Historia Da Literatura, Historia Do Teatro
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HISTRIA DA LITERATURA, HISTRIA DO TEATRO:
QUESTES EPISTEMOLGICAS
Joo Roberto Faria (USP)
O propsito desta comunicao apresentar algumas questes relativas
historiografia da literatura brasileira e do teatro, que venho enfrentando como
estudioso que trabalha na interface da literatura com o teatro e que escreve e d aulas
sobre dramaturgia num curso de Letras. A primeira questo diz respeito ao tratamento
dado dramaturgia nas histrias da literatura brasileira. A segunda parte de uma
pergunta direta: devem as peas teatrais ser estudadas no curso de Letras, ao lado de
poemas, contos e romances? A terceira liga-se s possibilidades que existem hoje
para se escrever uma nova histria do teatro brasileiro, centrada tanto nos aspectos
cnicos quanto na dramaturgia.
Esses trs pontos j foram objeto de reflexes que desenvolvi em trs textos,
que apresentei em trs oportunidades: na palestra de encerramento do IV Seminrio
Nacional de Histria da Literatura, realizado em Rio Grande em 2010, e intitulado O
lugar da dramaturgia nas histrias da literatura brasileira1; em uma mesa-redonda da
Abralic de 2011, na qual falei sobre O estudo da dramaturgia no curso de Letras2; e
na introduo da Histria do Teatro Brasileiro, - obra em dois volumes que coordenei e
que foi publicada em 2012 e 2013 pela editora Perspectiva.
Nesses textos, fui motivado por questes que vm tona sempre que penso
nas possveis convergncias entre a literatura e o teatro. Vou, ento, aproveit-los
como ponto de partida para apresentar a vocs algumas consideraes crticas com o
objetivo de fazer avanar a discusso.
Minhas constataes partem da leitura das principais histrias da literatura
brasileira e do teatro escritas ao longo dos sculos XIX e XX. E a primeira delas que
a historiografia do teatro brasileiro apresenta um atraso em relao historiografia da
literatura brasileira. Por atraso entendo o seguinte: ao longo do sculo XIX nossa
literatura foi objeto de vrios estudos crticos e historiogrficos, os primeiros feitos com
regularidade no pas, nos quais se estabeleceu o cnone relativo aos gneros pico e
lrico que serviu de base s duas primeiras histrias da literatura brasileira realmente
importantes: a de Slvio Romero (1888; 2 ed. 1902) e a de Jos Verssimo (1916).
1 Publicado em forma digital. Carlinda F. P. Nunez et alii (org.). Histria da literatura:
fundamentos conceituais. Rio de Janeiro: Makunaima, pp. 93-127. 2 Publicado em Marilene Weinhardt et alii (org.). tica e esttica nos estudos literrios. Curitiba:
Ed. UFPR, 2013, pp. 501-512.
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Estava consolidada a tradio a partir da qual seriam escritas as demais histrias da
nossa literatura.
J o teatro no mereceu nenhuma obra historiogrfica no sculo XIX, apenas
breves estudos. de 1904 o livro de Henrique Marinho, O Teatro Brasileiro (alguns
apontamentos para a sua histria). Infelizmente, o autor no foi capaz de estabelecer
o nosso cnone dramatrgico e nem de refletir sobre a especificidade do teatro como
arte que extrapola os limites do domnio literrio. Como observou Slvio Romero, no
prefcio, o autor atende mais histria dos edifcios destinados s representaes
cnicas, e s companhias que neles funcionaram do que histria da produo
literria do gnero dramtico entre ns3.
a produo literria do gnero dramtico que interessa tanto a Romero
quanto a Verssimo, que veem o teatro como uma arte literria. Se se separam na
maioria das apreciaes crticas (vide o que escreveram sobre Martins Pena e
Machado de Assis), aproximam-se num ponto fundamental: ambos abordam as obras
dos escritores sem separ-las por gneros. Para Slvio Romero foroso juntar o
Teatro e o Romance nos vrios captulos em que vo ser explanados estes dois
assuntos; porque os melhores cultores da dramaturgia o foram tambm do romance
no Brasil. Escritor estudado, deve s-lo de vez, para se lhe no perder o tom da
caracterstica, nem apagar a feio inteiria da individualidade espiritual.4.
No diferente o ponto de vista de Verssimo: Um escritor no pode ser bem
entendido na sua obra e ao seno visto em conjunto, e no repartido conforme os
gneros diversos em que provou o engenho5.
Romero e Verssimo consideram a produo dramtica do sculo XIX como
parte da literatura brasileira, como era comum na poca em que escreveram suas
histrias da literatura brasileira. Estranhamente, Henrique Marinho no estudou nossa
dramaturgia em sua histria do teatro. Desculpou-se dizendo que era sua inteno
fazer as crticas das peas mais notveis da nossa dramaturgia e tracejar as
biografias dos nossos autores dramticos e comediantes, mortos e vivos. No
pudemos, porm, vencer as dificuldades com que tivemos que arrostar. Ficar isso
para mais tarde6.
Infelizmente Henrique Marinho no cumpriu sua promessa. Nosso cnone
dramatrgico do sculo XIX ficou estabelecido por dois historiadores da literatura
3 Slvio Romero, A dramaturgia brasileira, em Henrique Marinho, O Teatro Brasileiro (alguns
apontamentos para a sua histria), Rio de Janeiro, Garnier, 1904, p. 4. 4 Slvio Romero, Histria da Literatura Brasileira, 7 ed., Rio de Janeiro, Jos Olympio/INL-MEC,
1980, v. 4, p. 1350. 5 Idem, p. 15.
6 Henrique Marinho, op. cit., p. 7.
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brasileira. Acompanhemos agora, nos domnios da literatura e do teatro as obras que
foram escritas depois das que nos deram Romero, Verssimo e Henrique Marinho.
Vejamos como lidam com a dramaturgia e como se estruturam.
Em 1919, Ronald de Carvalho lana a Pequena Histria da Literatura Brasileira.
Na edio que consultei7, em 270 pginas menos de cinco so dedicadas dramaturgia.
E, ao contrrio de Romero e Verssimo, o autor estuda a produo literria por gneros,
no pelo conjunto da obra de um determinado escritor, como ambos haviam feito.
Em relao s histrias literrias de Romero e Verssimo, a perda tanto
quantitativa quanto qualitativa para a dramaturgia, que estudada como se fosse a prima
pobre do romance e da poesia. Comea, com Ronald de Carvalho, um processo de
supresso da dramaturgia nas histrias da literatura brasileira, que chegou aos nossos
dias. Tal processo visvel na Histria da Literatura Brasileira. Seus Fundamentos
Econmicos, de Nelson Werneck Sodr, de 1938; na Histria da Literatura Brasileira, de
Bezerra de Freitas (1939); na Histria Breve da Literatura Brasileira, do portugus Jos
Osrio de Oliveira (1939).
A dramaturgia brasileira ganha um pouco mais de ateno na Breve Histria da
Literatura Brasileira, de rico Verssimo (1945), obra publicada nos Estados Unidos. Mas
no muita, como se v no pargrafo dedicado ao teatro romntico; A safra teatral
durante o perodo do Romantismo, no Brasil, foi muito magra. Entre os poucos
dramaturgos da poca s um merece ser lembrado, Martins Pena. Escreveu peas de
costumes nas quais tentou retratar a sociedade brasileira contempornea8. O perodo
posterior tambm no teve muita sorte: rico destaca apenas Artur Azevedo, em
algumas poucas linhas. Em compensao, o teatro dos anos 1930-1940 ganha alguns
pargrafos, com destaque para Joracy Camargo, Ernani Fornari, Maria Jacinta, Oduvaldo
Vianna, Carlos Lacerda, Raimundo Magalhes Jnior, Renato Vianna e Oswald de
Andade. rico leu vrias peas desses autores e as comenta sucintamente.
Enquanto a dramaturgia vai desaparecendo das histrias da literatura
brasileira, nas histrias do teatro publicadas nos anos 20 e 30 o gnero no tem
melhor sorte. Os problemas que apontamos na obra de Henrique Marinho repetem-se
em O Teatro no Brasil, escrito em 1917 e publicado em 1936, de Mcio da Paixo:
muitas informaes sobre edifcios teatrais, companhias, repertrio, decretos, uma
infinidade de nomes de autores e ttulos de peas representadas, mas pobreza
franciscana nas consideraes de ordem esttica ou no plano analtico e interpretativo,
seja no terreno da dramaturgia, brevemente tratada, seja no da encenao.
7 Ronald de Carvalho, Pequena histria da literatura brasileira. 13. ed. Rio de Janeiro: Briguiet,
1968. 8 rico Verssimo, Breve Histria da Literatura Brasileira, traduo de Maria da Glria Bordini,
So Paulo, Globo, 1995, p. 58.
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preciso lembrar, nesta altura, que no final do sculo XIX o teatro comeou a
afirmar-se como arte autnoma, na qual uma pea teatral passou a ser considerada
apenas como parte do espetculo, que se realiza com a colaborao de outros fazeres
artsticos: o do ator, o do iluminador, o do cengrafo, o do figurinista, todos
trabalhando sob a batuta de um novo demiurgo: o encenador. A conscincia de que
uma histria do teatro deve ser escrita a partir do que ocorre no palco muda o enfoque
que havia no passado, quando a histria do teatro se confundia com a histria da
literatura dramtica, esta embutida na histria da literatura.
No Brasil, a primeira obra que aborda o texto dramtico e a cena,
conjuntamente, a Histria do Teatro Brasileiro (volume primeiro: 1565-1840) de
Carlos Sussekind de Mendona, publicada em 1926. E de se lamentar que o autor
tenha ficado no primeiro volume, pois, ao contrrio dos seus predecessores, tinha uma
concepo moderna de teatro. interessante acompanhar a exposio de seu
mtodo, feita depois de arrolar vrios estudos de cunho histrico que j haviam sido
feitos no Brasil pequenas snteses, captulos de livros, ensaios etc - e considerar que
contriburam pouco para a histria do teatro brasileiro, porque em nenhum deles o
teatro considerado simultaneamente em seus aspectos literrios e cnicos. Afirma
ele a respeito dos estudos citados: A maioria se vicia de um mal considervel: os que
se ocupam da literatura dramtica esquecem-se da cena; os que se interessam pela
cena despreocupam-se, em absoluto da literatura dramtica9. A seu ver, para se
escrever uma histria do teatro brasileiro de modo correto, preciso que se
estabelea o sincronismo entre as manifestaes literrias e as manifestaes
cnicas, sem o que muitos fenmenos, talvez os mais interessantes da nossa vida
teatral, escaparo de todo ao nosso entendimento.
Quero crer que sua obra deveria ter servido de modelo para quem viesse a
escrever a prxima histria do teatro brasileiro. Afinal, ela trazia um mtodo e uma
concepo modernos de teatro. Mas no isso que acontece logo em seguida,
quando Lafayette Silva publica a sua Histria do Teatro Brasileiro, em 1938. Ele repete
o padro de Henrique Marinho e Mcio da Paixo: muitas informaes, datas, nomes,
e pouca reflexo crtica.
A proposta de Carlos Sussekind de Mendona foi retomada por J. Galante de
Sousa, que em 1960 publicou a primeira boa e razoavelmente completa histria do
teatro brasileiro, em dois volumes: O Teatro no Brasil. Pode-se dizer que Galante o
primeiro estudioso que soube sistematizar o trabalho de pesquisa e refletir sobre a
9 Carlos Sussekind de Mendona, Histria do Teatro Brasileiro, Rio de Janeiro, Mendona
Machado & Cia., 1926, volume primeiro (1563-1840), p. 60. As citaes seguintes provm desta edio.
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trajetria do nosso teatro, desde Anchieta at o final dos anos 50 do sculo XX,
referindo-se tanto aos aspectos dramatrgicos quanto aos cnicos. Grande
pesquisador, escreveu uma obra notvel, qual devemos voltar sempre, mas,
infelizmente, limitada pelo modesto alcance crtico de seu pensamento, como denotam
as pginas dedicadas dramaturgia.
Voltemos s histrias da literatura. Nos anos 50, fizeram bastante sucesso a
Histria da Literatura Brasileira (1955) de Antonio Soares Amora e A Literatura no Brasil,
sob a direo de Afrnio Coutinho. A primeira reserva um espao razovel para a nossa
produo dramtica, mas no geral uma obra de carter didtico, que procura dar conta
de toda a nossa produo literria em captulos sintticos sobre movimentos, autores e
obras.
J na mais ambiciosa de todas as nossas histrias da literatura brasileira,
publicada entre 1955 e 1959, em quatro volumes com mais de duas mil pginas escritas
por vrios colaboradores, o teatro ganha um captulo geral pouco para obra to
volumosa - intitulado A Evoluo da Literatura Dramtica. Escrito por um especialista
que tinha uma extraordinria capacidade crtica, Dcio de Almeida Prado, comea pelo
estudo dos autos de Anchieta e chega at o teatro brasileiro dos anos 1950, porm
enfocando centralmente, como sugere o ttulo, a dramaturgia.
No podemos deixar de mencionar, aqui, uma obra que, sem ser uma histria
completa da literatura brasileira, porque trata de apenas dois perodos, um estudo de
carter historiogrfico que lemos ainda hoje com admirao: a Formao da Literatura
Brasileira, de Antonio Candido, publicada em 1959 pela editora Martins. Como se sabe, o
autor debruou-se sobre os dois momentos que ele denomina decisivos para a
formao da literatura brasileira - o Arcadismo e o Romantismo -, estudando a poesia e a
prosa. A seu ver, porm, a excluso do teatro, que lhe pareceu inicialmente
recomendvel para a coerncia do plano, resultou num empobrecimento, como
verificou ao final do trabalho. Ele explica:
O estudo das peas de Magalhes e Martins Pena, Teixeira e Souza e Norberto,
Porto-Alegre e Alencar, Gonalves Dias e Agrrio de Menezes teria, ao contrrio,
reforado meus pontos de vista sobre a disposio construtiva dos escritores, e o carter
sincrtico, no raro ambivalente, do Romantismo. Talvez o argumento da coerncia
tenha sido uma racionalizao para justificar, aos meus prprios olhos, a timidez em face
dum tipo de crtica a teatral que nunca pratiquei e se torna, cada dia mais,
especialidade amparada em conhecimentos prticos que no possuo10.
10
Antonio Candido, Formao da Literatura Brasileira, 4 ed., So Paulo, Martins, s/d, vol. 1, p. 12.
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As palavras de Antonio Candido talvez expliquem o que vem acontecendo nas
histrias da literatura brasileira escritas a partir dos anos 1960. A exigncia de um
instrumental terico e analtico prprio, que nem sempre do domnio de quem estuda a
poesia e a prosa, e o dilogo dos nossos dramaturgos com seus pares europeus e norte-
americanos o que exige o conhecimento de suas obras so dificuldades que afastam
os historiadores da literatura brasileira da dramaturgia.
Essas dificuldades podem explicar a pequena presena da dramaturgia na srie
A Literatura Brasileira, da coleo Roteiro das Grandes Literaturas, publicada pela
Cultrix nos anos 1960, em seis volumes, e tambm na histria da literatura brasileira mais
bem-sucedida de todas que j foram escritas: a Histria Concisa da Literatura Brasileira,
de Alfredo Bosi, publicada em 1970, e que j teve mais de quarenta edies.
Nessa obra de cabeceira de todos ns h boas pginas sobre os autos de
Anchieta e sobre as peas de Martins Pena, Gonalves Dias, Jos de Alencar, Agrrio de
Menezes e Paulo Eir, Artur Azevedo e Machado de Assis. O estudioso do teatro
brasileiro fica satisfeito ao ver um crtico do calibre de Alfredo Bosi se debruar sobre o
principal da nossa produo dramtica do sculo XIX, considerando-a como parte da
literatura. Mas se decepciona ao constatar que nenhuma linha dedicada dramaturgia
do sculo XX.
Quanto historiografia do teatro brasileiro, depois da obra de Galante de
Sousa, as histrias do nosso teatro concentram-se mais no estudo da dramaturgia. o
caso de Teatro in Brasile, de Ruggero Jacobbi, publicada na Itlia em 1961.
Em 1962 Sbato Magaldi publica o seu Panorama do Teatro Brasileiro,
fundamentalmente uma histria da dramaturgia brasileira: apenas trs dos seus 21
captulos so dedicados a outros aspectos ligados ao fazer teatral: arte do ator,
companhias teatrais modernas, papel do encenador etc. O prprio autor tinha
conscincia das lacunas de seu trabalho, pois ao final do volume, em nota intitulada
Informaes bibliogrficas, afirma:
Ainda est por escrever-se uma Histria do Teatro Brasileiro. Somente quando
se fizer um levantamento completo de textos se poder realizar um estudo satisfatrio
de todos os aspectos da vida cnica dramaturgia, evoluo do espetculo, relaes
com as demais artes e com a realidade social do pas, existncia do autor, do
intrprete e dos outros componentes da montagem, presena da crtica e do pblico.
Por enquanto, mesmo que seja imensa a boa vontade, se esbarrar em obstculos
intransponveis. Talvez a tarefa no seja de um nico pesquisador: exige busca
paciente em arquivos e jornais, leitura dos alfarrbios e inditos, a esperana de que
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se publiquem documentos inencontrveis. Todos fornecemos subsdios para a obra
que acreditemos um dia vir a lume11.
Com a lucidez de quem acompanhou e apoiou o nascimento e o fortalecimento
do teatro moderno no Brasil, Magaldi sabia que seu Panorama no atendia ao que ele
denomina na citao acima todos os aspectos da vida cnica. E adverte sobre a
necessidade de uma obra coletiva.
Depois de Magaldi, em 1980, Walter Rela publica Teatro Brasileo, no Uruguai,
e Mario Cacciaglia, na Itlia, Quattro Secoli di Teatro in Brasile - edio brasileira em
1986: Pequena Histria do Teatro no Brasil (quatro sculos de teatro no Brasil).
Ambos os autores apresentam snteses da nossa histria teatral, dando igualmente
maior ateno dramaturgia.
No terreno literrio, depois da Histria Concisa da Literatura Brasileira,
surgiram vrias outras, com a mesma tendncia j apontada: a de suprimir a
dramaturgia ou conceder-lhe pouco espao. Nas obras que abordam desde as origens
da literatura brasileira at os tempos modernos e contemporneos, parece no haver
problema em comentar, ainda que com brevidade, a produo dramtica da colnia e do
sculo XIX. As dificuldades surgem quando se trata de abordar a dramaturgia moderna e
contempornea. Sirva de exemplo a Histria da Literatura Brasileira de Massaud Moiss,
em cinco volumes (1985-1989).
Entre todas as histrias da literatura brasileira publicadas nos ltimos cinquenta
anos, a de Luciana Stegagno Picchio, de 1997, a nica que traz informaes e
anlises, ainda que muito rpidas, da nossa dramaturgia, desde Anchieta at os anos
1970. Autora de uma importante Histria do Teatro Portugus, a familiaridade com o
gnero dramtico e o interesse por essa forma de arte foram fatores decisivos para que
ela inclusse em sua Histria da Literatura Brasileira vrios dramaturgos brasileiros do
passado e do presente. Em contrapartida, dois anos depois, em 1999, Jos Aderaldo
Castello publica, em dois volumes, A Literatura Brasileira: Origens e Unidade, obra em
que estuda nossa literatura, das origens at os anos sessenta do sculo XX.
Deliberadamente, ele descarta a dramaturgia, que s aparece mencionada nos casos de
Anchieta e Botelho de Oliveira, no perodo colonial, e de Gonalves de Magalhes, no
romantismo. Com parcimnia parecida, Carlos Nejar, na Histria da Literatura Brasileira,
de 200712, faz rpidas menes a peas e autores do perodo romntico e dos tempos
modernos, mas sem desenvolver qualquer anlise ou interpretao.
11
Sbato Magaldi, Panorama do Teatro Brasileiro, So Paulo, Difel, 1962, p. 271. 12
Carlos Nejar, Histria da Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, Relume Dumar/Copesul/Telos, 2007.
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O que concluir dessa exposio? Vou tentar arrematar estas consideraes nos
dois campos aqui apresentados: a histria da literatura e a histria do teatro.
No primeiro caso foroso reconhecer que a incluso da dramaturgia nas
histrias da literatura escritas depois de Slvio Romero e Jos Verssimo nunca
plenamente satisfatria. Claro que h boas pginas crticas aqui e ali. Mas a impresso
que fica que a dramaturgia, quando no deixada de lado, parece entrar na histria
literria a contragosto, como se o gnero dramtico no fosse um gnero literrio. Essa
a tendncia geral. Tudo indica que uma diviso de tarefas foi estabelecida ao longo do
sculo XX, sem qualquer discusso de carter terico e crtico: o historiador da literatura
brasileira tomou para si o trabalho de discorrer sobre movimentos literrios, poemas,
contos e romances, deixando a dramaturgia para o historiador do teatro ou da
dramaturgia. Essa mesma diviso de tarefas parece estar presente no curso de Letras:
pouqussimos professores de literatura brasileira incluem peas teatrais em suas
disciplinas, para estudar, digamos, um movimento literrio como o romantismo ou
escritores como Jos de Alencar e Oswald de Andrade. E uma pena que seja assim,
por duas razes: em primeiro lugar, h um bom nmero de peas teatrais que so
excelentes obras literrias, como Leonor de Mendona, de Gonalves Dias, ou Vestido
de Noiva, de Nelson Rodrigues, ou A Moratria, de Jorge Andrade. O aluno de Letras s
tem a ganhar com o conhecimento da nossa melhor literatura dramtica; em segundo
lugar, o conhecimento da dramaturgia e do prprio movimento teatral pode ajudar na
anlise e interpretao da poesia e da prosa dos nossos escritores. Poderia dar muitos
exemplos, mas o tempo no permite. Amparo meu argumento nas palavras de Antonio
Candido, citadas h pouco, e lembro apenas o caso de Alencar, que foi dramaturgo e
aproveitou em seus romances alguns temas que havia tratado nas suas peas, como a
prostituio e o casamento por dinheiro.
O que fazer com a dramaturgia? Eis o problema que os futuros historiadores da
literatura brasileira ainda vo enfrentar. Podero optar por dar continuidade ao padro
estabelecido no decorrer do sculo XX ou escrever obras em que ficcionistas, poetas e
dramaturgos sejam estudados em p de igualdade. No segundo caso, talvez seja
necessrio acreditar que uma nova e mais completa histria da literatura brasileira deva
ser uma obra coletiva, escrita por algumas dezenas de especialistas, dada a enorme
dimenso e diversidade da nossa produo literria. Em relao ao curso de Letras, s
me resta esperar que os professores de literatura brasileira descubram o quanto tm a
ganhar, incorporando a dramaturgia brasileira em suas disciplinas.
Quanto s histrias do teatro, vimos que apenas duas so tentativas de abranger
dramaturgia e encenao: a de Carlos Sussekind de Mendona e a de Galante de
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Sousa. As demais so histrias da dramaturgia, com pequenas e eventuais incurses
pelo terreno da encenao.
Estimulado pelas palavras de Sbato Magaldi sobre a necessidade de uma
equipe para escrever uma histria do teatro brasileiro, apresentei editora Perspectiva,
por volta de 2002 ou 2003 um projeto para dar conta do que nosso historiador denominou
todos os aspectos da vida cnica. Afinal, chegramos ao final do sculo XX sem uma
obra dessa natureza, mas com um conhecimento muito grande de nossa histria teatral,
disperso nas dezenas de dissertaes de mestrado e teses de doutorado escritas nos
ltimos trinta anos. Era preciso somar o conhecimento produzido no espao
universitrio aos estudos crticos feitos no passado, agregar o que se encontrava
disperso, reunir especialistas para historiar uma arte que adquiriu especificidades
prprias com o passar do tempo.
Os 51 captulos estampados nos dois volumes da mais recente Histria do
Teatro Brasileiro foram encomendados a mais de quarenta especialistas, a maioria
formada nos cursos de ps-graduao e atuando no ensino em vrias universidades
brasileiras. Esse perfil dos colaboradores d uma dimenso nova a esta histria do
teatro brasileiro: a primeira em nosso pas escrita com base no esprito universitrio
de pesquisa. Da a abrangncia, a riqueza de informaes, o domnio da bibliografia, a
verticalidade das anlises e interpretaes de peas teatrais, espetculos, fatos
artsticos, ideias, formas dramticas, bem como do trabalho de atores e atrizes,
encenadores, grupos e companhias etc.
A diviso em dois volumes obedeceu a critrios cronolgicos, artsticos e
editoriais. O primeiro volume d conta do nosso teatro desde Anchieta at meados do
sculo XX. Como se sabe, em grande medida muitas das prticas teatrais do sculo
XIX tiveram continuidade no Brasil at a dcada de 1950: manuteno do ponto,
companhia dramtica apoiada no grande astro, repertrio de peas convencionais,
espetculos montados por um ensaiador - funo mais tcnica do que artstica. A
partir de 1922, a insatisfao com o velho teatro j aparece entre os escritores
modernistas por exemplo, na crtica teatral de Antnio de Alcntara Machado, e em
seguida nas peas teatrais de Oswald de Andrade e nos trabalhos pioneiros de
Renato Vianna, lvaro Moreyra e Flvio de Carvalho. Durante mais de trs dcadas
nossa vida cnica se exprime em duas vertentes que correm paralelas, at que nos
anos 1950 o teatro moderno se impe. O segundo volume aborda esse processo
histrico, em suas mltiplas manifestaes, voltando ao movimento modernista de
1922 e seguindo at a contemporaneidade.
Creio que no futuro poderemos ter outras histrias do teatro brasileiro escritas
a partir do mesmo vis. Mas nada impede, claro, que surjam histrias especficas, seja
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da dramaturgia, seja da encenao. Afinal, so campos artsticos ao mesmo tempo
independentes e complementares.