História da Literatura Ocidental - Vol 01

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OTTO MARIA CARPEAUX

HISTRIA DA LITERATURA OCIDENTAL

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EDIES O CRUZEIRO

V.A

STE LIVRO r O l COMPOSTO E IMPRESSO NAS OFICINAS DA EMPRESA G R F I C A RUA O CRUZEIRO Rio S. DE A . , IH JANEIRO. MARO Dl 1 9 5 9 , PARA AS E D I E S O C R U Z E I R O , DO LIVRAMENTO, 189/203,

Capa deA M r C A B DE CASTRO

SUMHIOINTUI H)lr(.,M(

(Histria

e Mtodo

a HistoriografiaPAUTE I

Literria)

iai^inBrsr.itiuuK&^^JU ^fh Dl1

mktOTKCA

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HERANA

Captulo 1 A LITERATURA GREGA Captulo H ' o MUNDO fiMANO Capitulo III

Universidade Estadual de Maring Sistema de Bibliotecas - BCE

HISTRIA D O H U M A N I S M O E DAS RINASCEN AS Capitulo (Os Padres IV Liturgia)

o CIISTIANISMO H O MIIINIK) da UTcjti i: n )>AUTi; I I O MIJIND CRISTO

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Capitulo I A FIJINDAO DA EUROPA ( L i t e r a t u r a Aiiplo-saxiico. A Literatura Edda. Literatura Monacal Captulo II Epopias e "Matires"

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^OV^" o CRUZEIRO Diretor HERBERTO SALES DIREITOS EMPRSA ADQUIRIDOS PELA GRFICA SESO D E LIVROS DA

o UNIVERSALISMO CRISTO (Literatura Latina Captulo III A LITERATURA DOS CASTKLOS E DAS ALDEIAS (Canes e Baladas P o p u l a r e s . P o e s i a s das O Mundo d o s " K o m a n c e s " ^ Captulo IV OPOSIO, BURGUESA E ECLESlSTJCA ( L t t e r a t u r o S a t r i c a . Os P r a i i c i s c a n o s ) Cortes. Medieval)

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O C R U Z E I R O S . A . , Q U E SE LITERRIA DESTA EDIO.

RESERVA A P R O P R I E D A D E

Captulo V PAnTE I I I A TRANSIO Capitulo Io "THECEVTO"

MISTICISMO E MORAMSMO (Msticos Espanhis e Franceses. Captulo V I ANTMiAUUOCO (Literatura Oposicionista Ccrvantcs na E^vanha e Tia F r a n a ; at Molire) de Boccaccio) Classicismo Francs)

(Dante,

Petrarca, Captulo II

REALISMO E MISTrfilSMO ("Rovian de Ia Rose". Chaucer. Crnicas. O Teatro Medieval) Capitulo III O OUTONO DA IDADK M D I A {Literatura "Flamboyant"} Msticos,

PARTI.; V I ILUSTRAt Ti TUVOI.llO

Capitulo I ORICIIINS l\i:ill!ARri(>(;AS (A Arcdia e a Poesia Anacre^ntica. Teatro tia Rc^tnnrafn. A IIORI,I':ivlA TIA I.ITIHAIUHA Capitulo II (lUilA I TEATRO DA CONTRA-REFORMA C (Marinismo e Gongorisvio. Os Jesutas. Teatro Espanhol) BAHRCA (Scott e o Romance Poesia "Pura", Literatura ' >

rARTH V I i ROMANTISMO Capitulo I lRICKNS DO JtOMA\Tl'!\IO Roniantisrrw Alemo. Chateaubriand. Ingleses dos "Lagos". Lamartne) Captulo II ROMANTISMO DE EVASO Histrico. Medievalismo Romantismo Nrdico e Capitulo m Americano. e Folclore. Russo) Os Poetas

Captulo III PASTORAIS, EPH-IAS, El>OF'f;iA HERl-CMIOA E ROMANCE PICARESCO

ROMANTISMO EM OPOSIO (Bironismo. Radicais e EJtopisas. T r a n s c e n d e n t a l i s m o O Sculo de Hugo. A poca de Dickens) Captulo IV O FIH n o ROMANTISMO Poesia (O Movimento de Oxford. Os Comeos Os Radicais Franceses. do Marxism-o) Heine.

C a p i t u l o IV o (Teatro nARROCO PROTESTANTE Elisabetano Jaenbeii. Barroco Luterano. Metafsica, Literatura Puritana)

PAUTE V I U A POCA DALITEHATUHA

CLASSE MEDIABUKOUESA

Capitulo I (Balzac e o Romance Burgus. Literatura Vietoriana. Os Parnasianos)

Capitulo IIO VATURAIJSMO

(A poca de Zola. Darwinismn e FataUsn}o. Baudelare e a Poesia do Desespero) / Captulo IIIA C.ONVEUSO no NATURATJSMO

(Teatro Escandinavo

e Romance Russo. Movimento Romance Psicolgico) TARTE IX

Misticsta.

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Captulo Io .SIMItOI.ISMO

(Esteticismo.

Poesia Simbolisia.

Motterniamo Espanhol.

Nietzsche)

CapHuU) n A i-ocA DO lQuii.iuo r:ij]Un'Ku (Epigonismo Literrio entre 1900 e 1914) PAHTB \ LITEHATUBA E REALIDADE Captulo IAS ItrVOLTAS MEKrVLSTAS

AURLIO BUARQUE DE HOLLANDA

(Bomia Internacional. Cubismo e Modernismo Francs. Imagismo. Futurismo. E.rpressioniSTno Alem.o. A I Guerra Mundial. Freud, Joi/ce, Proust e 0'iVel. O "Waste Land". RadicaLi;m.o Espanhol. Dadais^no c Surrealismo) Capitulo IITHM.)f:rMCIAS (:crdendo a Grcia. Na Repblica, o mundo inferior simbolizado como aquela caverna mtica, na qual os homens, jirisiotieiros dos sentidos, s vem as sombras das idias verdadeiras, refletidar- pela luz da "anamnese"; e Plato \ L I ri.)i \ I nit \ Oi nu N IAI,

:catores; Negrinus etc. cie. Edio princeps, Florena, 1490; edio crlica por N. Nlln, 2 vols., Leipzig, 1900/1923. M, Cioiset: Essai sur Ia vie et les oeuvres de Lucien. Paris, 1883. F. G. AUinson: Lucian, Satirist and Artist. New York, 1927, C. Gallavotti: Luciano nella sua evolusione artstica e spirituale. Luciano, 1932. M. Caster: Lucien et Ia pense religieuse de son temps. Paris. 1937.

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borboletas. Na Vitarum auctio, os filsofos, representantes das vrias escolas e academias, so vendidos em leilo como escravos e ningum quer comprar criaturas to inteis. Os devotos da religio tradicional recebem a sua lio nos Deorum dialogi e Marinorum dialogi, nos quais os deuses olmpicos se cobrem de ridculo, discutindo os seus amores e truques de alcoviteiros. Mas no sero melhores os novos deuses orientais Luciano foragido de um gueto nem a estranha superstio dos cristos, dos quais d notcia em De morte Peregrini. Luciano no compreende sequer o antropomorfismo da arte grega; no Gallus, o galo do sapateiro Mykillos quase um quadro de gnero da vida proletria revela os segredos da escultura: dentro das esttuas mais famosas de Fdias vivem ratos! Os sarcasmos de Luciano contra a arte da escultura tm motivos pessoais; le mesmo fora destinado a escultor. No Somnium, dilogo autobiogrfico, conta como lhe apareceram, em sonho, duas deusas, propondo-lhe rumos diferentes na sua carreira, e como le abandonou a deusa da escultura para seguir a da "retrica", quer dizer, a literatura e o jornalismo. Para isso, era mister tornar-se "filsofo". Mas se os filsofos so todos uns charlates? porque o mundo, sob a lua, no mais moral nem mais inteligente do que o Olimpo; quer ser enganado pelos falsos "intelectuais" que se vendem a preo baixo aparecem assim em De mercede conducti, auto-retrato involuntrio d e Luciano. O mundo de Luciano ura caos espiritual. O ecletismo filosfico de Plutarco, transformado em mercado de opinies. O cu de Pndaro, transformado em Olimpo de Offenbach, de opereta. T u d o est de cabea para baixo, revelando as suas vergonhas e ridculos. Visto do Hades (^Menippus, Mortuorum dialogi) ou da lua ( Icaromenippus), o nosso mundo um manicmio. Luciano um grande humorista: Erasmo, Rabelais, Swift, Voltaire

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encontram nesse grego falsificado as melhores inspiraes. Mas no um satrico, porque no conhece critrio moral. No compreende aquilo de que zomba. D-se ares de AntiHomero, mas no passa de speaker de um show humorstico, no qual homens e deases danam o ltimo canc do mundo greco-romano. Luciano tpico; esto todos contaminados. Uma novela de Luciano, Lucius seu Asinus, histria das aventuras obscenas ou penosas de um sujeito transformado em burro por um feiticeiro, serviu de modelo ao romance Metamorphoseon seu Asinus aureus, de Apuleio C^), que um panorama completo da poca. O autor , desta vez, um africano, um patrcio de Tertuliano e Santo Agostinho, Talvez explique essa aproximao as angstias religiosas que distinguem esse Luciano de fala latina. O romance parece autobiogrfico, com as suas aventuras lascivas e vicssitudes de literato viajante, embora a insinceridade inata de Apuleio e a sua habilidade de narrador no permitam distinguir realidade e fico, nem na sua fico nem na sua vida. Contudo, quem soubera dar vida literria eterna ao conto de Amor e Psique, inserto no romance, no podia estar alheio s "supersties", velhas ou novas, e a Apologia de Apuleio, defendendo-se contra a acusao de magia, confirma a veracidade do fim do romance: aps tantas aventuras erticas e picarescas, o heri ingressa solene-

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liuchis Apuleiu.s, .srculo TT. Mctamorpliosfm: Avoloiiia. EcUri j)-J7t(,r)i.s ( a AliUmi de iril2; rilirirK por Colvius (Plant i n a 1 , 1588, Sc:ilii;er. KiKl. l';(li(;fi.o crlic"i yxn- R. Helm c P. Thoma.s, 2.^ c., 3 VOIK., I,cip/i(, 1!)21. P. Monceaux: Apule, roman et viagie. ParL^i, 19111. E . Coechia: Romanzo e realt nella vita e nelValtivit letterarki i Lcio Apulejo. Catanla, 1915. I. M e d a m : La latinit 'Apile ans les Mtamorphose. Paris, 1S26. B . E . P e r r y , "An I n t e r p r e t a t i o n of Apieius' Metamorphoscs". ( I n : Proceedings of the A-merican Phological Association, 1926.) P, Scazzoso; Le metamorfosi di Apuleo. MUano, 1951.

mente nos mistrios da Isis, para dedicar-se, dai por diante, ao culto da deusa, da qual Luciano zombara. Apuleio um grande literato. maior do que Luciano, porque tem um estilo prprio. Escreve um latim meio requintado, meio brbaro, em que se misturam as frases feitas da escola retrica, as elegncias do jornalismo grego, as frmulas msticas do Oriente e a linguagem violenta de Tertuliano. uma figura da poca: o literato desarraigado que encontra a soluo das suas angstias nos arrepios msticos do Oriente. Eis um contemporneo muito estranho do fino epistolgrafo Plnio. Existem vrios autores de lngua latina aos quais a posteridade conferiu o ttulo honroso de "o ltimo dos romanos". Na verdade, no processo vagaroso da decomposio apareceram muitos "ltimos romanos" o "realmente ltimo" ser Bocio mas o primeiro entre eles foi um grego: o imperador romano e escritor grego Marco Aurlio (^"). O imperador, educado por filsofos esticos, era homem de ao e escritor ao mesmo tempo. Filsofo introspectivo e defensor corajoso das fronteiras setentrionais do Imprio contra os brbaros. Morreu onde fica hoje a cidade de Viena, c cm Konia ciif^iraiu-lhc uma esttua, a primeira est;'itii;i eqcslrc de um imperador; passado no muito tempo, o moniinicnto ver transformado o bairro de Latro eiu ninho de malria e de ladres. Tudo, no destino de Marco Aurlio, paradoxo: homem de ao por desespero, e escritor por firme resoluo; sendo o ltimo dos grandes individualistas romanos, anota os movi-

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Marcus Aurelius, 121-180. Edies criticas por H. Sciienkl, Leipzig, 1913, e por A. S. L, F a r qnharson, 2 vols,, Oxfor, 1944, M. Arnold: Essays Literary and Criticai. 1865. E. R e n a n : Marc-Aurle et Ia fin u monde antique. 1882. F. W. H . Myers: Essays Classical, London, 1888. D, Mcrejkovskl: "Marco Aurlio". ( I n : Companheiros Imortais, 1897; v r i a s tradues.) H- D . Sedgwick: Marcus Aurelius. Newhaven (Conn.), 1921.

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mentos da sua alma solitria em lngua grega. Mas, como ele dizia, " T u d o o que te acontecer, estava preestabelecido assim, desde o comeo, e a cadeia das coisas ligava firmemente a tua existncia e o teu destino". Assim fala um estLco, cheio de f na providncia, "cujos germes se encontram em toda a parte", Mas a doutrina estica do "Sentido", espalhado em germes por toda a parte, serve ao imperador romano, no para construir um universo ideal, e sim para justificar a prpria existncia de indivduo isolado. Marco Aurlio romano; quer dizer, quando pensa, no escapa trivialidade do lugar-comum. Mas d testemunho de que, no fim da histria romana, at o imperador se encontra sozinho em face da realidade impenetrvel. E ela aparece-lhe na figura da Morte. O livro inteiro das Meditaes foi escrito para afugentar a obsesso desse homem poderoso com a idia da morte. A idia estica da coeso na Natureza, do determinismo razovel que rege tudo, no lhe serve para aprender a viver, e sim a morrer. Ao contrrio do que muitas vezes se pensava, Marco Aurlio, que fz mrtires, nada tem de cristo; o que o faz parecer cristo a clemncia meio indiferente de uma me*lancolia que le sabe nada adiantar. Marco Aurlio soube exprimir esse pensamento banal em mil frmulas, cada vez mais impressionantes, que fizeram do seu livro um brevirio para os velhos, durante sculos a fio; a sua eloqncia simples e convincente de uma idia fixa revela a sinceridade de um grande poeta. Quem no pode ser includo entre os "ltimos romanos", so os ltimos poetas romanos. Aqui, sim, h decadncia, no apenas nos fatos exteriores, mas tambm nos espritos. Contudo, no so sem interesse. E m alguns sobrevive apenas a habilidade tcnica. E m outros, porm, repete-se o fenmeno fisiopatolgico dos doentes que perderam um sentido e o substituem, enquanto possvel, por outro sentido, inferior. Assim, os cegos aprendem a sentir sensaes inditas, pelo t a t o ; e aquela poesia agonizante.

j privada de "grandeza romana", revela aspectos inditos da vida. Eis a particularidade de Ausnio C***). um cidado pacato de Burdigala, a Bordus de hoje, longe das perturbaes da capital. A Glia uma provncia culta; Burdigala, um centro de escolas de retrica; as vilas dos ricos, nos campos, so pequenos museus de arte, se bem que de gosto provinciano. Ausnio um pequeno-burgus, levado pela sua formao de retor a altos postos da administrao, at s fronteiras da Germnia, s ribeiras do Mosa. Permaneceu sempre pequeno-burgus, encostado famlia, qual dedicou as EphemeTs: poemas prosaicos da vida cotidiana. Ausnio enxerga as coisas pequenas, as mincias, e os seus olhos so melhores do que os seus versos. Na Mosella, repara nos encantos modestos da paisagem, o rio, as vinhas nas colinas, a luz dourada do crepsculo sobre as vilas e sobre o horizonte desconhecido l onde moram os brbaros. Poesia amvel e at alegre, poesia crepuscular, sem tristeza. Aquelas vilas encontram-se hoje em runas, enterradas no solo; de vez em quando, revelam os seus tesouros modestos: moedas, esttuas, fragmentos de mosaicos, e sobretudo delcia dos arquelogos inscries, relativas a ;icontecimentos de famlia, nascimentos, enterros, morte d-j um co, emancipao de um escravo; os arqiicloj;os reuniram essas inscries em colees imcnsns, como no Corpus inscriptionum latinarum, o poeta do qual se chama Ausnio. Ao mesmo ambiente pertence o Pervigiliam Veneris (^*), epitalmio cheio de paixo ertica, atribudo, s vezes.

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30) Decimus Magnus Ausonius, 310-^5. Ephemeris; Mosella, etc. Edies crticas por Sohenkl, Monum, Germ, Hist. V. 2. Hannover, 1883, e por B. Peiper, Leipzig, 1886. C. JuUian: "Ausone et .son temps". (In: Revue Hiatorique, 1891.) R. Pichon: tues sur 1'histoire de Ia littrature latine dans lea Gaules. Les erniers crivains profanes. Paris, 1906, G. Bellissimo: Ausoniana. Siena, 1932. 31) Edio em; A. Riese: Anthologia latina. Leipzig, 1879. Edio por C. Clementi, 3." ed., Oxford, 1936.

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Orro

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ao historiador Jlio l'loro, outra vez ao poeta menor Tberiano (c. ^KiO); lulo possvel determinar a origem nem a i)oc;i ex:i(a do poema, ao qual Walter Pater dedicou belas p};iiinH do aeu romance Marius, the Epicurean. J se pensou, tambm, em origens medievais; em todo o caso, o refro "Cras amet qui nunquam amavit quique amavit eras amct!" soa estranhamente moderno; j tem encantado poetas sofisticados do "Middie W e s t " americano de hoje. Claudiano {^^), que de fato o ltimo poeta romano, no conhece essas audcias de expresso. Poeta oficial do ministro Stilicho, que j um brbaro germnico, Ciau diano tmido demais para dizer coisas novas. pago um dos ltimos num mundo j batizado e patriota romano, considerando a "colaborao" com o inimigo germnico como a ltima salvao possvel. Claudiano conservador. Imita fielmente os clssicos, chega a redigir obras inteiras, juntando versos consagrados como um mosaico de citaes. O seu idlio De raptu Proserpinae , n entanto, belo, at superior ao modelo ovidiano. Claudiano ainda sabe latim. Os ltimos pagos responsabilizaram o cristianismo pela queda da civilizao; e preciso admitir que os Padres da Igreja fizeram tudo para confirmar a acusao. Ou antes, escreveram como se fosse assim: um Agostinho, que chamou s virtudes dos pagos "vcios brilhantes"; 32) Claudius Claudlanus, morreu c. 404.EpithalamiuTn; De raptu Proserpinae; muitos epigramas, idlios, poemas polticos etc. Edio critica por Tli. Birt, Monumenta Germaniae Histrica, Auctores antiqulssimi, vol. X, Berlin, 1892. T. H. Odgkin: Clauianus, the Last of the Roman Poets. London, 1875. A. Parravicini: Studio di retrica sulle opere i Claudiano. Mi-

um Jernimo, que explicou o prazer na leitura de Ccero pela inspirao do Demnio. Mas a vontade e os efeitos no coincidiram. Para convencer e converter o mundo da civilizao antiga, no bistava a "sabedoria da infncia" dos cristos primitivos; chcgou-;e a um compromisso, pondo-se a filosofia c as letras a Hcrvio do Deus cristo e da sua teologia. Comea a jjr-hislria do humanismo europeu no Oriente cristo. Os fundamentos do compromisso foram lanados no Oriente grego. J no comeo do sculo II, o erudito Clemente de Alenxandria introduziu na teologia conceitos do platonismo e do estoicismo: o Paidagogos um manual de conduta estica para cristos, e os Stromata uma coleo de ensaios platonizantes sobre assuntos teolgicos. Um discpulo de Clemente, Orgenes, contemporneo de Plotno, do fundador do neoplatonismo mstico; Orgenes pretende basear o dogma cm teoremas gregos, para fugir ao realismo religioso dos orientais e compreender as verdades do credo como alegorias de um sentido mstico, oculto e inefvel. Orgenes caiu na heresia, mas so, indiretamente, discpulos seus os trs maiores Padres da Igreja oriental: Baslio (f 379), bispo de Ccsaria, fundador da ordem dos monges basilianos, e que, na famosa Epstola XIX, sbre a escolha do lugar para um cremitrio, se revela poeticamente sensvel paisagem; seu irmo, Gregrio ( t 394), bispo de Nissa, filsofo neoplatnico de batina; e Gregrio Nazianzeno (f 389), que chegou a patriarca de Bizancio, heri do plpito, grande poeta de hinos eclesisticos e leitor devoto de Plato. Estes homens participaram da luta pelo dogma trinitrio contra os arianos; era a poca pitoresca em que, nas ruas de Bizancio, os barbeiros e sapateiros disputavam sobre "igualdade substancial" ou "semelhana essencial" do Pai e do Filho, escondendo desgnios de oposio poltica atrs dos teologemas complicados, enquanto os representantes autnticos do cristianismo primitivo se retiravam para os eremitrios, no de-

lano, 1905.

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serto da Egpcia. Entre esses extremos da profanao e da fuga, o cristianismo salvou-se pelo compromisso com a civilizao paga. No era fcil encontrar o meio-termo. A t para ns, hoje, no muito clara a atitude de um Nonnos (^^), bispo de Panpolis, na Egpcia, e autor de uma parfrase metrificada do Quarto Evangelho, e, ao mesmo tempo, de uma enorme epopia em 40 livros, Dionysiaka, cheia de embriaguez paga at perturbao de todos os sentidos; nesta obra que a mtrica grega, baseada na quantidade das slabas, comea a decompor-se, invadida pelo verso acentuado. Comea um novo mundo. No Ocidente, o compromisso entre cristianismo e civilizao paga foi concludo pelos inimigos apaixonados dessa civilizao; Tertuliano, Ambrsio, Jernimo, Agostinho, os Padres da Igreja latina. Mas estes j so homens "modernos". O ltimo romano cristo Bocio. Mas seria Bocio (''') um cristo? Existem tratados teolgicos de sua autoria: De Trinitate, Contra Eutycben et Nestorium, e outros. Mas nas obras mais importantes de Bocio, at na Consolatio Philosophiae, que trata de Deus e do destino humano, no se encontra a mnima aluso ao cristianismo. Bocio romano pela atitude; pertenceu ao crculo ilustrado em que o poeta Sidnio ApoliNonnos, c. 400. Dianysiaka. Edio crtica por A. Ludwlch, 2 vols,, Leipzig, 1909/1911. R. Koehler: Veber ie Dionysiaka des Nonnos. Leipzig, 1853. P. Collart: Nonnos de Pannopolis; tudes su7- Ia composition et le texte es Dionijsiaqacs. Cairo, 1930. 34) Manlius Sevcrinu.s Boothiu.s, c. 480-524. Consolatio Philoxophiac; De institutione arithmcticae 1. / / ; De institutione musicae 1. V; tradues de Euclidcs e Aristteles; De Trinitate. Obras, em Mlgne, Patrologia latina, vols. LXIII e LXIV. Edies criticas da Consolatio por R. Peiper, Leipzig, 1871, e por E. K. Rand e H. F. Stewart, London, 1926. H. F. Stewart: Soethius. An Essay. Edlnburg, 1891. G. A. Mueller; Die Trostschrift es Boethius. Berlin, 1912. H. Klingner: De Boethii Consolatione Philosophiae. Berlin, 1927. 33)

nrio fz versos pitorescos, e em que Cassiodoro, acumulando tesouros de manuscritos na sua vila "Vivarium", preparou os caminhos para a ordem de So Bento. So os monges da civilizao paga, monges do estoicismo. Bocio suportou assim a priso, na qual escreveu a Consolatio, e a morte pelo carrasco germnico. Cristo, Bocio no o , a no ser pela confisso dos lbios. Mas j homem medieval, Com toda a razo, a Idade Mdia ir escolher os seus tratados sobre geometria e msica como base do ensino superior e encontrar nos seus comentrios aristotlicos e neoplatnicos o problema escolstico dos "Universalia". Na Consolatio Philosophiae, um homem de mentalidade medieval acalma as suas angstias com as respostas da filosofia estica. So perguntas de um monge medieval sobre a injustia no mundo e a Providncia divina mas e resposta dada pelo aparecimento de uma viso, que se d a conhecer com a "Philosophia". Por isso, 3 Consolatio ficou sendo o livro preferido dos espritos esticos de todos os tempos, que no se sentiam sujeitos, no foro ntimo, religio crist; Bocio era o manual do laicsmo entre os herticos da Provena, entre os humanistas do Quattrocento, entre os eruditos do Barroco, que fugiram das guerras de religio. Contudo, Bocio no moderno, nem medieval, nem cristo hertico, nem cristo sans pbrase. Em face da catstrofe do mundo antigo, um grande cristo. Santo Agostinho, tinha justificado a obra da Providncia divina por uma grandiosa filosofia da histria, explicando o advento e a queda dos imprios. O romano Bocio no pergunta pelo Imprio. Est preocupado apenas com a sua prpria alma, individualista, romano. A Consolatio Philosophiae um pendant das Meditaes de Marco Aurlio, apenas sem medo da morte, Na sua ltima hora que foi a ltima hora de um mundo magnfico e que pereceu incompreensivelmente Bocio pde repetir as palavras com as quais o imperador-filsofo terminara livro e vida:

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" homem, fste cidado nesta grande cidade, e que importa se passaste aqui cinco anos ou trinta? O que conforme lei, no duro para ningum. Ser to terrvel se a mesma Natureza que te mandou para esta cidade, agora te mandar sair? K como se um ator fosse demitido pelo mesmo pretor que o chamou. 'Mas no representei todos os cinco atos da pea e sim apenas trs!' Bem; mas, na vida, trs atos j constituem uma pea completa, pois o fim determinado por aquele que outro dia iniciou a representao e hoje a termina. Comeo e fim no dependem de ti. Ento, despede-te com nimo sereno; le, que te despede, tambm sereno."

1C A P T U L O ITI HISTRIA DO HUMANISMO E UAS RENASCENAS

"What's Hecuba to him, cr lie to Ilccuba, That he should weep for h e r ? " O AO as palavras de Hamlet, quando se admira da emo^ o do ator ao lamentar a rainha Hcuba. A rainha morreu h no sabemos bem quantos mil anos; e ns ainda deveramos chorar por ela? Hamlet tem as suas prprias preocupaes, atuais, reais; as histrias antigas podem-lhe servir, quando muito, de alegorias, alis dispensveis, para representao potica dos seus pensamentos. Mas chorar? O homem que o fizesse seria um biblmano, um habitante de mausolu livresco, alheio vida c perdido em sonhos absuidos; ou ento, seria um hipcrita, um mestre-escola que desejasse afastar os alunos das suas futuras tarefas vitais, ou um artista frio, tcnico de versos e emoes artificiais. Hamlet tem outras preocupaes. Todos ns vivemos a nossa prpria vida. Quem chorar por Hcuba? A pergunta de Hamlet indica, com a maior preciso, a atitude do homem moderno em face da Antigidade e dos seus monumentos literrios. Meditando-se, porm, o caso, Hcuba revela-se como smbolo de significao muito maior: no apenas uma rainha da Antigidade mais remota, mas o smbolo do passado inteiro. Assim como as angstias e esperanas da nossa vida atual no nos permitem chorar .pelos gregos e romanos, assim est longe de ns a f dos monges medievais; no temos nada em

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comum com os artifcios artsticos da Renascena e com as frias religiosas da Reforma, cem os msticos barrocos e os marqueses do Rococ e ser muito o que nos liga aos sonhos dos romnticos e cincia antiquada de nossos avs? O que posto em dvida pela pergunta de Hamlet, no a Antigidade apenas; o passado inteiro. Trata-se de algo mais do que na famosa "Querelle des Anciens et des Modernes", sobre a pretensa superioridade dos autores antigos ou dos modernos. Esta discusso revive sempre que se trata da conservao ou abolio do ensino das lnguas clssicas na escola secundria. Mas as vitrias efmeras deste ou daquele partido, nessa guerra pedaggica, no acertam o centro do problema. No adiantam as comparaes absurdas entre Plato e Kant, Homero e Shakespeare, Pndaro e Victor H u g o ; as relaes quantitativas no resolvem o caso. O que o "futurismo" antihumanstico pretende demonstrar a diferena qualitativa, essencial, entre ns e os homens do passado, entre as nossas expresses e as expresses deles. Hcuba no capaz de arrancar-nos uma lgrima. Esse "futurismo" nega no apenas o carter do presente e do futuro, mas continuaes do passado, conceito com o qual, no entanto, passadistas e dialticos concordam; mas nega tambm, com a continuidade da histria, a igualdade essencial dos homens de todos os tempos; e nega ainda, com a unidade da histria, a unidade da nossa civilizao. Para o futurista anti-humanista a expresso "civilizao ocidental" no teria sentido atual. E "futuristas" assim existem em maior nmero do que o punhado de barulheiros italianos e os seus adeptos internacionais, j quase esquecidos. Sem grande exagero, pode-se afirmar que assim pensam os cientistas e os engenheiros, os mdicos e os homens de negcios, os banqueiros e os secretrios de sindicatos, os socialistas e os fascistas; enfim, a grande maioria. Apenas, nem todos tm a coragem de confess-lo.

Tambm preciso coragem para confessar que as obras literrias do passado so realmente, at certo ponto, estranhas para ns. Para ler Homero necessrio o conhecimento perfeito de um dialeto obsoleto j na Antigidade, de uma lngua morta, necessrio ter o hbito de sentir uma mtrica que tem hoje outro ritmo, a capacidade de entender o sentido autntico de uma linguagem metafrica, gasta pelo uso milenar, e, enfim, a "suspension of disbelief" em face de um mundo de imaginao mitolgica sem ponto de referncia em nosso mundo. Aplica-se o mesmo raciocnio ao ingls arcaico de Chauccr, s convices feudocatlicas da literatura espanhola do "Siglo de Oro", s expresses meio arcaizantes, meio barrocas, do "Sicle d'Or" francs. Os "sculos de ouro" ficam mais longe de ns do que o nmero dos anos decorridos de ento at nossos dias, pode indicar; e o "sculo de prata", o classicismo ingls do sculo X V I I I , no est mais perto. Muitos observadores fixaro com a Revoluo Francesa o comeo da poca moderna; mas a Revoluo, anunciada e antecipada por escritores notveis, no produziu, diretamente, literatura alguma, nem sequer na prpria Frana, e foi seguida imediatamente pelo romantismo, literatura medievalista. passadista, a mais "antimoderna" de todas. No tem sentido insistir na pergunta: quando acaba a "literatura morta" ou quando comea a "literatura viva"? Presente e Passado encontrara-se to indissolvelmente ligados seja em relao unilinear, seja em relao dialtica que a nossa civilizao no existe, em nenhum ponto da evoluo histrica, sem encerrar todo o seu passado. No se deve perguntar quando termina o passado; mister perguntar quando o passado principia. Como tantas outras questes histricas, esta tambm fica obscurecida pela retrica. Os ltimos oradores profissionais da Antigidade, mestres-escolas dedicados ao ensino literrio dos filhos de latifundirios e funcionrios abastados, encheram os exerccios escolares de uma emo-

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o sincera quando viram desaparecer, pouco a pouco, a sua freguesia. Os ltimos pagos no observaram bem o processo de humanizao gradual do cristianismo primitivo, escatolgico e hostil civiI2ao; como intelectuais tpicos, acreditavam ver o fim do mundo, e as suas lamentaes retricas encontram eco nas vises apocalpticas dos primeiros cristos. O aspecto da destruio material e institucional escondeu a preservao da herana antiga, e o bispo Hildeberto de Lavardin, poeta latino do sculo XI, avistando as runas da cidade que foi a capital do mundo, irrompeu numa elegia digna dos ltimos romanos: "Urbs cecidit, de qua si quicquam dicere dignus Moliar, hoc potero dicere: Roma fuit." O aspecto sentimental das runas romanas levou os humanistas a criarem o esquema tripartido da Histria Universal: Antigidade, "sculos escuros" da Idade Mdia, poca Moderna, comeando com o renascimento das letras clssicas pelos prprios humanistas. O xito completo deste conceito historiogrfico explica-se, em parte, pela admirao que j os eruditos medievais tinham civilizao romana (^): j o abade Servatua Lpus de Ferrires (f 862) se congratula com o renascimento dos estudos latinos em sua poca; o cluniacense Bernardus de Morlas, no seu poema didtico De contemptu mundi (c. 1140), lamenta a falta de cultura do seu tempo, lembrando a civilizao dos antigos romanos; entre muitos outros, Johannes de Garlandia (')" 1258) reconhece a superioridade intelectual dos pagos da Antigidade. Da vai s um passo para o grito de jbilo do humanista: "O saecuium! o litterae! luvat vivere etsi quiescere noiidum iuvat, Eillibalde, vigent studia, florcnt ingenia! Heu tu accipe laqueum barbai ies. exilium prospice!" (Ulricus de Hutten, 1) A. Graf; RoTna nella memria e nelle iminaginazioni dei Meio Evo. 2." ed. Torlno, 1923.

em carta a Willibald Pirkheimer, de 25 de outubro de 1518); e essa conscincia de ter sado enfim de um perodo de trevas decidiu o xito do esquema tripartido da Histria Universal. Ao orgulho dos intelectuais juntaram-se outros motivos, de origem emocional ('-) : durante toda a "Idade Mdia", a forle reao contra a corruo moral do clero levou a comparaes menos lisonjeiras com a pureza da Igreja primitiva e s esperanas herticas de uma "renovatio", de uma "Terceira Igreja", puramente espiritual; assim aconteceu com os franciscanos espiritualistas e joaquimistas dos sculos X I I I e XTV. Enquanto os humanistas, buscando sempre as "fontes", estiveram interessados em questes religiosas, aprofundaram a comparao com a Igreja primitiva, de Poggio Bracciolini, no seu De misria hnmanae conditionis, at Erasmo, com as suas edies do Novo Testamento e dos Padres da Igreja. A Reforma pensou ter vencido a "noite do Papado" (cxi>resso de Lutero), e o esquema tripartido, com o seu duplo fundamento literrio e religioso, sobreviveu ao humanismo e zelo reformador, gerando ainda no sculo X V I I I a expresso "Dark Ages" (William Robcrlson), c literatura universal, o Colombo de um novo T continente. Para a sua poca, encerra uma fase decisiva da evoluo da incntaldatlc crist, e inicia outra fase: aps a queda definitiva do Imprio, o cristianismo retira-se para dentro dos muros da Igreja, e a nova alma encontra a sua nova expresso: eleva-se o hino. O hinrio (") da Igreja latina a primeira obra da literatura moderna. Um esprito diferente do esprito da Antigidade greco-romana cria formas independentes, cuja 6) F. G. Mone: Hymni latini medii evi. 3 vols. Freiburg, 1852/1855.S. W. Dufield: The Latin Hymn Writcrs and Their Ilymns. London, 1890. G. Semeria;. Gi Inni delia CMesa. Milano, 1910.

E. Troeltsch: Augustin, die christliche Antike un das Mittelalter. Tuebingen, 1915. E. Buonaiuti: S. Agostino. Roma, 1917. P. Alfaric: Vvolution intelleciuelle de Saint Augustin. Paris, 1918. 1. N. Flggis: The Politcal Aspects of Augustine's City of Go. London, 1921.

< ^

E. Gilson: Introuction Vtue de Saint Augustin. Paris, 1929. H. J. Marrou: Saint Augustin et Ia fin de Ia culture antique. Paris, 1938. V. I. Bourke: Augustine's Quest of Wisom, Milwaufc.ee, 1945.

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origem constitui um dos maiores problemas da historiografia literuia. J (icscl(! o sculo I I da era crist, os poetas latinos cncin com freqncia em erros prosdicos, enganando-se com respeito quantidade das slabas; e sobre a quantidade das slabas se baseia a mtrica greco-romana. Perde-se a segurana, e a mtrica procura novo apoio no acento da palavra falada. A liturgia crist contribuiu para essa modificao essencial, pelo uso das antfonas com a sua prosdia diferente. Contudo, no est esclarecido se a verdadeira origem da nova mtrica se encontra na evoluo da lngua latina ou na liturgia. Segundo Gaston Paris, existiu sempre uma diferena de acentuao entre a lngua culta, usada na poesia metrificada, e o sermo plebias, que se imps na poca da decadncia. So mais convincentes, porm, as analogias, reveladas por Wilhelm Meyer ( ' ) , entre a versificao dos hinos latinos e as versificaes sraca, caldaica e armnia. Parece que o cristianismo importou as leis da versificao semtica. Mas essa versificao entrangeira no teria vencido se no fossem modificaes lingsticas que tinham motivos mais profundos do que a plebezao da lngua latina. A nova estrutura do latim falado sintoma de uma nova alma que o fala. Um autor annimo, a alma coletiva, inventa uma nova poesia, os versos de 4 dimetros jmbicos, reunidos em estrofes de 4 linhas; primeiro exemplo da poesia "moderna". Os hinos mais antigos da Igreja atribuem-se a Ambrosio (**). Em geral, esta tradio foi abandonada pela crtica. Do corpus dos hinos ambrosianos, certamente a 7) W. Meyer: Oesammelte Abhandlungen zur mittelalterlichen Rythmik. Vol. II. Berlln, 1905. 8) Peter Wagner: Der Hymnus des heiligen Ambrosius. MariaLuach, 1898.

maior parte ao pertence ao grande bispo de Milo. So de origem incerta os hinos para as horas cannicas, conservados no Brevirio Romano: "Iam lucis orto sidere", "Nunc sancte nobis Spiritus", "Rector potens, verax Deus", "Rerum Deus tenax vigor", "Lucis creator optime" e "Te lucis ante terminum"; tambm os hinos mais extensos, "Splendor paternae gloriae", "Conditor alme siderum" e "Jesu corona virginum", no so autnticos. Enfim, preciso privar Ambrosio da autoria do famoso cntico "Te Deum laudamus" ("). Ficam, quando muito, 4 hinos autnticos: "Aeerne rerum conditor", "Deus creator omnium", "Iam surgit hora tertia" e "Veni redemptor gentium"; revelam eles que o estoicismo fonte, tantas vezes, de inspirao lrica tambm acendeu no senador eclesistico e ciceroniano seco a luz da poesia. Revela inspirao ambrosiana, embora indireta, o corpus inteiro dos hinos atribudos outrora ao bispo; um dos smbolos mais freqentes na autntica poesia ambrosiana o galo que, aps a noite que pertence ao demnio, chama os fiis para o oficio; e em um dos hinos no autnticos encontram-se os versos caractersticos; "Procul recedant somnia E t noctium phantasmata. . .", explicando o hino autntico: " . . . . gallus iacentes excitat E t somnolentos increpat". Como a aurora, cuja luz entra pelas vidraas da igreja, aparece nos hinos ambrosianos a luz de um novo dia, e com 9) O "Te Deum laudamus" atribudo, atualmente, ao santo bispo Nicetas de Remesiana (-j-ilS), sem se alegarem argumentos conclusivos. A. E. Burn: Niceta o/ Remesiana, his Life and Works. London, 1905.

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le uma inovn(;rio estranhssima, "moderna", totalmente dcsciihcciila da Antigidade: a rima. O verdadeiro Ambrsio da poesia latina crista o espanhol Priidcncio {^"), o maior poeta da antiga Igreja Romana. J foi comparado a Horcio, mas mais srio, e a Pndaro, mas mais humano. A grande epopia alegrica da Psychomachia, a luta das virtudes contra as paixes, talvez intere:i3e hoje menos do que as 14 odes do Peristephanon, em homenagem a 14 mrtires espanhis e africanos, espcie de epincios cristos, Prudncio, apesar das tentativas de poesia narrativa, essencialmente um poeta lrico. Nas 12 odes do Cathemerinon, destinadas a certas horas do dia e a certas festas, encontra os acentos mais novos e mais universais, o ". . .. mors haec reparatio vitae est" para a hora das exquias, e o " . . . p s a l l a t altitudo caeli, psallite omnes angel" para ser cantado omni hora. Prudncio um dos raros poetas lricos que conseguiram criar um mundo completo de poesia. A fora desse classicismo eclesistico revela-se na sua capacidade de sobreviver s piores tempestades. Mesmo na corte dos reis rnerovngios, num ambiente de assassnio e incesto, um poeta habilissimo para ocasies oficiais sabe exprimir os mistrios do credo em smbolos poticos de

autntica feio romana. Venncio Fortunato ( " ) sente o caminho do Cristo para a cruz como triunfo militar "Vexilla regis prodeunt, tulget crucis m y s t e r i u m , . . " e a glria celeste da Virgem como apoteose d uma deusa "O gloriosa domina, Excelsa super sidera. . ." A lngua latina salvara o novo esprito potico. O novo mundo lrico encontrou apoio real no trabalho monstico e na organizao eclesistica: dois elementos herdados da realidade romana. Sobrevive esprito romano na reg-a da ordem de S. Bento, na convivncia de duro trabalho manual e estudo das letras clssicas; e em relao ntima com o esprito beneditino criou-se o grande papa, que tambm j foi chamado "o ltimo romano" e que o fundador da Igreja medieval: Gregrio Magno ('^). O grande Papa aparece nos quadros medievais como simples monge, e isso lhe teria agradado; estimava a simplicidade do corao mais do que os talentos do esprito. No fz nada para salvar os tesouros ameaados da civilizao clssica; ao contrrio, tudo fz para substituir a leitura dos autores pagos pelos escritos hagiogrficos e edi-

10) Aurclius PnidcntiUR Clemens, c. 348 - c. 400.Psychomachia; Cathemerinon; Pcristephanon. Edij: Mig:ne, Patrologia latina, vols. LIX-LX. Edio crtica por K. Bergmann, Wlen, 1926. A. Puech: Pruence. tue sur Ia posie latine chrlienne au JVc siccle. Paris, 1888. A. Mclardi: La Fsycomachia i Fruemio. Pistoja, 1900. F. Ermini: Peristephanon. Stui pruensiani. Roma, 1914.

Venantius Honorius Clementianus Fortunatus, c. 530 - c. 600. Edio: Migne, Patrologia latina. Vol. LXXXVIII, Ch. Nisard: Le poete Fortunat. Pa.ris, 1890, R. Koebner: Venantius Fortunatus. Leipzlg, 1915. 12) Gregorius Magnus, c. 535-604; papa, 590-604, Liber regulae pastoralis; Liber dialogorum seu de vita et mir*' culis patrum italicorum; Registra. Edio: Migne, Patrologia latina, vols. LXXV-LXXIX. F. H. Dudden: Gregory the Great. 2 vols. London, 1906. F. Tarducci: Storia di Gregrio Magno e el suo tempo. Roma,1907.

11)

W. Stuhlfath: Gregor der Grosse. Heidelberg, 1913. F. Ermini: Gregrio Magno. Roma, 1924.

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ficantes, literatura para a qual le contribuiu com o Liber dialogoTum, vidas de santos itlicos, cheias de milagres incrveis, aparies de almas do outro mundo, castigos estranhos infligidos por Deus aos infiis. um monge supersticioso, um daqueles a quem le prescreveu, no Liber regulae pastaralis, as normas de conduta e ao. Chamamlhe "simplista", "inimigo do humanismo". Mas que valor poderiam ter as disciplinas humanistas para um homem cheio de angstias apocalpticas, que espera o fim do mundo? Essa expectativa impunha disciplina diferente; mas uma disciplina. As ansiedades apocalpticas no transformaram o Papa em quietista angustiado e passivo, e sim em homem de uma atividade enorme, que abrangeu, desde a Itlia e a Espanha at a Inglaterra, o mundo inteiro conhecido. Era preciso salvar as almas, antes do cataclismo. E Gregrio construiu um abrigo materno para as almas, a Igreja medieval, trabalhando como um monge de S. Bento e governando como um "cnsul Dei". Era vim esprito sbrio, seco, prtico; um romano. Estabilizou o mundo lrico dos hinlogos, construndo-lhe uma catedral invisvel. A expresso literria dessa atividade realista e daquele esprito lrico conjugados est na liturgia que tem o nome do papa, embora ela tivesse origens mais remotas, e sculos posteriores, at o sculo X I I , houvessem acrescentado muito "liturgia gregoriana". Foi WiUiam Robertson, historigrafo ingls do sculo X V I I I , quem criou a expresso "Dark Ages", ou "sculos obscuros", para qualificar a poca em que a "Ra.-?o" e as "boas letras clssicas" no iluminaram o mundo. A expresso mudou vrias vezes de sentido, estendendo-se Idade Mdia inteira, ou aos sculos IX, X e XI, entre a qu^da do Imprio carolngo e as Cru/adas, ou ento aos sculos VI, V I I e V I I I . Do ponto de vista da histria literria, este ltimo sentido da expresso o mais razovel. A literatura romana acabara e as literaturas modernas ainda no tinham comeado, nem em lngua latina nem nas lnguas

nacionais, O vazio explica-se pela destruio geral, a perda de quase todos os bens materiais, inclusive os benefcios de uma administrao organizada. Contudo, a relao entre o estado econmico-poltico e a situao cultural no pode ser formulada maneira de uma equao algbrica. Antes dos "sculos obscuros" e depois, as maiores devastaes materiais no impediram o cultivo das letras, e a hinografia ambrosiana e ps-ambrosiana, literatura original e poderosa, constitui um primeiro desmentido quele ingls incompreensivo. Outro desmentido, mais forte ainda, revela-se no estudo da liturgia romana. ela, sem dvida, uma obra literria, embora de um tpo diferente da literatura paga e da lteratvira medieval; constitui uma literatura sui generis, no comparvel a nenhuma outra, de modo que nem os critrios classicistas nem os critrios "modernos" a ela se aplicam bem. A mais geral e mais rigorosa das normas historiogrficas exige a compreenso e apreciao de todos os fatos histricos segundo os cnones e critrios da prpria poca a que pertencem. Vista assim, a liturgia alguma coisa mais do que um cerimonial eclesistico; levela-se como obra literria, cujo valor, se bem que relacionado intimamente com o credo que exprime, no pode depender das convices religiosas da crtica ou do crtico. A apreciao literria da liturgia exige, certamente, uma "suspension of disbelief" da parte do descrente; mas a leitura compreensiva de Dante e Milton exige o mesmo de todos os que no so catlicos florcntnos ou puritanos ingleses. Aps a "suspenso da descrtnn", ningum negar liturgia o carter de grande obra literria que marca os sculos V I e V I I , iluminando-lhes a "obscuridade". A liturgia romana compe-se de certo nmero de pe(picnos textos religiosos, reunidos conforme a atuao do v.acerdote no altar. Alguns desses textos so iguais, perm.nuntcs, cm todas as missas, particularmente o Cnon, cpif inclui o sacrifcio e a transubstanciago; outros mu-

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dam conforme os domingos e a sua posio nas fases do ano eclesistico; outros, segundo os dias dos santos cujo martirio ou translao se comemora. A origem romana da liturgia em vigor explica, nestes ltimos casos, certa preferncia dada aos santos locais da cidade de Roma, de modo que a ordem dos servios religiosos nas igrejas romanas ("igrejas de estao") influiu na composio da liturgia e do ano eclesistico. No possvel verificar com certeza quando, onde e porque todos aqueles textos foram redigidos e depois reunidos em ordem definitiva; as origens da liturgia assemelham-se maneira como a filologia do sculo X I X imaginava a criao das "epopias populares", do Poema deJ Cid ou do Nibelungenlied, de autoria coletiva. O verdadeiro autor da liturgia a Igreja ('^). Havia vnas Igrejas e vrias liturgias. S no Oriente existem ou existiam dois grupos inteiros de liturgias, do tipo antioqueno e do tipo alexandrino, redigidas em grego ou em lnguas asiticas, e uma delas foi a primeira liturgia romana, hoje desaparecida. No Ocidente se introduziram variantes da forma oriental: a liturgia ambrosiana, na Igreja de Milo; a liturgia morabe ou gtica, na Espanha, a liturgia cltica, nas ilhas britnicas; e, particularmente na Frana, a liturgia galicana, que influiu muito na formao definitiva da liturgia romana, para ceder, enfim, a esta, que suplantou, no Ocidente, todas as outras, A liturgia romana um compromisso entre as liturgias orientais e ocidentais, e um compromisso extraordinariamente feliz. A histria da liturgia romana encontra-se no Liber pontificalis, a crnica dos primeiros papas, na correspon13) F. E. Brighttnan: Liturgies Eastem an Western. Oxford, 1B96. F. Calarol: Les origines liturgiques. Paris, 1906. F. X. Funk: "Ueber den Kanon der roemischen Messe". (In: Kirchengeschichtliche Abhandlungen un Untersuchungen. Freiburg, 1907.) L, Duchesne: Les origines u culte chrtien. b." ed. Paris, 1920. A. Baurnstark: VOTTI geschichtUchen Weren der Liturgie. Freiburg, 1923.

dncia papal e nos martiriolgios romanos. As missas dos sculos V e V I I I subsistem em trs velhas colees: o Sacramentarium Leonianum, o Saciamentarium Gelasianum e o Sacramentarium Gregorianum. Com a interpolao de elementos galicanos no Sacramentarium Gregorianum, na poca e a p e l i d o de Carlos Magno, terminou a evoluo; na Idade Mdia fizeram-se apenas modificaes sem importncia, O "Introibo ad altare Dei", prtico da missa, compese de versculos bblicos e da reza pela absolvio dos pecados; logo a linguagem da Vulgata ("Judica me. Deus, et discerne causam meam de gente non sancta") revela a sua qualidade ltrgica. O incio da missa liga-se ao "Confiteor" por uma daquelas frmulas que sempre voltam, lembrando menos um refro do que as frmulas feitas da epopia homrica: "Gloria Patri et Filio et Spiritui Sancto, sicut erat in principio et nunc et semper, in saecula saeculorum. Amen." o "tema" da missa. Aps o "Introitus", que alude festa do dia, Deus aclamado em palavras gregas que formam uma espcie de trptico: "Kyrie, eleison. Kyrie, elcison, Kyrie, eleison. Christe, eleison. Christe, eleison. Christe, eleison. Kyrie, eleison. Kyrie, eleison. Kyrie, eleison." Trata-se, com efeito, de uma "aclamao", como a receberam os imperadores de lizncio no momento de sentaremse no trono. Vrias oraes cercam a leitura solene da Epstola e do Evangelho, herana do servio religioso na sinagoga, e entre elas incluiu-se o "Gloria in excelsis Deo. . .", como que abrindo o cu sobre o altar. A transio para o servio de sacrifcio feita por uma das partes mais antigas da missa, o ato de mistura de vinho e gua, simbolizando a unio dos fiis com d i s t o : "Deus, qui humanae substantiae dignitatem mirabiliter condidisti, et mirabilius rcformasti", palavras nas quais a dignidade austera da lngua latina se humilha no coletvismo dos "divintatis

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consortes". Sobrevivem, na liturgia romana, apenas algumas palavras das epikleseis, das invocaes do Esprito Santo, que nas liturgias gregas quase sufocam, pela sua grande extenso, o Cnon; a liturgia ocidental de sobriedade romana. Quando, e isso acontece s uma vez, cede pompa oriental, na Piaefatio, com o seu jbilo dos exrcitos celestes, dos "Angeli, Dominationes, Potestates, Seraphim", seguem-se, ento, imediatamente, as palavras secas, de maior economia estilstica, do Cnon, que a parte genuinamente romana da missa latina, romana no sentido local: no momento em que o Cnon recitado, qualquer altar catlico, em qualquer parte do mundo, est idealmente em Roma. No "Communicsntes et memoriam venerantes", a comemorao dos santos, mencionam-se, alm da Virgem e dos Apstolos, somente Lino, Cleto, Clemente, Xisto e Cornlio, entre os primeiros sucessores de S. Pedro no bispado romano; depois, o africano Cipriano e os mrtires locais da cidade: Loureno, Crisgono, Joo e Paulo, Cosme e Damio. Estamos em uma baslica dos primeiros sculos, perto das catacumbas. E era outra orao muito antiga, no "Hanc igitur oblationem", inseriu Gregrio Magno as palavras "diesque nostros in tua pace disponas", para lembra,: a todos os sculos vindouros as atribulaes da cidade de Roma no sculo V I , cercada pelos brbaros longobardos; palavras que so de uma atualidade permanente. Aps a transiibstanciao, que se distingue pelo mais alto grau de expresso religiosa o silncio pede-se a Cristo o "locum refrigerii, lucis et pacis" para os "qui nos praecesserunt cum signo fidei et dormiunt in somno pacis", e, j fora do Cnon, a graa para os que h pouco aclamaram o Kyrios e agora, em outro "trptico", se curvam perante o Deus sacrificado: "Agnus Dei, qui tollis peccata m u n d i : miserere nobis. Agnus Dei, qui tollis peccata mundi: miserere nobis. Agnus Dei, qui tollis peccata m u n d i : dona nobis pacem."

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O ciclo est fechado. O fim a melodia largamente desenvolvida com que a Igreja despede os "circunstantes" para voltarem vida profana: "Ite, Missa est." A variedade das missas era, no comeo, muito grande; cada dia tinha a sua missa eripecial, como acontece ainda nas semanas da quaresma, nas quais o mundo inteiro participa do culto nas "igrejas de estao" da Urbs. Mas a sobriedade romana fez tudo para suprimir as diversidades exuberantes. Distribuiu-se uma missa mais ou menos uniformizada pelas "estaes do ano", constituindo o ano eclesistico a repetio simblica da epopia da histria sacra e redeno do gnero humano: Advento, Rorate coeli. Natal, Epiphania, Cinzas, Invocabit, Reminiscere, Oculi, Laetare Jerusalm, ldica, Palmarum, Semana Santa, Pscoa, Quasimodogeniti, Pentecostes, os 24 domingos, desde a Trindade at leitura da profecia apocalptica, Finados; e, de novo. Advento. Afirmar que a liturgia uma grande obra de arte implica estetici-jmo suspeito. Assim como a lngua latina, durante muitos sculos de sobrevivncia, se adaptou a estados de alma inteiramente novos, assim tambm a liturgia latina teve significao diferente em todas as pocas. A sua interpretao como drama religioso tem fundamento apenas na relao puramente histrica entre as cerimnias eclesisticas e o teatro medieval, e na pompa religiosa do Barroco, quando a msica e as artes plsticas colaboraram para transformar a missa solene em "obra de arte total", no sentido de V/agner. Essa interpretao ajuda a sufocar a palavra; mas a palavra a essncia da liturgia. A liturgia essencialmente uma composio literria, sem considerao de efeitos teatrais ou pictrico-musicais. Talvez SC entenda melhor o sentido da liturgia nas missas rezadas na alta madrugada, sem musica, quando o sacerdote s murmura as palavras, e o silncio absoluto em torno do sacrifcio menos efetuoso e mais profundo. preciso ler e entender o t ; x t o no basta ouvi-lo para "sentire cum

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E c c l e s i a " . E n t o a p e r m a n n c i a d e c e r t o s t e x t o s e as m o d i f i c a e s d e o u t r o s d u r a n t e o ciclo d o a n o r e v e l a m - s e como traos caractersticos de um "ciclo" em sentido literrio, de u m a epopia. A primeira e maior epopia que o Ocidente criou. Como todas as grandes epopias, a liturgia c o n s t i t u i u m m u n d o c o m p l e t o c r i a o , n a s c i m e n t o , vida, m o r t e e f i m d e n t r o d o s m u r o s d a i g r e j a . M u n d o fec h a d o , cuja l i t e r a t u r a " e x t i c a " n u m s e n t i d o d i f e r e n t e d o da p a g a : l i t e r a t u r a de o u t r o m u n d o . P a r a d e s i g n a r o "fora", a I g r e j a R o m a n a , t o zelosa d o u s o e x c l u s i v o da l n g u a l a t i n a , a d m i t i u u m a e x p r e s s o d o l a t i m v u l g a r : " f u o r i le m u r a " ; v r i a s i g r e j a s em R o m a c h a m a m - s e nssim. A e x p r e s s o l e m b r a a q u e l e " d i e s q u e n o s t r o s in t u a p a c e d s p o n a s " q u e foi i n s e r t o p o r q u e " f u o ri le m u r a " n o h a v i a a q u e l a paz. A e p o p i a e c l e s i s t i c a d a l i t u r g i a d e c o r r e u s d e n t r o d o s m u r o s . L fora, h a v i a os b r b a r o s e a d e s t r u i o . Do p o n t o d e v i s t a da h i s t r i a u n i v e r s a l , essa v i s o n o i n t e i r a m e n t e e x a t a . F o r a da I t l i a e das p r o v n c i a s d e v a s t a d a s h a v i a u m o u t r o m u n d o , em c o n d i e s d i f e r e n t e s : B i z n c i o . P o i v o l t a d e 550, o I m p r i o g r e g o , r e s t a u r a d o por J u s t i n i a n o , fez u m e s f o r o s u r p r e e n d e n t e p a r a r e c o n quistar o mundo. Se esse esforo no se tivesse malogrado a s r u n a s m e l a n c l i c a s d e R a v e n a do t e s t e m u n h o d i s so o O c i d e n t e s e r i a h o j e g r e g o e t a l v e z eslavo. P o r q u e falhou, B i z n c ' 0 n o faz p a r t e d o m u n d o o c i d e n t a l . A l i t e r a t u r a b i / a n t i n a s t e m i m p o r t n c i a , p a r a n s o u t r o s , como f o n t e de m o t i v o s e c o m o c o n t r a s t e . K m t o r n o de I'iz,'incio e x i s t e um e q u v o c o : a p a l a v r a e m p r e g a - s e como s i n n i m o de e s t r e i s d i s c u s s e s t e o l gicas, d e p e t r i f i c a o . E s s e c o n c e i t o n o c o r r e s p o n d e aos f a t o s h i s t r i c o s . A h i s t r i a b i z a n t i n a das m a i s m o v i m e n tadas. Despendiam-se esforos, quase ininterruptos, para r e v i v i f i c a r e c o n t i n u a r a s t r a d i e s g r e g a s , p a r a o p - l a s s influncias irresistveis do O r i e n t e e assimilar estas ltimas. D u r a n t e m u i t o s s c u l o s , B i z n c i o u m c e n t r o da

civilizao. O r e s u l t a d o d a q u e l a s l u t a s foi u m a h i s t r i a d e s g r a a d a e u m a l i t e r a t u r a q u e n o e r a a p e n a s rica, m a s t a m b m viva C*). O primeiro encontro entre tradies gregas e influncias o r i e n t a i s d e u - s e n a h i n o g r a f i a b i z a n t i n a . o h i n g r a f o s r i o E f r m q u e se i m i t a nas f o r m a s da l n g u a d e Pndaro. tambm srio o hingrafo Romanos, o maior p o e t a da l i t e r a t u r a bizaritina, e s q u e c i d o d e p o i s t o int e i r a m e n t e q u e s os e s t u d i o s o s o c i d e n t a i s d o s c u l o X I X o r e d e s c o b r i r a r a (^'"'). P o r falta d e t r a d i e s no possvel v e r i f i c a r a p o c a em q u e R o m a n o s v i v e u ; indica-se, c o m o d a t a m a i s v e r o s s m i l , o sculo V I . R o m a n o s n o p a r e c e m u i t o o r i g i n a l ; t a l v e z j e n c o n t r a s s e a sua forma, o kontakios, e s p c i e d e h o m l i a m e t r i f i c a d a d e g r a n d e e x t e n so. O s h i n o s d e R o m a n o s - n e m t o d o s a u t n t i c o s d i s t i n g u e m - s e p e l a i n s p i r a o d e s e n f r e a d a , que s vzcs r o m p e a s f o r m a s h i e r t i c a s , t r a n s f o r m a n d o - s e em b a l b u c i a o e x t t i c a . P a r a f o r m a r i d i a da poesia d e R o m a n o s , o leit o r m o d e r n o p e n s a r n a s g r a n d e s o d e s d e Clnudel, imaginando-as cantadas nas vagas de luz do servio n o t u r n o de N a t a l d e u m a c a t e d r a l bizantin.-i. Se R o m a n o s rualnit-nte d o .culo V I , a sua p o e s i a faz p a r l e d o i m p o n e n t e inovinicnto d e r e n a s c e n a q u e o i m p e r a d o r J u s t i n i a n o p r o m o v e u . A s d u a s faces desse m o v i m e n t o a|)arjccin na r e c o n q u i s t a da frica e I t l i a e n o restabelecimrnlo Corpus Jris, da ordem politico-admnistrativa pelo e, por o u t r o lado, na f o r m a o d e p a r t i d o s

l

p o l t i c o s em B i z n c i o , c h e g a n d o a e x p l o s e s d e g u e r r a civil, e n a c o r r u o p e l a q u a l a I m p e r a t r i z T e o d o r a r e s -

K. Krumbacher; Geschichte der hyzanthinischen Literatur. 2." ed. Muenchen, 1897. G. Montelatlci: Storia ella letteratura bizantina. Milano, 1916. 15) J. B. Cardinal Pitra: Hymnographie e Vglise gre.cque. Roma, 1867. K. Krumbaeier: Sluien zu Romanos. Muenchen, 1893.

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OTTO MARIA

CARPEAUX

HISTRIA A LITERATURA

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ponsabilizada. Procpio de Cesaria (i") o historiador de ambos os lados: nas Historia varia descreveu os feitos militares e a alta cultura da corte imperial; nas Historia arcana, a corruo infame da mesma corte e das mesmas pessoas que tinha elogiado. A civilizao bizantina apresentar sempre uma cabea de Jano. uma civilizao de duas classes bem distintas: aqui, a corte, a aristocracia, o alto clero, munidos de todos os requintes da civilizao madura e da decadncia moral; ali, o povo chefiado pelos monges brbaros e fanticos, inculto, tumultuoso e ingnuo. Um poeta da alta sociedade, como Agathias, pode competir com as elegncias do rococ francs; o seu contemporneo Johannes Malalas um cronista popular, lido em voz alta nas esquinas, traduzido depois para todas as lnguas, e primeiro fator da europeizao dos eslavos. A literatura bizantina vivssima; e cumpre uma grande misso. Tem a fora de se renovar. No sculo V I I I , Andreas Cretensis e Johannes Damascenus criam uma nova forma de poesia eclesistica, o Cnon. Em 863, a Universidade reaberta. Theodoros Studita, monge e chefe poltico, protagonista fax^tico na luta pela conservao das imagens nas igrejas, um homem do povo; em Bizncio, todos os movimentos jjopulares tomam a feio superestrutural de guerras de religio. E como homem do povo, Theodoros poeta realista, apresentando a vida monacal em cores diversas daquelas por que ela aparece nos cones e na hagiografia. Ouvimos at falar de grandes espetculos populares nas igrejas, mas estamos mal informados quanto ao drama religioso e ao mimo popular e obsceno; contudo, o Cristus patiens do sculo XI qualquer coisa como os

mistrios da Paixo que se representaram nas grand'placeS das cidades medievais. A vivacidade da literatura bizantina s se revela bem quando comparada com a situao no Ocidente. So os sculos IX, X, XI, realmente os "Dark Ages" da historiografia convencional. Em Bizncio, o eruditssimo Photios ( t 897) rene no Myrobiblion as suaach. Paris, 1933. W. J. Schroeder: Der Ritter swischen Welt und Gott. lee und Prohlem des Par^ivalromans Wolframs von Eschenbach. Weimar, 1952.

HISTRIA DA LITEHATUBA OCIDENTAL 504 OTTO M A R I A CARPEAIIX

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tedrais parecem buscar o cu. O Parzival o romance da evoluo religiosa de uma alma; antecede aqueles numerosos romances alemes modernos que, desde o Wilhelm Meister, de Goethe, iro descrever o caminho de um homem pela vida em busca de si mesmo. A literatura francesa apresenta, mais uma vez, a obra principal do ciclo de Tria: Le roman de Tioie de Benoit de Saint-More (*), vasta epopia de 30.000 versos, baseada nos escritos apcrifos de Dictys e Dares, transformando o assunto antigo em "roman courtois" dos mais banais; a Benoit de Saint-More atribui-se tambm o Roman de Thbes, baseado em Estcio, que alcanou a mesma popularidade, e uma verso da Eneida, o Roman d'Enas. A apreciao dessas obras, hoje ilegveis, como "anacronismos enormes", injusta. Benoit e os seus contemporneos adaptaram a Antigidade ao gosto do seu tempo, nem mais nem menos do que fizeram outras pocas, e a enormidade do anacronismo compensada pelo xito: os assuntos "mortos" tornaram-se, outra vez, vivos. A filologia moderna no conseguiu tanto. Neste sentido, foi bem merecido o sucesso internacional ^"): nota-se at uma Conquista de Tioya galega, alm de uma Istonetta trojana em dialeto dos subrbios de Roma. Mas o grande mediador foi, desta vez, um italiano, Guido delle Colonne, que escreveu em latim, por volta de 1287, a Historia Destruxionis Troiac. Desta obra fastidiosa existem numerosas tradues, verses, versificaes e prosificaes: a espanhola, de Lopez

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Benoit de Saint-More, c. 1160. Roman e Troie. Edio por L. Constans, 6 vols.. Paris, 1904/1912. Koman e Thbes. Edio por L. Constans, Paris, 1890. Roman d'Enas. Edio por Salverda de Grave, Halle, 1891. A Joly: Benoit e Saint-More et le Roman de Troie, ou Mtamorphose 'Homre et e Vepope grco-latine au Moyen Age. 2 vols. Paris, 1870/1871. 50) W. Greif: ZJie mittelalterlichen Bearheitungen der Trojanersage. Marburg, 1886.

de Ayalla, a galega, de Fernn Martinez, a Geste Historale oi the Destruction oi Tioy e o Troy Book, de John Lydgate, a Histoire van Troyen, do holands Jacob van Maerlant, uma epopia alem de Konrad von Wuerzburg, uma verso tcheca. e at verses galica e blgara. O romance de Tebas existe igualmente em vrias lnguas, enquanto o sucesso do episdio de Dido e Enias, tratado em esprito mais ovidiano do que virgiliano. se limitava aos crculos aristocrticos: depois do romance de Benoit de Saint-More, que foi lido igualmente na Frana e na Inglaterra normanda, assinala-se a Eneit (c.1180), do holands Hendrik van Veldek, escrita em alemo medieval. Sorte imensa sorriu ao romance fantstico de Alexandre Magno ( " ) . A Idade Mdia conhecia a traduo latina que certo Julius Valerus tinha feito do romance bizantino de Pseudo-Kallisthenes; as verses latinas do arcipreste Leo de Npoles e de Gualterius de Chtillon continuaram a tradio, que se cristalizou, no sculo X I I , no Rowan d'Alexandre, de Lambert le T o r t e Alexandre de Bernay. uma "geste" geogrfica, de viagens em pases de milagres, horrores, monstros ridculos e revelaes misteriosas. Existem dois "Alexandres" ingleses (Kyng Alisaunder e The Wars oi Alexander), nada menos do que trs alemes (de Lamprecht, Rudolf von Ems, Ulrich von Eschenbach), o Libro de Alixandre, espanhol (atribudo a Gonzalo Berceo), a Alexanders Gheesten, do holands Jacob van Maerlant, verses em islands, irlands e at era blgaro. A verso tcheca do sculo X I V , traduo livre da obra de Gualterius de Chtillon, um dos primeiros grandes documentos da literatura tcheca. A enumerao foi longa e fastidiosa; aquelas obras, lidas antigamente com tanto interesse, constituem hoje o51) P. Meyer: Alexandre le Grana ans Ia Uttrature du Moyen Age. 2 vols. Paris, 1886. G. Cary: The Medieval Alexander. Cambridge, 1956.

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OTTO MARTA CAUPEAUX

canto mais abandonado do grande cemitrio melanclico, que a histria da literatura universal. Contudo, s assim foi possvel dar uma idia do internacionalismo prodigioso da literatura medieval, da "prodigieuse similitude" que Tocqiieville encontrara em toda parte. A literatura aristocrtica medieval fortaleceu a unidade europia que o latim litrgico tinha criado entre as naes principais: os italianos e franceses, espanhis e portugueses, provenais e catales, ingleses, alemes e holandeses; estendeu as fronteiras literrias da Europa at a Dinamarca, Sucia, Noruega e Islndia. Preparou at a ocidentalizao futura dos eslavos.

CAPTULO IV OPOSIO. BURGUESA E ECLESISTICA

O

I N T E R N A C I O N A L I S M O do mundo medieval apenas uma, entre outras, das suas qualidades caractersticas que no se ajustam bem ao conceito convencional sobre a poca. E m geral, a Europa medieval imaginada como um crculo to hermticamente fechado quanto o sistema cosmolgico dos seus astrnomos; as Cruzadas parecem, ento, uma tentativa meio louca e infrutfera de sair da priso. Fechada, a Idade Mdia era-o sem dvida; no tomou nem quis tomar conhecimento de coisas fora da sua f e da sua geografia. Mas dentro do crculo havia vida e tumulto. A Europa do sculo X I I j no a da poca carolngia; j no s agrria, latifundiria. E n t r e Flandres e a Itlia, entre a Itlia e o Oriente, entre o Oriente e a Catalunha, h um comrcio considervel, e os novos centros desse comrcio so as cidades. Por volta de 1050, , segundo Pirenne, que a cidade se torna importante. Aliase aos bispos, na luta contra os senhores feudais. Cidades e bispos, juntos, criam os fundamentos de uma nova administrao. Outros frutos dessa colaborao so as universidades e a "Renascena do sculo X I I " . Dentro da organizao hierrquica da sociedade e do pensamento medievais, a cidade constitui um elemento novo; fatalmente vira elemento de oposio. A cidade medieval tornar-se- to sistematicamente oposicionista que no seu seio se iro criar todas as espcies de outras oposies. Haver a oposio do "popolo minuto" contra o "popolo grasso", dos pequenos burgueses contra os patrcios ricos; haver, mais tarde,

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OTTO MAIUA

CAHPEAUX

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