das questões

políticas cotidianas) e a Ekklesía, a Assembléia Geral

de todos os cidadãos atenienses, na qual se discutem e

decidem-se publicamente os grandes assuntos da cidade,

sobretudo as deci sões de guerra e paz. Está inventada a

democracia (dêmos, os cidadãos; krátos, o poder: o poder

do dêmos ou dos cidadãos) (CHAUI, 1994, p. 110).

Este sistema político apresenta dois princípios. Conheça-os na

seqüência.

Isegoría – palavra composta de dois elementos: “ise”, que

vem de isos (igual), e “goria”, derivada do verbo agoreúo

(falar em público, falar numa assembléia, discursar em

público). É a liberdade igual de falar por todos, direito de

dizer sua opinião na assembléia democrática.

Isonomía – palavra composta por “isos” (igual) e “nomia”,

vinda de nómos (regra, lei, norma). É a igualdade de

direitos perante a lei no regime democrático.

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História da Filosofi a I

Unidade 3

O período áureo de Atenas

Entre os século V e IV a.C., Atenas passa a ser o centro cultural

da Grécia antiga, atraindo comerciantes, artífi ces, pensadores.

Isto se dá particularmente em função da vitória grega sobre os

persas, nas guerras médicas (entre gregos e persas), em função da

liderança ateniense na Liga de Delos (477 a.C.) e da reconstrução

de Atenas, sob o comando de Péricles, e de sua expansão

comercial, que possibilitou a ascensão de uma classe mercantil.

Além disso, atividades de manufatura – como cerâmica,

escultura, construção civil entre outras –, também possibilitaram

o enriquecimento – tanto econômico como político-social – de

membros da sociedade ateniense. E estes passaram a reivindicar

um espaço na pólis.

Saiba mais sobre Péricles e a Confederação de Delos!

Para enfrentar os persas, as cidades-Estado gregas se uniram sob a liderança de Atenas e criaram a Confederação de Delos, que recolhia tributos de cada pólis para custear as despesas militares. Após a vitória sobre os persas, Atenas, sob o comando de Péricles, se aproveitou da confederação para continuar exercendo seu domínio sobre as outras cidades e utilizou a riqueza acumulada durante a guerra para a construção de obras públicas monumentais.

Péricles (495–429 a.C.), descendente de Clístenes, foi eleito diversas vezes para o cargo de general-chefe (strategos-arconte). Exercendo ao mesmo tempo o comando civil e militar da cidade, levou Atenas à maior projeção política, econômica e cultural alcançada em toda a sua história. Sua importância na história grega é tão grande que o século V a.C. é conhecido como “O Século de Péricles”.

Nesse ambiente de esplendor econômico e cultural de Atenas,

surge uma nova classe de intelectuais: os sofi stas. Surge também

uma nova fi losofi a, com algumas diferenças em relação àquela

que havia se desenvolvido nas colônias gregas da Ásia Menor e da

Itália. São esses temas que você estudará nas próximas seções.

Em 490 a.C., o imperador persa Dario exigiu a submissão dos gregos. Começou aí uma guerra que envolveu praticamente todas as cidades-Estado gregas e provocou uma grande mudança em toda a Hélade.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Em Atenas, os direitos de cidadania eram concedidos apenas para os fi lhos de atenienses livres, que fossem do sexo masculino e que já tivessem prestado o serviço militar. Além de não possuírem direitos políticos, os estrangeiros não podiam possuir imóveis na cidade.

SEÇÃO 2 - Os sofi stas

Você já ouviu falar dos sofi stas?

Há muita controvérsia em torno deles. Considerados sábios por

uns e perniciosos por outros, é indiscutível que eles tiveram

um papel de destaque na cultura grega e na vida política da sua

época.

Vamos conhecê-los melhor?

A origem dos sofi stas

Quando Atenas se tornou no mais importante centro econômico,

político e cultural da época, após a vitória sobre os persas, um

grande número de nobres de outras partes da Grécia buscam a

cidade à procura de sua intensa vida cultural.

Entre os estrangeiros que se instalam na cidade-Estado de

Atenas, alguns passam a se oferecer para atuar como mestres

na educação dos jovens pertencentes à elite local. Alguns deles

ganham fama e se destacam nessa nova função e passam a ser

chamados de sofi stas (sábios).

Alguns os consideram os primeiros pedagogos, os iniciadores do

ensino privado, pois, como eram estrangeiros e não podiam ter

propriedade em Atenas, cobravam por seus ensinamentos. São

grandes mestres de Retórica e Oratória.

Atenção!

A palavra “sofi sta” (sophistés) inicialmente signifi ca “aquele que é excelente numa arte ou técnica, aquele que é hábil, sensato e prudente.” (CHAUI, 1994, p. 359). Mais tarde, em função da imagem deixada por Sócrates, Platão e Aristóteles, que os viam como demagogos e falsos fi lósofos, a palavra “sofi sta” foi usada pejorativamente. Mas essa imagem negativa vem sendo criticada ultimamente.

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História da Filosofi a I

Unidade 3

É certo que os sofi stas tiveram um grande papel no contexto

das novas idéias difundidas neste ambiente. Juntamente com

Sócrates, embora com posições divergentes, inauguram a

temática antropológica: passando do problema da physis, central

no pensamento dos pré-socráticos, ao da ética, da política e da

teoria do conhecimento.

Os sofi stas destacam que as fi losofi as anteriores não conseguiram

chegar a nenhum resultado sólido. Ao contrário, os fi lósofos se

contradizem mutuamente, o que parece ser uma boa prova de

que não é possível conhecer nada, de forma defi nitiva, e que o

máximo que podemos fazer é formular uma opinião (doxa) sobre

a realidade. Sendo assim, a “verdade” nada mais é do que aquilo

que alguém conseguiu fazer com que todos acreditassem ser

real. O sábio, portanto, não é aquele que conhece a verdade, e

sim aquele que desenvolve a habilidade de provar suas próprias

convicções.

Os sofi stas mais famosos foram Protágoras de Abdera (490–491

a.C.) e Górgias de Leontini (484–375 a.C.). Outros sofi stas

importantes foram Pródicos de Ceos, Hípias de Elis, Licofron,

Trasímaco e Isócrates.

Humanismo e relativismo

Na sofística, encontramos dois grandes princípios:

o humanismo e o relativismo. O primeiro coloca o

homem no centro de tudo. O segundo se refere à

impossibilidade de se alcançar qualquer verdade

absoluta ou que não dependa de uma interpretação

pessoal. Um fragmento do sofi sta Protágoras de

Abdera sintetiza esses dois princípios de forma

exemplar: “O homem é a medida de todas as coisas; das que

são, enquanto são, e das que não são, enquanto não são”

(apud REALE; ANTISERI, 1990, p. 76).

Veja o que diz Marcondes (2001, p. 43) sobre a tese de

Protágoras.

Figura 3.1 - Protágoras.Fonte: <www.pensament.com/.../imatges/protagoras.jpg>.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Protágoras parece assim valorizar um tipo de explicação

do real a partir de seus aspectos fenomenais apenas, sem

apelo a nenhum elemento externo ou transcendente. Isto

é, as coisas são como nos parecem ser, como se mostram

à nossa percepção sensorial, e não temos nenhum outro

critério para decidir essa questão. Portanto, nosso

conhecimento depende sempre das circunstâncias em

que nos encontramos e pode, por isso mesmo, variar de

acordo com a situação.

Ou seja, para Protágoras, cada opinião nada mais é que a

avaliação que cada um faz de sua própria experiência. Por isso

nenhuma opinião pessoal pode ser colocada como mais correta

que a opinião de qualquer outra pessoa.

A impossibilidade do conhecimento

Outro sofi sta de peso é Górgias de Leontini. Seu fragmento

mais conhecido diz: “Nada existe que possa ser conhecido;

se pudesse ser conhecido, não poderia ser comunicado; se

pudesse ser comunicado, não poderia ser compreendido” (apud

MARCONDES, 2001, p. 44).

Complicado? Então, tomemos, novamente, as palavras de

Marcondes (2001, p. 44) que indica ser Górgias um crítico da

possibilidade do conhecimento em sentido absoluto.

Górgias dá grande importância ao logos enquanto

discurso argumentativo, e em seu Elogio a Helena faz

a famosa afi rmação: “O logos é um grande senhor.”

Entretanto, de certa maneira o logos é sempre visto como

enganoso, já que não podemos ter acesso à natureza das

coisas, mas tudo de que dispomos é o discurso, como fi ca

claro no fragmento citado acima. O logos, contudo, pode

ser persuasivo, e Górgias chega mesmo a sustentar que

mais importante do que o verdadeiro é o que pode ser

provado ou defendido.

Os sofi stas se vangloriavam de que seus alunos aprendiam a

defender, de forma convincente, tanto uma tese quanto a sua

antítese; ou seja, podiam tanto argumentar em favor de uma

opinião quanto em favor da opinião contrária, provando a

correção tanto de uma quanto de outra. Essa arte de vencer o

adversário em um debate, sem se preocupar com a verdade é a

Fenomenal se refere àquilo que é percebido pelo ser humano através da experiência.

Transcendente se refere àquilo que ultrapassa a percepção sensível, que vai além daquilo que pode ser conhecido através da experiência.

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Unidade 3

erística. Ela é interessante na medida em que, numa disputa com

as palavras, devemos estar preparados para as contraposições

do adversário. A prática nos mostra o quanto a disputa política

democrática depende disso.

A importância da linguagem!

Se nem a percepção da realidade através dos nossos sentidos nem a razão são capazes de nos propiciar conhecimentos seguros, e se a verdade é uma questão de opinião e de persuasão, é preciso valer-se de um outro instrumento para que o homem se relacione com a realidade e com os outros seres humanos. Esse instrumento, segundo os sofi stas, é a linguagem. O sábio é aquele que, compreendendo os mecanismos e os recursos da linguagem, domina as multidões através do discurso.

kósmos X nómos

Em sua nova forma de compreender a realidade, os sofi stas

produzem uma grande cisão entre kósmos e nómos. Originalmente

as duas palavras estavam diretamente ligadas na língua grega.

O termo kósmos signifi ca o bom ordenamento de pessoas e

coisas, boa ordem, organização do Estado, ordem estabelecida,

ação dos seres em conformidade com um comportamento

estabelecido. Já a palavra Nómos, que literalmente signifi ca

regra, lei ou norma, também pode ser usada no sentido de

costume.

Os sofi stas, no entanto, destacam que é um erro comparar as leis

que regem os fenômenos naturais com aquelas que norteiam a

vida humana em sociedade. Para eles, o universo ético, político

e social, ou seja, tudo aquilo que é especifi camente humano,

não se determina pelas mesmas leis de regularidade encontradas

na natureza (physis). Cada povo e cada época dispõem de seus

próprios modos de ser, costumes e regras, sem que, no fundo,

qualquer forma de organização cultural possa ser colocada como

mais correta ou como sendo a detentora da verdade defi nitiva.

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A natureza possui uma ordem (kósmos) que não depende de uma escolha do ser humano. Mas a pólis é regida por leis (nómos) que são convenções humanas.

No direito, na política e na ética, portanto, não existem princípios

necessários nem regras que sejam universalmente válidas. Toda

norma é humana e, justamente por isso, é transitória.

A importância dos sofi stas

Conforme salienta Jaeger em sua obra Paidéia (1984), o novo

sistema político baseado na igualdade do discurso (que, por

sua vez, necessita da persuasão e do convencimento), muda o

foco do agon – luta, disputa, embate – e, conseqüentemente,

da areté. A força física e a destreza no campo bélico – as

bases da areté homérica –, aos poucos são substituídas pela

habilidade discursiva. Ou seja, da luta corporal passamos ao

embate discursivo, algo que as classes mais privilegiadas cedo

perceberam. Os velhos aristocratas e, principalmente, os novos

comerciantes passaram então a contratar os sofi stas, mestres de

retórica e de oratória, para ensinar essa nova habilidade a seus

fi lhos.

Se, para a democracia, cada opinião vale igualmente e, desta

forma, não há uma verdade absoluta, tal posição pode ser

corroborada por aquilo que defendiam os sofi stas. É por isso que,

embora estrangeiros, os sofi stas são muito importantes para a

democracia ateniense.

Saiba mais sobre os sofi stas e sua contribuição para a educação!

Não se pode, ainda, deixar de destacar a grande contribuição dos sofi stas para a pedagogia. Foram eles que, pela primeira vez, sistematizam o ensino teórico na Grécia e formulam um currículo de estudos, contemplando a gramática, a retórica e a dialética e incluindo também a aritmética, a geometria, a astrologia e a música. Tais disciplinas, que mais tarde serão conhecidas como as sete artes liberais, serão retomadas na Idade Média e constituirão os chamados trivim e quadrivim.

Como vimos, os primeiros sofi stas eram estrangeiros. Só nas gerações seguintes apareceram sofi stas atenienses, mas estes já estão no período de decadência do regime democrático e representam a chamada “sofística menor.”

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História da Filosofi a I

Unidade 3

Finalmente, é preciso esclarecer que, no século IV a.C., a palavra

“sofi sta” vai aos poucos se tornando sinônima de “pensador” e,

inclusive, de “fi lósofo”. Até mesmo Sócrates, de quem falaremos

logo à frente, será chamado de sofi sta por alguns dos seus

contemporâneos. Mas isso, ao que parece, já é um abuso do

termo.

Não nos aprofundamos aqui em nenhum dos sofi stas em particular.

Se você quiser ampliar seus conhecimentos sobre os sofi stas, um bom começo é fazer uma pesquisa sobre cada um deles individualmente. Faça uma busca na Internet ou procure novas informações em um bom livro de história da Filosofi a.

Se você se apaixonar pelo tema, não deixe de conferir a obra:

GUTHRIE, W. K. C. Os sofi stas. São Paulo: Paulus, 1997.

SEÇÃO 3 - Sócrates

Sócrates é a principal referência na história da Filosofi a, a

qual se divide basicamente em “antes dele” e “depois dele”.

Contemporâneo dos sofi stas, ele desloca da realidade natural para

a realidade humana o foco da refl exão fi losófi ca, funda a ética e

propõe um novo objetivo para a prática da Filosofi a.

Vamos conhecê-lo um pouquinho melhor?

Quem foi Sócrates?

A imagem que hoje temos de Sócrates é a de um homem que

nunca saiu de sua cidade, Atenas, e que mal transpôs os muros de

sua pólis; um homem que andava a questionar os transeuntes na

praça pública (agorá), e que era justo e corajoso; enfi m, a imagem

do fi lósofo mordaz e que morreu por defender seus próprios

Beleza interior! Sócrates não era um homem que pudesse ser considerado exemplo do ideal grego de beleza. Segundo relatos, era calvo, de olhos fundos e arregalados, tinha o nariz largo e achatado, era baixinho e barrigudo. Além disso, Sócrates costumava andar sempre com a mesma túnica, já gasta pelo uso. Apesar disso, era um grande sedutor.

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princípios. “Um herói revolucionário” − diriam alguns. Mas

tudo isto é uma construção feita, particularmente, por seu maior

discípulo: Platão. Sendo assim, o primeiro problema a ser tratado

por quem quiser de fato conhecer Sócrates é a difi culdade em

distinguir o homem real da imagem construída por Platão.

Você sabe qual é a obra mais famosa de Sócrates?

Esta é uma pergunta capciosa (ou seja, essa pergunta é uma

“pegadinha”), pois Sócrates não escreveu livro nenhum.

No entanto, embora não tenha escrito nenhuma obra, Sócrates

deixou uma herança marcante para a cultura ocidental através

da infl uência que exerceu sobre toda uma geração de intelectuais.

Entre os seus muitos seguidores, merecem ser citados o

historiador Xenofonte, os políticos Alcibíades e Crítias, o escritor

Ésquines, os fi lósofos Antístenes, Aristipo, Euclides e Fédon e, é

claro, o mais famoso dos seus seguidores, o fi lósofo Platão.

Sócrates não escreveu nada, pois acreditava que o debate

discursivo oral era mais adequado à busca do verdadeiro

conhecimento. Através do diálogo, ele procurava recuperar no

espírito de seu interlocutor o signifi cado daquilo que deveria ser o

essencial para o ser humano.

A imagem que temos de Sócrates tem outros dois expoentes além

de Platão: Xenofonte e Aristófanes. O primeiro, apresenta um

texto mais na linha da biografi a e segue − embora sem o mesmo

vigor literário − a visão positiva e glorifi cante que encontramos

nas obras de Platão. O segundo, que escreve quando Sócrates

ainda está vivo, o retrata como um homem risível, um enganador,

que, com artifícios retóricos, fazia passar por boa uma causa má e

que especulava sobre os astros.

Qual o motivo desta diferença? Como visões tão díspares sobre um homem podem ser complementares?

Figura 3.2 - Sócrates.Fonte: <www.biografi asyvidas.com/.../fotos/socrates.jpg>.

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História da Filosofi a I

Unidade 3

Em primeiro lugar, é preciso salientar ser Aristófanes o principal

representante da comédia grega – gênero literário cuja principal

característica é caricaturar os personagens e exagerar aquilo

que há de ridículo na condição humana. Além disso, muitos

comentadores ressaltam que Aristófanes escreve, tomando

um Sócrates antes dos 45 anos. Deste modo, mesmo que já o

inquietasse a busca pelo conhecimento, não estaria ele ainda

sufi cientemente maduro.

Já Platão e Xenofonte retratam um Sócrates com mais de 45

anos, agora convicto de sua missão délfi ca e, conseqüentemente,

mais maduro. Certamente, as circunstâncias de seu julgamento e

sua morte afetaram profundamente seus discípulos, fazendo com

que o tornassem uma espécie de mártir − por alguns comparado

a Cristo: Cristo teria morrido pela humanidade; Sócrates, por sua

Atenas.

A Atenas de Sócrates

Sócrates foi contemporâneo dos sofi stas e, como indicam algumas

fontes, teria sido discípulo de um deles, Pródico de Ceos. O

ambiente em que Sócrates viveu é assim descrito por Pessanha

(1996, p. 13-14):

Nascido em Atenas em 470 ou 469 a.C., a época em

que fi nda va a guerra entre os gregos e os persas (guerras

médicas) e quando a vitória da Grécia marcaria o início

da fase áurea da democracia ate niense. Sócrates era fi lho

de um escultor, Sofronisco, e de uma partei ra, Fenareta.

Teria seguido, durante algum tempo, a profi ssão paterna

e é provável que tivesse recebido a educação dos jovens

atenienses de seu tempo, aprendendo música, ginástica

e gramática. Além disso benefi ciou-se da própria

atmosfera cultural da época, das mais bri lhantes da

cultura grega. Era o famoso “século de Péricles”, idade

de ouro da civilização ateniense. Através de sua frota,

Atenas domina os mares e chega a criar uma verdadeira

talassocracia [literalmente, o governo do mar]. Graças à

prote ção de Péricles, artistas como os escultores Fídias

e Ictino embelezam a cidade com suas obras magistrais,

enquanto pensadores de outras regiões do mundo

helênico, como Anaxágoras de Clazômena e Protágoras

de Abdera, trazem para Atenas os frutos da investigação

fi losófi ca e científi ca que, desde o século VI a.C., vinha

se desenvolvendo nas colônias gregas da Ásia Menor e

Sócrates dizia ter recebido do Oráculo de Delfos a missão de questionar os cidadãos atenienses, buscando o aprimoramento deles e o desenvolvimento do autoconhecimento.

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nas cidades da Magna Grécia (sul da Itália e Sicília).

É o momento também dos grandes autores trá gicos:

Ésquilo morreu quando Sócrates tinha cerca de catorze

anos, Sófocles e Eurípides eram aproximadamente dez

anos mais velhos que o fi lho de Fenareta. Centro do

mundo grego, “Hélade da Héla de”, Atenas é, no tempo

de Sócrates, um ponto de convergência cul tural e um

laboratório de experiências políticas, onde se fi rmara,

pela primeira vez na história da humanidade, a tentativa

de um governo demo crático, exercido diretamente por

todos os que usufruíam dos direitos de cidadania. Nessa

democracia, a função pública dos oradores tor na-se

fundamental e, conseqüentemente, a palavra torna-se

não ape nas um instrumento de ascensão política, como

também um proble ma a preocupar retóricos e pensadores.

Preparar o indivíduo para a vi da pública, conferir-

lhe capacitação ou virtude (areté) política, representa,

basicamente, adestrá-lo na arte da persuasão através da

pala vra.

É nesse ambiente que Sócrates faz uma fi na análise conceitual.

Sócrates e a defesa da possibilidade do conhecimento

Em oposição ao relativismo dos sofi stas, Sócrates afi rmava que

a verdade pode ser conhecida e que ela não depende do contexto

nem da subjetividade humana. É possível conhecer a verdade,

desde que afastemos as ilusões dos sentidos e das opiniões

preconcebidas e, principalmente, tomemos cuidado com as

armadilhas da linguagem. O conhecimento é possível quando

usamos a razão.

A Razão, segundo Sócrates, “é a capacidade para chegar aos conceitos pela distinção entre aparência sensível e realidade, entre opinião e verdade, entre imagem e conceito, acidente e essência. A razão é o poder da alma para conhecer as essências das coisas.” (CHAUI, 1994, p. 154).

Conhecer é defi nir

Para Sócrates, conhecer é uma operação intelectual que consiste

na elaboração de defi nições universalmente válidas. Defi nir é

marcar limites, é identifi car a essência, é dizer o que uma coisa é.

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História da Filosofi a I

Unidade 3

A busca da cura! Sócrates se comparava aos médicos, na medida em que administrava aos seus interlocutores o remédio amargo da Filosofi a. Para ele, somente esse remédio é capaz curar as feridas da ignorância.

O verdadeiro conhecimento não vem da percepção através dos

cinco sentidos, não vem da experiência. Nossa percepção da

realidade é limitada e nos permite apenas conhecer aparências.

Temos, assim, um conhecimento ilusório, que se manifesta na

forma de opinião (doxa).

No entanto, ao percebermos que nossa opinião entra em

contradição com outras opiniões, temos duas saídas: tentar impor

a nossa opinião aos demais ou tentar descobrir qual é a verdade.

A primeira opção é a defendida pelos sofi stas. A segunda,

proposta por Sócrates, conduz a uma tentativa de se encontrar

uma defi nição mais precisa e mais universal usando a razão. Ao

conseguirmos defi nir um conceito universal, alcançamos a

ciência (episteme), o verdadeiro conhecimento.

O método socrático

Sócrates dizia que só é possível fi losofar a partir do momento

em que reconhecemos nossa própria ignorância. Por isso, ele

desenvolveu um método de busca do conhecimento composto por

duas etapas: a ironia e a maiêutica.

Na primeira etapa, a ironia (do grego eiróneia, perguntar),

Sócrates solicita ao seu interlocutor que o esclareça sobre um

determinado tema. A partir daí, interroga-o, alegando não ter

conhecimento sufi ciente sobre o tema em questão. No entanto,

à medida que o interlocutor vai prestando esclarecimentos sobre

o assunto, Sócrates vai formulando perguntas cada vez mais

perspicazes, de modo que o interlocutor acaba dando-se conta

de que aquilo que ele mesmo defendia há pouco agora parece

ser contraditório. Atônito, o interlocutor acaba reconhecendo ser

aquele conhecimento que ele julgava possuir, no fundo, uma idéia

sem sentido.

A segunda etapa do método socrático é a maiêutica, ou parto

das idéias. Assim como na primeira etapa, Sócrates apenas faz

perguntas ao seu interlocutor. Mas, agora, são perguntas que o

forçam a buscar, em sua própria inteligência, uma saída para as

contradições em que ele mesmo se enredou. Com perguntas bem

elaboradas, feitas no momento apropriado, Sócrates ajuda o seu

interlocutor a descobrir por si mesmo a verdade. Esse processo é

chamado de maiêutica (do grego maieutiké, técnica de realizar um

parto), porque é semelhante a um parto: não é a parteira quem

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gera o bebê, ela apenas auxilia aquelas que já o trazem dentro de

si e precisam de ajuda para fazê-lo vir à luz. (Vale a pena lembrar

que a mãe de Sócrates era parteira; ao que parece, ele herdou um

pouco da sua arte).

Veja um exemplo de aplicação do método socrático.

Inicialmente, Sócrates solicitava uma opinião (doxa) sobre um determinado conceito. Sua pergunta fundamental era a do tipo: O que é isto?

O tema poderia ser a Justiça (como no livro I da República de Platão) ou a Coragem (como no diálogo platônico Laquês) ou, ainda, a Beleza (em outro diálogo platônico, o Hípias maior).

Dada a resposta, o interlocutor é questionado sobre os limites da opinião apresentada. Geralmente, o interlocutor fi ca confuso e admite não saber o que outrora considerava saber. Assim, a admissão da ignorância é o ponto de partida para que Sócrates recomece uma nova bateria de questões, desta feita procurando conduzir o interlocutor a uma resposta mais elaborada e mais satisfatória para o conceito. O que Sócrates procura demonstrar é que não devemos nos deixar levar pelas aparências imediatas ou noções corriqueiras que, quando muito, dão conta apenas de uma situação particular, sem conseguir, no entanto, fornecer uma defi nição universal.

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Unidade 3

Saiba mais sobre o método socrático!

O método socrático envolve um questionamento do senso comum, das crenças e opiniões que temos, consideradas vagas, imprecisas, derivadas de nossa experiência, e, portanto, parciais, incompletas, o que se refl ete nos exemplos dados. É exatamente neste sentido que a refl exão fi losófi ca vai mostrar que, com freqüência, não sabemos aquilo que pensamos saber. Temos talvez um entendimento prático, intuitivo, imediato, que, contudo, se revela inadequado no momento em que deve ser tornado explícito. O método socrático revela a fragilidade desse entendimento e aponta para a necessidade e a possibilidade de aperfeiçoá-lo através da refl exão, ou seja, partindo de um entendimento já existente, ir além dele em busca de algo mais perfeito, mais completo.

É importante notar que, na concepção socrática, essa melhor compreensão só pode ser resultado de um processo de refl exão do próprio indivíduo, que descobrirá, a partir de sua experiência, o sentido daquilo que busca. Isso se dá através de sucessivos graus de abstração e do exame do que essa própria experiência envolve, explicitando o que no fundo já está contido nela. Trata-se de um exercício intelectual em que a razão humana deve descobrir por si própria aquilo que busca. Sócrates jamais responde às questões que formula, apenas indica quando as respostas de seu interlocutor são insatisfatórias e por que o são. Procura apenas indicar o caminho, a ser percorrido pelo próprio indivíduo: é este o sentido originário de método (“através de um caminho”). Não há substituto para esse processo de refl exão individual. A defi nição correta nunca é dada pelo próprio Sócrates, mas é através do diálogo, e da discussão, que Sócrates fará com que seu interlocutor – ao cair em contradição, ao hesitar quando parecia seguro – passe por todo um processo de revisão de suas crenças e opiniões, transformando sua maneira de ver as coisas e chegando, por si mesmo, ao verdadeiro e autêntico conhecimento. É por esse motivo que os diálogos socráticos são conhecidos como aporéticos (de aporia, impasse) ou inconclusivos.

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[...] O papel do fi lósofo, portanto, não é transmitir um saber pronto e acabado, mas fazer com que outro indivíduo, seu interlocutor, através da dialética, da discussão no diálogo, dê a luz a suas próprias idéias (Teeteto, 149a-150c). A dialética socrática opera inicialmente através de um questionamento das crenças habituais de um interlocutor, interrogando-o, provocando-o a dar respostas e a explicitar o conteúdo e o sentido dessas crenças. Em seguida, freqüentemente utilizando-se de ironia, problematiza essas crenças, fazendo com que o interlocutor caia em contradição, perceba a insufi ciência delas, sinta-se perplexo e reconheça sua ignorância [...] É este o sentido da célebre fórmula socrática ‘’Só sei que nada sei’’, a idéia de que o reconhecimento da ignorância é o princípio da sabedoria. A partir daí, o indivíduo tem o caminho aberto para encontrar o verdadeiro conhecimento (episteme), afastando-se do domínio da opinião (doxa). (MARCONDES, 2001, p. 47-48).

A essência do homem

Enquanto a fi losofi a pré-socrática tinha como objeto de

investigação a physis e o kósmos, Sócrates, aqui concordando com

os sofi stas, volta seu interesse para o homem e a pólis. Essa atitude

acaba levando Sócrates a se perguntar: o que é o homem?

Embora não tenha dado uma resposta conclusiva para essa

pergunta, por achar que ela era a mais profunda de todas,

Sócrates chega a uma defi nição razoavelmente precisa: o homem

é a sua alma.

Atenção!

Sócrates usa a palavra alma (psyché) num sentido diferente daquele que é dado pela religião. Para Sócrates, a alma é a consciência que cada um tem de si mesmo, é a personalidade intelectual e moral, é a razão. É o poder intelectual que cada um tem para descobrir em si mesmo e por si mesmo a verdade. É a capacidade de descobrir por si mesmo as regras da vida virtuosa.

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História da Filosofi a I

Unidade 3

Sócrates introduz na Filosofi a, pela primeira, uma distinção

entre corpo e alma. Este será o gérmen do dualismo que mais

tarde fl orescerá com outros autores. Mas esse dualismo não

implica uma distinção ontológica, não é ainda uma diferenciação

de substâncias. É apenas a afi rmação de que, no ser humano, o

essencial é a sua racionalidade.

Essa idéia terá grandes conseqüências tanto no pensamento

socrático quanto na maioria das fi losofi as posteriores. A primeira

relaciona-se com a importância que se deve dar ao corpo e à

alma. Se a essência do homem é a alma, é ela que deve receber

nossos melhores cuidados.

Filosofi a como busca da felicidade

Você acha que a Filosofi a é só teoria? Para Sócrates, a Filosofi a

tem um objetivo prático: a conquista da felicidade. Por isso, ele

se distancia dos fi lósofos pré-socráticos e inaugura um novo foco

para a investigação fi losófi ca: mais importante do que investigar a

natureza é descobrir o que podemos fazer para sermos felizes.

Do que nós realmente precisamos para sermos felizes?

Você já parou para pensar sobre isso?

A palavra em grego para felicidade é eudaimonía. Literalmente,

eudaimonía signifi ca “bom demônio”. No sentido mais arcaico

da palavra, ter eudaimonía era ter um bom anjo protetor, capaz

de garantir a saúde, a segurança, a prosperidade, a sorte e tudo

o mais. Com a gradativa superação da mentalidade mítica pela

racionalização da cultura, ocorrida entre os séculos IX e VI

a.C., essa idéia foi sendo reelaborada; e, com os pré-socráticos,

essa idéia é interiorizada. Heráclito, por exemplo, afi rmava que

o verdadeiro anjo da guarda do homem é o seu caráter moral e,

também, que a felicidade é bem diferente dos prazeres.

Sócrates desenvolve essa idéia de Heráclito e a adapta à sua

própria concepção de homem. Feitos os devidos ajustes, pode-se

dizer que a razão é o verdadeiro anjo-da-guarda do homem e que

a felicidade é o fruto colhido por quem vive de acordo com sua

própria essência.

Page 92: História da Filosofia Antiga

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Universidade do Sul de Santa Catarina

O pai da ética

Sócrates é considerado por muitos como fundador da refl exão

racional, sistemática e crítica sobre a ação humana virtuosa.

“O que é a virtude?” − pergunta Sócrates em diversas situações

e às mais diversas pessoas. A virtude (areté) é a ação correta,

excelente, meritória.

Mas como saber se uma ação é correta? Aliás, correta para quem? O que é correto para um pode não ser para outro?

Pelo que já estudamos até aqui, já é possível deduzir as respostas

que Sócrates dá a essas perguntas. Acompanhe o seguinte

raciocínio:

A ação correta para o ser humano é aquela que condiz com sua essência.

A essência do homem é a razão.

Portanto areté consiste em agir de acordo com a razão.

É um raciocínio simples – mas não simplório. E, para podermos

compreendê-lo melhor, é preciso desenvolver três idéias que estão

implícitas nele: a idéia de autonomia, a tese de que virtude é

conhecimento e a tese de que ninguém é mau por livre escolha.

Acompanhe o signifi cado de tais idéias.

Autonomia – se a essência do homem é a razão, então é

em si mesmo que cada um deve buscar orientação para agir

corretamente. Foi nesse sentido que Sócrates tomou para si um

lema inscrito num templo em Delfos: “conhece a ti mesmo”.

A virtude moral não consiste em seguir os costumes nem em

fazer aquilo que a maioria aprova e nem mesmo em obedecer

a preceitos religiosos. A virtude está em obedecer à própria

essência.

Page 93: História da Filosofia Antiga

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História da Filosofi a I

Unidade 3

A areté humana é o conhecimento – a essência do homem é

a razão, que consiste na capacidade de conhecer a essência das

coisas. O conhecimento da essência das coisas é o verdadeiro

conhecimento, é a ciência (episteme). O homem excelente é

aquele em que sua essência se manifesta plenamente; portanto, a

excelência humana corresponde à plenitude da ciência (episteme).

Ninguém é mau por livre escolha – todo ser humano busca

aquilo que, acredita, lhe trará a felicidade. No entanto, na maioria

das vezes, confi amos nas nossas sensações, na nossa experiência,

nas nossas próprias opiniões e também nas opiniões de outras

pessoas. Ou seja, na maioria das vezes nos deixamos levar por

falsos conhecimentos, por ilusões e, por isso, acabamos agindo

de forma incorreta. Mas a ação incorreta gera a infelicidade.

Como ninguém deseja a própria infelicidade, fi ca claro que só

quando agimos sem conhecimento, só quando estamos presos à

ignorância, é que agimos de forma incorreta.

Saiba mais sobre a ética de Sócrates!

Dois livros de Platão, Mênon e Laques, são leituras fundamentais para quem quiser aprofundar seus conhecimentos sobre a ética de Sócrates.

Ninguém é perfeito

A frase mais famosa de Sócrates, e uma das que geram mais

polêmica, é: “sei que nada sei” (apud PLATÃO, 1996, p. 33).

O que ele quer dizer com isso?

Embora defenda a possibilidade de se superar a doxa e de se

alcançar a episteme, Sócrates rejeita ser chamado de sábio.

Acredita que ninguém, nem mesmo ele, é sábio. Considera-se

apenas um fi lósofo – alguém que busca a sabedoria.

Certa vez, um amigo de Sócrates foi a Delfos, cidade em que

havia um famoso templo no qual a pitonisa (a sacerdotisa desse

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Universidade do Sul de Santa Catarina

templo) trazia oráculos (mensagens dos deuses aos humanos)

aos que a procuravam. E os deuses proferiram: “Sócrates é o

mais sábio dos atenienses”. Ao saber do oráculo recebido por seu

amigo foi que Sócrates formulou seu dito mais conhecido: “Só

sei que nada sei”. Justifi cou-se argumentando que sua sabedoria

só poderia residir na consciência que tinha do fato de que nada

sabia.

Ter consciência do quanto ainda precisamos aprender é o primeiro passo para desejar o aprendizado. O sábio é o eterno aprendiz.

A morte de Sócrates

Embora tenha exercido com dedicação as funções públicas para

as quais foi convocado pela pólis (como soldado e, mais tarde,

como magistrado), sempre que pôde Sócrates se manteve afastado

das questões administrativas e da luta pelo poder. Acreditava que

sua missão era servir à pólis através das suas atitudes, vivendo de

forma justa e colaborando para formar cidadãos sábios, honestos,

moderados.

Sócrates era adorado por seus alunos. Vivia rodeado de jovens

que se encantavam ao vê-lo falar. No entanto, ao assumir

uma postura crítica diante da democracia ateniense e dos

ensinamentos dos sofi stas, Sócrates também ganhou inimigos. E

quanto maior era o seu sucesso, maior era o incômodo das elites

dominantes e dos sofi stas que disputavam com ele a atenção dos

que buscavam aprimorar-se intelectualmente.

Quando esse incômodo tornou-se grande demais, Sócrates foi

acusado de corromper os jovens, de não adorar os deuses de sua

própria pólis e de introduzir o culto a novos deuses. E, assim,

foi levado a julgamento. Considerado culpado pela assembléia,

o fi lósofo foi condenado à morte. Um mês mais tarde, após ter-

se recusado a fugir da prisão sob a proteção de alguns amigos

infl uentes, Sócrates morre, bebendo um veneno chamado cicuta,

rodeado por seus melhores amigos.

Page 95: História da Filosofia Antiga

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História da Filosofi a I

Unidade 3

Para saber mais sobre a morte de Sócrates, basta fazer uma rápida consulta na Internet ou em obras de história da Filosofi a!

Mas, se você quiser consultar as fontes originais, saiba que todo o processo de acusação, julgamento, condenação e execução de Sócrates é descrito em detalhes em quatro diálogos de Platão. No Eutífrone, vemos o fi lósofo, ainda livre, indo para o tribunal, a fi m de conhecer as acusações que lhe foram movidas pelo jovem Meleto; na Defesa de Sócrates temos uma descrição do julgamento; no Críton, temos o relato de uma visita do seu melhor amigo ao cárcere; e, no Fédon, encontramos uma descrição dos últimos instantes de vida e o discurso sobre a imortalidade da alma.

Outra fonte original de informação sobre o julgamento é a obra Apologia de Sócrates, de Xenofonte.

Figura 3.3 – A Morte de Sócrates, de Jacques-Louis David.Fonte: <fi les.blog-city.com/.../a_morte_de_s_crates.jpg>

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Síntese

Entre os século VI e V a.C., a pólis de Atenas passa por

profundas transformações. No século VI a.C., ocorrem mudanças

políticas motivadas pelo crescimento populacional e pelo

desenvolvimento e diversifi cação da atividade econômica. No

século V a.C., a guerra contra os persas provocará uma grande

reorganização de toda a Grécia e fará com que Atenas se torne o

centro do mundo grego. É nesse ambiente que surge uma nova

classe intelectual – a dos sofi stas – e é também aí que a Filosofi a

alcança a sua maturidade.

Os sofi stas, professores que se colocam a serviço da educação dos

jovens pertencentes à elite ateniense, ensinam que a sabedoria

consiste no domínio da linguagem e na capacidade de usá-la para

convencer os outros de que aquilo que nós mesmos defendemos é

o correto. Não interessa qual é a verdade, pois tudo é relativo e o

homem é a medida de todas as coisas.

Em contrapartida, Sócrates propõe que a verdade existe, é

universal e está dentro de cada ser humano. Para conhecê-la,

basta que cada um conheça a si mesmo. Usando a ironia e a

maiêutica, Sócrates auxilia aqueles que buscam o conhecimento

seguro, a episteme.

Embora não tenha deixado nenhuma obra escrita, Sócrates foi

a fi gura mais infl uente da Filosofi a Grega. Foi o fundador da

ética e propôs ser a busca da felicidade a verdadeira função da

Filosofi a. Identifi cando virtude com conhecimento, ele defende

que só se é mau por ignorância.

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História da Filosofi a I

Unidade 3

Atividades de auto-avaliação

Ao fi nal de cada unidade, você realizará atividades de auto-avaliação. O gabarito está disponível no fi nal do livro-didático. Mas se esforce para resolver as atividades sem ajuda do gabarito, pois, assim, você estará promovendo (estimulando) a sua aprendizagem.

1. Em função do seguinte quadro, compare a tradição fi losófi ca pré-socrática, a sofística e a fi losofi a de Sócrates.

Pré-socráticos Sofi stas Sócrates

Tema central

Disciplina principal

Idéia de ordenação

Objetivo fi nal do desenvolvimento intelectual

2. De acordo com Sócrates, o que é a razão?

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Universidade do Sul de Santa Catarina

3. Vamos aprender grego?

Escreva a palavra grega que corresponde a cada um dos vocábulos abaixo:

a) família:

b) excelência, virtude:

c) natureza:

d) luta, disputa:

e) felicidade:

f) opinião:

g) ciência:

h) ordem:

i) regra, lei:

j) praça pública:

k) sábio, sensato, habilidoso:

Saiba Mais

Se você desejar, aprofunde os conteúdos estudados nesta unidade,

consultando as seguintes referências:

CHAUI, Marilena. Introdução à história da fi losofi a.

São Paulo: Brasiliense, 1994.

GUTHRIE, W. K. C. Os sofi stas. São Paulo: Paulus,

1997.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da

fi losofi a: Dos pré-socráticos a Wittgenstein. 6. ed. Rio

de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2001.

PLATÃO; XENOFONTE; ARISTÓFANES.

Sócrates. [Os pensadores], São Paulo: Nova Cultural,

1996.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da

fi losofi a. Volume I: Antigüidade e Idade Média. São

Paulo: Paulus, 1990.

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UNIDADE 4

Platão

Objetivos de aprendizagem

Identifi car os principais eventos históricos que marcaram o fi m do século de ouro de Atenas.

Identifi car os principais eventos da vida de Platão e como estes infl uenciaram o seu pensamento.

Traçar um panorama das obras de Platão..

Compreender os principais aspectos metodológicos da fi losofi a platônica.

Defi nir os principais conceitos da fi losofi a de Platão.

Identifi car e interpretar as metáforas e alegorias mais conhecidas de Platão.

Seções de estudo

Seção 1 Contexto histórico

Seção 2 Quem foi Platão?

Seção 3 A obra de Platão

Seção 4 A formação do fi lósofo e a buscada episteme

Seção 5 As analogias como complementoda dialética

Seção 6 O universo, o homem e a pólis

Seção 7 O amor platônico

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo

Platão é o discípulo mais famoso de Sócrates. Como Sócrates

não deixou nenhuma obra escrita, muito do que sabemos hoje da

sua fi losofi a nos chegou através de Platão. Por outro lado, Platão

utiliza a fi gura de Sócrates como personagem em seus livros.

Assim, o personagem acaba sendo associado a idéias que, na

verdade, foram desenvolvidas pelo autor do texto. É preciso

tomar cuidado com essa “confusão” entre o Sócrates histórico,

o Sócrates personagem literário e Platão. Mas é inegável que

Platão, acima de tudo, admirava Sócrates e que procurou durante

toda a vida dar continuidade ao trabalho iniciado pelo mestre.

SEÇÃO 1 - Contexto Histórico

A obra de Platão foi fortemente marcada pelos acontecimentos do

seu tempo. Por isso, para compreendê-la, é importante conhecer

alguns detalhes históricos que, de certa forma, infl uenciaram

seu pensamento. Nascido em Atenas em 428 a.C., Platão foi

contemporâneo dos sofi stas e discípulo de Sócrates. Embora já

tenhamos descrito um pouco do contexto histórico do séc. V

a.C. na unidade anterior, é preciso agora acrescentar mais alguns

detalhes aqui.

Em 478 a.C., os gregos criam a Confederação de Delos, uma

aliança marítima de defesa comandada por Atenas. Após derrotar

defi nitivamente os persas em 448 a.C., o governo ateniense

usa os espólios da guerra na construção de obras públicas e

monumentos, transformando Atenas na mais exuberante cidade

da época.

Mas todo esse esplendor foi feito às custas da apropriação

de recursos que pertenciam a todas as cidades-Estado que

compunham a federação. Isso acabou provocando um novo

confl ito, a Guerra do Peloponeso, marcada principalmente pela

disputa entre Esparta e Atenas.

A vitória dos espartanos, em 404 a.C., obtida com a ajuda dos

antigos inimigos persas, marca o fi m da hegemonia ateniense.

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História da Filosofi a I

Unidade 4

Após a rendição, Esparta apóia em Atenas um golpe de Estado

conduzido pela oligarquia ateniense. O novo governo fi cou

conhecido como “a tirania dos trinta” e durou cerca de um ano,

até que uma revolta popular reinstaurou a democracia.

Apesar da vitória, Esparta sai da guerra enfraquecida. A Grécia

inicia um período de declínio no cenário político internacional

que culminará, mais tarde, com a sua total submissão e anexação

ao até então inexpressivo reino da Macedônia. Mas esse assunto

fi ca para a próxima unidade.

Pesquise!

Que tal usar a Internet para fazer uma pesquisa sobre a Guerra do Peloponeso? Há vários detalhes muito interessantes além daqueles que foram abordados aqui.

Destaque um detalhe que mais lhe tenha interessado e o publique no EVA, por meio da ferramenta Exposição. Não se esqueça de consultar as respostas dos colegas.

SEÇÃO 2 - Quem foi Platão?

Platão (428-348 a.C.) viveu entre o apogeu e o

declínio de Atenas e também foi contemporâneo

do enfraquecimento de Esparta, outra importante

cidade grega e principal adversária de Atenas. Dez

anos após a morte de Platão, Filipe da Macedônia

domina a Grécia, a qual nunca mais recupera sua

estrutura política, constituída por cidades-Estado

independentes.

Platão pertencia a uma família infl uente. Seu pai,

Ariton, descendia de Codro, último rei de Atenas,

e era amigo de Péricles, a grande fi gura da política

ateniense. Sua mãe, Perictíone, era prima de Crítias, membro do

Governo dos Trinta, e irmã de Carmides.

Figura 4.1 – Platão.Fonte: <http://www.euniverso.com.

br/Psyche/Filosofi a/platao.jpg>.

Page 102: História da Filosofia Antiga

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Saiba mais sobre Platão!

O verdadeiro nome de Platão era Aristócles. Em grego, plátos (que, em Português, vira Platão) signifi ca “amplitude, largura, grande dimensão”. Alguns comentadores atribuem esse apelido à imensa testa que Aristócles possuía; outros acreditam que o motivo era o porte atlético de Platão ou seus ombros largos. De fato, quando jovem, Platão se destacou também como atleta, tendo alcançado a vitória em diversas competições esportivas

Por sua origem, Platão tendia para a vida política. Entretanto

a Grécia vivia em guerra. Após o domínio de Esparta sobre as

cidades gregas, é instaurado, em Atenas, o Governo dos Trinta,

do qual participavam parentes e amigos de Platão. Este governo

impopular foi derrubado pela democracia – a mesma democracia

que mais tarde condenará Sócrates, de quem Platão era discípulo.

Esses acontecimentos fazem com que Platão desista da carreira

política, como ele mesmo relata na Carta VII:

Outrora em minha juventude, experimentei o que

experimentam tantos jovens. Tinha o projeto de

imediatamente abordar a política tão logo pudesse dispor

de mim mesmo. Ora, eis em que estado ofereciam-se

então a mim os negócios do país: a forma de governo

estando vivamente atacada de diversos lados, tomou-se

uma resolução. À testa de nova ordem estabeleceram-se

cinqüenta e um cidadãos, onze na cidade, dez no Pireu (esses dois grupos foram postos à frente da ágora e de

tudo o que concerne à administração da cidade), mas

trinta constituíam a autoridade suprema com poder

absoluto. Muitos dentre eles eram quer parentes meus,

quer conhecidos, que logo me convidaram para tarefas

às quais me consideravam apto. Deixei-me levar por

ilusões que nada tinham de espantosas em razão de

minha juventude. Imaginava que governariam a cidade,

reconduzindo-a dos caminhos da injustiça para os da

justiça... Ora, vi esses homens nos levarem em pouco

tempo a lamentar a antiga ordem das coisas como uma

idade de ouro. Entre outros fatos, quiseram associar meu

velho e caro amigo Sócrates, que não temo proclamar

o homem mais justo de seu tempo, a alguns outros

encarregados de levar à força um cidadão para executá-

lo e isso com o propósito de comprometer Sócrates,

voluntária ou involuntariamente, com a política deles.

Pireu é o nome do porto de Atenas. A pólis de Atenas se dividia administrativamente em duas regiões: a cidade (região mais alta) e o Pireu.

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História da Filosofi a I

Unidade 4

Sócrates não obedeceu e preferiu antes expor-se aos piores

perigos que tornar-se cúmplice de ações criminosas. Em

vista dessas coisas e de outras ainda do mesmo gênero e

de não menor importância, fi quei indignado e me afastei

das misérias dessa época. Logo os Trinta caíram e com

eles todo o seu regime. Mais uma vez, se bem que menos

entusiasmado, fui movido pelo desejo de me envolver

no negócio do Estado. Tiveram lugar, então, pois era

um período de desordens, muitos fatos revoltantes e

não é extraordinário que as revoluções tenham servido

para multiplicar os atos de vingança pessoal. Contudo,

os que retornaram nesse momento, usaram de muita

moderação. Mas, não sei como pôde acontecer, eis que

pessoas poderosas arrastam diante dos tribunais esse

mesmo Sócrates, nosso amigo, e levantaram contra ele

uma acusação das mais graves e que seguramente não

merecia: e por impiedade que alguns o citaram diante do

tribunal e que outros o condenaram e fi zeram morrer o

homem que não quisera participar da criminosa detenção

de um de seus amigos então banido, quando, banidos

eles próprios, estavam na desgraça. Vendo isso e vendo

os homens que conduziam a política, quando mais

considerava as leis e os costumes e quanto mais também

avançava em idade, mais me parecia difícil administrar

bem os negócios do Estado... Finalmente compreendi

que todos os Estados atuais são mal governados, pois

sua legislação é quase irremediável sem enérgicas

providências unidas a felizes circunstâncias. Fui então

irresistivelmente levado a louvar a verdadeira Filosofi a

e proclamar que, somente à sua luz, se pode reconhecer

onde está a justiça na vida pública e na vida privada.

Portanto, os males não cessarão para os homens antes que

a raça dos puros e autênticos fi lósofos chegue ao poder

ou que os chefes das cidades, por uma graça divina, se

ponham verdadeiramente a fi losofar. (apud CHAUI,

1994, p. 167-168)

Após a morte de Sócrates, Platão é aconselhado a deixar Atenas.

Passa um tempo na vizinha cidade de Mégara, junto com outros

seguidores de Sócrates, e, em seguida, faz diversas viagens;

cogita-se que tenha ido ao Egito, à Jônia e a Creta; sabe-se que,

em 388 a.C., aos quarenta anos, esteve no sul da Itália, em busca

de contato com a escola pitagórica. Em seguida, foi a Siracusa,

na Sicília, a convite do rei Dionísio I. Vivendo na corte, Platão

acabou se indispondo com Dionísio e, por isso, foi deportado

e vendido como escravo na ilha de Egina (que fi ca próxima de

Atenas).

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Voltando a Atenas, em 386 a.C., Platão adquire um ginásio

e funda aí a sua escola de fi losofi a, a qual fi cou conhecida

como Academia (pois se situava em uma propriedade que

teria pertencido a um antigo herói chamado Academos). Na

Academia, Platão se dedica à formação do autêntico fi lósofo,

através dos estudos científi cos. Em pouco tempo, a Academia

torna-se o principal centro de educação intelectual de Atenas,

onde se ensinava matemática, astronomia, botânica, medicina e,

principalmente, fi losofi a.

A academia foi também um exemplo de democratização da

educação: as aulas eram gratuitas, com algumas sessões abertas

ao público em geral; outra grande inovação foi a aceitação

de mulheres como alunas. Além das seções públicas, havia a

formação fi losófi ca propriamente dita. Em suas instalações,

alunos vindos de toda a Grécia formavam uma comunidade

voltada para a busca do saber. Mas, para tornar-se um membro

efetivo da Academia e ter acesso aos ensinamentos mais

profundos, Platão fazia uma exigência: “Não entre, se não souber

geometria”. A academia é considerada o embrião da idéia de

universidade, e é por isso que até hoje os estudantes universitários

são chamados também de “acadêmicos”.

Mesmo com sua Academia em pleno funcionamento, Platão

ainda iria mais duas vezes à Sicília, onde sempre acabava tendo

problemas. Após a terceira viagem, em 360 a.C., Platão se

estabelece defi nitivamente em Atenas e permanece na direção da

Academia até sua morte, em 347 a.C.

Sabia mais sobre os empreendimentos de Platão!

Na obra A República, Platão concebe uma sociedade ideal, administrada por homens comprometidos com a justiça, a coragem, a moderação e a sabedoria. Essa sociedade deveria ser governada por um rei-fi lósofo.

A esperança de ver seu projeto tornar-se realidade levou Platão a empreender suas viagens a Siracusa. Mas, após a terceira tentativa, Platão parece ter percebido o caráter utópico da sua concepção política.

No fi nal da vida, Platão escreve a obra As Leis, na qual reelabora algumas das suas propostas originais.

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História da Filosofi a I

Unidade 4

SEÇÃO 3 - A obra de Platão

Platão, assim como Sócrates, não tinha grande apreço pela

escrita, pois esta era vista como imitação da linguagem oral e,

para eles, o que é autêntico é sempre melhor do que a imitação.

Porém, ao contrário de Sócrates, Platão nos deixou obras

escritas. Optou, no entanto, por um estilo literário que se mostra

o mais próximo possível das conversas que tinha na Academia,

escrevendo predominantemente em forma de diálogo.

Acredita-se que a obra escrita por Platão tenha chegado até nós

em sua totalidade. Abaixo, temos uma relação dos seus escritos,

seguindo a classifi cação apresentada por Marcondes (2001, p. 54-

55):

Diálogos considerados autênticos

Diálogos socráticos (399 a.C. morte de Sócrates):

Apologia a Sócrates

Íon, ou sobre a Ilíada

Hípias menor, ou sobre a falsidade

Laques, ou sobre a coragem

Carmides, ou sobre a moderação

Críton, ou sobre o dever

República (Politéia), livro I, ou sobre a justiça

Hípias maior, ou sobre a beleza

Eutífron, ou sobre a piedade

Lísis, ou sobre a amizade

Diálogos da fase intermediária (primeira viagem à Sicília, 389-388 a.C.)

Protágoras, ou sobre os sofi stas

Górgias, ou sobre a retórica

Menexeno, ou oração fúnebre

Eutidemo, ou sobre a erística

O banquete (Simposium), ou sobre o amor

Ménon, ou sobre a virtudecontinua

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Universidade do Sul de Santa Catarina

A república (Politéia) [com exceção do Livro I, que foiescrito ainda na fase socrática), ou sobre a justiça

Fedro, ou sobre a alma

Diálogos da maturidade (crítica à teoria das formas)

Crátilo, ou sobre a correção dos nomes

Teeteto, ou sobre o conhecimento

Parmênides, ou sobre as formas

O sofi sta, ou sobre o ser

O político, ou sobre a monarquia

Filebo, ou sobre o prazer

Diálogos da fase fi nal

Timeu, ou sobre a natureza

Crítias, ou sobre a Atlântida

As leis (Nomoi)

Epinomes, um apêndice de As Leis

Diálogos de autenticidade discutível

Alcibíades, I e II

Hiparco

Anterestai

Teages

Mino

O fi lósofo

Treze cartas, das quais são consideradas autênticas a III,a VII (a mais famosa e importante) e a VIII

Toda a obra de Platão está traduzida para o Português. Algumas

delas estão disponíveis em edições econômicas (como a coleção

“Os Pensadores”, que já foi publicada diversas vezes pelas editoras

Abril Cultural e Nova Cultural, e a coleção “A Obra-Prima de

Cada Autor”, da Editora Martin Claret).

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História da Filosofi a I

Unidade 4

Vários textos estão disponíveis também em edições eletrônicas,

acessíveis em sites da Internet, como por exemplo, o portal

“Domínio Público” <www.dominiopublico.gov.br>.

Saiba mais sobre as obras de Platão!

Para facilitar a comparação de traduções e a localização de trechos em edições diferentes, os textos de Platão possuem uma numeração padronizada. Essa numeração toma como base a edição da obra de Platão por Henricus Stephanus, em 1578, e é composta por um número seguido de uma letra (ex.: 533c).

Em livros dirigidos para um público que já tenha certa formação fi losófi ca, é comum encontrar trechos das obras de Platão seguindo essa numeração. Assim, é comum encontrar referências como “533cd” (indicando que o trecho inicia em 533c e termina em 533d) ou “614b-621b” (indicando que o texto citado vai de 614b até 621b).

As edições mais elaboradas das obras de Platão trazem essa numeração na margem do texto (além da paginação padrão, no topo ou no rodapé, como qualquer outro livro). As edições populares geralmente não disponibilizam esse recurso.

Sempre que possível, apresentamos aqui, no nosso texto, essa numeração padronizada.

SEÇÃO 4 - A formação do fi lósofo e a busca da episteme

A educação é um tema fundamental para Platão. Tanto a

formação do indivíduo quanto a construção de uma sociedade

mais justa precisam apoiar-se em um planejamento consciente

de todo o processo educativo. Por isso, principalmente na obra A

República, Platão faz duras críticas à educação grega de sua época

e propõe um “currículo básico” para a formação do fi lósofo.

A educação grega

Nos primeiros séculos da história grega, as obras de Homero e

de outros poetas formavam a base da educação. A poesia tinha

um valor pedagógico muito grande. As formas rítmicas da poesia

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Universidade do Sul de Santa Catarina

ajudavam na memorização de ensinamentos, numa época em

que a escrita ainda era pouco difundida. O aprendizado dos

valores culturais se dava através da memorização, da repetição e

da lembrança dos versos poéticos, nos quais os personagens das

epopéias (como Ulisses, Telêmaco e Aquiles) serviam de modelo

de excelência física e moral.

Com o desenvolvimento econômico e cultural, no entanto, o

processo educativo vai-se tornando cada vez mais complexo.

Surge a educação formal e planejada. Nesse novo contexto,

dois grandes modelos de educação se desenvolvem na Grécia: o

ateniense e o espartano.

O modelo ateniense era privado; cabia à família a educação do

jovem. Estava organizado, basicamente em três fases:

até os sete anos, meninos e meninas recebiam a atenção

da família e tinham o seu primeiro contato com os

poemas épicos;

numa segunda etapa, já sob a orientação de instrutores,

aprendiam a ler, praticavam modalidades atléticas e

recebiam aulas de música;

dos quatorze aos dezoito anos, passavam a freqüentar os

ginásios (locais para ginástica e de formação cívica, onde

os jovens, além de se exercitarem, podiam acompanhar

os mais velhos em discussões sobre os mais diversos

assuntos). Também é nessa terceira etapa da educação

que alguns jovens mais ricos recebiam as aulas de retórica

e de política ministradas pelos sofi stas.

Já Esparta tinha um modelo rígido e militarizado. Aos sete anos,

os jovens eram retirados de suas famílias e entregues ao Estado.

Passavam a viver em comunidade e recebiam um treinamento

atlético e militar rigoroso, com a fi nalidade de modelar os

espíritos à coragem, à lealdade, à destreza e à verdade.

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História da Filosofi a I

Unidade 4

Atenção!

Todos estes elementos históricos têm infl uência sobre a forma como Platão discute o tema da educação em A República. Para formar o cidadão ideal, Platão propõe uma nova educação, na qual mantém a ginástica e a música, mas elimina a poesia. Os poetas, para Platão, são corruptores da alma, pois, da mesma forma que pregam ideais nobres, incutem virtudes inadequadas.

A dialética: a formação do fi lósofo e a busca da episteme

No conjunto de disciplinas para a formação do cidadão ideal,

após a música e a ginástica, Platão acrescenta a matemática

(abrangendo aquilo que hoje chamaríamos de aritmética,

geometria plana e geometria espacial) e a astronomia.

A última etapa de formação intelectual, destinada apenas aos que

possuem vocação fi losófi ca, é o aprendizado do método dialético,

pois é este que dará ao homem a condição de ver além das

aparências e de compreender o Bem, a Justiça e as demais idéias,

tornando-o um verdadeiro fi lósofo. Segundo Platão:

O método dialético é o único que se eleva, destruindo as

hipóteses, até o próprio princípio para estabelecer com

solidez as suas conclusões, e que realmente afasta, pouco

a pouco, o olhar da alma da lama grosseira em que está

mergulhado e o eleva para a região superior […]. (Platão,

1997, p. 247, Livro VII, 533cd).

Aliás, você sabe o que para Platão signifi ca dialética?

A palavra idéia tem um sentido especial na fi losofi a de Platão: ela indica o conceito abstrato, em oposição às coisas concretas.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

A essência, como vimos ao falar de Sócrates, é aquilo que uma coisa realmente é; na maioria das vezes, a essência está oculta sob as aparências.

A dialética é o percurso que nos leva da opinião à ciência, da doxa à episteme, através do diálogo pautado pela busca das essências. Ela é, segundo Platão, a verdadeira forma de fi losofar.

O método dialético se caracteriza fundamentalmente pelo diálogo que busca a verdade (alétheia). Note que não se trata de qualquer diálogo. Um diálogo comum nada mais é do que uma comparação de opiniões que, na maioria das vezes, não passam de idéias preconceituosas que temos sobre os mais diversos assuntos. Isso, obviamente, não é a dialética.

A dialética também se diferencia da erística, método de disputa

desenvolvido pelos sofi stas. Para os sofi stas, o importante era

sair como vencedor do debate, não importando quem está com a

razão. Mas, como ressalta Pietre (1989, p. 24), essa postura não é

adequada a quem busca a verdade:

Num diálogo fi losófi co, em que a vontade de sobressair

em relação a outrem ou de brilhar por raciocínios

capciosos deve desaparecer para dar lugar à procura

desinteressada do verdadeiro, as questões suscitadas por

uma pessoa devem forçar a outra a precisar melhor suas

respostas – as quais exigem novas perguntas – a fi m de

suprimir todo equívoco, toda ambigüidade. Relacionando

indagações e respostas, chega-se, pouco a pouco, a

esclarecer realmente uma questão, isto é, o que signifi ca

realmente uma determinada palavra. Chega-se a saber ‘o

que é’, por exemplo, a justiça, a virtude, a piedade, ou a

beleza, etc., ao invés de se brincar com essas palavras para

perseguir toda espécie de raciocínio falacioso.

Atenção!

Enquanto a erística é a arte da disputa argumentativa, empregada com o objetivo de vencer uma discussão, a dialética é uma cooperação que tem como meta fi nal a descoberta da verdade.

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História da Filosofi a I

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O “mundo sensível” e o “mundo inteligível”

O objetivo da dialética é fazer nossa compreensão passar do

sensível ao inteligível, da aparência à essência, da multiplicidade à

unidade. Platão, retomando a tese socrática de que a experiência

sensível não é capaz de nos fornecer um conhecimento

verdadeiro, fala de dois níveis de conhecimento: a opinião (doxa)

e o conhecimento racional, que é a ciência (episteme).

Desenvolvendo essa tese, Platão distingue dois tipos de realidade

sobre os quais se pode falar. Em primeiro lugar, temos os objetos

materiais e fenômenos físicos, os quais só podem ser conhecidos

através dos cinco sentidos (visão, audição, tato, paladar e olfato).

Na terminologia proposta por Platão, esses objetos e fenômenos

compõem o “mundo sensível”. Fazem parte dele os objetos que

podem ser percebidos através da experiência (pedras, casas,

árvores, livros, homens e mulheres, o sol, as estrelas, o tempo,

etc.).

Mas, além desses objetos, há outros que só podem ser conhecidos

através da inteligência e compõem o “mundo inteligível” ou

“mundo das idéias”.

O mundo inteligível é formado de conceitos (ou idéias). Fazem

parte dele:

os conceitos ligados aos objetos e fenômenos naturais

(por exemplo, o conceito de casa, de árvore, de livro, de

ser humano, de masculino/feminino, de dia/noite, de

transformação, etc.);

os números, as formas geométricas e todas as outras

entidades matemáticas;

as idéias abstratas (justiça, coragem, beleza, virtude,

amizade, etc.); e

a idéia de bem (a mais perfeita das idéias).

Atenção!

Esses dois mundos, o sensível e o inteligível, são diferentes.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

O mundo sensível é o mundo da multiplicidade e da

transformação. Como está em constante mudança, não pode ser

conhecido de forma defi nitiva. Como só o conhecemos através

dos sentidos, que apenas fornecem imagens imprecisas, não pode

ser conhecido de forma segura. É, portanto, o mundo da doxa.

Já o mundo inteligível é formado por idéias ou essências

imutáveis, pelas unidades que dão inteligibilidade à diversidade.

Embora também tenhamos opiniões sobrev os objetos que

o compõem, nele é possível, através da dialética, alcançar o

conhecimento objetivo, a episteme.

SEÇÃO 5 - As analogias como complemento da dialética

Como complemento da dialética, encontramos na obra de Platão

diversas analogias que vão, desde simples comparações, até a

elaboração de alegorias mais complexas e o uso de mitos.

Entre as mais famosas metáforas usadas por Platão, estão a

analogia da reta segmentada, a alegoria da caverna e o mito de

Er (as três encontradas no diálogo A República); e a alegoria do

cocheiro (encontrada no Fedro).

Por que Platão recorre a essas analogias?

Porque nossa linguagem é limitada e, por isso, sem o uso de

metáforas, a busca da verdade acaba tornando-se impossível.

Nosso vocabulário é aprendido, inicialmente, a partir da

experiência. É, portanto, um vocabulário insufi ciente para

expressar as idéias mais abstratas.

As metáforas, no entanto, são capazes de proporcionar

aproximações ao nosso intelecto, de forma que ele resgate

em si mesmo aquelas idéias que ele já possui, mas que estão

“encobertas” pelas palavras e pelas imagens sensíveis. Sobre este

aspecto, Châtelet afi rma (1981, p. 113):

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História da Filosofi a I

Unidade 4

O método platônico é demonstrativo e seu instrumento

é a “arte” dialética. Entretanto, freqüentemente, o

discurso lógico busca apoio em imagens ou alegorias,

freqüentemente também desemboca em narrações

míticas. Às técnicas indutiva e dedutiva ajuntam-se, pois,

procedimentos que repousam sobre o valor expressivo da

analogia ou da metáfora. Nos dois casos, a linguagem

do saber é, ela também, parcialmente inapta para dizer

o que é. Duplamente inapta: demasiado envolvida no

sensível, ela não consegue dizer completamente a mais

alta realidade; demasiado desligada dela, tem difi culdade

em fazer entender o que, “lá em cima”, aprendeu.

A imagem, o mito compensam essa insufi ciência;

compensam-na mas num sentido positivo, se se pode

dizer: a narração lendária enriquece a dialética, aumenta

seu vigor, acrescenta uma lógica metafórica à lógica da

demonstração.

As analogias facilitam a compreensão na medida em que se

utilizam de uma linguagem poética que anima o espírito. Dessa

forma, a imaginação complementa a razão.

Vejamos algumas dessas metáforas:

A comparação da idéia de bem com o sol e a analogia da reta segmentada

No livro VI do diálogo A República, um dos interlocutores

pergunta a Sócrates (o personagem principal do texto) o que é o

bem. Sócrates confessa não ser capaz de defi nir com exatidão a

essência do bem, mas propõe uma comparação com o sol.

Assim como o sol ilumina o mundo e sua luz permite que o olho

enxergue os objetos, a idéia de bem possibilita ao olho da alma

perceber os objetos do mundo inteligível. Assim como o sol,

na Terra, é a fonte da vida, a idéia de bem é a fonte da vida no

mundo inteligível.

Mas, como não conseguimos olhar diretamente para

o sol quando este se encontra em seu máximo brilho,

devido à sua luz ofuscante, também não é possível

defi nir o bem, por ser a mais excelsa das idéias.

Todavia, assim como é possível observar o sol de

relance, ou mesmo fi tá-lo quando este está nascendo

ou se pondo no horizonte, também podemos ter da

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Universidade do Sul de Santa Catarina

idéia de bem uma noção aproximada, sufi ciente para orientar

nossa compreensão das demais idéias.

Complementando essa comparação, Sócrates propõe, ainda no

Livro VI, a analogia da reta segmentada (ou linha dividida). O

personagem Sócrates nos convida a imaginar “uma linha cortada

em dois segmentos desiguais, um representando o gênero visível

e outro o gênero inteligível e secciona de novo cada segmento

segundo a mesma proporção” (509d). Veja a fi gura abaixo, uma

representação de tal concepção.

Figura 4.2 – A reta segmentada.

Fonte: Elaboração do autor.

Na fi gura 4.2, o segmento de reta AB representa a totalidade

daquilo que se pode conhecer.

Essa totalidade é composta, inicialmente, de duas partes: o

mundo sensível (segmento AC) e o mundo inteligível (segmento

CB).

Cada segmento pode ser novamente dividido em duas partes.

Temos assim:

a eikasía (conhecimento obtido diretamente através dos

sentidos);

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História da Filosofi a I

Unidade 4

a pístis (representação sensível, interpretação subjetiva da

realidade);

a diánoia (conhecimento discursivo que engloba as

matemáticas e a astronomia);

e fi nalmente a nóesis (conhecimento das essências obtido

através da dialética).

Atenção!

A fi gura também indica que a nossa capacidade de pensar é muito maior que nossa capacidade de perceber a realidade através dos sentidos.

A Alegoria da Caverna

A Alegoria da Caverna, também chamada de Mito da Caverna,

narra uma situação fi ctícia (até mesmo impossível). Porém o mais

importante não é a fábula que é contada mas sim o sentido que se

pode abstrair dela. Essa é a mais famosa das metáforas de Platão.

No Livro VII do diálogo A República, Platão propõe que imaginemos uma caverna onde alguns homens viviam acorrentados desde o nascimento, e só conseguiam enxergar sombras projetadas na parede. Eles nunca viam os objetos que provocavam a sombra. Aliás, os próprios objetos que produziam as sombras eram imitações da realidade (estátuas e fi guras), e não a própria realidade. Obviamente, numa situação dessas, o conhecimento que esses prisioneiros podiam ter era muito limitado.

Quando um desses prisioneiros é libertado e forçado a sair da

caverna, ele inicialmente se revolta. Seu corpo, acostumado a

permanecer imóvel, dói ao ter que se movimentar; seus olhos

não conseguem se adaptar facilmente à luz; sua mente não

consegue interpretar imediatamente as novas imagens que lhe são

apresentadas.

Com o passar do tempo, no entanto, o ex-prisioneiro acaba

desenvolvendo as capacidades e habilidades necessárias à

percepção do mundo real. Num primeiro momento, logo que sai

da caverna, ele consegue olhar a realidade apenas à noite, quando

Confi ra no fi nal desta Unidade, na seção Saiba Mais, a íntegra do texto da Alegoria da Caverna.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

não há muita luz. Mais adiante, ele já consegue olhar, de dia,

sombras no chão e imagens refl etidas na água. Por fi m, consegue

olhar os próprios objetos que compõem o mundo real em plena

luz do dia e, de relance, consegue olhar até mesmo para o próprio

sol.

Ao contemplar a realidade, ele fi nalmente compreende os limites

da sua antiga concepção de mundo, formada a partir das sombras

projetadas no fundo da caverna. Mas, ao voltar à caverna para

tentar libertar seus antigos companheiros, ele acaba sendo mal

compreendido e acusado de louco.

A Alegoria da Caverna representa a passagem da doxa para a episteme através da educação. A saída da caverna é descrita como um processo doloroso, que leva o ex-prisioneiro a reagir contra a própria libertação. Ele precisa ser arrastado para fora à força.

Nessa breve narrativa, cada detalhe tem um signifi cado. A

caverna representa o mundo sensível; os prisioneiros somos

nós; as correntes que nos prendem são os nossos sentidos; os

objetos carregados pelos homens por trás do muro (objetos

fabricados, artifi ciais) são as teorias daquelas pessoas que já

possuem uma interpretação da realidade, mas que ainda estão

presas ao mundo sensível (são interpretações subjetivas); a saída

da caverna representa a educação, principalmente a aplicação

do método dialético; as sombras e as imagens refl etidas na água

que o prisioneiro vê logo que sai da caverna são os objetos da

matemática e da astronomia; os objetos do mundo fora da caverna

são as essências (defi nições, conceitos, idéias) compreendidas

através da dialética; o sol é a idéia de bem.

O mito de Er

Outra analogia importante em A República é o mito de Er, ou

mito da reminiscência, contado no livro X. Essa narrativa, que

aparece já nas páginas fi nais da obra, traz alguns elementos

do pitagorismo assumido por Platão. Entre esses elementos,

temos a defesa da imortalidade da alma e da transmigração (ou

reencarnação).

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História da Filosofi a I

Unidade 4

Contudo não podemos esquecer: o mito de Er é uma metáfora

fi losófi ca. Certamente é possível fazer uma leitura religiosa dessa

metáfora, mas não era esse o objetivo de Platão.

Vejamos um resumo do mito de Er

O Mito de Er

Er morrera numa batalha; quando, ao fi m de doze dias, o seu corpo estava na pira para ser cremado, tornou à vida e pôde contar as cenas maravilhosas a que tinha assistido no além, durante esse tempo. Ele havia sido escolhido para levar aos homens uma mensagem do além.

Er conta ter chegado a um lugar onde juízes julgavam as almas recém-chegadas e as sentenciavam a seguir em direção ao céu ou às profundezas da Terra. No céu, as almas daqueles que haviam sido justos em sua vida terrena gozavam de recompensas dez vezes maiores do que o benefício produzido por suas ações; no subterrâneo, os castigos também eram dez vezes maiores do que os crimes cometidos.

Por outra rota retornavam, do céu e das profundezas da Terra, as almas que já haviam cumprido a sentença atribuída pelos juízes. Tais almas eram encaminhadas a outro local, onde lhes era informado qual seria o seu destino na nova vida que teriam na Terra.

Mas nem tudo estava determinado, e cada alma podia escolher o tipo de vida que quisesse para cumprir seu novo destino: riqueza ou pobreza, doença ou saúde, aspecto físico, etc. Feita a escolha, ela é tornada irrevogável, e as almas se dirigem para o local de onde retornarão à vida corpórea.

Após atravessarem a escaldante planície de Leto (esquecimento) e beberem das águas do rio Ameles (despreocupação), as almas reencarnam nos lugares que lhes estavam determinados. Apenas Er foi proibido de beber dessas águas e foi reconduzido ao seu corpo para contar aos homens o que se passa após a morte.

O mito de Er ilustra a relação que o fi lósofo tem com a verdade.

Mesmo que as ilusões produzidas pelos sentidos o tenham levado

a esquecer como é a verdade em si mesma, o fi lósofo a pressente

no fundo de sua alma.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

O mito de Er é uma passagem em que Platão defi ne o conhecimento como reminiscência. Assim, conhecer (alcançar a episteme) nada mais é do que relembrar o que já sabemos.

Uma outra mensagem deixada pelo mito de Er é a de que o

mais importante não são os dotes que a natureza ou a sociedade

ofereceram ao indivíduo, mas o bom ou mau uso que ele faz

desses dotes e o seu empenho em buscar a verdade.

O mito do carro alado

No diálogo Fedro, Platão propõe uma alegoria que ilustra a

difi culdade que temos para alcançar o conhecimento pleno da

verdade. A alma se assemelha a uma carruagem puxada por dois

cavalos e guiada por um cocheiro.

Na alma dos deuses, os cavalos são de boa raça,

bem treinados e, conseqüentemente, obedientes aos

comandos do condutor. Na alma humana, os cavalos

são de raças diferentes, sendo um de boa raça e outro

de raça ruim.

As carruagens dos deuses voam com facilidade e

permitem que o cocheiro vá, com freqüência, até a

parte mais alta do céu, de onde é possível contemplar

as formas perfeitas do mundo das idéias. Já as

carruagens humanas circulam com difi culdade porque, enquanto

um dos cavalos quer subir, o outro quer descer. É preciso tornar-

se um excelente cocheiro e aprender a controlar bem os cavalos

para conseguir levar a carruagem às partes mais elevadas do céu.

Este mito pode ser interpretado da seguinte forma: o cavalo de

raça ruim (um cavalo mestiço) representa a parte da alma que

busca os prazeres do corpo (o elemento concupiscente da alma);

o outro cavalo, de raça pura (um puro-sangue), representa o

sentimento. O cocheiro é a razão.

Figura 4.3 – O mito do cavalo alado de Platão.Fonte: <http://laescueladeateanas.fi les.wordpress.com/2007/10/mito_carro_al.jpg>.

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História da Filosofi a I

Unidade 4

Atenção!

Para poder contemplar as idéias perfeitas e, assim, obter a episteme, o homem deve primeiro aprender a controlar seus desejos e necessidades carnais e também os seus sentimentos, de modo que a razão possa determinar o rumo da vida. Mas isso não é tarefa fácil e, muitas vezes, os homens acabam sendo levados pelas paixões, acabam se distanciando cada vez mais do conhecimento da verdade.

SEÇÃO 6 - O universo, o homem e a pólis

Em seus esforços para compreender a realidade de forma racional,

os pré-socráticos deram grande importância à cosmologia, sem

se preocupar em aplicar essa mesma racionalidade à análise dos

fenômenos tipicamente humanos. Por outro lado, os sofi stas e

Sócrates se empenharam em discutir as questões da moral e da

política, dando pouca ou nenhuma atenção para a investigação

a respeito da physis e do devir. Platão é o primeiro fi lósofo a

unifi car, sob uma mesma perspectiva teórica, a refl exão sobre o

universo, o homem e a pólis.

O Universo

Diferente de Sócrates, que desprezava o interesse pela physis,

Platão sente a necessidade de retomar a discussão acerca do devir

e da ordem do universo. Sem poder se basear no mestre ao tratar

desse tema, Platão busca inspiração nos pré-socráticos:

de Anaximandro, utiliza a idéia de matéria primordial

indeterminada;

de Anaxágoras, tomou a noção de causa inteligente que

ordena todas as coisas;

dos pitagóricos, assumiu a tese de que o universo é

constituído segundo uma ordem matemática.

Platão propõe que o universo seja composto de dois tipos de

realidade: de um lado, a matéria caótica e disforme; de outro, o

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Universidade do Sul de Santa Catarina

mundo perfeito das idéias. Mas há ainda um terceiro elemento: o

Demiurgo, um “artesão divino”, um deus-organizador.

Atenção!

Para Platão, o Demiurgo apenas organiza o universo. Ele não cria a matéria.

Enquanto a matéria original não tem nenhum tipo de ordem ou

lei, o mundo das idéias possui uma ordem perfeita. O Demiurgo,

por sua vontade e bondade, é quem contempla a ordem ideal e,

plasmando a matéria caótica, produz a ordem da natureza. Mais

que isso, o Demiurgo produz um universo dotado de vida própria

e de racionalidade.

O mundo sensível, assim, se torna ‘cosmos’, ordem

perfeita, porque assinala o triunfo do inteligível sobre

a necessidade cega da matéria, por obra da inteligência

do Demiurgo: Após ter completado inteiramente estas

coisas com exatidão, até onde lhe permitia a natureza da

necessidade (isto é, da matéria) espontânea ou persuadida,

Deus introduziu em tudo proporção e harmonia. A antiga

concepção pitagórica do ‘cosmos’ é levada por Platão às

suas últimas conseqüências. (REALE; ANTISERI,

1990, 144).

O universo concebido pela fi losofi a platônica é o que pode existir

de mais aproximado da perfeição das idéias puras. Ele só não é

totalmente perfeito porque a matéria impõe limites ao trabalho

do Demiurgo. Como veremos a seguir, essa mesma matéria

também limita a ação humana.

O Homem

Platão concebe homem como um ser composto de corpo e alma.

O corpo, constituído de matéria, está sujeito às leis da physis

e está em constante mudança. Por sua vez, a alma (psykhé,

princípio que move o homem) é imutável. No entanto, por

estar unida ao corpo, precisa se adaptar a ele. Nessa união, a

alma acaba assumindo três aspectos diferentes que, embora se

complementem, se desenvolvem e se manifestam em ritmo e

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História da Filosofi a I

Unidade 4

intensidade desiguais e, inclusive, podem entrar em confl ito

entre si, às vezes.

Assim, a alma do ser humano engloba três funções, cada uma

delas associada a uma parte do corpo. Embora ela seja una e

indivisível, manifesta-se como se fosse uma composição de três

almas diferentes, conforme o esquema seguinte:

Parte da alma Parte do corpo Função

Elemento apetitivo (ou concupiscente)

Baixo ventrePrazer, dor, desejos e necessidades corporais (alimentação, repouso, sexualidade)

Elemento irascível Tórax Sentimentos (coragem/covardia, amor/ódio, tranqüilidade/ira, etc.)

Elemento racional CabeçaRazão (faculdade ativa e superior, capaz de diferenciar o bem e o mal, a ilusão e a verdade)

Essa concepção de alma é a base da ética platônica. A cada parte

da alma, Platão atribui uma virtude específi ca, acrescentando

ainda uma quarta virtude, que seria a harmonia do conjunto.

Assim, temos:

Parte da alma Virtude

Elemento apetitivo (ou concupiscente)

Moderação ou temperança (controle dos desejos e das necessidades corporais).

Elemento irascível (sentimentos)

Fortaleza (fi rmeza nas difi culdades e constância na procura do bem, chegando até a capacidade do eventual sacrifício da própria vida por uma causa boa).

Elemento racional

Prudência ou sabedoria (discernimento das reais vantagens e desvantagens daquilo que parece ser bom ou mal, levando em consideração todos os aspectos envolvidos, os pressupostos e as conseqüências).

Harmonia do conjunto

Justiça (correto ordenamento das outras três virtudes, assegurando a cada parte da alma a realização de sua função; subordinando – mas não submetendo – a moderação à fortaleza, e ambas à prudência. A justiça é a garantia de que nenhuma das funções da alma será anulada pelas demais. Para Platão (1997, p. 133) “A justiça signifi ca guardar apenas os bens que nos pertencem e em exercer unicamente a função que nos é própria”. (República, Livro IV, 434a).

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Para Platão, o objetivo da vida ética, da busca do conhecimento

e da prática da virtude é a concretização da vida justa, único

caminho para se chegar à felicidade.

Política

Na história do pensamento político, Platão inaugura a perspectiva

utópica. Ao invés de fazer uma profunda análise da prática

política da sua época, identifi car problemas ou fazer críticas

pontuais, Platão se dedica a imaginar a pólis ideal. Segundo

ele, só depois de determinar como seria um Estado justo é que

se torna possível orientar as nossas ações para que possamos

construí-lo. O bom Estado é aquele que é justo e é governado

com sabedoria.

Platão tece um paralelo entre o ser humano e a pólis. Assim

como o ser humano possui uma parte concreta (o corpo) e

outra abstrata (a alma), o Estado também possui uma parte

material (bens, riquezas, pessoas) e outra imaterial (as funções

desempenhadas por cada cidadão). Assim como a alma humana

se constitui de três elementos, a pólis precisa estar organizada em

três classes de cidadãos.

Na sociedade bem ordenada, essas três classes seriam:

Classe produtiva(que corresponde ao elemento apetitivo).

Esta classe seria a responsável pela produção dos bens materiais para toda a sociedade, promovendo a satisfação das necessidades básicas e o conforto. Como é voltada para os bens materiais, essa classe deveria ser recompensada com dinheiro ou outros bens materiais, proporcionalmente à contribuição e ao empenho de cada um dos seus membros. Essa deveria ser a classe mais numerosa.

Classe dos guardiães(que corresponde ao elemento irascível).

Esta classe cuidaria da defesa da pólis. Seria responsável também pelas artes (cuja fi nalidade deve ser estimular a coragem e a fortaleza). Mantida pela classe produtiva, sua recompensa deveria ser o reconhecimento e a honra e nunca o dinheiro ou qualquer outro bem material, além dos realmente necessários.

Classe dos magistrados (que corresponde ao elemento racional).

Incumbida da educação dos jovens e da administração da cidade, esta classe deveria ser a menos numerosa, restringindo-se apenas àqueles que tenham demonstrado vocação para a vida fi losófi ca. Sua recompensa deveria ser unicamente a satisfação de estar vivendo de forma justa e de poder contribuir com a construção e manutenção da sociedade justa. Também mantida materialmente pela classe produtiva, não poderia receber qualquer compensação monetária. Os bens de seu uso particular seriam propriedade do Estado e, mesmo assim, deveriam restringir-se ao necessário, evitando qualquer conforto extra que pudesse distrair de suas funções, os integrantes da classe.

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História da Filosofi a I

Unidade 4

Portanto a ação política deve ser orientada pela razão.

A relação entre o universo, a pólis e o homem

Na fi losofi a de Platão, o universo, a pólis e o homem são temas

interligados. Não são assuntos que devam ser tratados de

forma distinta, e sim níveis diferentes de uma mesma busca de

compreensão da realidade. O que Platão propõe é que o universo

sirva de modelo para a sociedade e para o ser humano enquanto

indivíduo.

Assim como o Demiurgo contempla a perfeição do mundo

inteligível, tomando-a como modelo para a organização da

matéria, o político deveria contemplar a imagem de um Estado

perfeito (utópico) para saber como ordenar perfeitamente a pólis, e

cada indivíduo deveria buscar a episteme para ser capaz de tornar

justa a sua própria alma.

SEÇÃO 7 - O amor platônico

A obra O Banquete apresenta um importante complemento

ao texto de A República. Tendo como tema central o amor

(Eros), este diálogo narra um encontro ocorrido na casa de

Agaton, durante o qual, após o jantar, cada um dos presentes foi

convidado a fazer um elogio ao amor.

Atenção!

Entre os vários discursos proferidos, é interessante destacar o de Aristófanes (o mais famoso escritor de comédias de Atenas) e o de Sócrates. A fala do primeiro apresenta uma visão mítico-poética, enquanto a do segundo representa a tentativa de defi nir racionalmente o amor.

Aristófanes começa falando de um tempo remoto em que a

espécie humana era composta por três gêneros: o masculino,

o feminino e o andrógino. O corpo humano tinha uma forma

arredondada e, mesmo tendo uma única cabeça, possuía duas

faces, quatro braços, quatro pernas e, no caso dos gêneros

Page 124: História da Filosofia Antiga

124

Universidade do Sul de Santa Catarina

masculino e feminino, órgãos genitais em dobro; no andrógino

um de cada. Mas esses homens desafi aram os deuses, e Zeus,

para puni-los, dividiu-os em duas partes, com um só rosto, dois

braços e duas pernas, e apenas um órgão sexual. Desde então,

os seres humanos buscam a sua “cara-metade”, não sendo de

estranhar que haja homens que procuram homens, mulheres que

procuram mulheres e, também, pessoas que buscam outras do

sexo oposto. O amor é o desejo e a procura da plenitude.

Sócrates é o último a proferir o seu discurso. Inicia sua fala

também com um mito, que lhe tinha sido contado por uma

sacerdotisa. Ele conta que, diferente da versão clássica da

mitologia, Eros não é fi lho de Afrodite, e sim fruto da união

do deus Poros (Recurso) e de uma mortal, Penia (Pobreza). É

uma mistura de divino com humano e, por isso, tanto pode ser

eterno como também pode perecer; pode defi nhar lentamente,

ou morrer de uma hora para outra; e pode, inclusive, ressuscitar.

Assim como o pai, ele é enérgico, decidido e corajoso, mas

também é cheio de artimanhas e até mesmo traiçoeiro. Da

mesma forma que a mãe, ele é eternamente carente e insatisfeito.

A partir desse mito, Sócrates caracteriza o amor como um sentimento de carência maior que a própria carência. Aquele que ama, sente a falta do amado, mesmo que este esteja junto dele. É uma carência que não se satisfaz. O amor é o desejo de ter cada vez mais aquilo que, em parte, já se tem. É a busca da posse plena.

Sócrates, no entanto, vai ainda mais além na sua concepção de amor. Ele a aplica às divisões da alma. Temos, assim, três tipos de amor: um concupiscente, outro na forma de sentimento e, por fi m, um amor racional.

O amor concupiscente é a busca do prazer erótico. Esse prazer,

que tem sua sede no órgão sexual do indivíduo, pode ser buscado

de forma solitária e bem localizada. Mas, enquanto desejo

erótico, o amor busca sempre mais, seja buscando o prazer nos

órgãos sexuais de outros indivíduos, seja buscando o prazer em

outras partes do próprio corpo, ou do corpo alheio, ou até mesmo

buscando-o fora do corpo humano (em ambientes, objetos, etc.).

Page 125: História da Filosofia Antiga

125

História da Filosofi a I

Unidade 4

A busca nunca termina. Cada prazer gera, logo em seguida, um

novo e mais exigente desejo.

O amor sentimento é a busca de um prazer abstrato, é o

desejo de possuir qualidades boas e belas. Este tipo de prazer

também pode ser obtido de forma solitária. Contudo, movido

pela insatisfação, esse amor acaba se transformando no desejo

de compartilhar com outros, aquilo que é belo e bom (afi nal,

que graça teria ser belo, se não houvesse ninguém para apreciar

nossa beleza). Aparentemente, o desejo de compartilhar é fácil de

satisfazer, já que depende apenas de nós mesmos a escolha de dar

aos outros, o que temos de melhor. No entanto, como queremos

sempre mais, acabamos, às vezes, desejando compartilhar com

os outros, algo que apenas para nós é belo ou bom. Passamos

a querer impor aos outros os nossos próprios valores. Por outro

lado, assim como desejamos compartilhar, sentimos a necessidade

de uma contrapartida e desejamos que o outro também deseje

compartilhar conosco aquilo que lhe é caro. Por fi m, passamos a

desejar compartilhar nosso próprio eu e a desejar (ou até mesmo

exigir) que outros compartilhem conosco seu próprio eu e que

passem a pensar em nós mais do que em si mesmos. Também

aqui o desejo nunca se satisfaz em defi nitivo.

Em terceiro lugar, temos o amor racional ou amor fi losófi co (o

famoso amor platônico). A razão é a capacidade de distinguir

entre as aparências e a realidade, entre a doxa e a episteme,

buscando sempre a verdade. A razão é a faculdade da alma que

permite conhecer aquilo que é essencial. Sabemos que o fi lósofo

não é aquele que possui a verdade, e sim alguém que a busca.

Nessa busca, através da dialética, ele se aproxima da verdade.

Porém, quanto mais ele se aproxima, mais ele sente o desejo de

buscá-la. Também aqui, o amor manifesta-se como carência e

ousadia.

Page 126: História da Filosofia Antiga

126

Universidade do Sul de Santa Catarina

Mal orientado, cada um desses tipos de amor pode desvirtuar a alma humana.

Bem orientado pela moderação, pela fortaleza, pela prudência e pela justiça, o amor concupiscente (o desejo de unir o próprio corpo a um outro corpo, fi sicamente belo) pode servir de base para o surgimento do amor sentimento.

Conduzido pelas virtudes da alma, o amor sentimento, enquanto busca daquilo que é belo e bom, pode despertar em nós o desejo de compreender a própria essência da beleza e do bem.

Vivenciado da forma correta, o amor à sabedoria nos aproxima da verdade e possibilita que sejamos mais felizes.

Síntese

Platão dá continuidade à fi losofi a socrática, assumindo dela

vários conceitos (como episteme e doxa) e várias concepções (como

a distinção entre corpo e alma).

Em oposição ao método dos sofi stas (a erística), e fazendo uma

adaptação do método socrático (ironia e maiêutica), Platão cria

o seu próprio método, a dialética, que consiste num diálogo

pautado pela busca da verdade. Mas reconhece que, mesmo esse

novo método não é sufi ciente para conhecermos a verdade e, por

isso, ele busca ajuda no uso de metáforas e analogias.

Na fi losofi a de Platão, a cosmologia, a política e a ética são temas

interligados, pois a organização do universo feita pelo Demiurgo

a partir da contemplação das essências perfeitas deve servir de

exemplo para a boa ordenação da pólis e para a vida virtuosa.

Como outros fi lósofos, Platão defi ne a fi losofi a não como

posse da sabedoria, e sim como uma busca incessante do saber.

O fi lósofo é visto como aquele que se sente inquieto com a

própria ignorância e que sente uma carência insaciável de um

conhecimento cada vez mais próximo da verdade.

O conhecimento da maioria dos homens não passa de doxa; o

fi lósofo é aquele que, desejando e buscando a alétheia, consegue

alcançar a episteme.

Page 127: História da Filosofia Antiga

127

História da Filosofi a I

Unidade 4

Atividades de auto-avaliação

Ao fi nal de cada unidade, você realizará atividades de auto-avaliação. O gabarito está disponível no fi nal do livro-didático. Mas se esforce para resolver as atividades sem ajuda do gabarito, pois, assim, você estará promovendo (estimulando) a sua aprendizagem.

1. Reproduza o esquema (desenho) da reta segmentada, indicando o que cada parte representa.

Page 128: História da Filosofia Antiga

128

Universidade do Sul de Santa Catarina

2. Termine de preencher o quadro abaixo, de modo a sistematizar o entendimento sobre as idéias de Platão:

Elemento da alma

Parte da alma Parte do corpo Função Virtude Função da pólisMito docarro alado

SuperiorAdministraçãoe Educação

Cocheiro

Intermediário Elemento irascível Fortaleza

InferiorBaixoVentre

3. Aprendendo grego:

Escreva a tradução para o português das palavras e dos nomes das fi guras mitológicas seguintes:

Palavras Figuras mitológicas

a) alétheia:

b) aporia:

c) doxa:

d) episteme:

e) physis:

f) platos:

g) psykhé:

h) topos horatós:

i) topos noetós:

j) Ameles:

k) Eros:

l) Leto:

m) Penia:

n) Poros:

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História da Filosofi a I

Unidade 4

continua

Saiba Mais

Conheça Platão por ele mesmo, com a leitura deste trecho.

A Alegoria da Caverna

Sócrates – Agora leva em conta nossa natureza, segundo tenha ou não recebido educação, e compara-a com o seguinte quadro: imagina uma caverna subterrânea, com uma entrada ampla, aberta à luz em toda a sua extensão. Lá dentro, alguns homens se encontram, desde a infância, amarrados pelas pernas e pelo pescoço de tal modo que permanecem imóveis e podem olhar tão-somente para frente, pois as amarras não lhes permitem voltar a cabeça. Num plano superior, atrás deles, arde um fogo a certa distância. E entre o fogo e os prisioneiros eleva-se um caminho ao longo do qual imagina que tenha sido construído um pequeno muro semelhante aos tabiques que os titeriteiros interpõem entre si e o público a fi m de, por cima deles, fazer movimentar as marionetes.

Glauco – Posso imaginar a cena.

Sócrates – Imagina também homens que passam ao longo desse pequeno muro carregando uma enorme variedade de objetos cuja altura ultrapassa a do muro: estátuas e fi guras de animais feitas de pedra, madeira e outros materiais diversos. Entre esses carregadores há, naturalmente, os que conversam entre si e os que caminham silenciosamente.

Glauco – Trata-se de um quadro estranho e de estranhos prisioneiros.

Sócrates – Eles são como nós. Acreditas que tais homens tenham visto de si mesmos e de seus companheiros outras coisas que não as sombras projetadas pelo fogo sobre a parede da caverna que se encontra diante deles?

Glauco – Ora, como isso seria possível se foram obrigados a manter imóvel a cabeça durante toda a vida?

Sócrates – E quanto aos objetos transportados ao longo do muro, não veriam apenas suas sombras?

Page 130: História da Filosofia Antiga

130

Universidade do Sul de Santa Catarina

continua

Glauco – Certamente.

Sócrates – Mas, nessas condições, se pudessem conversar uns com os outros, não supões que julgariam estar se referindo a objetos reais ao mencionar o que vêem diante de si?

Glauco – Necessariamente.

Sócrates – Supões também que houvesse na prisão um eco vindo da frente. Na tua opinião, cada vez que falasse um dos que passavam atrás deles, não acreditariam os prisioneiros que quem falava eram as sombras projetadas diante deles?

Glauco – Sem a menor dúvida.

Sócrates – Esses homens, absolutamente, não pensariam que a verdadeira realidade pudesse ser outra coisa senão as sombras dos objetos fabricados.

Glauco – Sim, forçosamente.

Sócrates – Imagina agora o que sentiriam se fossem libertados de seus grilhões e curados de ignorância, na hipótese de que lhes acontecesse, muito naturalmente, o seguinte: se um deles fosse libertado e subitamente forçado a se levantar, virar o pescoço, caminhar e enxergar a luz, sentiria dores intensas ao fazer todos esses movimentos e, com a vista ofuscada, seria incapaz de enxergar os objetos cujas sombras ele via antes. Que responderia ele, na tua opinião, se lhe fosse dito que o que via até então eram apenas sombras vazias e que, agora achando-se mais próximo da realidade, com os olhos voltados para objetos mais reais, possuía visão mais acurada? Quando, enfi m, ao ser-lhe mostrado cada um dos objetos que passavam, fosse ele obrigado, diante de tantas perguntas, a defi nir o que eram, não supões que ele fi caria embaraçado e consideraria que o que contemplava antes era mais verdadeiro do que os objetos que lhes eram mostrados agora?

Glauco – Muito mais verdadeiro.

Sócrates – E se ele fosse obrigado a fi tar a própria luz, não acreditas que lhe doeriam os olhos e que procuraria desviar o olhar, voltando-se para os objetos que podia observar, considerando-os, então, realmente mais distintos do que lhe são mostrados?

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História da Filosofi a I

Unidade 4

continua

Glauco – Sim.

Sócrates – Mas, se o afastassem dali à força, obrigando-o a galgar a subida áspera e abrupta e não o deixassem antes que tivesse sido arrastado à presença do próprio sol, não crês que ele sofreria e se indignaria de ter sido arrastado desse modo? Não crês que, uma vez diante da luz do dia, seus olhos fi cariam ofuscados por ela, de modo a não poder discernir nenhum dos seres considerados agora verdadeiros?

Glauco – Não poderia discerni-lo, pelo menos no primeiro momento.

Sócrates – Penso que ele precisaria habituar-se, a fi m de estar em condições de ver as coisas do alto de onde se encontrava. O que veria mais facilmente seriam, em primeiro lugar, as sombras; em seguida, as imagens dos homens e de outros seres. Após, ele contemplaria, mais facilmente, durante a noite, os objetos celestes e o próprio céu, ao elevar os olhos em direção à luz das estrelas e da lua – vendo-o mais claramente do que ao sol ou à sua luz durante o dia.

Glauco – Sem dúvida.

Sócrates – Por fi m, acredito, poderia enxergar o próprio sol – não apenas sua imagem refl etida na água ou em outro lugar -, em seu lugar, podendo vê-lo e contemplá-lo tal como é.

Glauco – Necessariamente.

Sócrates – Após, passaria a tirar conclusões sobre o sol, compreendendo que ele produz as estações e os anos; que governa o mundo das coisas visíveis e se constitui, de certo modo, na causa de tudo o que ele e seus companheiros viam dentro da caverna.

Glauco – É evidente que chegaria a estas conclusões.

Sócrates – Mas, lembrando-se de sua habitação anterior, da ciência da caverna que ali se cultiva e de seus companheiros de cativeiro, não fi caria feliz por haver mudado e não lamentaria por seus companheiros?

Glauco – Com efeito.

Sócrates – E se entre os prisioneiros houvesse o costume de conferir honras, louvores e recompensas àqueles que

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Universidade do Sul de Santa Catarina

continua

fossem capazes de prever eventos futuros – uma vez que distinguiram com mais precisão as sombras que passavam e observariam melhor quais dentre elas vinham antes, depois ou ao mesmo tempo -, não crês que invejaria aqueles que as tivessem obtido? Crês que sentiria ciúmes dos companheiros que, por esse meio, alcançaram a glória e o poder, e que não diria, endossando a opinião de Homero, que é melhor “lavrar a terra para um camponês pobre” do que partilhar as opiniões de seus companheiros e viver semelhante vida?

Glauco – Sim, em minha opinião ele preferiria sustentar esta posição a voltar a viver como antes.

Sócrates – Refl ete sobre o seguinte: se esse homem retornasse à caverna e fosse colocado no mesmo lugar de onde saíra, não crês que seus olhos fi cariam obscurecidos pelas trevas como os de quem foge bruscamente da luz do sol?

Glauco – Sim, completamente.

Sócrates – E se lhe fosse necessário reformular seu juízo sobre as sombras e competir com aqueles que lá permaneceram prisioneiros, no momento em que sua visão está apagada pelas trevas e antes que seus olhos a elas se adaptem – e esta adaptação demandaria certo tempo −, não acreditas que esse homem seria motivo de piada? Não lhe diriam que, tendo saído da caverna, a ela retornou cego e que não valeria a pena fazer semelhante experiência? E não matariam, se pudessem, a quem tentasse libertá-los e conduzi-los para a luz?

Glauco – Certamente.

Sócrates – É preciso aplicar inteiramente esse quadro ao que foi dito anteriormente, isto é, assimilando-se o mundo visível à caverna e a luz do fogo aos raios solares. E se interpretares que a subida para o mundo que está acima da caverna e a contemplação das coisas existentes lá fora representam a ascensão da alma em direção ao mundo inteligível, terás compreendido bem meus pensamentos, os quais desejas conhecer, mas que só Deus sabe se são ou não verdadeiros. As coisas se me afi guram do seguinte modo: na extremidade do mundo inteligível encontra-se a idéia do Bem, que apenas pode ser contemplado, mas que não se pode ver sem concluir que constitui a causa de tudo quanto há de reto e de belo no mundo: no mundo visível, esta idéia gera a luz e sua fonte

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História da Filosofi a I

Unidade 4

soberana, dispensa a inteligência e a verdade. É ela que se deve ter em mente para agir com sabedoria na vida privada ou pública.

Glauco – Concordo contigo, na medida em que consigo compreender-te.

Sócrates – Além disso, insisto, ainda, sobre o seguinte ponto: não deves estranhar se aqueles que chegaram a consegui-lo não desejam mais ocupar-se das questões humanas e suas almas estão impacientes e desejosas de permanecer nas alturas. Se invocamos nossa alegoria há pouco explicada, esse comportamento nos parece natural.

Glauco – Sim, é natural.

Sócrates – Mas, seria de se surpreender que, passando das contemplações divinas às miseráveis visões humanas, o homem se sinta pouco à vontade e pareça completamente ridículo quando, a visão ainda turva, não habituada à escuridão circundante, se veja forçado a discutir, nos tribunais ou em qualquer lugar, a respeito das sombras de justiça ou das imagens que tais sombras projetam e a esforçar-se por combater com vigor as interpretações daqueles que jamais souberam o que é a própria justiça?

Glauco – Não é de se surpreender, absolutamente.

Fonte: Adaptado a partir de: Platão, 1989, p. 46-51.

Se você desejar, aprofunde os conteúdos estudados nesta unidade,

consultando as seguintes referências:

MARCONDES, Danilo. Textos básicos de fi losofi a:

dos pré-socráticos a Wittgenstein. 3. ed. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 2000.

PIETTRE, Bernard. Platão – A República: Livro VII:

comentários de Bernard Piettre. São Paulo: Ática, 1989.

PLATÃO. A república. [Os pensadores] São Paulo:

Nova Cultural, 1997.

PLATÃO. Diálogos. [Os pensadores] São Paulo: Nova

Cultural, 2004.

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134

Universidade do Sul de Santa Catarina

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da

fi losofi a. Volume I: Antigüidade e Idade Média. São

Paulo: Paulus, 1990.

STRATHERN, Paul. Platão em 90 minutos. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

Page 135: História da Filosofia Antiga

UNIDADE 5

Aristóteles

Objetivos de aprendizagem

Identifi car os principais eventos da vida de Aristóteles.

Traçar um panorama das obras de Aristóteles.

Compreender os principais aspectos metodológicos da fi losofi a aristotélica.

Identifi car os principais conceitos da fi losofi a de Aristóteles.

Avaliar a importância da fi losofi a aristotélica.

Seções de estudo

Seção 1 Aristóteles, o estagirita

Seção 2 O corpus aristotelicum

Seção 3 Aristóteles e Platão

Seção 4 A teoria do conhecimento aristotélica

Seção 5 A lógica

Seção 6 O problema do ser: a fi losofi a primeira

Seção 7 A física aristotélica

Seção 8 A ética e a política

Seção 9 A poética

Seção 10 Aristóteles: o “príncipe dos fi lósofos”?

5

Page 136: História da Filosofia Antiga

136

Universidade do Sul de Santa Catarina

Figura 5.1 – Aristóteles.Fonte: <www.biografi asyvidas.com/monografi a/aristotel...>.

Para início de estudo

Junto com Sócrates e Platão, Aristóteles compõe o “trio de ouro”

da fi losofi a grega. Aristóteles construiu uma fi losofi a sistemática,

de forma que cada tema se relaciona com todos os demais.

Partindo de poucos princípios fundamentais, Aristóteles uniu

todos os conhecimentos de sua época, aprofundando-os e dando-

lhes um caráter científi co.

É sobre a contribuição desse grande gênio da humanidade que

você faz estudos agora.

SEÇÃO 1 - Aristóteles, o estagirita

Nesta seção, você verá os principais acontecimentos que

marcaram a vida de Aristóteles, o último fi lósofo do

período clássico da fi losofi a grega.

Aristóteles nasceu em 384 a.C., em Estagira e, por isso,

ele também é conhecido como “o estagirita”. Estagira

era uma colônia grega encravada no território do reino

da Macedônia, numa região portuária ao norte do mar

Egeu. Aristóteles era descendente de uma família de origem

jônica ligada à medicina. Seu pai, Nicômaco, era médico de

Amintas, rei da Macedônia.

Por volta dos dezoito anos, foi para Atenas e ingressou

na Academia de Platão, onde permaneceu por cerca de 20

anos. Após a morte de Platão (347 a.C.), decepcionado por

não ter sido escolhido sucessor do seu mestre (o escolhido foi

Espeusipo, sobrinho de Platão), Aristóteles abandona Atenas.

Muda-se então para Assos, na Ásia Menor, uma pólis governada

por Hérmias, outro ex-aluno da Academia. Nos três anos que

passou em Assos, Aristóteles conviveu diretamente com os

principais membros da administração do Estado, o que lhe

possibilitou conhecer melhor os meandros da política. Também

é nesse período que ele se casa pela primeira vez, com Pítias,

sobrinha de Hérmias. No entanto, em 345 a.C., sua estada em

Assos é interrompida subitamente, quando a cidade é invadida

Page 137: História da Filosofia Antiga

137

História da Filosofi a I

Unidade 5

pelos persas, e Hérmias é assassinado. Acompanhado de Pítias,

Aristóteles foge para Mitilene, na ilha de Lesbos, onde passa a se

dedicar ao estudo da biologia.

Em 343 A.C., é chamado por Filipe, então rei da Macedônia,

para ser o preceptor de seu fi lho Alexandre. Aristóteles

exerceu essa função até 336 a.C., quando Filipe é assassinado e

Alexandre, então, torna-se rei.

Um pouco antes de morrer, o rei Filipe havia invadido e anexado

à Macedônia uma boa parte das poleis gregas, incluindo aí a pólis

de Atenas. Ao assumir o trono, Alexandre oferece a Aristóteles

a direção da Academia como uma recompensa pelo seu trabalho

como educador. No entanto Aristóteles não se sente à vontade em

retornar à Academia através de uma imposição do rei e solicita a

este que lhe conceda uma propriedade na qual pudesse fundar sua

própria escola, que recebe o nome de Liceu.

Diferente da Academia, que dava muita

importância à geometria, os estudos no Liceu

concentravam-se sobre o que hoje poderíamos

denominar “ciências naturais”. Mais do que uma

edifi cação com salas de aula, o Liceu era uma gleba

onde Aristóteles colecionava espécimes animais e

vegetais que seus colaboradores lhe enviavam de

todas as partes do mundo conhecido. Sempre que

possível, o mestre incluía em suas lições uma parte

de observação direta. Assim, era comum os debates

ocorrerem ao longo de passeios pelos caminhos

do Liceu e, por esse motivo, os discípulos de

Aristóteles passaram a ser chamados de peripatéticos

(que, em grego, signifi ca: os que passeiam).

Ao longo dos quinze anos em que foi dirigido

diretamente por Aristóteles, o Liceu se tornou o maior centro de

investigação fi losófi ca do mundo helênico, sob o patrocínio do

imperador Alexandre.

Com a morte de Alexandre, em 321 a.C., os gregos passam a

lutar pela independência de suas poleis, e Aristóteles passa a ser

visto como uma fi gura emblemática da dominação macedônica.

Para “não permitir que Atenas pecasse pela segunda vez contra

a fi losofi a” (a primeira tinha sido a execução de Sócrates),

Figura 5.2 – Peripatéticos.Fonte: <www.stenudd.com/myth/

greek/aristotle/images/R>.

Page 138: História da Filosofia Antiga

138

Universidade do Sul de Santa Catarina

Aristóteles refugia-se em Cálcis, na Eubéia, onde morre no ano

seguinte, com 63 anos.

A direção do Liceu, após a saída de Aristóteles, foi confi ada ao

seu discípulo Teofrasto. No entanto, a ausência do mestre e o

clima político hostil à herança macedônica fi zeram com que boa

parte dos peripatéticos abandonasse Atenas. A partir daí, a escola

estende suas atividades também a dois novos centros: a Ilha de

Rodes e Alexandria. Entre os seguidores do Liceu, destacam-se

Eudemo de Rodes e, mais tarde, já no século I a.C., Andrônico

de Rodes.

SEÇÃO 2 - O Corpus Aristotelicum

Corpus aristotelicum é o nome dado ao conjunto dos escritos de

Aristóteles. A produção teórica de Aristóteles é extraordinária.

Segundo os relatos de historiadores antigos, o fi lósofo escreveu

mais de quatrocentos livros. No entanto, somente uma pequena

parte dessa vasta obra chegou até os nossos dias.

O corpus aristotelicum era originalmente composto por dois grupos de obras: as obras chamadas exotéricas, destinadas ao público geral, e as obras chamadas esotéricas ou acroamáticas, produzidas usando uma linguagem mais técnica, voltada especifi camente para os discípulos do Liceu (leitores com maior domínio das questões fi losófi cas e em busca de conhecimentos cada vez mais rigorosos e com maior profundidade).

Após a morte de Aristóteles, uma parte da obra acroamática fi cou

escondida. Sua obra exotérica continuou acessível e agradava o

grande público, mas não tinha profundidade. Em Atenas, após

algumas gerações, o fi lósofo passou a ser lembrado apenas como

mais um dos discípulos de Platão.

Foi somente a partir do ano 50 a.C. que a obra acroamática

voltou a ser difundida. Nesse ano, Andrônico de Rodes, então

diretor do Liceu, descobre os livros que haviam fi cado escondidos

por cerca de trezentos anos, os organiza e passa a divulgá-los.

Ao longo de aproximadamente cinco séculos, a obra aristotélica

Page 139: História da Filosofia Antiga

139

História da Filosofi a I

Unidade 5

Organon, em grego, signifi ca, literalmente, instrumento.

ganha novamente uma posição de destaque no pensamento

ocidental. No entanto, a ascensão do cristianismo e a queda do

Império Romano farão com que ela mais uma vez seja quase que

totalmente esquecida.

Preservada principalmente pelos fi lósofos árabes, uma boa parte

da obra esotérica de Aristóteles sobreviveu à Idade Média; já a

obra exotérica acabou se perdendo quase que completamente, e

hoje só nos resta dela um livro: a Constituição de Atenas. A parte

que se conservou costuma ser classifi cada seguindo o modelo

de Andrônico de Rodes. Os textos que atualmente compõem o

corpus aristotelicum são os seguintes:

Organon - Livros de lógica: Categorias; Sobre a Interpretação; Primeiros Analíticos (2 livros); Segundos Analíticos (2 Livros); Tópicos (8 livros); Argumentos Sofísticos.

Livros de física e a concepção do universo: Física (8 livros); Sobre o Céu (2 livros); Sobre a Geração e a Corrupção (2 livros); Meteorológicos (4 livros).

Livros de psicologia: Acerca da Alma (3 livros); “Parva Naturalia” (4 tratados), incluindo os seguintes livros: Acerca da percepção dos sentidos; Acerca da memória e reminiscência; Acerca do sono; Acerca dos sonhos.

Livros de biologia: História dos Animais (10 livros, com partes de autoria duvidosa); Acerca das partes dos animais (4 livros); Acerca do movimento dos animais; Acerca da marcha dos animais; Acerca da geração dos animais (5 livros).

Livros de metafísica: 14 livros sobre fi losofi a primeira; foi Andrônico quem atribuiu a estes livros a denominação de Metafísica (literalmente “depois da física”), indicando com esse termo a posição desses livros na classifi cação geral da obra aristotélica: eles fi cariam logo após os livros que tratam da física.

Livros de ética: Ética a Nicômaco (organizada por Nicômaco, fi lho de Aristóteles); Ética a Eudemo (7 livros, organizados por Eudemo, discípulo de Aristóteles); a Grande Moral (2 livros, com fragmentos das éticas anteriores e de autoria duvidosa).

Livros de Política: Política (8 livros); Constituição de Atenas.

Livros sobre a linguagem e a estética: Retórica e Poética.

Page 140: História da Filosofia Antiga

140

Universidade do Sul de Santa Catarina

Atenção!

O corpus aristotelicum foi amplamente difundido em manuscritos e, desde a invenção da imprensa, vem sendo reproduzido em sucessivas edições. Atualmente, toma-se como referência a edição da Academia de Berlim, em grego, organizada por Albrecht Bekker, contendo 5 volumes, publicada entre os anos de 1831 e 1836. Sua paginação passou a ser aproveitada para a padronização das citações. Além do número da página, costuma-se citar também a coluna (a ou b) e a linha. A edição inicia com o livro das Categorias [1a] e termina com a Metafísica [1093b].

SEÇÃO 3 - Aristóteles e Platão

Como já visto, Aristóteles estudou cerca de 20 anos na Academia

de Platão. Ao que tudo indica, foi um discípulo dedicado, porém

rebelde. Essa relação de admiração e insubordinação tornou-se

proverbial na expressão latina: Amicus Plato sed magis amica veritas

(“Amigo Platão, mas mais amiga a verdade” ou “amigo de Platão,

mas mais amigo da verdade”).

Atenção!

O ponto central da fi losofi a peripatética é o mesmo que o da fi losofi a platônica. Da mesma forma que seu antigo mestre, Aristóteles busca estabelecer as formas de se superarem as opiniões subjetivas e de se alcançar o conhecimento objetivo (episteme). O fi lósofo do Liceu concorda com Platão ao considerar o conhecimento abstrato superior a qualquer outro, mas discorda dele em vários outros pontos.

Diferente do fundador da Academia, Aristóteles afi rma que todo

conhecimento deriva da experiência e que o conhecimento pode

ser obtido de duas formas:

diretamente, a partir da experiência, abstraindo os

elementos que caracterizam cada espécie; ou

1.

Page 141: História da Filosofia Antiga

141

História da Filosofi a I

Unidade 5

indiretamente, através da dedução de novos

conhecimentos a partir daqueles que já são conhecidos,

guiando-se pelas regras da lógica.

Aqui reside a principal diferença entre Aristóteles e Platão: a aceitação da experiência como fonte legítima de conhecimento.

Para Platão, o conhecimento da experiência não é um

conhecimento verdadeiro, é ilusão, é doxa; o verdadeiro

conhecimento, a episteme, é obtido exclusivamente a partir

da razão. Há uma ruptura, um abismo (khorismos) entre a

experiência subjetiva e o conhecimento teórico objetivo.

Já, para Aristóteles, embora o conhecimento abstrato seja também considerado superior àquele obtido a partir da percepção sensível, não há uma ruptura entre a experiência e a teoria, e sim uma continuidade. O conhecimento abstrato é o melhor, mas não por ser mais verdadeiro que o conhecimento sensível, e sim por ser mais sofi sticado, mais profundo e mais rigoroso.

A posição assumida por Aristóteles, como já vimos, levará a

uma grande diferenciação do Liceu em relação à Academia.

Aristóteles traz a investigação fi losófi ca também para o mundo

sensível. Mas, para estudar esse mundo concreto, é preciso, antes

de mais nada, racionalizá-lo – organizá-lo a partir de princípios

racionais.

2.

Page 142: História da Filosofia Antiga

142

Universidade do Sul de Santa Catarina

Conheça um pensamento primordial de Aristóteles sobre a Filosofi a!

Literalmente, a palavra “fi losofi a” signifi ca “amor à sabedoria”. É necessário, no entanto, identifi car com clareza o sentido em que estão sendo usadas as palavras “amor” e “sabedoria”, para que possamos compreender, da forma mais adequada, o signifi cado dessa atividade intelectual.

Se, por um lado, Platão se esforça em determinar com exatidão qual é o tipo de amor que caracteriza a fi losofi a, por outro lado, encontramos em Aristóteles uma elucidação do conceito de sabedoria. É justamente esse conceito que deve ser tomado como ponto de partida para a análise de toda a sua produção teórica.

No primeiro livro da Metafísica, Aristóteles propõe as seguintes considerações:

[...] devemos indagar de que espécie são as causas e os princípios cujo conhecimento constitui a sabedoria. Talvez a resposta se torne mais evidente se examinarmos as opiniões que correm a respeito do homem sábio. Suponhamos, para começar, que ele conhece todas as coisas na medida do possível, embora não tenha ciência de cada uma delas em particular; e, segundo, que é capaz de aprender coisas difíceis e pouco acessíveis ao homem comum (a percepção dos sentidos é comum a todos e, por conseguinte, fácil, não constituindo marca de sabedoria); a seguir, que em todos os ramos da ciência é mais sábio quem possui conhecimentos mais exatos e se mostra capaz de ensinar as causas; e também que, das ciências, a que se apresenta como desejável por si mesma e por amor ao conhecimento participa mais da natureza da Sabedoria do que aquela que se ambiciona por causa de seus resultados, e a ciência superior é mais fi losófi ca do que a subsidiária; pois ao sábio não convém subordinar-se, mas subordinar, nem deve ser ele quem obedeça, mas ao menos sábio é que compete obedecer-lhe. (Metafísica, 1969, A, II, 982 a 5-20, p. 39).

Do trecho citado acima, podemos deduzir as seguintes

conclusões:

Page 143: História da Filosofia Antiga

143

História da Filosofi a I

Unidade 5

para Aristóteles, a sabedoria é o conhecimento amplo e

bem fundamentado das coisas menos evidentes, que dá

ao seu possuidor a legitimidade para comandar;

a sabedoria não é algo absoluto ou um estágio fi nal, e

sim uma escala comparativa (por exemplo, João pode ser

sábio, se comparado com Pedro; e não-sábio, quando

comparado com Maria);

Essas idéias vão formar a base da classifi cação que Aristóteles faz

das formas de conhecimento, discutidas na próxima seção.

SEÇÃO 4 - A teoria do conhecimento aristotélica

Em Sócrates e Platão, encontramos uma análise do conhecimento

que distingue, basicamente, dois tipos de conhecimento: a

doxa (opinião, conhecimento subjetivo, as experiências) e a

episteme (ciência, conhecimento objetivo e teórico). A concepção

aristotélica é mais complexa e elaborada.

Aristóteles diferencia três tipos de conhecimento: o produtivo, o prático e o que se refere à realidade.

Acompanhe explicações sobre cada um destes tipos de

conhecimento.

O saber produtivo ou poiético é aquele que consiste em saber

construir ou elaborar algo concreto; é um tipo de artesanato.

O termo grego usado por Aristóteles para designar esse tipo de

conhecimento é poiésis > que -- segundo Chaui (1994, p. 358) -

- indica a “prática na qual o agente e o resultado da ação estão

separados ou são de natureza diferente”. Esse conhecimento

engloba tanto a produção de objetos materiais (casas, tijolos,

sapatos, etc.) quanto a produção artística (poemas, músicas, etc.).

É um conhecimento regido pela efi cácia, e não pelo compromisso

com a verdade. Sendo assim, uma fi cção literária não implica

mentira ou ignorância, já que o critério de avaliação da arte não é

o mesmo da ciência e da fi losofi a.

Page 144: História da Filosofia Antiga

144

Universidade do Sul de Santa Catarina

O saber prático (práxis) engloba a ética e a política. O sentido

aristotélico de práxis -- conforme Chaui (1994, p. 358) -- está

ligado à “prática na qual o agente, o ato ou a ação e o resultado

são inseparáveis”. Esse conhecimento também não é regido

pelo critério da verdade, e sim pelos resultados que ele permite

alcançar. Ser prudente, por exemplo, é a forma correta de agir

eticamente; mas não por ser uma forma “verdadeira”, e sim por

produzir o melhor resultado a longo prazo.

O saber referente à realidade é a identifi cação das

peculiaridades de cada coisa e também o conhecimento da

realidade tal como ela é. É o conhecimento dos seres. Ele

se diferencia dos outros dois tipos vistos anteriormente por

ser o único regido pelo critério de verdade. Além disso, o

conhecimento teórico tem origem na percepção sensível, mas não

se resume a ela. Aristóteles distingue neste tipo de conhecimento

cinco graus hierárquicos, que vão desde a simples sensação até o

conhecimento científi co, como você vê na fi gura 5.3.

Figura 5.3 - Os cinco graus do conhecimento da realidade, segundo a Metafísica de Aristóteles.Fonte: Elaboração do autor.

Observe que cada grau serve de base para o grau seguinte, e a

sensação é o fundamento de todos os demais conhecimentos.

Vejamos cada um deles de forma mais detalhada:

Peculiaridade é o atributo particular de cada coisa, característica que distingue uma coisa em relação a todas as outras, particularidade.

Page 145: História da Filosofia Antiga

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História da Filosofi a I

Unidade 5

a sensação (aísthesis) é a identifi cação das peculiaridades

dos seres através dos cinco sentidos (tato, paladar,

olfato, audição e visão). Ela é o grau mais elementar

do nosso conhecimento sobre a realidade. A sensação é

um conhecimento tão simples que até mesmo os outros

animais, em maior ou menor medida, têm acesso a ele;

a memória (mnemosyne) é a capacidade de reter no

pensamento as características já percebidas. Só é

encontrada nos animais superiores e está associada ao

aprendizado;

a experiência (empeiría) já é um conhecimento

exclusivamente humano. É a capacidade de estabelecer

relações entre seres e acontecimentos, fazer comparações

e identifi car regularidades. É uma forma mais requintada

de conhecimento, mas ainda não é um conhecimento

teórico;

a arte, ou técnica (téchne), já é um conhecimento teórico.

Ela se assemelha ao conhecimento poiético por ser

um saber fazer. Porém é um saber fazer regido pelo

conhecimento da realidade, o qual foi obtido através

dos graus anteriores. Ela é a capacidade de estabelecer

regras ou formas padronizadas de ação. A arte implica

uma percepção dos fatores que interferem na efi cácia de

uma ação produtiva específi ca. Essa é uma percepção

abstrata, que não pode ser sentida ou mostrada, mas pode

ser compreendida e comunicada. Por isso, enquanto a

experiência é adquirida individualmente, a arte pode ser

transmitida e ensinada;

a ciência (episteme) é o conhecimento explicativo; é o

conhecimento das causas e dos porquês. É o grau mais

sofi sticado do conhecimento. É um saber ainda mais

teórico que a arte e requer muito mais empenho para ser

alcançado. Ela pode ser ensinada, mas requer do aprendiz

a posse dos graus anteriores de conhecimento. A ciência é

a mais sábia das formas de conhecimento e, mais do que

qualquer outra, ela está comprometida com a busca da

verdade.

Page 146: História da Filosofia Antiga

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Cognoscente signifi ca o sujeito que é capaz de conhecer.

Nesses cinco graus do conhecimento da realidade, não se pode nunca esquecer o essencial: a realidade. Ela é o ponto de partida, o objeto e o parâmetro de avaliação da legitimidade do conhecimento comprometido com a busca da verdade. Porém a relação de conhecimento envolve, necessariamente, um outro pólo: o sujeito cognoscente.

Nessa relação, o ser humano caracteriza-se por ser dotado de um

intelecto que lhe possibilita um conhecimento abstrato a partir

dos dados obtidos através do contato direto com a realidade

(conhecimento empírico). O ser humano elabora teorias cada

vez mais abstratas e abrangentes. Embora as nossas sensações

só nos forneçam informações sobre seres concretos e singulares,

somos capazes de fazer generalizações e alcançar conhecimentos

universais através da ciência.

No entanto, devido ao seu elevado poder de abstração, a ciência

precisa de um instrumento que lhe possibilite estabelecer

explicações puramente teóricas, sem que se corra o risco de cair

em uma interpretação viciada pela subjetividade.

Esse instrumento, capaz de garantir a objetividade de construções

abstratas, é a lógica, assunto da nossa próxima seção.

SEÇÃO 5 - A lógica

Aristóteles é considerado o pai da lógica por ter sido o primeiro

fi lósofo a formular um conjunto de princípios e regras formais

por meio das quais fosse possível distinguir as conclusões falsas

das verdadeiras no uso da razão.

A lógica aristotélica engloba estudos a respeito de duas tarefas distintas: a formulação de conclusões teóricas a partir de observações empíricas (indução) e a formulação de conclusões teóricas a partir de outras proposições igualmente teóricas (teoria do silogismo).

Page 147: História da Filosofia Antiga

147

História da Filosofi a I

Unidade 5

Na fi losofi a aristotélica, a lógica é entendida como um

instrumento (órganon) da ciência. Sua função é assegurar a

possibilidade de se alcançar um conhecimento que seja universal

e necessário – um conhecimento objetivo.

Para se chegar ao conhecimento científi co, é indispensável

estabelecer regras de raciocínio que possibilitem demonstrações

corretas e defi nitivas. Nesse sentido, a lógica difere das técnicas

de argumentação dos sofi stas, as quais não se preocupavam

com a verdade da conclusão, e sim com o convencimento do

interlocutor.

O primeiro passo da lógica é uma análise da linguagem para identifi car os seus diversos usos, suas possibilidades e limitações. Aristóteles parte da avaliação do uso correto das palavras (identifi cando os problemas de homonímia e sinonímia).

Em seguida estabelece a estrutura fundamental das frases que podem ser usadas na formulação de teorias científi cas, defi nindo-a como proposição (lógos apophantikos), ou seja, como uma frase que, sendo afi rmativa ou negativa, pode ser classifi cada como verdadeira ou falsa. A proposição é o enunciado de um juízo através do qual um predicado é atribuído a um determinado sujeito.

Segundo Aristóteles (1978, p. 7), os predicados podem ser

de quatro tipos fundamentais, em função do modo como são

atribuídos ao sujeito: gênero, propriedade, acidente e defi nição.

Esses quatro tipos fundamentais indicam os diferentes aspectos

formais da predicação. Um pouco mais adiante, Aristóteles

acrescenta que, quando consideramos também o conteúdo

expresso pelos predicados, os quatro modos fundamentais devem

ser subdivididos, obtendo-se assim dez classes de predicados

(categorias): substância, quantidade, qualidade, relação, lugar,

tempo, posição, posse, ação e paixão.

Page 148: História da Filosofia Antiga

148

Universidade do Sul de Santa Catarina

continua

Atenção!

Aristóteles enumerou quatro modos fundamentais dos predicados, os quais foram denominados predicáveis (kategórema): gênero, propriedade, acidente e defi nição. Posteriormente, Porfírio, o Fenício (232 – 304 d.C.) subdividiu o predicável defi nição em dois novos predicáveis, espécie e diferença específi ca, aperfeiçoando a classifi cação aristotélica. Portanto, a partir de Porfírio, os predicáveis passam a ser cinco: gênero, propriedade, acidente, espécie e diferença.

Após ter discutido a estrutura fundamental da proposição,

Aristóteles passa a analisar as possíveis formas de combinar

proposições para produzir novos conhecimentos. O fi lósofo

conclui que a forma mais simples de raciocinar consiste na

combinação de duas proposições já conhecidas, de forma que seja

possível deduzir uma terceira proposição. Esse tipo de raciocínio

recebe o nome de silogismo.

Saiba mais sobre o silogismo aristotélico!

A teoria do silogismo consiste na determinação da estrutura elementar do raciocínio e na identifi cação das formas corretas e incorretas que essa estrutura pode assumir.

O silogismo é a estrutura fundamental do raciocínio dedutivo – parte sempre do geral para o particular. Na prática, o silogismo assume a forma de uma composição de três sentenças; formalmente, ele é uma combinação de duas proposições, chamadas de premissas, que permitem deduzir uma terceira proposição, denominada conclusão.

Vejamos o exemplo clássico:Todo homem é mortal.

Sócrates é homem.

Sócrates é mortal.

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História da Filosofi a I

Unidade 5

Formalmente, esse raciocínio segue a seguinte estrutura:

Todo A é B. (premissa maior)

C é A. (premissa menor ou termo médio)

Portanto, C é B. (conclusão)

No silogismo, as proposições são classifi cadas como “maiores” (universais) e “menores” (particulares e singulares). As proposições de um silogismo devem sempre ser organizadas de forma que a maior fi que sempre em primeiro lugar. A conclusão pode ter, no máximo, a extensão da premissa menor. Confi ra os dois exemplos abaixo.

1) Todo catarinense é brasileiro. 2) João é brasileiro.

João é catarinense. João é catarinense.

Portanto João é brasileiro Portanto todo catarinense é brasileiro.

O exemplo 1 representa uma forma válida do silogismo; já o exemplo 2 está formalmente incorreto, pois a extensão da conclusão é maior (mais abrangente) do que a das premissas. Assim, o exemplo 2 é um silogismo inválido.

A teoria do silogismo serve para determinar se uma forma de raciocínio é válida ou inválida.

A teoria do silogismo permite identifi car a forma correta de

pensar. Mas, para construirmos um conhecimento científi co,

é preciso dar um conteúdo a essa forma. É preciso alimentar o

nosso raciocínio com informações corretas sobre a realidade.

Aqui começa a segunda etapa da lógica aristotélica: a teoria

sobre a indução.

Page 150: História da Filosofia Antiga

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Se, por um lado, a teoria do silogismo é a base para estabelecermos relações necessárias entre proposições, o método indutivo nos permite alcançar uma compreensão objetiva do mundo que nos cerca.

A observação da natureza nos permite formular proposições

particulares (ex.: este cachorro tem quatro patas; este cachorro é

peludo; este cachorro late; etc). No entanto a ciência deve buscar

sempre o conhecimento de regularidades universais (ex.: todo

cachorro tem quatro patas; todo cachorro é peludo; todo cachorro

late; etc). Para Aristóteles, a repetição das observações de eventos

particulares (ex.: observar diversos cachorros) é o primeiro passo

para formularmos generalizações. Mas só a observação repetida

não basta para chegarmos ao conhecimento científi co. É preciso

acrescentar-lhe algumas operações mentais que dêem rigor à

passagem do particular ao universal.

Retomando a tese de que os predicados podem ser de cinco

tipos (gênero, espécie, diferença, próprio e acidente), Aristóteles

propõe, como ponto de partida para a ciência, a classifi cação dos

dados da experiência.

A própria idéia de classifi cação implica as noções de semelhança

e de diferença. Vejamos um exemplo:

Os seres humanos, os cães, os bois e os pombos possuem algumas semelhanças (todos eles, por exemplo, têm olhos). Por outro lado, eles também têm suas particularidades: humanos e pombos são bípedes, cães e bois são quadrúpedes; pombos têm penas e bois têm chifres; cães latem e humanos usam linguagem articulada.

A sistematização da observação de casos particulares permite

a construção de classes. O rigor no processo de avaliação das

semelhanças e das diferenças específi cas permite elaborar um

conhecimento cada vez mais abrangente e, ao mesmo tempo,

cada vez mais preciso.

Page 151: História da Filosofia Antiga

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História da Filosofi a I

Unidade 5

Tratando-se do conhecimento científi co, no entanto, é preciso

tomar cuidado para que as classes sejam formuladas apenas a

partir de características objetivas e necessárias − e não segundo

qualidades acidentais. É aqui que reside a diferença entre o bom e

o mau uso do método indutivo.

Aplicando-se o método indutivo, pode-se chegar à defi nição, que consiste em ligar diversos indivíduos particulares a um único conceito a partir da determinação de uma característica distintiva.

A defi nição é obtida a partir da identifi cação de uma

característica exclusiva de uma espécie em relação às outras

espécies do mesmo gênero. Veja um exemplo de como Aristóteles

chega à defi nição de ser humano:

O homem é um ser vivo.

Mas há outros seres vivos.

Entre os seres vivos, o homem se diferencia por ser um animal.

Mas há seres vivos animais.

Entre os animais, o homem se diferencia por ser bípede. Mas há animais bípedes.

Entre os bípedes, o ser humano é o único dotado de razão.

Esta é uma característica exclusiva do ser humano.

O homem, portanto, é um ser racional.

Mas será que só o ser humano é racional?

Talvez os deuses e os anjos (se existirem) sejam também

racionais. E, mesmo que não existam, seria interessante poder

ter uma defi nição de ser humano que o distinguisse desses outros

seres.

Page 152: História da Filosofia Antiga

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Para fugir deste problema, basta acrescentar à diferença específi ca

o gênero ao qual o homem pertence. Assim, uma boa defi nição

de homem pode ser: “animal racional”.

Essa defi nição não é única, mas o que realmente interessa é

que ela é exclusiva. Não é única, porque há outras defi nições

igualmente boas (por exemplo: “animal político”, “mortal

racional”, etc.). Porém é exclusiva, porque nenhum outro ser do

universo se pode adequar a ela a não ser o homem.

Finalmente, o conceito é universal − no sentido mais original da palavra “universal”. Ele é a delimitação precisa daquilo que, na matemática contemporânea, chamaríamos de conjunto universo. Ele é algo que vale para todos os membros de uma espécie.

Mas essa universalidade possui duas características importantes:

ela é, como vimos, o resultado de uma operação

intelectual do pesquisador (ela não existe por si na

realidade); e

ela é produzida a partir da observação atenta das

características dos objetos que compõem a realidade, o

que lhe dá um caráter objetivo e necessário (ao invés de

subjetivo e relativo).

SEÇÃO 6 - O problema do ser: A fi losofi a primeira

Com Aristóteles, o foco da investigação fi losófi ca volta-se cada

vez mais para a questão da universalidade e do valor objetivo dos

conceitos.

Mas, nessa discussão sobre a universalidade, surge uma nova

questão:

1.

2.

Page 153: História da Filosofia Antiga

153

História da Filosofi a I

Unidade 5

Haveria um universal que pudesse englobar todos os outros universais? Em outras palavras, haveria alguma característica distintiva que pudesse ser atribuída a todas as coisas?

Imaginemos uma rosa. A rosa concreta, para ser conhecida,

precisa ser percebida pelos sentidos. Para que seja construído

um conhecimento científi co sobre ela, é preciso identifi car a

característica distintiva de sua espécie a partir da sua comparação

com outros elementos pertencentes ao mesmo gênero. A rosa

concreta é única, enquanto o conceito rosa é universal. Esse

conceito universal (rosa) está incluído em outro universal: o

conceito de fl or. Este, por sua vez, está também incluído em

outro universal (planta), que está incluído em outro (ser vivo) − e

assim sucessivamente.

A questão é: haveria um universal último que abrangesse todas as coisas?

E haveria uma ciência dedicada ao estudo desse universal?

Para Aristóteles existe sim um universal último, aplicável a todas as coisas: é o ser. E a ciência do ser é a “fi losofi a primeira”.

Filosofi a primeira (próte philosophia, em grego) é o nome usado por Aristóteles.

Mais tarde, a ciência do ser passou a também ser chamada de metafísica e de ontologia.

A fi losofi a primeira estuda o “ser enquanto ser”, as primeiras

causas e os primeiros princípios.

O “ser enquanto ser”

Você sabe o que é o ser?

Aristóteles defende a relevância de uma investigação sobre o

signifi cado do verbo “ser”, em primeiro lugar, para identifi car e

superar as confusões geradas pelo seu uso indiscriminado. A raiz

do problema está no fato de que o ser se diz de diversos modos.

Organon, em grego, signifi ca, literalmente, instrumento.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Ou seja, o verbo ser pode ser usado em diferentes contextos e com

vários sentidos. Veja os seguintes exemplos:

1) Dois mais três é cinco.

2) A Terra é azul.

3) O elefante é maior que a formiga.

4) O homem é um animal racional.

No exemplo 1, o verbo ser expressa uma identidade; em 2, indica

uma propriedade; em 3, estabelece uma relação; em 4 enuncia

uma defi nição.

Para evitar as confusões provocadas por essa multiplicidade de

usos, Aristóteles propõe como uma tarefa preliminar uma análise

detalhada do verbo ser. Defende que tal estudo deva anteceder

qualquer outro estudo científi co, uma vez que toda ciência busca

defi nir conceitos e, para isso, já faz uso do verbo ser.

Na Metafísica, Aristóteles propõe três distinções fundamentais

para a compreensão do ser: essência e acidente, necessidade e

contingência, ato e potência. Observe na seqüência.

1) essência e acidente – o verbo ser é usado para expressar

atributos essenciais ou acidentais. A essência (ousía) é o atributo

(ou conjunto de atributos) que, de fato, defi ne o sujeito. Por isso

Aristóteles utiliza também o termo hypokeimenon (substância =

“aquilo que está sob”), porque a substância é a base, o ponto de

apoio de todo ato de predicação. Já os acidentes são propriedades

atribuídas a um sujeito, sem defi ni-lo de forma inequívoca. Por

exemplo: a racionalidade é uma característica essencial para o

ser humano; já, ser homem ou mulher é acidental. Respirar é

essencial para os seres vivos; acasalar é acidental.

2) necessidade e contingência – um predicado é necessário

quando o seu contrário implica uma contradição; quando isso

não ocorre, ele é contingente. Por exemplo: na frase “Sócrates é

fi lósofo” o predicado “ser fi lósofo” é contingente, pois, embora

seja um fato que Sócrates é um fi lósofo, não há nenhuma

contradição em imaginar que ele, por algum motivo, pudesse ter

seguido outra ocupação. Por outro lado, na frase “Sócrates é mais

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História da Filosofi a I

Unidade 5

jovem que seu pai” o predicado “ser mais jovem que seu pai” é

necessário, pois é absurdo imaginar o contrário.

3) ato e potência – para aqueles predicados que não são essenciais

nem necessários (e que, portanto, são acidentais e contingentes),

deve-se aplicar a distinção entre ato e potência. Essa distinção

possibilita o uso do verbo ser em situações que envolvam a

temporalidade, a transformação, o devir. O ato indica tudo aquilo

que o sujeito da predicação já é; a potência, tudo aquilo que

ele pode vir a ser. O exemplo clássico é a semente: em ato ela é

semente, em potência ela é uma planta.

Como podemos defi nir o que é um lápis, usando as 3 distinções fundamentais do ser?

Veja um exemplo.

Essência - o lápis é um instrumento de escrita que contém um fi lete sólido o qual, ao entrar em contato com superfícies ásperas, se desgasta, formando um traço nessa superfície.

Acidente - o fi lete pode ser de grafi te, de cera ou outra substância; pode ser colorido; pode ter um invólucro de madeira, plástico ou de outro material.

Necessidade - precisa ter o fi lete sólido.

Contingência - pode ter um invólucro, que pode ser de diferentes materiais.

Ato - é o estado em que um dado lápis se encontra agora.

Potência - são as infi nitas formas imagináveis de como esse mesmo lápis pode estar daqui a algum tempo (poderá estar do mesmo jeito, ou mais gasto, ou quebrado, etc.).

A teoria aristotélica do ser se aplica a situações em que queremos

determinar o que uma coisa é. Mas a ciência, além de estudar

o que as coisas são, também se preocupa em investigar como as

coisas vieram a ser, como são e por que se tornaram tal como são.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Ou seja, a ciência busca determinar as causas dos fenômenos que

ela estuda.

As primeiras causas

Assim como o verbo ser possui diversos usos, há um outro termo

fundamental para a ciência, que também costuma ser usado em

sentidos diferentes. Trata-se da palavra causa (aitia, em grego). A

partir de uma análise detalhada do uso dessa palavra, Aristóteles

formula a sua teoria das quatro causas: formal, material, efi ciente

e fi nal.

1) Causa formal – é a explicação ou descrição da forma (morphé)

característica do ser. A causa formal é a resposta para a questão

“como é x?”

2) Causa material – é a identifi cação da matéria (hyle) da qual o

ser se compõe. A causa material é a resposta para a questão “do

que é feito x?”

3) Causa efi ciente – é a explicação do devir, da transformação

ou do movimento. A causa efi ciente (também chamada de causa

motriz) é a resposta para a questão “por que x alterou o seu

estado inicial?”

4) Causa fi nal – é a explicação da fi nalidade, da intenção que

rege certas modifi cações e ações. Para Aristóteles, tudo na

natureza tem uma fi nalidade (télos). A causa fi nal é a resposta

para a questão “qual é a fi nalidade de x?” ou, resumidamente,

para que é x?

Como podemos explicar o que é um lápis, usando a teoria das 4 causas?

Veja um exemplo.

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História da Filosofi a I

Unidade 5

Causa formal - o lápis é um objeto cilíndrico ou oitavado, com aproximadamente 15 cm de comprimento e 0,5 cm de diâmetro.

Causa material - é feito de madeira e de grafi te.

Causa efi ciente - é produzido através de um processo industrial.

Causa fi nal - serve para escrever ou desenhar.

Esclarecidos os signifi cados de ser e de causa, os dois termos mais

fundamentais usados na ciência, Aristóteles busca identifi car os

princípios fundamentais da ciência.

Os primeiros princípios

Aristóteles identifi cou três princípios que servem de fundamento

para todas as ciências e até mesmo para a Lógica. São os

princípios da enunciação do ser, os quais regem todas as nossas

declarações.

Princípio da identidade - “o ser é e o não ser não é”.

Princípio da não-contradição - “é impossível que o mesmo atributo pertença e não pertença, ao mesmo tempo, ao mesmo sujeito sob o mesmo ponto de vista”.

Princípio do terceiro excluído - “não é possível que haja qualquer coisa entre as duas partes de uma contradição, mas é necessário ou afi rmar ou negar uma coisa de outra”.

Segundo Aristóteles, esses três princípios regem todos os juízos

(lógos apophantikos), todas as nossas afi rmações e negações sobre

os seres que compõem a realidade.

Um desdobramento especial da fi losofi a primeira: a teologia aristotélica

Vimos que todos os seres da natureza possuem características

essenciais e acidentais, necessárias ou contingentes, e que podem

estar em ato ou em potência.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Para Aristóteles, a forma e a matéria são princípios intrínsecos do

ser (ou seja, são princípios que se encontram no próprio ser). Já

a causa efi ciente e a causa fi nal são princípios extrínsecos (estão

fora do ser).

Com essa teoria, Aristóteles consegue explicar, de forma racional,

como ocorre a transformação nos seres individuais.

O ser, em essência, não muda, mas as suas qualidades acidentais podem variar na medida em que aquilo que está em potência vai-se tornando ato.

De uma forma relativamente simples, Aristóteles resolve a antiga

disputa entre o imobilismo de Parmênides e o mobilismo de

Heráclito.

No entanto falta ainda responder a uma questão mais fundamental: Por que existe o devir? Por que existe a transformação na natureza?

A transformação, o devir, é a passagem da potência ao ato.

Essa passagem só ocorre quando um agente externo, uma causa

efi ciente, provoca uma mudança nas qualidades acidentais do

ser. Ou seja, se algo se transforma é porque um outro algo

provocou essa transformação. Alguns pré-socráticos haviam dito

que o movimento da matéria era intrínseco. Mas, como vimos,

Aristóteles rejeita essa idéia.

Por que então existe o devir?

A única saída encontrada por Aristóteles foi pressupor a

existência de um ser que não sofre transformações e que, mesmo

assim, dá início à interminável transformação que percebemos

na natureza. Esse ser é um “motor”, é o que move o universo;

e é “imóvel”, pois, caso contrário, dependeria ele próprio de

um agente externo que o tivesse movido anteriormente. A esse

primeiro-motor-imóvel, Aristóteles dá o nome de “Deus” (Th éos).

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História da Filosofi a I

Unidade 5

Atenção!

Assim como o Demiurgo, de Platão, o primeiro motor, de Aristóteles, não é o criador da matéria.

Mas por que Deus produz o devir?

Porque, além de ser causa motriz, ele é também causa fi nal.

Tudo na natureza tem uma fi nalidade. Cada transformação, cada

movimento, tem um objetivo. O próprio cosmos deve ter uma

fi nalidade. E essa fi nalidade é determinada por aquele que deu

origem à mudança: Deus.

Essa solução proposta por Aristóteles para o problema do devir

é um dos pontos mais controvertidos da sua fi losofi a. Embora o

estagirita se empenhe em construir uma teologia natural, que

implica considerar Deus como parte da natureza, e não como um

ser sobrenatural, o resultado alcançado não está livre de algumas

inconveniências teórico-metodológicas. Ainda que Deus seja

pensado como algo que faz parte da physis, ele é pensado como

um ser perfeito, e não como algo que está sujeito ao devir. Isso

cria na physis um dualismo injustifi cável entre seres mutáveis e

um ser imutável.

Na última seção desta unidade, veremos o quanto esse ponto

específi co da metafísica infl uenciou a aceitação da fi losofi a

aristotélica nos últimos dois mil e trezentos anos.

O sentido da fi losofi a primeira

Para Aristóteles, nosso conhecimento da realidade se inicia com

a sensação, o nível mais simples, limitado, subjetivo e particular

do conhecimento. Passando por níveis cada vez mais complexos,

nosso saber pode se elevar até a ciência, o nível mais objetivo e

universal.

No conhecimento científi co, encontramos algumas ciências mais

específi cas e outras, mais abrangentes, sendo a mais universal de

todas, aquela que se dedica ao estudo do ser enquanto ser. Vista

dessa forma, através de uma perspectiva que privilegie a ordem

Page 160: História da Filosofia Antiga

160

Universidade do Sul de Santa Catarina

de conquista humana do conhecimento, a fi losofi a primeira é o

último estágio a ser alcançado.

No entanto, uma vez alcançada, ela se torna a base conceitual

e lógica sobre a qual todas as outras ciências constituirão suas

investigações.

Atenção!

Somente tendo uma compreensão correta do ser enquanto ser, das primeiras causas e dos primeiros princípios, é que poderemos alcançar, de fato, um conhecimento científi co sobre a realidade.

SEÇÃO 7 - A física aristotélica

Aristóteles usa o termo “física” para denominar a ciência da

natureza (physis). Cabe à física investigar a composição do mundo

material e também as leis que o regem. Aristóteles divide essa

investigação em três subtemas de estudo: o processo de geração e

corrupção, os astros e a alma dos seres vivos.

A concepção hilomórfi ca da natureza: a geração e a corrupção

De acordo com a física aristotélica, os seres naturais são aqueles

formados por uma composição (synolos) de matéria (hyle) e

forma (morphé). Essa concepção de natureza é conhecida como

hilomorfi smo.

O hilomorfi smo é uma explicação simples, porém efi caz, para a

questão do devir. Segundo esta concepção, a composição produz

uma ação mútua constante de um elemento sobre o outro: a

forma faz a matéria se alterar, e a matéria tende a alterar a forma.

Essa é a origem de toda a transformação que encontramos na

natureza. Através dessa interação entre forma e matéria, os

seres da natureza são produzidos (gerados) e destruídos (ou

corrompidos).

Resumindo, podemos dizer que:

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161

História da Filosofi a I

Unidade 5

A física aristotélica atribui a causa da geração e da corrupção ao hilomorfi smo dos objetos que compõem a physis.

Retomando os princípios estabelecidos na metafísica, podemos

descrever o processo de desenvolvimento do ser através das

seguintes etapas:

pela ação de uma causa efi ciente, a matéria junta-se à

forma;

a forma tende a organizar a matéria, fazendo com que

ela passe da potência ao ato, mas a matéria opõe uma

resistência a essa organização;

não havendo a interferência de outras causas, a forma

predomina sobre a matéria, até que a fi nalidade do ser

seja alcançada;

uma vez concretizada a fi nalidade do ser, a forma

perde gradativamente o seu predomínio e passa a ser

corrompida pela resistência natural da matéria;

o processo de corrupção termina com a destruição do ser

(que é a dissolução do synolos).

Veja um exemplo.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Imagine uma semente produzida por uma planta. A semente é um novo ser, gerado por um ser já existente. Esse novo ser é uma junção de forma e matéria.

A partir dessa junção, a causa formal organizará a matéria para transformar a semente em uma planta desenvolvida, produtora de novas sementes (causa fi nal).

Nesse processo, a planta em crescimento absorve água, ar e terra (causa material), que vão sendo organizados pela causa formal.

Após ter alcançado a maturidade e ter gerado novas sementes, a planta perde sua vitalidade, entra em um processo de fenecimento e fi nalmente morre (o synolos é rompido).

A partir de então, a matéria que estava organizada passa a se decompor e volta a ser água, ar e terra.

A astronomia

Além de matéria e forma, para pensarmos a

natureza precisamos também da idéia de espaço ou

de lugares. Identifi cando tipos diferentes de lugar e

de matéria, Aristóteles formula uma concepção de

universo bastante elaborada.

De acordo com essa concepção, o cosmos possui

dois lugares fundamentais: o mundo sublunar, que

é o mundo em que vivemos; e os céus, ou o mundo

supralunar.

O mundo sublunar é formado por quatro elementos

materiais: terra, água, ar e fogo; e por dois lugares

naturais: o alto e o baixo. Por natureza, a água e a

terra tendem para baixo e o ar e o fogo tendem para

o alto. Se deixados soltos, os elementos retornam

ao seu lugar natural em um movimento retilíneo.

Por ser composto por vários elementos, o mundo

sublunar está sujeito à geração e à corrupção.

Já o mundo supralunar é formado por um único elemento

material, o éter (também chamado de “quinta essência”). Como

Figura 5.4 - Visão geocêntrica do Universo.Fonte: <http://www.ccvalg.pt/astronomia/historia/antiguidade.htm>.

Page 163: História da Filosofia Antiga

163

História da Filosofi a I

Unidade 5

esse elemento é único, não se corrompe. Os seres supralunares

não sofrem alterações de forma ou de matéria, embora estejam

em constante movimento de translação ao redor do mundo

sublunar. Enquanto o movimento natural dos quatro elementos

é retilíneo e vertical, o movimento da quinta essência é sempre

circular.

O mundo supralunar é formado por esferas concêntricas, nas

quais os corpos celestes se encontram, girando em torno da Terra.

Por esse motivo, a concepção aristotélica de universo é chamada

de “modelo geocêntrico” ou “visão geocêntrica”.

As esferas estão em um constante movimento. O primeiro motor

move a primeira esfera, a mais externa. Cada esfera, ao se mover,

produz movimento na esfera interior através do atrito. Assim, o

movimento da esfera mais exterior é transmitido sucessivamente

a cada uma das esferas interiores.

Portanto Aristóteles concebe um modelo de universo capaz de

explicar o devir, os fenômenos físicos e astronômicos, totalmente

afi nada com a sua fi losofi a primeira.

A psicologia

Para Aristóteles, como já vimos, a matéria não possui nenhum

movimento intrínseco. No entanto encontramos na natureza

seres animados, os quais possuem em si mesmos um princípio de

movimento. Esse princípio é a alma (psykhé). Ela é a forma que

organiza os seres animados. Aristóteles a defi ne assim: “a alma é

aquela coisa devido à qual vivemos, sentimos e pensamos” (2001,

p. 56).

Segundo a teoria formulada na obra Acerca da Alma, todos os

seres vivos possuem alma. No entanto, enquanto em alguns

seres a alma possui apenas uma função ligada à manutenção

da vida, em outros ela apresenta funções mais complexas.

Fundamentalmente, a alma pode apresentar três funções

distintas. Isso leva Aristóteles a falar de três partes da alma, ou

mesmo de três almas: a alma vegetativa, a alma sensitiva e a

alma intelectiva.

Page 164: História da Filosofia Antiga

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Universidade do Sul de Santa Catarina

A alma vegetativa é o princípio que regula as atividades

biológicas. Está presente em todos os seres vivos, desde as

plantas até o ser humano, passando por todos os animais. É

responsável pelos instintos e pelos impulsos (fome, sede, etc), e

pela nutrição, crescimento e reprodução.

A alma sensitiva ou desiderativa, presente

apenas nos animais, é responsável pelas

sensações, pela percepção das peculiaridades

dos objetos com os quais os animais entram

em contato. Além disso, na medida em que

algumas dessas sensações proporcionam prazer ou

dor, a alma sensitiva é a sede dos desejos e aversões.

Nos animais mais desenvolvidos, a sensação permite também

a produção de imagens mentais, a imaginação (phantasía), a

conservação dos dados percebidos pelos sentidos (mnemosyne) e

a percepção de relações entre fatos (experiência). É ainda a alma

sensitiva que coordena os movimentos corporais.

A alma intelectiva ou pensante é uma exclusividade do

ser humano. Ela é a capacidade de pensar discursivamente,

de elaborar teorias e de pensar em explicações. É dela que

deriva a capacidade de formular juízos sobre a realidade (lógos

apophantikos).

Atenção!

Embora Aristóteles elabore uma teoria da alma bem mais complexa que a de Platão, ele não chega a se desprender totalmente das bases estabelecidas pelo seu antigo mestre.

SEÇÃO 8 - A ética e a política

Vimos, na seção 4, que, ao classifi car o conhecimento, Aristóteles

não inclui a ética e a política no conjunto dos conhecimentos

referentes à realidade. Esses temas pertencem ao saber prático, no

qual o agente, a ação e o resultado se fundem.

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História da Filosofi a I

Unidade 5

Para os gregos, de uma forma geral, as questões éticas e políticas

estão intimamente interligadas. Em Aristóteles, essa ligação é

explicada por terem ambas o mesmo objetivo: a felicidade do

homem, possível apenas no convívio com outros seres humanos.

Justamente por isso, o ponto de partida deve ser: defi nir o que é

o ser humano. A concepção de ser humano que serve de ponto

de partida para Aristóteles tem três aspectos fundamentais: a

composição tripla da alma (que vimos na seção 7), a racionalidade

e a natureza social. As principais obras em que Aristóteles

discute as formas de alcançar a realização humana são a Ética a

Nicômaco e a Política.

A ética

Na Ética a Nicômaco [1098a5], Aristóteles afi rma que a

característica mais peculiar do homem é a racionalidade e que “a

função do homem [sua causa fi nal] é uma atividade da alma que

segue ou que implica um princípio racional” (1987, p. 16).

Portanto a realização da essência humana, e, conseqüentemente,

a felicidade, é alcançada quando conseguimos viver de acordo

com a razão. No entanto viver de forma racional não é simples,

pois, além da razão, temos também impulsos não-racionais

(necessidades físicas, desejos, sentimentos, etc.) que interferem

em nossas escolhas. Sendo assim, agir de acordo com a razão é

uma capacidade que precisa ser desenvolvida. Essa capacidade é o

que Aristóteles chama de virtude ou excelência (areté).

De acordo com Aristóteles, a excelência humana pode ser de duas espécies: a virtude ética e a virtude intelectual (ou dianoética). A excelência intelectual (a sabedoria) é obtida através do ensino e da investigação científi ca e fi losófi ca; já a excelência moral é fruto de um treinamento pautado pela vontade de agir de acordo com a razão.

Diferente da ética de Sócrates, segundo a qual a areté é uma decorrência direta da episteme, Aristóteles argumenta que o conhecimento teórico e a virtude moral são coisas distintas, alcançáveis de forma independente.

Page 166: História da Filosofia Antiga

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Pelo fato de a alma humana possuir uma composição tríplice,

a vida humana consiste em uma passagem da potência ao ato,

orientada por três causas fi nais que concorrem entre si:

a manutenção da vida corporal em sua forma plena

(incluindo aqui a nutrição, a sobrevivência e a

reprodução);

a busca do prazer; e

a busca do conhecimento teórico.

Segundo essa teoria, nós nos sentimos satisfeitos e realizados à

medida que nos aproximamos de cada uma dessas causas fi nais.

A felicidade (eudaimonía) é alcançada quando conseguimos

concretizar, de forma equilibrada, essas três fi nalidades.

No entanto, é preciso fazer pelo menos duas ressalvas:

a felicidade precisa ser fruto de uma conquista pessoal,

que assegure sua manutenção a longo prazo, pois

ninguém é feliz quando teme perder aquilo que lhe

proporciona o sentimento de realização;

na alma humana, o princípio racional é aquele que

melhor caracteriza o homem e o distingue de todos os

outros seres viventes; por isso, entre os fi ns que o ser

humano busca, a sabedoria é o mais elevado e o que

proporciona a maior felicidade.

Por estabelecer que a ética deva ser pensada em função da fi nalidade da ação, a ética aristotélica é chamada de teleológica; por estabelecer que este fi m é a felicidade, ela é chamada de eudaimonista.

Uma vez determinada a fi nalidade da vida humana, Aristóteles

buscou determinar o que é a virtude, entendendo-a como aquela

forma de agir que levaria o homem a alcançar a felicidade. O

mestre do Liceu chegou à conclusão de que a melhor ação é

aquela que procura evitar tanto o excesso quanto a falta. Veja um

exemplo em que a coragem é o meio-termo.

1.

2.

3.

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167

História da Filosofi a I

Unidade 5

Para realizar uma ação que julgamos correta, muitas vezes precisamos de coragem. A falta de coragem, a covardia, acaba fazendo com que percamos oportunidades importantes diante de situações presumivelmente ameaçadoras, e provoca o medo, o qual acaba por anular nossa capacidade de agir corretamente.

Por outro lado, o excesso de coragem, a temeridade, pode nos colocar em situações incontroláveis e perigosas, que podem acarretar prejuízos irreparáveis.

A coragem, como virtude, é um meio-termo entre a covardia e a temeridade. Esse meio-termo deve ser adequado a cada situação concreta.

Contudo, mais do que saber qual é a melhor ação, é preciso

realizá-la. Mas isso nem sempre é fácil; e exige certo treinamento.

Com empenho, no entanto, é possível desenvolver tanto a nossa

capacidade de perceber qual é a ação correta, quanto a capacidade

de pôr em prática aquilo que sabemos ser a melhor ação.

Para Aristóteles:

a ação virtuosa é o justo meio-termo entre uma carência e um excesso;

a virtude é uma disposição do caráter que consiste no hábito de agir bem.

A virtude não é uma garantia de felicidade, mas é o único

caminho confi ável de que dispomos para buscá-la. É uma

condição necessária, mas não sufi ciente. Há outros elementos que

podem interferir na felicidade. Mesmo assim, o homem virtuoso

acaba tornando-se uma pessoa melhor preparada para lidar com

as situações imprevistas e as vicissitudes da vida.

Política

Entre os elementos que podem interferir na felicidade, a vida

em sociedade merece uma atenção especial, na medida em que é

possível interferir nela de forma racional e planejada.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Para Aristóteles, não é possível pensar a ética desvinculada da política. Uma sociedade só será bem constituída, se for formada por homens virtuosos. Em contrapartida, é somente na pólis que se pode realizar o ideal da vida teórica, suprema realização do ser humano.

Na Política, Aristóteles afi rma que “o homem é, por natureza,

um animal político” (1999, p. 146). Dessa afi rmação, o estagirita

deriva a idéia de que a pólis não é uma invenção humana, e sim

uma criação da própria natureza. Mas assim como tudo na nossa

natureza pode ser desenvolvido e aperfeiçoado pela educação,

também a sociabilidade pode ser aprimorada, à medida que

os homens são educados para agir corretamente, mediante a

formação do hábito de praticar ações virtuosas.

Mas, o que é o Estado?

O Estado, a pólis, é uma forma natural de associação, e sua

natureza é, por si, uma fi nalidade: assegurar o viver bem. (cf.

ARISTÓTELES, 1999, p. 145-146).

Algumas questões controversas da política aristotélica

A boa política é aquela que assegura uma vida boa a todos os

habitantes de um Estado. Mas isso não implica que todos sejam

iguais ou que o Estado deva proporcionar os mesmos direitos a

todos. É o próprio Aristóteles quem esclarece:

nem por um momento aceitamos a idéia de que devemos

chamar de cidadãos todos aqueles cuja presença seja

necessária para a existência do Estado. As crianças são

tão necessárias quanto os adultos, mas [...] só podem ser

denominadas cidadãs num sentido limitado (1999, p.

219).

Além das crianças, a concepção política aristotélica priva da

cidadania plena as mulheres, os trabalhadores e os escravos. A

todos estes, a obediência é conveniente e justa.

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História da Filosofi a I

Unidade 5

Assim, o exercício pleno da cidadania está restrito ao homem (masculino) adulto, nobre, livre, nascido no Estado e educado adequadamente para o exercício de tão nobre função. Somente este reúne em si a natureza e as condições para a vida teórica e somente ele é capaz de ser feliz no sentido mais pleno da palavra.

SEÇÃO 9 - A poética

A Poética é a principal obra de Aristóteles sobre o conhecimento

produtivo. Platão havia criticado a poesia por não ter um

compromisso com a verdade. Aristóteles concorda com seu

mestre que a poesia não possa servir de base para o conhecimento

da verdade ou para orientar a busca da felicidade. Mesmo assim,

o estagirita acredita que a produção artística tem sua função e sua

importância e que seus aspectos formais merecem ser estudados e

compreendidos.

Mímesis e kátharsis

A poesia é uma imitação (mímesis) das ações humanas, que leva

em consideração os motivos, o contexto e os resultados obtidos.

Não serve de modelo para o comportamento ético, embora

permita ao espectador identifi car formas arquetípicas de ação,

julgá-las e comparar seu julgamento com os de outras pessoas.

Mas não é esse o motivo pelo qual a poesia, a arte de uma

maneira geral, é tão importante para o ser humano. A principal

função da obra de arte é mexer com as nossas emoções.

O ser humano, além das necessidades e desejos corporais e da

inteligência, tem a capacidade de se emocionar. As emoções são

manifestações dos nossos sentimentos de amor, raiva, esperança,

satisfação, vingança, etc. A vida em sociedade, e mesmo o caráter

de cada um, formado através da educação e do empenho pessoal,

muitas vezes impõe limites à possibilidade de se vivenciarem as

emoções, de deixá-las fl uir, de botá-las para fora. A obra de arte

cria um mundo fi ctício onde os personagens são colocados para

além desses limites impostos social e eticamente.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

A boa obra de arte é aquela que produz a compaixão no espectador, que o leva a sentir as mesmas paixões, as mesmas emoções que o personagem está vivendo na fi cção. Assim, a boa obra de arte cria, através da imaginação, um ambiente seguro para que o espectador deixe fl uir suas emoções e vivencie sentimentos recalcados de uma forma intensa. A fruição artística é uma oportunidade para exorcizar sentimentos inconvenientes.

Usando como exemplo o gênero poético da tragédia, o mais

importante da literatura grega da época, Aristóteles (1987, p.

205) descreve assim a função da experiência estética: “é pois

a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado [...] que,

suscitando terror e piedade, tem por efeito a purifi cação dessas

emoções”.

Dessa forma, a “purifi cação” (kátharsis) é o que legitima a obra de arte, apesar da sua falta de compromisso com a verdade. O grande objetivo da arte não é alimentar nosso intelecto, e sim tocar as nossas emoções.

SEÇÃO 10 - Aristóteles: o “príncipe dos fi lósofos”?

Aristóteles foi, acima de tudo, um grande sistematizador.

Talvez tenha sido, na história da humanidade, o último sábio

a conseguir alcançar um amplo domínio teórico sobre todos os

saberes cientifi camente constituídos de sua época. Cada parte da

sua obra está em harmonia com o todo, cada elemento teórico

deve ser sempre pensado na relação com os demais, e nenhum

aspecto pode ser compreendido de forma isolada.

A fi losofi a de Aristóteles fez muito sucesso já na época em que

o fi lósofo dirigia o Liceu. Nenhuma outra escola, nem mesmo

a Academia, era tão bem reputada e, mesmo após a morte de

Aristóteles, nenhuma teve tantos alunos.

Ainda na Antigüidade, as obras de Aristóteles foram traduzidas

para o árabe, o que permitiu que elas fossem preservadas, quando

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171

História da Filosofi a I

Unidade 5

a Europa se viu mergulhada na miséria, tanto material quanto

intelectual, no início da Idade Média (entre os séculos V e X

d.C.).

A partir do século X, à medida que a Europa se reestrutura

econômica e culturalmente, as guerras de reconquista dos

territórios sob domínio árabe na península ibérica levam os

europeus à redescoberta das obras do fi lósofo estagirita.

Nesse período que se iniciava, chamado de Escolástica, Aristóteles acabou tornando-se a principal referência fi losófi ca. Somente a Bíblia estava acima de suas obras. Aos poucos, ele começou a ser chamado de “o príncipe dos fi lósofos” e, mais tarde, chegou a ser referido como “O Filósofo”.

Além de todas as suas inegáveis qualidades, a fi losofi a aristotélica

mostrou-se perfeitamente conciliável com as escrituras sagradas

do cristianismo. E, mesmo aquele que talvez seja o ponto mais

controverso do sistema aristotélico, a sua teologia natural, pôde

ser adequado aos interesses religiosos.

Há quem afi rme que Aristóteles não conseguiu elaborar uma

teoria que explicasse de forma homogênea a totalidade dos seres e

fenômenos naturais e que, ao mesmo tempo, fosse absolutamente

racional. Para explicar a physis, ele precisou recorrer a um artifício

teórico: a pressuposição do motor-imóvel, um ser praticamente

sobrenatural.

Os fi lósofos cristãos da Escolástica não hesitaram em identifi car esse primeiro-motor com a idéia de um Deus único todo-poderoso criador do céu e da Terra. A fi losofi a aristotélica se tornou perfeita para os interesses da Igreja, a qual buscava controlar, também intelectualmente, a cultura européia. E foi assim que um fi lósofo pagão passou a ser aceito como referência fundamental nas escolas de teologia cristãs.

Mas esse recurso a um elemento extraordinário também foi o

motivo principal pelo qual Aristóteles começou a ser criticado

e gradativamente abandonado na Idade Moderna. A partir do

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172

Universidade do Sul de Santa Catarina

Renascimento, quando a Europa consegue fi nalmente superar a

tirania da religião única, vários fi lósofos propuseram o expurgo

da noção de causa fi nal do âmbito da fi losofi a e da ciência. A

ciência moderna nasce de uma ruptura explícita com a metafísica

aristotélico-escolástica.

Atenção!

Hoje, a metafísica de Aristotélica é rejeitada e atacada por todos os lados, embora se reconheça enfaticamente sua importância histórica. Mas, se a metafísica do estagirita já não convence os fi lósofos e cientistas contemporâneos, não se pode dizer o mesmo de outras contribuições do fundador do Liceu. Suas idéias ainda continuam sendo o fundamento de algumas disciplinas teóricas como, por exemplo, a Lógica e a Ética.

Aristóteles marcou a história da fi losofi a de tal forma que, pode-

se dizer, nenhum fi lósofo posterior a ele pôde formular uma

interpretação racional da realidade sem sofrer a sua infl uência.

Seu impacto na fi losofi a só foi menor que o de Sócrates e o de

Platão. Estes também infl uenciaram todo o desenvolvimento

posterior da fi losofi a e da ciência, e infl uenciaram o próprio

Aristóteles.

Síntese

Aristóteles de Estagira foi discípulo de Platão e preceptor de

Alexandre o Grande. Em Atenas, fundou e dirigiu o Liceu, a

mais conceituada instituição voltada à pesquisa científi ca e à

formação intelectual da Antigüidade.

Aristóteles sistematizou todos os conhecimentos considerados

científi cos de sua época, formando um sistema coerente e

fundamentado em princípios universais. Infelizmente, apenas

uma parte da sua vasta obra chegou até nós.

Discordando de Platão, Aristóteles valoriza a experiência como

elemento necessário para chegar-se ao conhecimento científi co.

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173

História da Filosofi a I

Unidade 5

Mas se aproxima do antigo mestre ao defender que o melhor de

todos os conhecimentos é a ciência, o conhecimento das causas

e dos porquês, um conhecimento teórico cuja objetividade é

assegurada pelo correto uso da Lógica.

Entendendo o conhecimento como a identifi cação das

peculiaridades de cada coisa, Aristóteles propõe como etapa

preliminar a qualquer investigação a compreensão de algumas

distinções fundamentais do ser: essência e acidente, necessidade

e contingência, ato e potência. Propõe também a teoria das

quatro causas (material, formal, efi ciente e fi nal) e estabelece os

princípios fundamentais da enunciação do ser (identidade, não-

contradição e terceiro excluído).

Ao analisar o mundo natural, Aristóteles propõe uma

hierarquização do universo, dividindo-o em mundo supralunar

(perfeito) e mundo sublunar (imperfeito e sujeito ao devir).

Afi rma que no mundo sublunar a matéria é composta por quatro

elementos (terra, água, ar e fogo) e que o mundo supralunar é

feito de uma “quinta essência”, o éter.

Aristóteles concebe três princípios de transformação e movimento

no universo: a ação de um primeiro-motor-imóvel (que move

todo o universo), a passagem da potência ao ato (que afeta todos

os seres do mundo sublunar) e a ação da alma, princípio vital

associado à matéria (responsável pelo movimento dos seres vivos).

A ética de Aristóteles é teleológica, eudaimonista e centrada na

idéia de virtude como o hábito de concretizar através da ação

o meio-termo entre o excesso e a carência. Vinculada à ética,

a vida em sociedade é pensada como uma necessidade natural

do homem. No entanto, embora afi rme que todo ser humano

necessite do convívio social, Aristóteles defende ser conveniente

que o exercício da cidadania plena e da deliberação política

se restrinja a uma minoria efetivamente capaz de exercer tais

atividades.

Aristóteles defende a importância da obra de arte enquanto

purifi cadora das nossas emoções, mesmo quando ela deixa de

pautar-se por um compromisso com a verdade.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Atividades de auto-avaliação

Ao fi nal de cada unidade, você realizará atividades de auto-avaliação. O gabarito está disponível no fi nal do livro-didático. Mas se esforce para resolver as atividades sem ajuda do gabarito, pois, assim, você estará promovendo (estimulando) a sua aprendizagem.

1. Aprendendo grego

Escreva a tradução para o português das palavras e expressões seguintes:

a) Aísthesis:

b) Aitia:

c) Empeiría:

d) Episteme:

e) Eudaimonía:

f) Hylé:

g) Hypokeimenon:

h) Kátharsis:

i) lógos apophantikos:

j) mímesis:

k) mnemosyne:

l) morphé:

m) órganon:

n) ousía:

o) phantasía:

p) poíesis:

q) práxis:

r) próte philosophia:

s) psykhé:

t) synolos:

u) téchne:

v) télos:

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História da Filosofi a I

Unidade 5

2. Preencha o quadro a seguir identifi cando as causas dos seres indicados:

Ser Causa Material Causa Formal Causa Efi ciente CausaFinal

Livro

Óculos

Capacete

Flor

Suor

Grão de areia

Calendário

Universo

Pólis

Ser humano

3. Responda às questões e, em seguida, localize as respostas no caça-palavras.

a) Cidade natal de Aristóteles

b) Nome do pai e também de um dos fi lhos de Aristóteles

c) Rei da Macedônia que contratou Aristóteles para cuidar da educação de seu fi lho

d) Aluno de Aristóteles que mais tarde se tornou um grande imperador

e) Escola fundada por Aristóteles

f) Cidade em que fi cava a escola de Aristóteles

g) Forma como os alunos do Liceu eram chamados

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176

Universidade do Sul de Santa Catarina

h) As quatro causas

i) Os três princípios

j) Forma mais elementar do raciocínio, segundo a Lógica aristotélica

k) O objetivo da prática da virtude

A O U I M Q E A I A A I F O S O L I F

R Z D T R K S Z H O I G I E E F O R P

I L S I L O G I S M O R L R L S C V N

S N R K P G T F R A F A I D L I S O D

T R S A C U L O X V I I P O T S I R E

O T H E I C F L Z A A L E X A N D R E

T O G O N N A H I D L U Q E A P O Z L

E S T A G I R A I C A I A S Z M Z F O

L T I P G C A A F M Z A E R I P U O J

E I F O X O M U E O H I F E O A O R M

S O T S I M O M L R L A I R E T A M A

A R H I P A F F I U A F C Z D T I A P

C U L O X C X E C O C F I N A L L L R

X O M T K O E S I X Z N E D R K S Z O

X Z A O S S R D D A E A N I M P G A I

T I E D C E M H A A I S T A L I A I A

U D H E H O U L D A X Q E M E D E I D

O E I R A D A P E D E D A L N O V F O

U N O H T A R M R I I R K I Q H O U I

Z T A P E R I P A T E T I C O S I E R

P I R E N O S Z O D E T E E K S Z Z T

I D S R A R T I E L X E T U R R I R E

C A N S S I A N T E M L U P D T F M I

A D O F Q N A O C O N T R A D I Ç A O

T E R C E I R O E X C L U I D O D M E

Page 177: História da Filosofia Antiga

177

História da Filosofi a I

Unidade 5

4. Identifi que no texto a seguir as passagens em que Aristóteles se refere a cada um dos cinco graus do conhecimento da realidade.

Metafísica - Livro I - Capítulo 1

Todos os homens, por natureza, desejam conhecer. Sinal disso é o prazer que nos proporcionam os nossos sentidos; pois, ainda que não levemos em conta a sua utilidade, são estimados por si mesmos; e, acima de todos os outros, o sentido da visão. Com efeito, não só com o intento de agir, mas até quando não nos propomos a fazer nada, pode-se dizer que preferimos ver a tudo mais. O motivo disso é que, entre todos os sentidos, é a visão que põe em evidência e nos leva a conhecer maior número de diferenças entre as coisas.

Os animais são naturalmente dotados da faculdade de sentir, e, em alguns deles, a sensação gera a memória, ao passo que, em outros, isso não acontece. Em conseqüência, os primeiros são mais inteligentes e mais aptos para aprender que aqueles que não possuem memória; os que não têm a capacidade de ouvir sons são inteligentes, embora não possam ser ensinados: sirva de exemplo a abelha e qualquer outra raça de animais que se assemelhe a ela; e os que, além da memória, também possuem o sentido da audição, podem ser ensinados.

Os outros animais vivem de aparências e reminiscências, carecendo completamente de experiência concatenada; mas a raça humana vive também pela arte e pelo raciocínio. Nos homens, a memória gera a experiência, pois as diversas recordações da mesma coisa acabam por produzir a capacidade de uma só experiência. E esta se parece muito com a ciência e a arte, mas, na realidade, a ciência e a arte nos chegam através da experiência; porque “a experiência fez a arte”, como diz Pólo, “e a inexperiência fez o acaso”. Ora, a arte surge quando, de muitas noções fornecidas pela experiência, se produz em nós um juízo universal a respeito de uma classe de objetos [...]

No que se relaciona com a ação, a experiência não parece ser em nada inferior à arte, e os homens experimentados têm até melhor êxito do que aqueles que possuem a teoria sem a experiência. (A razão disso é que a experiência é o conhecimento do particular e a arte, do universal; [...]) Apesar disso, pensaremos que a ciência e a compreensão pertencem

continua

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178

Universidade do Sul de Santa Catarina

antes à arte do que à experiência, e julgamos os teóricos mais sábios do que os empíricos [...]. Com efeito, os empíricos sabem que a coisa é assim, mas ignoram o porquê, enquanto os outros conhecem o porquê e a causa. Pelo mesmo motivo, temos maior estima pelos mestres de qualquer arte do que pelos obreiros e os consideramos mais sábios e mais conhecedores, no verdadeiro sentido da palavra, do que estes últimos, porque conhecem as causas do que se faz. [...] E assim, nós julgamos os mestres mais sábios que os obreiros não por terem a capacidade de agir, mas por possuírem a teoria e conhecerem as causas. E, em geral, é indício do homem que sabe e do que não sabe a aptidão do primeiro para ensinar, e daí julgarmos que a arte é um conhecimento mais genuíno do que a experiência, pois são os teóricos, e não os empíricos, que podem ensinar.

Por outro lado, não identifi camos nenhum dos sentidos com a Sabedoria, se bem que eles nos proporcionem o conhecimento mais fi dedigno do particular. Não nos dizem, contudo, o porquê de coisa alguma – por exemplo, por que o fogo é quente; só nos dizem que é quente.

É natural, pois, que o primeiro inventor de qualquer arte que fosse além das sensações comuns da humanidade se tornasse alvo da admiração dos homens, não só pela utilidade que tinham as invenções, mas por ser reputado sábio e superior aos demais. À medida, porém, que foram sendo inventadas novas artes, algumas das quais tinham em mira as necessidades da vida e outras o prazer, é natural que os inventores das segundas fossem considerados mais sábios que os das primeiras, porque os seus ramos de conhecimento não visam à utilidade. Daí resulta que, uma vez estabelecidas todas essas invenções, foram descobertas as ciências que não têm por objeto nem o prazer nem a utilidade; e isso aconteceu primeiro naqueles lugares em que os homens começaram a desfrutar do ócio. Eis aí porque as artes matemáticas foram criadas no Egito, onde o ócio era permitido à casta sacerdotal.”

Fonte: (Metafísica, 1969, A, I, 980 a – 981 b 25, p. 36-38).

Page 179: História da Filosofia Antiga

179

História da Filosofi a I

Unidade 5

Saiba Mais

Se você desejar, aprofunde os conteúdos estudados nesta unidade,

consultando as seguintes referências:

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova

Cultural, 1987.

ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Nova Cultural,

1999.

CHAUI, Marilena de Sousa. Introdução à história da

fi losofi a: dos pré-socráticos a Aristóteles. 2. ed. rev.,

ampl. e atual. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

v. 1.

MORRALL, John B. Aristóteles. Brasília: UnB, 2000.

STRATHERN, Paul. Aristóteles 384-322 a.C. em 90

minutos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

Page 180: História da Filosofia Antiga
Page 181: História da Filosofia Antiga

UNIDADE 6

O período helenístico

Objetivos de aprendizagem

Identifi car as principais etapas de desenvolvimento da fi losofi a helenística.

Diferenciar as principais escolas do helenismo.

Identifi car os principais representantes de cada escola.

Identifi car os principais conceitos de cada fi lósofo estudado.

Compreender os avanços e os limites de cada teoria.

Compreender os fatores históricos e políticos que condicionaram o desenvolvimento tardio da fi losofi a grega.

Seções de estudo

Seção 1 O desaparecimento da pólis e a reinvenção do homem grego

Seção 2 Os cínicos

Seção 3 O ceticismo

Seção 4 O epicurismo

Seção 5 O estoicismo

Seção 6 O sentido geral do período helenístico

6

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Universidade do Sul de Santa Catarina

Para início de estudo

Após o seu apogeu, ocorrido em Atenas com Sócrates, Platão e

Aristóteles, a fi losofi a grega passa por transformação profunda

nos séculos que se seguiram ao domínio de Alexandre sobre uma

imensa parte do mundo civilizado. Vamos ver a seguir um breve

panorama das principais escolas fi losófi cas dessa época e de seus

representantes mais ilustres.

SEÇÃO 1 - O desaparecimento da pólis e a reinvenção do homem grego

A partir do século IV a.C., a cultura clássica sofre uma

considerável mudança de rumo. O contexto histórico e cultural

modifi ca-se rapidamente, dando início a um período que durará

aproximadamente mil anos. Essa nova fase da cultura ocidental é

conhecida como período helenístico e se estende até o século V

depois de Cristo.

Atenção!

Nesse período, a fi losofi a sofre uma profunda reformulação: os sistemas de Platão e Aristóteles já não atendem às necessidades dos grandes intelectuais da época e é preciso buscar novas formas de pensar a realidade.

Para compreender como e por que surgem as fi losofi as

helenísticas, é conveniente traçarmos um breve esboço do

contexto histórico que levou ao seu fl orescimento.

Contexto histórico

Em 490 a.C., um grande número de cidades-Estado gregas se

uniram na luta contra a invasão dos persas. Após a vitória dos

gregos, começa uma disputa interna entre Atenas e Esparta, na

busca do controle econômico e militar sobre as demais cidades-

Estado. A partir do ano 431 a.C., essa disputa se transforma

em uma guerra (a guerra do Peloponeso). Essa guerra abalou

o sentimento de unidade dos gregos e consumiu recursos

Page 183: História da Filosofia Antiga

183

História da Filosofi a I

Unidade 6

humanos e econômicos e, por fi m, acabou deixando toda a Grécia

vulnerável.

O rei da Macedônia, um país até então pouco expressivo, situado

ao norte da Grécia, aproveita-se dessa situação e dá início a uma

campanha expansionista. Uma a uma, as cidades-Estado gregas

foram sendo conquistadas e anexadas pela Macedônia, que,

rapidamente, se torna um grande império. Em poucas décadas,

os três reis que se sucederam no trono da Macedônia – Amintas,

Filipe e Alexandre – construíram um império colossal, que

englobava a Grécia, o Egito e todo o Oriente Médio, chegando

aos limites da Índia.

No apogeu desse imenso império, a cultura grega passa a infl uenciar de modo marcante a forma de pensar a política, e mesmo a compreensão da realidade, do universo e do ser humano, nas nações conquistadas por Alexandre. Nesse contexto, o termo “helenismo” designa o processo de difusão generalizada da cultura grega para além das fronteiras geográfi cas da Grécia.

Mais tarde, a cultura helenística foi incorporada pelos intelectuais

da nobreza romana e disseminada por toda a Europa ocidental.

Dessa forma, a produção fi losófi ca do Império Romano acaba

sendo uma continuação daquela iniciada na Grécia, nos tempos

de Alexandre, sem nenhuma inovação signifi cativa.

Saiba mais sobre o período helenístico!

No período helenístico, a língua grega, sob a forma do dialeto Koiné (comum), se estabelece como um instrumento de universalização da cultura. É por este motivo que o Novo Testamento foi escrito em Koiné – para que a mensagem de Cristo pudesse alcançar o mundo todo.

Nesse contexto histórico, a pólis grega, enquanto unidade

política autônoma, deixa de existir. Com o fi m da democracia

grega, a forte ligação entre o cidadão e a pólis é quebrada, e o

indivíduo percebe-se cada vez mais como uma parte minúscula

e insignifi cante de um império gigantesco. O homem grego

precisou reinventar-se.

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184

Universidade do Sul de Santa Catarina

A Autarcia

Os gregos formavam um povo que, acima de tudo, amava a

liberdade. Vivendo em um grande império, essa liberdade deixa

de ter um sentido político e passa a ter, cada vez mais, uma

conotação individual. Ganha força, então, a noção de autarcia

(autárkheia).

Embora não tivesse acesso à esfera mais elevada das decisões,

o cidadão grego gozava de uma liberdade política nunca antes

desfrutada. Com o império, sua ação era limitada muito mais por

instituições políticas concebidas de forma racional do que pelas

exigências arbitrárias de algum governante inebriado pelo poder.

O homem grego tornara-se cosmopolita, podendo deslocar-

se, a seu bel-prazer, para qualquer parte do mundo conhecido;

havia liberdade para cada um escolher sua própria religião e, até

mesmo, para não seguir nenhum preceito religioso.

Contudo o homem grego não se sente livre. A prosperidade

econômica permite-lhe compreender que a riqueza, por si só, não

é sufi ciente para produzir a felicidade. O acesso a novas culturas

mostra que, por mais requintadas que sejam as teorias fi losófi cas,

elas não passam de construções humanas.

O homem sente, de uma forma cada vez mais premente, que é

limitado, que sua vida é efêmera e que seu poder para alterar a

ordem do mundo é insignifi cante. A morte precoce de Alexandre,

o homem mais poderoso que já existira sobre a face da Terra, só

reforçou essa percepção.

Como ser feliz?

Curiosamente, a resposta dada pelos gregos a essa pergunta, em todas as épocas, sempre foi a mesma: - Sendo livre.

A pergunta relevante agora é: - Como ser livre?

Ataraxia

Embora tenham surgido diversas correntes fi losófi cas no período

helenístico, há um ponto em comum entre elas: a tese de que a

felicidade é alcançada quando conquistamos a tranqüilidade

interior.

A palavra grega autárkheia é formada pelos vocábulos autos (si mesmo) e arkeo (ser sufi ciente). Literalmente tem o sentido de auto-sufi ciência.

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História da Filosofi a I

Unidade 6

A felicidade não é um estado passageiro, nem é fruto das

circunstâncias; ela é uma conquista.

Quando temos tudo o que queremos, quando não tememos o

futuro e quando estamos satisfeitos, aí então somos felizes. E,

principalmente, quando alguém descobre que a sua satisfação

depende apenas de suas próprias atitudes e escolhas, a felicidade

torna-se palpável.

Mas será que isso é possível?

Sim. Para aqueles que buscam a sabedoria, isso é possível.

Qual é, então, o caminho para alcançar esse pleno e permanente estado de realização?

O primeiro passo é perceber que a felicidade não depende do ter,

e sim do ser.

Quanto mais bens alguém possui, mais deseja conquistar. Os

grandes prazeres são efêmeros e fugazes. O desejo de posse nos

torna pessoas frustradas e infelizes.

O verdadeiro caminho para alcançar uma satisfação plena e

duradoura é o da construção da paz interior.

A verdadeira felicidade é a ataraxia, ou seja, a imperturbabilidade da alma.

Até aqui, todos os fi lósofos do helenismo concordam.

Como alcançar a ataraxia?

Page 186: História da Filosofia Antiga

186

Universidade do Sul de Santa Catarina

Mas, a partir daqui, surgem propostas diferentes. No período

helenístico, vamos encontrar, basicamente, quatro respostas

diferentes para essa questão. Cada uma dessas respostas produziu

uma nova postura fi losófi ca: o cinismo, o ceticismo, o hedonismo

e o estoicismo. São essas quatro linhas de pensamento que vamos

conhecer mais detalhadamente agora.

SEÇÃO 2 - Os cínicos

Desde a sua origem, com Tales de Mileto, até o seu auge,

alcançado em Atenas com Sócrates, Platão e Aristóteles,

a fi losofi a esteve restrita às elites gregas. Embora muitos

fi lósofos tenham levado uma vida simples e sem ostentação,

eles nunca se afastaram, de fato, dos círculos sociais da

aristocracia. O primeiro a fazer isso foi Antístenes de

Atenas.

Antístenes (444 - 371 a.C.) foi discípulo de Sócrates. Com

a morte do mestre e com a submissão de Atenas a Esparta,

Antístenes cria aversão aos valores da aristocracia ateniense.

A partir de então, radicaliza algumas idéias que haviam

sido sugeridas por Sócrates e as transforma nos pontos

fundamentais de uma nova proposta fi losófi ca.

A primeira idéia é a de autarcia, a capacidade de bastar-se a si mesmo, de não depender dos outros ou da posse de bens materiais para ser feliz. A outra idéia, complemento da primeira, é a de autodomínio: a capacidade de suportar a dor, o cansaço e a privação. Essas duas idéias já eram defendidas moderadamente por Sócrates e por Platão, mas Antístenes as leva ao extremo. A ética de Antístenes se baseia na fuga dos prazeres, no combate aos desejos e no esforço voltado a alcançar a insensibilidade ao sofrimento.

Antístenes criticava Platão, por julgar inútil o aprofundamento

teórico produzido na Academia. Para ele, a preocupação com

os aspectos práticos da vida era mais fundamental do que o

refi namento da especulação lógico-conceitual. Baseando suas

explicações em analogias simples, Antístenes costumava expor

e discutir suas idéias em um ginásio chamado Kynosarge (cão

Figura 6.1 – Antístenes.Fonte: <www.educ.fc.ul.pt/.../images/Antistenes.JPG>.

Page 187: História da Filosofia Antiga

187

História da Filosofi a I

Unidade 6

ágil). Daí saiu a alcunha de kynikoi (aqueles que são como os

cães) dada aos seus seguidores. É claro que também contribuiu

com o surgimento desse apelido o desprezo dos seus discípulos

pelos prazeres considerados tipicamente humanos por seus

contemporâneos.

Atenção!

Antístenes e seus seguidores não eram cínicos no sentido atual da palavra.

Pelo contrário, eles faziam questão de ser o exemplo vivo das idéias que defendiam.

Entre os discípulos de Antístenes, o mais famoso foi Diógenes

de Sínope, mais conhecido como Diógenes - o cínico. Por suas

atitudes radicais e pitorescas, o discípulo acabou se tornando mais

conhecido que o próprio mestre. Acredita-se que ele tenha escrito

algumas obras, mas delas não sobraram sequer fragmentos.

Atenção!

Não confunda o fi lósofo cínico Diógenes de Sínope com o historiador da fi losofi a Diógenes Laertius.

Existem várias histórias a respeito de Diógenes,

o cínico. Conta-se que vivia na rua e morava em

um velho barril. Entre os poucos objetos que

possuía, estava um lampião que ele usava durante

o dia, quando saía pelas ruas gritando no meio

da multidão: “Procuro o homem!”. Segundo a

interpretação mais usual dessa frase, Diógenes

buscava o homem em sua essência mais pura,

algo que se havia perdido com a cultura e com as

convenções da vida social.

Conta-se também que, certa vez, o imperador

Alexandre parou diante de Diógenes que tomava sol junto ao seu

barril. Alexandre lhe perguntou o que mais desejava. A resposta

foi desconcertante: “Não me tires o que não podes me dar!”,

insinuando que o grande imperador estava, com sua sombra,

atrapalhando o seu banho de sol.

Figura 6.2 – Diógenes de Sínope.Fonte: <www.mlahanas.de/.../

images/DiogenesJLGerome.jpg >.

Page 188: História da Filosofia Antiga

188

Universidade do Sul de Santa Catarina

Diógenes se empenhou em demonstrar que a natureza nos coloca à disposição tudo o que realmente precisamos para vivermos felizes. Defendia a liberdade sexual e a abolição de todas as normas. Para ele, o Estado, as leis, o dinheiro, a propriedade, o casamento e tantas outras invenções antinaturais só afastam cada vez mais o ser humano da felicidade.

A proposta cínica da busca da autarcia e do autodomínio e de

desprezo pela abstração teórica desvinculada da utilidade prática

infl uenciou profundamente as novas escolas fi losófi cas que

surgiram no período helenístico. No entanto o radicalismo em

relação às convenções sociais contribuiu para o enfraquecimento

da escola de Antístenes após a morte de seu fundador e de seu

mais célebre discípulo.

SEÇÃO 3 - O ceticismo

O ceticismo é uma das doutrinas que surgem no período

helenístico, voltadas para a obtenção da tranqüilidade da alma.

A principal tese dos fi lósofos céticos é a de que, para alcançar

a tranqüilidade, é preciso controlar nosso desejo de ter certezas

absolutas.

Pode-se dizer que a idéia de que o ser humano não é capaz de

alcançar a certeza

Absoluta jamais faz parte da própria essência da fi losofi a antiga.

No entanto, ainda que saiba que jamais a alcançará, o fi lósofo é

aquele que não consegue deixar de desejar e de buscar a verdade.

A busca da sabedoria (ou seja, a própria fi losofi a) pode ser

interrompida de duas formas, quando alguém:

perde a esperança de encontrar a verdade e passa a

considerar a essa busca como irracional; ou,

pensa que fi nalmente encontrou a verdade e que a busca

já não é mais necessária.

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História da Filosofi a I

Unidade 6

No primeiro caso, o objeto do desejo do fi lósofo é visto como

inalcançável. Sua vida estaria fadada a ser, inevitavelmente,

frustrante. A única saída para alcançar a felicidade seria aniquilar

o desejo de conhecer a verdade.

No segundo caso, tem-se a impressão de que a sede de saber

é saciada por alguma teoria sofi sticada, ou por elaborações

metafísicas engenhosas. Mas isso, segundo os céticos, é o

extremo oposto da fi losofi a: isso é ingenuidade.

Ceticismo: nem desespero, nem consolo.

Aristóteles havia proposto em sua ética a escolha do meio-termo

entre o excesso e a carência, como caminho para a felicidade.

Os céticos propõem que se aplique esse preceito do meio-termo

também à nossa sede de saber.

A proposta do ceticismo é exatamente essa: diminuir e orientar

a nossa necessidade de ter certezas e, principalmente, tomar

cuidado para não se deixar iludir por falsas certezas.

Na introdução da sua obra Hipotiposes Pirrônicas, o fi lósofo Sexto

Empírico descreve assim a posição cética:

O resultado natural de qualquer investigação é que

aquele que investiga ou bem encontra o objeto de sua

busca, ou bem nega que seja encontrável e confessa ser

ele inapreensível, ou ainda, persiste na sua busca. O

mesmo ocorre com os objetos investigados pela fi losofi a,

e é provavelmente por isso que alguns afi rmam ter

descoberto a verdade, outros, que a verdade não pode

ser apreendida, enquanto outros continuam buscando.

Aqueles que afi rmam ter descoberto a verdade são

os ‘dogmáticos’; assim são chamados especialmente,

Aristóteles, por exemplo, Epicuro, os estóicos e alguns

outros. Clitômaco, Carnéades e outros acadêmicos

consideram a verdade inapreensível, e os céticos

continuam buscando. Portanto parece razoável sustentar

que há três tipos de fi losofi a: a dogmática, a acadêmica e

a cética. (Apud MARCONDES, 2001, p. 93-94)

Ou seja, o ceticismo, enquanto escola fi losófi ca do período

helenístico, não prega a impossibilidade do conhecimento. Mas

também acha que é ingenuidade ou falta de senso crítico se

contentar com os resultados já alcançados.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

A escola cética foi fundada por Pirro de Élis (365 – 270

a.C.). Pirro, que segundo algumas fontes era fi lósofo e pintor,

acompanhou Alexandre em sua campanha de conquista

ao Oriente. Nessa viagem, teria entrado em contato com

gimnosofi stas (os sábios nus), provavelmente mestres iogues. De

volta a Élis, viveu de forma simples, afastado das preocupações

mundanas.

Pirro defendia três princípios fundamentais para a obtenção da tranqüilidade: a apraxia (inação), a aphasia (ausência de discurso), apathia (insensibilidade frente ao prazer e à dor). Através da aplicação desses princípios práticos, seria possível alcançar a ataraxia (imperturbabilidade) e, conseqüentemente, a eudaimonia (felicidade).

Dos cínicos, Pirro mantém a rejeição à abstração teórica

desvinculada da utilidade prática. Além disso, a apathia também

pode ser considerada como uma retomada do princípio de

autodomínio. Mas isso não implica um abandono da vida prática

ou uma ruptura com as convenções sociais, como pregavam os

cínicos. Se o objetivo da fi losofi a deve ser sempre a busca da

ataraxia, o caminho apontado pelo ceticismo é o da moderação e

da manutenção do senso crítico.

Atenção!

Tome cuidado para não confundir o fi lósofo cético Pirro de Élis com o grande general macedônio Pirro de Épiro.

SEÇÃO 4 - O epicurismo

Também chamada de hedonismo e de fi losofi a do jardim, o

epicurismo é outra doutrina fi losófi ca que surge no período

helenístico, voltada para a obtenção da serenidade interior.

A principal tese dos fi lósofos epicuristas é a idéia de que, para alcançar a tranqüilidade, é preciso cultivar o prazer. Os princípios fundamentais do epicurismo são a amizade, a moderação, o livre arbítrio e a indiferença à morte e aos deuses.

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História da Filosofi a I

Unidade 6

Epicuro, o fundador da escola que tomou o seu

nome, nasceu em Samos, em 341 a.C., e morreu em

Atenas, em 270 a.C., aos setenta anos de idade. Há

relatos de que teria sido aluno de Pânfi lo, um fi lósofo

ligado à Academia, e de Nausífanes, discípulo de

Demócrito.

Em 306 a.C., após lecionar em Cólofon, Mitilene

e Lâmpsaco, Epicuro transfere-se para Atenas,

onde funda a sua escola. Embora estivesse situada

no grande centro econômico e cultural do mundo

da época, em que funcionavam as duas maiores

escolas de fi losofi a (a Academia e o Liceu), a escola

de Epicuro estava instalada numa propriedade

afastada do centro da cidade, num local tranqüilo

e acolhedor, e o distanciamento da vida urbana e a

integração com a natureza favoreciam a introspecção. Por sua

beleza natural, a propriedade que abrigava a escola passou a ser

chamada de jardim (képos), e Epicuro e seus seguidores muitas

vezes são referidos como os fi lósofos do jardim.

Epicuro escreveu diversas obras, mas a maior parte não chegou

até nós. Restaram apenas algumas cartas, coleções de frases

memoráveis e alguns fragmentos de seus tratados. A principal

obra do epicurismo que chegou completa até os nossos dias é A

Natureza das Coisas (De Rerum Natura), escrita por Tito Lucrécio

Caro, um epicurista do século I a.C.

Para o epicurismo, a fi losofi a é constituída de três partes que se articulam. Em primeiro lugar, a teoria do conhecimento, que permitiria identifi car nossas crenças infundadas e auxiliar a reconhecer a verdade. Em segundo lugar, a física deveria mostrar a verdadeira estrutura da realidade na qual o homem se insere. Por fi m, teríamos a ética, que deveria indicar um caminho para a felicidade. A fi losofi a assim concebida deveria constituir-se na fundamentação racional que permitisse ao indivíduo tornar-se um artesão de sua própria vida, alguém capaz de “confeccionar” sua própria felicidade.

Figura 6.3 – Epicuro.Fonte: <www.consciencia.org/.../

pictures3/epicuro.jpg>.

Page 192: História da Filosofia Antiga

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Universidade do Sul de Santa Catarina

A teoria do conhecimento epicurista (também chamada de

canônica) é um empirismo radical. Totalmente oposta à tese

eleática e platônica segundo a qual a experiência sensível é

fonte de ilusão e erro, Epicuro propõe a sensação como critério

fundamental para o conhecimento da verdade.

Para Epicuro, a sensação é o único conhecimento legítimo.

Somente ela capta, de forma infalível, o ser.

A partir desse critério fundamental, nossos juízos poderiam ser

avaliados de duas formas:

quando o juízo se refere a algo observável através dos

sentidos, o critério é a concordância entre o juízo e os

fenômenos sensíveis correspondentes;

quando o juízo envolve fenômenos não-observáveis,

o critério passa a ser a ausência de contradição com

os dados fornecidos pela experiência (critério da não-

infi rmação).

Infl uenciada pelas idéias de Demócrito, a física de Epicuro é atomista e materialista. Partindo do critério da não-infi rmação, Epicuro defende que a teoria atomista, segundo a qual tudo é constituído de átomos que se movem no vazio, é a que melhor explica o movimento.

Como os átomos de Demócrito e Leucipo, os átomos da física

epicurista diferem uns dos outros apenas pela forma, pelo

tamanho, pela posição e pela ligação a outros átomos. No entanto

Epicuro introduz duas novas distinções: os átomos seriam

diferentes também quanto ao peso e teriam uma capacidade

intrínseca de provocar desvios em seu movimento.

É o peso, e não a forma, que faz com que os átomos estejam

eternamente caindo dentro de um vazio cósmico. Nessa queda,

no entanto, os átomos podem sofrer desvios de direção (clinámen).

Os choques entre átomos, decorrentes desses desvios, é que

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História da Filosofi a I

Unidade 6

possibilitariam, segundo essa teoria, a formação de aglomerados,

gerando a matéria.

Assim, o clinámen seria a fonte primordial do devir.

Embora esta teoria pareça, à primeira vista, um pouco “forçada”,

Epicuro vê nela as seguintes vantagens:

respeita o critério de não-infi rmação;

é uma teoria essencialmente materialista, totalmente

purifi cada de qualquer conotação mítica ou sobrenatural;

não reduz o cosmos a um mecanicismo determinista, o

que deixa espaço para o livre arbítrio e para a ética.

A ética epicurista

A ética é a parte central da fi losofi a epicurista. Para Epicuro, a

fi losofi a deveria servir como via de acesso à verdadeira felicidade.

Por isso, em primeiro lugar, a fi losofi a deve libertar a alma humana do medo provocado por crenças infundadas. Em segundo lugar, deveria proporcionar a serenidade de espírito, construída através da autarcia. E, por fi m, a fi losofi a deveria auxiliar o homem a alcançar uma vida agradável através de uma orientação racional, para a obtenção do prazer.

A ética epicurista é hedonista, ou seja, é baseada na idéia de que

o prazer é um bem a ser buscado pela ação virtuosa. Vazquez

(1984, p. 242) resume a ética epicurista assim:

Para os epicuristas, tudo o que existe, incluindo a alma, é

formado de átomos materiais que possuem certo grau de

liberdade, na medida que se podem desviar ligeiramente

na sua queda. Não há nenhuma intervenção divina nos

fenômenos físicos nem da vida do homem. Libertado

assim do temor religioso, o homem pode buscar o bem

neste mundo (o bem, para Epicuro, é o prazer). Mas

há muitos prazeres, e nem todos são igualmente bons.

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Universidade do Sul de Santa Catarina

É preciso escolher entre eles para encontrar os mais

duradouros e estáveis, que não são os corporais (fugazes e

imediatos), mas os espirituais; isto é, os que contribuem

para a paz da alma.

A busca do prazer (hedoné) é um dos pontos mais fundamentais

da ética epicurista. No entanto, como nos explica Pessanha (1980,

p. XII), o ser humano precisa saber escolher os seus prazeres:

Enquanto ser natural, o homem - como os animais -

pauta sua vida, espontaneamente, pela procura do prazer

e pela fuga da dor. Mas a verdadeira sabedoria está além

desse comportamento natural e espontâneo: sábio é

reconhecer que há diferentes tipos de prazer, para saber

selecioná-los e, dosá-los. [...] Epicuro considera que todo

prazer é basicamente um prazer corpóreo. Mas o prazer

que o homem deve buscar não é o da pura satisfação

física imediata e mutável, o “prazer do movimento”. Para

Epicuro, o prazer que deve nortear a conduta humana

- o prazer com dimensão ética e não apenas natural - é o

“prazer do repouso”, constituído pela ataraxia (ausência

de perturbação) e pela aponia (ausência de dor). Ambas

podem ser alcançadas na medida que o homem, através

do autodomínio, busque a auto-sufi ciência que o torne

um ser que tem em si mesmo sua própria lei, um ser

autárquico, capaz de ser feliz e sereno independentemente

das circunstâncias.

Outro ponto fundamental da ética epicurista é a importância atribuída à amizade. É só a partir do convívio e da amizade que se pode alcançar a verdadeira felicidade obtida através do compartilhamento dos pequenos prazeres da alma.

Vencido o temor em relação ao sobrenatural (serenidade

espiritual) e alcançada a autarcia (serenidade física), Epicuro

propõe o cultivo da amizade e a busca de prazeres moderados

como o ponto alto da busca da felicidade.

A fi losofi a de Epicuro exerceu grande infl uência já em sua época

e até hoje pauta a refl exão ética e sobre o sentido da existência

humana. O epicurismo é uma fi losofi a da vida e, principalmente,

uma fi losofi a que, mais que compreendida, surgiu para ser

vivenciada.

Page 195: História da Filosofia Antiga

195

História da Filosofi a I

Unidade 6

SEÇÃO 5 - estoicismo

O estoicismo foi a mais infl uente das escolas helenísticas, a que

teve maior número de seguidores e a que perdurou como tradição

intelectual por mais tempo. Foi também a mais universalista das

escolas helenísticas.

A história do Estoicismo inicia em 300 a.C., quando

Zenão de Cítio funda uma escola em Atenas. Nascido

em Chipre, Zenão não era cidadão ateniense e, pela

lei vigente, os estrangeiros não podiam adquirir

propriedades em Atenas. Sem ter onde estabelecer sua

escola, Zenão dava suas aulas em locais públicos de

Atenas. O local preferido era um pórtico (estoá) e, por

esse motivo, Zenão e seus seguidores passaram a ser

chamados de fi lósofos do pórtico ou fi lósofos estóicos.

A escola estóica se desenvolveu em três períodos bem

distintos. Conheça-os.

Antiga Estoá – protagonizada por Zenão

de Cítio (332 – 262 a.C.), Cleantes de Assos

(331 – 232 a.C.) e Crísipo de Solis (280 – 206 a.C.).

Nesse período, a fi losofi a estóica é elaborada como um

sistema completo. Foi o período de maior esplendor do

estoicismo, e nenhuma outra escola teve tanto sucesso

durante esse período. Após a morte de Crísipo, a escola,

aos poucos, foi perdendo o seu prestígio em Atenas.

Média Estoá – protagonizada por Panécio de Rhodes

(185 – 129 a.C.) e Possidônio de Apanca (c.135 – 51

a.C.). Ao assumir a direção da escola, Panécio introduz

no estoicismo algumas idéias de outros fi lósofos. Essa

versão eclética da doutrina estóica faz a escola reviver

seus dias de glória. Possidônio, discípulo de Panécio,

funda uma nova escola em Rhodes, que também obteve

grande sucesso.

Estoá romana ou Nova Estoá – protagonizada por

Sêneca ( 2 a.C. – 65 d.C.) e Marco Aurélio (121 – 180

d.C.) difundem, principalmente, a ética do estoicismo.

1.

2.

3.

Figura 6.4 – Zenão de Cítio.Fonte: <ummundomagico.blogs.sapo.

pt/.../zenao_citio.jpg>.

Page 196: História da Filosofia Antiga

196

Universidade do Sul de Santa Catarina

O estoicismo surge como uma supervalorização da razão. A idéia de que nada no universo pode ser superior à razão é o núcleo do estoicismo. Todas as outras idéias que compõem a doutrina estóica são decorrências dessa tese fundamental.

A fi losofi a estóica constitui-se num sistema baseado em duas

teses fundamentais, na verdade duas faces de uma mesma moeda:

tudo no universo é dotado de razão;

nada existe no universo que não seja matéria.

A partir dessas duas idéias fundamentais, os estóicos propõem

uma metáfora aplicável a qualquer objeto da natureza: Tudo no

universo se assemelha a um ser vivo, no qual existe um sopro vital

(pneuma) que produz a junção e a interdependência das suas partes.

O próprio universo, como um todo, pode ser pensado como um

grande organismo, dotado de uma alma racional que atua em

cada uma de suas partículas. E assim como os seres vivos possuem

um ciclo vital, tudo no universo passa por fases de geração, crescimento

e corrupção.

A ética estóica

Tudo na natureza é governado pela Razão (Lógos). Essa Razão pode

ser chamada de alma do mundo ou mesmo de Deus. Tudo existe e

acontece segundo uma predeterminação rigorosa. Concebida

desta forma, a natureza é, em si mesma, justa e divina.

Já o homem é justo apenas quando consegue estar em acordo consigo mesmo, isto é, com a sua própria natureza, que é intrinsecamente razão. Assim, de acordo com os estóicos, tudo o que extrapola o domínio puramente racional é antiético.

Aqui surge a grande diferença entre estóicos e epicuristas.

Embora compartilhe vários ideais com o epicurismo, o estoicismo

caracteriza-se principalmente por opor-se à busca do prazer.

Page 197: História da Filosofia Antiga

197

História da Filosofi a I

Unidade 6

Para alcançarmos a tranqüilidade, é preciso que nos tornemos insensíveis ao prazer e à dor. Essa é a tese fundamental da ética estóica.

Na relação com o corpo, a alma humana é capaz de agir de

forma intencional (atividade), mas também está submetida

a interferências não-intencionais, provocadas pela percepção

sensível (paixão).

Eu posso dar um soco em uma parede: afi nal de contas, eu controlo os meus músculos (atividade). No entanto, após ter dado o soco, não depende de uma escolha minha sentir, ou não, a dor (paixão) provocada pelo choque da minha mão contra a parede.

Nossas ações voluntárias são atividades da alma. Os prazeres

e as dores que vivenciamos são paixões. As paixões não

dependem apenas da razão. Elas trazem, portanto, uma dose

de irracionalidade que precisa ser evitada o máximo possível.

Pessanha (1980, p. XVI) explica essa necessidade de supressão

das paixões da seguinte forma:

As paixões são consideradas pelos estóicos como

desobediências à razão e podem ser explicadas como

resultantes de causas externas às raízes do próprio

indivíduo; seriam, como já haviam mostrado os cínicos,

devidas a hábitos de pensar adquiridos pela infl uência do

meio e da educação. É necessário ao homem desfazer-se

de tudo isso e seguir a natureza, ou seja, seguir a Deus e

à Razão Universal, aceitando o destino e conservando a

serenidade em qualquer circunstância, mesmo na dor e na

adversidade.

Viver em conformidade com a razão torna o homem feliz, porque o liberta da escravidão das paixões. O sábio é aquele que não se deixa enganar pelos prazeres, nem se deixa modifi car pela dor. Para o pleno exercício da racionalidade, o prazer é tão pernicioso quanto a dor. Tornar-se insensível tanto ao prazer quanto à dor é uma condição necessária à vida ética.

Page 198: História da Filosofia Antiga

198

Universidade do Sul de Santa Catarina

SEÇÃO 6 - O sentido geral do período helenístico

As fi losofi as do helenismo representam um desenvolvimento

tardio da mentalidade racionalizadora dos gregos.

Sem primar pela originalidade ao tratar da física e do

conhecimento, as diversas escolas buscam seus fundamentos

teóricos nos clássicos (Sócrates, Platão e Aristóteles) ou mesmo

nos pré-socráticos. A grande mudança fi ca por conta do

abandono da política e da reformulação da ética.

No período helenístico, apesar de todas as diferenças entre as diversas escolas, surge uma nova concepção de fi losofi a universalmente compartilhada: a fi losofi a como uma arte do viver. Mais importante que a teoria passa a ser a prática, a vivência.

Apesar de todas as discordâncias, as várias escolas tinham em

comum:

a negação da existência de qualquer ser transcendente à

matéria;

a busca da felicidade através do autodomínio, da autarcia,

do desapego à propriedade, à riqueza e ao luxo e da busca

da serenidade da alma.

Com o surgimento do cristianismo, essas concepções

materialistas passam a enfrentar uma concorrência considerável.

Alguns fi lósofos tentam conciliar com o cristianismo alguns dos

elementos das éticas helenísticas, descolados de suas bases físicas

e metafísicas e de suas respectivas concepções de conhecimento.

Aos poucos, o pensamento laico dos gregos foi perdendo espaço para a mentalidade religiosa judaico-cristã. O golpe fi nal veio em 529, quando o imperador Justiniano, em defesa do cristianismo, proibiu o ensino da fi losofi a em todo o Império Romano, provocando o fechamento de todas as escolas pagãs.

Até hoje, é possível perceber a infl uência das fi losofi as

helenísticas sobre o pensamento ocidental.

Page 199: História da Filosofia Antiga

199

História da Filosofi a I

Unidade 6

Síntese

Na história ocidental, o período helenístico inicia com a difusão

da cultura grega nos países conquistados por Alexandre, o

Grande, e termina com a queda do Império Romano.

Na fi losofi a, este período é marcado por uma reformulação do

próprio sentido do ato de fi losofar, tornando-o numa arte do

viver. A ética e a política, antes indissociáveis, passam a receber

tratamentos opostos: enquanto a refl exão sobre a ação humana,

a liberdade e a felicidade ganha uma posição de destaque, a

discussão de questões como a justiça social e legitimidade dos

governos praticamente desaparece.

O indivíduo passa a ser a principal referência na problematização

da realidade, e a autarcia e a ataraxia tornam-se temas

fundamentais para a fi losofi a.

As principais escolas desse período foram a cínica, a cética, a

epicurista e a estóica.

Os cínicos se destacaram por desprezar todas as convenções

sociais; os céticos, por reconhecerem a impossibilidade da

obtenção da episteme; os epicuristas, por valorizarem o prazer

como um bem a ser buscado; e os estóicos, por pregarem a

indiferença tanto ao prazer quanto à dor.

As fi losofi as helenísticas eram, originalmente, profundamente

materialistas. Mas, após o surgimento do cristianismo, alguns

fi lósofos tentaram conciliar a fi losofi a com a religião.

Na história da fi losofi a, o período helenístico termina em

529, com a proibição do ensino de fi losofi a em todo o Império

Romano.

Page 200: História da Filosofia Antiga

200

Universidade do Sul de Santa Catarina

Atividades de auto-avaliação

Ao fi nal de cada unidade, você realizará atividades de auto-avaliação. O gabarito está disponível no fi nal do livro-didático. Mas se esforce para resolver as atividades sem ajuda do gabarito, pois, assim, você estará promovendo (estimulando) a sua aprendizagem.

1. Elabore um quadro, comparando a ética epicurista com a estóica.

Ética epicurista Ética estóica

Pontos de discordância

Propostas coincidentes

Page 201: História da Filosofia Antiga

201

História da Filosofi a I

Unidade 6

2. Localize no quadro a seguir o nome de dois fi lósofos de cada uma das quatro escolas helenísticas estudadas.

A O U I M Q E A I A I R S Z A I A S Z

R Z D T R K S Z H O I G I E E F O R P

I L S I R O G I L M O R L R L S C V N

S N R K P G T F R A F A I D L I S O D

G R S A C U L O X V I I P O T S I R E

O T H E I C F L Z S E N E T S I T N A

B O G O N N A H I E L U Q E A P O Z L

E S T A H I R A I N A I A S Z M Z F S

L T I P G C A A F E Z A E R I P U O E

E I F O X O M U E G H I F E O A O R X

S O T S I N O M L O L A I R E M A R T

A R H I P A F F I I A F R Z P I R R O

C U L O X C X E B D C F I N C L L L E

X L M T K O E S I X Z N E D R K S Z M

X U A O S S R D D A E A N S M P G A P

T C E D C E M H A A I S Z E N A O I I

U R H E H O U L D A X Q E N E D E I R

O E P I C U R O E D E D A E N O V F I

U C O H T A R M R I I R K C Q H O U C

Z I A P B R I P A T E T I A O S I E O

P O R E N O S Z O D E T E E K S Z Z K

I D S R A R T I E L X E T U R R I R E

Page 202: História da Filosofia Antiga

202

Universidade do Sul de Santa Catarina

Saiba Mais

Se você desejar, aprofunde os conteúdos estudados nesta unidade,

consultando as seguintes referências:

EPICURO et al. Antologia de textos. 2. ed. São Paulo:

Abril Cultural, 1980.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da

fi losofi a: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 6. ed. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da

fi losofi a. Volume I: Antigüidade e Idade Média. São

Paulo: Paulus, 1990.

Page 203: História da Filosofia Antiga

Para concluir o estudoParabéns! Você venceu esta importante etapa de estudo

do livro didático História da Filosofi a I. Tenho certeza

de que agora você sabe um pouco mais sobre a História

da Filosofi a Antiga do que sabia antes. Esse é o objetivo

fundamental desta disciplina.

Num curso de fi losofi a, a disciplina História da Filosofi a

exerce o importante papel de instrumentalizar a análise e

a crítica rigorosa do pensamento. Saber quais caminhos

teóricos já foram trilhados bem como poder conferir

quais foram os resultados alcançados pode servir de

referência, para que cada um construa o seu próprio

percurso fi losófi co.

A história da Filosofi a antiga constitui um tema vasto.

O que vimos aqui foi uma breve introdução, a qual

buscou destacar os principais períodos, escolas, fi lósofos

e conceitos. Muita coisa teve que ser deixada de lado, e a

maior parte dos temas foi tratada de uma forma bastante

superfi cial. No entanto o domínio do conteúdo que

foi trabalhado nesta disciplina já é sufi ciente para lhe

possibilitar um maior rigor em suas refl exões fi losófi cas.

Nas próximas disciplinas do curso, você estudará temas

que o(a) remeterão a questões tratadas nesta disciplina. É

possível, também, que você só compreenda o signifi cado

de certas propostas teóricas dos fi lósofos antigos à

medida que for aprofundando os seus conhecimentos e

aprimorando a sua análise crítica. Por isso mantenha este

livro sempre à mão para consultá-lo toda vez que surgir

alguma dúvida, ou mesmo, para reler algum trecho que

possa ter alcançado uma nova dimensão.

Lembre-se de que você está apenas começando a jornada

fi losófi ca. Mas você já pode se orgulhar de ter dado os

primeiros passos. Tenha uma boa caminhada.

Um grande abraço,

Professor Sérgio Sell.

Page 204: História da Filosofia Antiga
Page 205: História da Filosofia Antiga

Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

______. Política. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

BARNES, Jonathan. Filósofos pré-socráticos. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BORNHEIM, Gerd A. Os fi lósofos pré-socráticos. 5. ed. São Paulo: Cultrix, 1985.

BREHIER, Emile. História da fi losofi a. São Paulo: Mestre Jou, 1986.

BURNET, John. O despertar da fi losofi a grega. São Paulo: Siciliano, 1994.

CHÂTELET, François. História da fi losofi a: idéias, doutrinas. Vol. I — A fi losofi a pagã: do século VI a.C. ao século III d.C. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

CHAUI, Marilena de Sousa. Introdução à história da fi losofi a: dos pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Brasiliense, 1994. v. 1.

______. Introdução à história da fi losofi a: dos pré-socráticos a Aristóteles. 2. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. v. 1.

______. Convite à fi losofi a. São Paulo: Ática, 2000a.

EPICURO et al. Antologia de textos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

GUTHRIE, W K C. Os fi lósofos gregos de Tales a Aristóteles. Lisboa: Presença, 1987.

______. Os sofi stas. São Paulo: Paulus, 1997.

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

KIRK, G. S.; RAVEN, J. E; SCHOFIELD, M. Os fi lósofos pré-socráticos: história crítica com seleção de textos. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da fi losofi a: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 6. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

Page 206: História da Filosofia Antiga

______. Textos básicos de fi losofi a: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

MORRALL, John B. Aristóteles. Brasília: UnB, 2000.

PIETTRE, Bernard. Platão – A República: Livro VII: comentários de Bernard Piettre. São Paulo: Ática, 1989.

PLATÃO. A República. [Os pensadores], São Paulo: Nova Cultural, 1997.

______. A República. Trad., int. e notas de Maria Helena da R. Pereira. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.

______. Diálogos. [Os pensadores], São Paulo: Nova Cultural, 2004.

PLATÃO; XENOFONTE; ARISTÓFANES. Sócrates. [Os pensadores], São Paulo: Nova Cultural, 1996.

REALE, Giovanni. História da fi losofi a antiga. 4. ed. São Paulo: Loyola, 2002.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da fi losofi a. Volume I: Antigüidade e Idade Média. São Paulo: Paulus, 1990.

SOUZA, José Cavalcante de. Os pré-socráticos: fragmentos, doxografi a e comentários. São Paulo: Nova Cultural, 2000.

STRATHERN, Paul. Aristóteles 384-322 a.C. em 90 minutos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

______. Platão, 428-348 a.C., em 90 minutos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

Page 207: História da Filosofia Antiga

Sobre o professor conteudista

Sérgio Sell é Bacharel e Licenciado em Filosofi a e

Mestre em Lingüística pela Universidade Federal

de Santa Catarina (UFSC). Atuou como professor

substituto do Departamento de Filosofi a da UFSC

(1998-1999). Foi professor de Filosofi a da Educação e de

Epistemologia no Curso de Pedagogia da Universidade

do Vale do Itajaí (UNIVALI) - Campus Biguaçu

(2000-2004). Desde 2007, vem atuando também como

professor do ensino médio, na rede pública da Santa

Catarina, lotado na Escola de Educação Básica Irmã

Maria Teresa, em Palhoça. Desde 2000, está vinculado

à UNISUL, onde atua como professor de fi losofi a em

diversos cursos e também como tutor da UnisulVirtual.

Page 208: História da Filosofia Antiga
Page 209: História da Filosofia Antiga

Comentários e respostas dasatividades de auto-avaliação

UNIDADE 1

1)

a) 2 e) 4 b) 6 f) 3 c) 1 g) 6 d) 6 h) 5

2)

a) physis, causalidade, arkhé, kósmos, lógos e caráter crítico.

b) atividade pessoal.

c) resposta pessoal. Uma possível resposta seria a seguinte:

Entre as idéias que aparecem no texto bíblico, de forma semelhante ao modo como são tratadas pelos primeiros fi lósofos, temos a de natureza (mostrada na Bíblia como obra da vontade divina), a de causalidade (sendo Deus a causa primordial). No início do Gênesis ainda não há uma ordem (kósmos) estabelecida. Esta ordem também é criada por Deus. [Fugindo um pouco da questão, vale lembrar que outras partes da Bíblia relatam que Deus, em certas circunstâncias, usa seu poder para quebrar essa ordem (como no caso do dilúvio, das pragas do Egito ou dos milagres de Cristo)]. A idéia de arkhé é totalmente negada pela Bíblia; Deus cria o mundo a partir do nada, não há matéria-prima. Também não há razões envolvidas na criação nem na escolha da forma do universo. Deus escolheu fazer, fez, viu que era bom e descansou. Não há aqui nenhum espaço para justifi cativas racionais. Não há espaço para os porquês. Deus quis e pronto. Neste aspecto, o texto bíblico se confi gura como um relato mítico, oposto ao lógos dos fi lósofos pré-socráticos.

Page 210: História da Filosofia Antiga

210

Universidade do Sul de Santa Catarina

3)

a) arkhé e) aretéb) physis f) kósmosc) lógos g) kháosd) pólis

UNIDADE 2

1)

Jônios Pitagóricos Eleatas Pluralistas Atomistas

TalesAnaximandro AnaxímenesHeráclito

PitágorasFilolau Alcmeon

XenófanesParmênidesZenãoMelisso

EmpédoclesAnaxágoras

LeucipoDemócrito

2)a) verdadeb) ilimitado ou infi nitoc) princípiod) indivisoe) justiçaf) opinião, crençag) ordem, organizaçãoh) discurso, fala, razão

i) discórdiaj) intelectok) tudo fl uil) amizadem) naturezan) combateo) cidade-Estado; micro-paísp) fogo

3)

a) Resposta pessoal. Entre os vários aspectos que podem ser destacados, interessante considerar que os fi lósofos pré-socráticos eram, em sua maioria, pessoas oriundas das classes sociais emergentes, principalmente ligadas ao comércio. Essa nova elite econômica se esforçava para se fi rmar também como elite política. Os fi lósofos desse período, aqueles que entraram para a história, foram pessoas que se destacaram por seus dotes intelectuais e pela habilidade de defender idéias inovadoras. Essas características os habilitavam a participar ativamente das transformações sociais que marcaram o surgimento da democracia.

b) Heráclito possuía prerrogativas reais (era o legítimo herdeiro do trono) em uma época de transição da monarquia para a democracia. O poder do rei havia sido limitado pelo crescente poder das novas elites econômicas. Com a implantação da democracia em Éfeso, Heráclito, que era dotado de uma grande inteligência, provinha de uma família nobre e tinha recebido

Page 211: História da Filosofia Antiga

211

História da Filosofi a I

uma educação requintada, via-se impotente diante do poder de uma massa cuja compreensão era limitada pelo baixo grau de instrução e pela falta de senso crítico.

UNIDADE 3

1) O seguinte quadro pode ser proposto:

Pré-socráticos Sofi stas Sócrates

Tema central a physis a pólis o homem

Disciplina principal física política ética

Idéia de ordenação kósmos nómos lógos

Objetivo fi nal do desenvolvimento intelectual

Busca da verdade(alethéia)

Persuasão, já que tudo é relativo ao sujeito

Ciência (episteme),conhecimento objetivo

2) A Razão, segundo Sócrates, é a capacidade para chegar aos conceitos pela distinção entre aparência sensível e realidade, entre opinião e verdade, entre imagem e conceito, acidente e essência. A razão é o poder da alma para conhecer as essências das coisas.

a) génos g) epistémeb) areté h) kósmosc) physis i) nómosd) agón j) agoráe) eudaimonía k) sophistésf) dóxa

Page 212: História da Filosofia Antiga

212

Universidade do Sul de Santa Catarina

UNIDADE 4

1)

2) Elemento da alma

Parte da alma Parte do corpo Função Virtude Função da pólisMito docarro alado

Superior Elemento racional Cabeça Razão Prudência ou

sabedoriaAdministraçãoe Educação

Cocheiro

Intermediário Elemento irascível Tórax Sentimentos Fortaleza Defesa

Cavalo puro sangue

Inferior Elemento concupiscente

BaixoVentre

Prazer, dor, necessidades corporais

Temperança Produção de bens Cavalo mestiço

Page 213: História da Filosofia Antiga

213

História da Filosofi a I

3)

Palavras Figuras mitológicas

a) verdade

b) sem saída

c) opinião, crença, conhecimento subjetivo

d) ciência

e) natureza

f) amplitude, largura, grande dimensão

g) alma

h) mundo sensível

i) mundo inteligível

j) Despreocupação

k) Amor

l) Esquecimento

m) Penúria (ou Pobreza)

n) Recurso

UNIDADE 5

1)

a) sensaçãob) causac) experiênciad) ciência e) felicidadef) matériag) substânciah) kátharsisi) juízoj) imitaçãok) memória

l) formam) instrumenton) essênciao) imaginaçãop) fabricação, construçãoq) práticar) fi losofi a primeiras) almat) composiçãou) arte, técnicav) fi nalidade, objetivo

Page 214: História da Filosofia Antiga

214

Universidade do Sul de Santa Catarina

2) Preencha o quadro a seguir, identifi cando as causas dos seres indicados:

Ser Causa Material Causa Formal Causa Efi ciente CausaFinal

Livro Papel e tinta

Folhas encadernadas compondo um paralelepípedo achatado

Processo industrial

Registrar informações, imagens e peças literárias

Óculos Metal, vidro e plástico

Duas lentes e duas hastes ligadas a uma armação

Processo industrialMelhorar a visão e/ou proteger os olhos

Capacete

Fibra de carbono ou resina termoplástica, espuma, isopor, tecido, metal, policarbonato

Diversos formatos, que geralmente se aproximam de uma superfície esférica secionada

Processo industrial Proteger a cabeça de impactos

Flor Matéria orgânica

Pétalas ligadas a um cálice contendo estames e carpelos

Desenvolvimento orgânico

Permitir a polinização e a reprodução

SuorÁgua esais minerais

Líquido incolor

Produzido e excretado pelas glândulas sudoríparas

Regular a temperatura corporal

Grão de areiaVários minerais, principalmente o dióxido de silício

Grânulos irregulares

Fragmentação de rochas, erosão ?

Calendário -

Conjunto ordenado, períodos cronológicos (dias, semanas e meses)

Elaboração intelectual

Racionalizar o tempo

Universo

Há várias teorias:- água, ar, terra, fogo e éter- átomos- energia

Há várias teorias:- esferas concêntricas- hipérbole- infi nito e amorfo

Há várias teorias:- sempre existiu- criação divina- organizado por um Demiurgo

?

Pólis -

Pessoas, propriedades móveis e imóveis, leis, governo

Há várias teorias:- instituição divina- natureza humana;- contrato social

Suprir as limitações do indivíduo e permitir o desenvolvimento de suas potencialidades

Page 215: História da Filosofia Antiga

215

Ser humano

- Células;- Carne, osso, sangue, tecido adiposo, cartilagens, etc.

- Estrutura extremamente complexa - Corpo animado composto por cabeça, tronco, membros superiores e inferiores - Sistemas esquelético, muscular, visceral, tegumentar, etc.

Fecundação e gestação;Crescimento orgânico;Educação.

Felicidade

3)

A O U I M Q E A I A A I F O S O L I F

R Z D T R K S Z H O I G I E E F O R P

I L S I L O G I S M O R L R L S C V N

S N R K P G T F R A F A I D L I S O D

T R S A C U L O X V I I P O T S I R E

O T H E I C F L Z A A L E X A N D R E

T O G O N N A H I D L U Q E A P O Z L

E S T A G I R A I C A I A S Z M Z F O

L T I P G C A A F M Z A E R I P U O J

E I F O X O M U E O H I F E O A O R M

S O T S I M O M L R L A I R E T A M A

A R H I P A F F I U A F C Z D T I A P

C U L O X C X E C O C F I N A L L L R

X O M T K O E S I X Z N E D R K S Z O

X Z A O S S R D D A E A N I M P G A I

T I E D C E M H A A I S T A L I A I A

U D H E H O U L D A X Q E M E D E I D

O E I R A D A P E D E D A L N O V F O

U N O H T A R M R I I R K I Q H O U I

Z T A P E R I P A T E T I C O S I E R

P I R E N O S Z O D E T E E K S Z Z T

I D S R A R T I E L X E T U R R I R E

C A N S S I A N T E M L U P D T F M I

A D O F Q N A O C O N T R A D I Ç A O

T E R C E I R O E X C L U I D O D M E

Page 216: História da Filosofia Antiga

216

UNIDADE 6

1)

Ética epicurista Ética estóica

Pontos de discordância

Alguns prazeres são nocivos e devem ser evitados; outros são bons e devem ser buscados

Para ser feliz, é preciso buscar os prazeres da alma

Todo prazer deve ser evitado

Para ser feliz, é preciso tornar-se insensível ao prazer

Propostas coincidentes

fundamenta-se em uma física materialistaé preciso cultivar a razãoa ética é a parte central da fi losofi ao fi m da fi losofi a é a felicidadea felicidade é obtida através da autarcia e da ataraxiaa felicidade exige o afastamento da políticapara ser feliz, é preciso tornar-se insensível à dor

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2)

A O U I M Q E A I A I R S Z A I A S Z

R Z D T R K S Z H O I G I E E F O R P

I L S I R O G I L M O R L R L S C V N

S N R K P G T F R A F A I D L I S O D

G R S A C U L O X V I I P O T S I R E

O T H E I C F L Z S E N E T S I T N A

B O G O N N A H I E L U Q E A P O Z L

E S T A H I R A I N A I A S Z M Z F S

L T I P G C A A F E Z A E R I P U O E

E I F O X O M U E G H I F E O A O R X

S O T S I N O M L O L A I R E M A R T

A R H I P A F F I I A F R Z P I R R O

C U L O X C X E B D C F I N C L L L E

X L M T K O E S I X Z N E D R K S Z M

X U A O S S R D D A E A N S M P G A P

T C E D C E M H A A I S Z E N A O I I

U R H E H O U L D A X Q E N E D E I R

O E P I C U R O E D E D A E N O V F I

U C O H T A R M R I I R K C Q H O U C

Z I A P B R I P A T E T I A O S I E O

P O R E N O S Z O D E T E E K S Z Z K

I D S R A R T I E L X E T U R R I R E

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