Historia de Campo Grande (1)

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i Engenhocas da moral: Uma leitura sobre a dinâmica agrária tradicional (freguesia de Campo Grande, Rio de Janeiro, século XIX) Manoela da Silva Pedroza Campinas, 2008

Transcript of Historia de Campo Grande (1)

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    Engenhocas da moral:

    Uma leitura sobre a dinmica agrria tradicional

    (freguesia de Campo Grande, Rio de Janeiro, sculo XIX)

    Manoela da Silva Pedroza

    Campinas, 2008

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    Manoela da Silva Pedroza

    ENGENHOCAS DA MORAL:

    UMA LEITURA SOBRE A DINMICA AGRRIA TRADICIONAL

    (FREGUESIA DE CAMPO GRANDE, RIO DE JANEIRO, SCULO XIX)

    Tese apresentada ao Programa de Doutorado em Cincias Sociais do

    Instituto de Filosofia e Cincias Humanas (IFCH) da

    Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) como parte dos

    requisitos para a obteno do ttulo de Doutor em Cincias Sociais.

    Orientador: Prof. Dr. Fernando Antnio Loureno

    Campinas, 2008.

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    FICHA CATALOGRFICA

    Ttulo em ingls: Gadgets of moral: a reading of the traditional agrarian dynamics (civil parish of Campo Grande, Rio de Janeiro, Brazil, 19th century)

    Palavras chaves em ingls (keywords) : rea de Concentrao: Processos e Identidades no Mundo Rural Titulao: Doutor em Cincias Sociais Banca examinadora:

    Data da defesa: 03-04-2008 Programa de Ps-Graduao: Cincias Sociais

    Microeconomics Land Use Inheritance and succession Family Rio de Janeiro History 19th century

    Fernando Antnio Loureno, Joo Luiz Ribeiro Fragoso, Renata Medeiros Paoliello, Ligia Osrio Silva, Emlia Pietrafesa de Godoi

    Pedroza, Manoela da Silva

    P343e Engenhocas da moral: uma leitura sobre a dinmica agrria tradicional (freguesia de Campo Grande, sculo XIX / Manoela da Silva Pedroza - - Campinas, SP : [s. n.], 2008.

    Orientador: Fernando Antnio Loureno.

    Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.

    1. Microeconomia. 2. Terra Uso. 3. Herana e sucesso. 4. Famlia. 5. Rio de Janeiro Histria Sc. XIX. I. Loureno, Fernando Antnio. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo.

    cn/ifch

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    Manoela da Silva Pedroza

    ENGENHOCAS DA MORAL: UMA LEITURA SOBRE A DINMICA AGRRIA

    TRADICIONAL (FREGUESIA DE CAMPO GRANDE, RJ, SCULO XIX)

    Tese apresentada para obteno do grau de Doutor em Cincias Sociais do Instituto de

    Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a

    orientao do Prof. Dr. Fernando Antnio Loureno.

    Este exemplar corresponde redao final da Tese defendida e aprovada pela Comisso

    Julgadora em 3 de abril de 2008.

    Comisso Julgadora:

    ________________________________

    Prof. Dr. Fernando Antnio Loureno Orientador Universidade Estadual de Campinas

    ________________________________

    Profa. Dra. Emlia Pietrafesa de Godoi

    Universidade Estadual de Campinas

    ________________________________

    Profa. Dra. Lgia Maria Osrio Silva

    Universidade Estadual de Campinas

    _______________________________

    Prof. Dr. Joo Luis Ribeiro Fragoso

    Universidade Federal do Rio de Janeiro

    ________________________________

    Profa. Dra. Renata Medeiros Paoliello

    Universidade Estadual Paulista

    Suplentes: Prof. Dr. Antnio Carlos Juc de Sampaio UFRJ, Profa. Dra. Silvia Hunold Lara

    UNICAMP, Prof. Dr. Rubem Murilo Leo Rego - UNICAMP.

    Campinas, abril de 2008

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    Para Seu Manel e Tia Cassinha, meus pais.

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo ao CNPq, pelos 34 meses de bolsa de doutorado, CAPES, pelos 12 meses de

    bolsa PDEE, FAEPEX e ao PPG de Cincias Sociais da UNICAMP, por terem fornecido

    recursos financeiros em momentos importantes da coleta de dados e participao em um

    congresso. UNICAMP, pela infra-estrutura que oferece a seus estudantes e pela seriedade de

    seu projeto acadmico, particularmente a toda a equipe da biblioteca do IFCH, da biblioteca

    Central, do laboratrio de informtica, do AEL e do RU, sempre disponveis, sempre solcitos,

    competentes e atenciosos. Alm do pessoal da cantina, da Xerox, da livraria, que s me

    ajudaram.

    Devo lembrar-me dos professores Mauro Almeida, Omar Thomaz e Emlia Pietrafesa,

    pela confiana depositada desde a entrevista de seleo, pela orientao, pelos ensinamentos, por

    tudo o que aprendi de antropologia rural. Ao Clcio, por ter me ensinado a usar o SPSS. A

    Fernando Antnio Loureno, meu orientador, incentivador, interlocutor sagaz, o rei da

    referncia bibliogrfica, da conversa descontrada e do companheirismo, pessoa muito especial

    que vai estar para sempre nas minhas lembranas e no meu corao. Aos meus orientadores

    externos Giovanni Levi e Afrnio Garcia, e aos professores da EHESS, principalmente Grard

    Baur, Josph Goy, Michel Demonet e Pascal Cristofoli, pela acolhida e interlocuo. s

    professoras Silvia Lara e Lygia Sigaud pelas valiosas contribuies na banca de qualificao.

    s assistentes de pesquisa Maria Cristina Martins, Vanessa Ramos, Morgana Maselli,

    Maya, Karen, que foram meus braos e olhos quando eu mais precisei. dona Joyce,

    funcionria do Arquivo Nacional, por ter sempre me acolhido com presteza e simpatia.

    Aos colegas de turma e dos cursos da UNICAMP e ao pessoal do CERES,

    particularmente ao Z Carlos, Diva, Nunes e Celso, que tornaram o cotidiano campineiro mais

    afvel. Aos colegas brasileiros da EHESS, Paula, Iara, Isabel, Lzaro, Roberto, Silvana, por terem

    levado um frescor tropical quele inverno de 2006. Marcela Asi, Susana Laub, Patrcia

    Cherubim, Yhan e Yvette Ballet, por terem superado expectativas, extrapolado barreiras e se

    tornado amigas que independem de tempo e de espao. Aos colegas de Peruggia, Sam Goldman,

    Ian MacLain, Debra, Fiorenza Vassalo, Isabel Pinto, Hassein, Nora Zambo, Istvn, pelos bons

    momentos compartilhados.

  • x

    Aos velhos amigos Maurcio Fried, mesmo mais longe, Arlene, mais longe ainda, pela

    tolerncia, coleguismo, discusses acadmicas, puxes de orelha, praia, concursos e carnavais.

    Luciana, por ser amiga desde que o mundo mundo e continuar com o mesmo astral, tambm

    um pouco mais longe, Ao novo amigo Jos Luiz Santos de Faria, do Arquivo Nacional, do

    Salesiano, de Santa Rosa, pra nos provar que sempre tempo de fazer amigos.

    Ao Tiago Gil, por ter sido amigo demais da conta, paciente, quebrador de todos os

    galhos informticos, mentor da base de dados, amigo estilo velhos tempos, daqueles que no se

    fazem mais. Ao professor Joo Fragoso, por ter me adotado na etapa final desse trabalho, por

    ter sido orientador, colega e incentivador. Martha Hameister e Bruna Sirtori, pela ajuda com

    os batismos, ris de desobrigas, crianas expostas e sem nome, e tantos outros percalos. E a

    tantos outros que contriburam para esse trabalho nos ltimos quatro anos, e que

    compreendero que a memria j no me ajuda neste final de tese.

    minha famlia que toda carinho, cada um do seu jeito, cada um no seu canto

    (Engenhoca, Itaipu, Sap, Itabora, Cear, Campos), especialmente Maria, Milton, Flvia, Aline,

    Vnia, Luiz Felipe, Fernando, Valria, rica, Hugo, Marta, Bianca, lvaro Jos e meu irmo

    Guilherme. E minha segunda famlia porto-alegrense Eitor, Irene, Diego, Andressa e Ktia. A

    todos esses parentes-amigos por terem me acolhido na diferena, por terem pacincia, por serem

    muito especiais.

    Aos meus pais, Manoel e Rita, por serem os melhores pais do mundo, os melhores

    amigos, os melhores companheiros de viagens, trabalhos, sonhos, problemas, crises, almoos,

    sambas, praias, alm dos melhores digitadores de fontes, os melhores revisores de texto, aqueles

    com quem eu tive a imensa sorte de compartilhar essa tese e essa vida.

    Ao meu marido, Tiago, por ser o companheiro de todas as horas, por ter agentado esse

    doutorado maluco, por compartilhar esse e outros sonhos.

    Largo do Marro, 29 de fevereiro de 2008.

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    RESUMO

    O objetivo dessa tese conhecer os mecanismos que determinavam a dinmica agrria

    em uma sociedade rural tradicional. A partir da anlise de registros paroquiais (casamentos,

    batismos e terras), processos judiciais e inventrios, percebemos que essa engrenagem passava

    longe de uma racionalidade econmica moderna, e mais perto de um sistema denominado, por

    alguns autores, de economia moral. Sendo assim, situamos as condies de formao dessa

    economia moral, e buscamos entender como ela se sustentou e geriu com relativa autonomia a

    circulao de terras, at bastante avanado o sculo XIX. Para entender sua formao, so

    analisadas as relaes dinmicas entre o contexto scio-econmico, as estratgias familiares e a

    produo agrcola no sculo XVIII, com nfase nos senhores de engenhos de acar do

    Recncavo da Guanabara. Em seguida, so caracterizados os elementos bsicos desse sistema

    normativo: a centralidade do senhor de engenho, a herana preferencial, a vontade do testador,

    os intercmbios estratgicos entre parentela consangnea, matrimonial e ritual, a hierarquia dos

    direitos de uso e os compromissos corporativos assumidos pela 'casa' em relao ao direito de

    subsistncia de seus membros. Verificamos que a efetividade dessa moral local conferia

    estrutura agrria da regio caractersticas originais e bastante estveis no tempo, tornando-a

    capaz de adaptar-se ou superar parte das dificuldades impostas tanto pela conjuntura econmica

    quanto por suas prprias contradies. Analisamos a funcionalidade das fazendas pro indiviso, dos

    stios e da hierarquia de acesso s terras livres. Verificamos tambm o funcionamento da moral

    tradicional e suas respostas nos conflitos sobre a derrubada de matos e o acesso a terras

    devolutas. Discutimos as variantes senhoriais impostas pela crise econmica e pela fragmentao

    das terras pela herana. Depois, analisamos os impactos do novo mercado de terras e dos

    interesses econmicos de fora sobre essa moral tradicional. Por fim, se discutem os

    elementos geradores da ruptura desse sistema, no como processos alheios a vontade dos

    homens, mas como manipulaes estratgicas nos direitos costumeiros por parte de agentes

    locais.

  • xii

    ABSTRACT

    This dissertation aims to investigate the mechanisms which determined the agrarian

    dynamics in a traditional rural society. Based on parish records (weddings, baptisms and lands),

    lawsuits and inventories, it was observed that this organization was far from being ruled by a

    modern economic rationality; instead, it approached a system named moral economy by some

    authors. The study seeks to establish the conditions whereby this moral economy was formed, in

    an attempt to understand how it supported itself and managed the circulation of lands with

    relative autonomy throughout the 19th century. In order to understand its formation, special

    emphasis was placed on the sugar mills masters from the Recncavo da Guanabara.

    Subsequently, a characterization of the basic elements of this normative system is provided: the

    central role played by the sugar mill master, the preferential inheritance, the willingness of the

    testator, the strategic exchanges among consanguineous, matrimonial and fictitious relatives, the

    hierarchy in the usage right, and the corporative commitments made by the household, as far

    as the rights to subsistence of its members were concerned. It was observed that the

    effectiveness of this local moral rendered the agrarian structure of the region some original

    features, which were quite stable throughout time, making it possible for it to adjust to or

    overcome part of the difficulties imposed by both the economic situation and its own

    contradictions. An analysis of the functionality of the pro indiviso farms, the ranches and the

    hierarchy in the access to free lands was carried out. In addition, the functioning of the

    traditional moral and its responses to the conflicts over the clearing of thickets, the access to

    returned lands and invasion was verified. The image of the tenants led to an investigation of the

    reason why they had such an inferior social position in that moral hierarchy. The study also

    provides an analysis of the variants regarding the masters, which were imposed by the economic

    crisis and the fragmentation of the lands through inheritance, as well as an examination of the

    impact caused by the new land market and the external economic interests over this traditional

    moral. Finally, the elements responsible for this rupture are discussed, not as processes alien to

    the will of men, but rather as strategic manipulations of the customary rights by local agents.

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    LISTA DE TABELAS E GRFICOS 11

    DPM 1- Famlia Cardoso dos Santos, primeira gerao na Fazenda de Cabuu 31

    DPM 2 - Famlia de Manoel Nunes de Souza, imediaes de Sapopemba, Iraj (1696-1750) 39

    Grfico 1 - Casamentos nas Parquias Rurais do Rio de Janeiro (1661 -1802) 41

    Grfico 2 - Senhores de engenho como Padrinhos de casamento (Iraj, 1785-1800) 44

    DPM 4 - Famlias Pereira Lemos e Castel Branco, Engenho de Sapopemba,Iraj 51

    DPM 5 - Famlia Garcia do Amaral, Engenho do Viegas 59

    DPM 6 Descendentes de Pedro Galvez Palena em Campo Grande (Viegas, 1717-1820) 62

    Tabela 1 - Transmisses de Engenhos em Campo Grande (1777-1813) 70

    DPM 7 Senhores e Sitiantes da Freguesia de Campo Grande (1813) 74

    Grfico 3- Mo-de-Obra Comparada em Campo Grande (1777-1813) 77

    Grfico 4- Avaliao de Bens de Manoel Rodrigues de Amorim (1820) 86

    Grfico 5 - Produo agrcola da Fazenda do Pedregoso (1783) 87

    Grfico 6 - Avaliao de bens de Manoel Rodrigues de Amorim (1829) 98

    Grfico 7 - Devedores do Alferes Manoel Antunes Susano (1819) 105

    Figura 2 - Padrinhos em Campo Grande (1785-1827) 116

    DPM 8 - Descendentes do advogado Manoel Antunes Susano, Fazenda do Pedregoso 137

    DPM 9 - Famlia do sesmeiro Manoel Antunes Susano, 1 gerao em Campo Grande (1706-1794) 141

    DPM 10 Estratgias matrimoniais dos Antunes Susano 144

    DPM 11 - Descendentes do alferes Manoel Antunes Susano, Fazenda do Viegas e Coqueiros 148

    DPM 12 - Alianas Matrimoniais entre famlias Coelho Borges, Gomes de Campos e Galvez Palena, Fazenda do

    Viegas 151

    DPM 13 - Engenho do Viegas, histrico Patri-matrimonial 154

    DPM 14 Descendentes do Capito Jos Antunes Susano, Fazendas Capoeiras e Inhoaba. 157

    DPM 15 - Famlia Fernandes Barata 160

    DPM 16 Herdeiros do dizimeiro Marcos Cardoso dos Santos (1720-1809) 167

    DPM 17 Descendentes de Mateus Antunes Susano, Rio da Prata do Pau Picado (1767- 1835) 188

    DPM 18 - Anna Joaquina do Nascimento (Rio da Prata do Pau Picado, 1766-1851) 190

    Grfico 8- Padrinhos senhoriais em Campo Grande (1785-1827) 194

    DPM 19 - Famlia Coelho Borges (Terras do Viegas, 1696-1820) 203

    1 Em tempo, lembramos ao leitor que, por questes de visibilidade, a maior parte dos DPM Diagramas Patri-Matrimoniais foi reproduzida a cores e ampliada nos Anexos, ao final desse trabalho.

  • xiv

    Tabela 3 - Quadro comparativo do total de dvidas 229

    Tabela 4- -Quadro comparativo do total de bens inventariados 231

    DPM 20 - Famlias Saraiva-Dantas, Teixeira da Fonseca e Cardoso dos Santos Paiva, desmembramentos da

    Fazenda Cabuu 233

    DPM 21- Fazenda Cabuu, desmembramentos por geraes 237

    DPM 22 - Famlia Coelho da Silva, Fazenda de Juari e desmembramentos 240

    DPM 23 - Famlia Cardoso dos Santos, Situao Campo de Fora 244

    DPM 24 - Herdeiros de Vitria Barreto de Sena, filha do capito Jos Antunes Susano, Fazendas de Inhoaba,

    Capoeiras, Guandu e Santa Rosa 252

    DPM 25 - Declarantes da Fazenda Capoeiras nos Registros Paroquiais de Terras 255

    DPM 26 - Famlia Silva Marques, Fazenda do Rio da Prata do Mendanha 256

    DPM 27 - Declarantes da Fazenda Cabuu 265

    Grfico 9- Empreendimentos Agrcolas de Campo Grande por ano 279

    Grfico 10 - Empreendimentos agrcolas de Campo Grande por Local 280

    Mapa 1- Terras realengas ou de religiosos nos Sertes Cariocas 308

    Tabela 5 - Modelo de hierarquia de direitos de uso, caso da fazenda das Capoeiras 319

  • xv

    LISTA DE ABREVIATURAS

    ACARJ Arquivo da Cria Metropolitana da Arquidiocese do Rio de Janeiro

    AGCRJ Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro

    AN Arquivo Nacional

    DPM Diagrama Patri-Matrimonial (Termo da autora)

    LIPHIS Laboratrio de Pesquisa em Histria, IFCS UFRJ

    LRT Livro de registro de terras da freguesia de Campo Grande

    UMO Unidade de Mo-de-Obra. (Termo da autora).

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  • xvii

    SUMRIO

    Resumo ............................................................................................................ xi Abstract ........................................................................................................... xii Lista de tabelas e grficos ............................................................................... xiii Lista de abreviaturas ....................................................................................... xv Sumrio .......................................................................................................... xvii Glossrio ......................................................................................................... xxi Introduo ......................................................................................................... 1 Captulo I Formao das redes sociais na Freguesia .......................................... 27

    Introduo ........................................................................................................ 27

    Parte I Organizao das primeiras redes (1706-1777) ....................................... 29

    Jos Cardoso dos Santos e a fazenda de Cabuu ................................................................ 29

    Manoel Nunes de Souza e as moas pobres de Iraj ........................................................ 36

    Manoel Antunes Susano e a sesmaria do Pedregoso ......................................................... 43

    Antnio Castel Branco e o engenho de Sapopemba ........................................................... 49

    Antnio Garcia do Amaral e o engenho do Viegas ............................................................. 57

    Pedro Galvez Palena .......................................................................................................... 61

    Parte II Redes sociais no cotidiano (1777-1813) ............................................... 64

    Relatrios e Visitas: a situao dos engenhos (1777-1813) ................................................ 65

    Famlias de sitiantes ............................................................................................................ 80

    Produo agrcola ............................................................................................................... 85

    Transportes e comrcio ...................................................................................................... 94

    Financiamento e investimentos ........................................................................................ 103

    Mercado de terras e engenhos ......................................................................................... 118

    Concluso ........................................................................................................ 126

    Bibliografia do captulo I .................................................................................. 130

    Captulo II Redes de parentela ........................................................................ 135

    Introduo ....................................................................................................... 135

    Parte I - Parentelas senhoriais .......................................................................... 136

    Famlia Antunes Susano .................................................................................................... 136

  • xviii

    Famlia Castel Branco-Pereira Lemos ................................................................................ 143

    Famlia Fernandes Barata .................................................................................................. 158

    Famlia Cardoso dos Santos .............................................................................................. 165

    Estratgias patri-matrimoniais senhoriais ........................................................................ 170

    Parte II - Excludos senhoriais ......................................................................... 184

    Sitiantes do Rio da Prata do Pau Picado ........................................................................... 186

    Famlia Coelho Borges ....................................................................................................... 199

    Estratgias matrimoniais de sitiantes ............................................................................... 205

    Concluso ........................................................................................................ 210

    Bibliografia do captulo II.................................................................................. 221

    Cap III Variantes e Inovaes da Dinmica Agrria Tradicional (1830-1889) .... 225

    Introduo ....................................................................................................... 225

    Primeiras disputas pelo patrimnio senhorial (1830-1844) ................................ 229

    O absentesmo preferencial da Fazenda do Pedregoso .................................................... 230

    A apelao de partilha entre herdeiros da Fazenda de Inhoaba ..................................... 232

    A convergncia e decadncia social na Fazenda Juari ...................................................... 233

    Medio, fragmentao e conflitos na Fazenda da Cabuu.............................................. 234

    A ascenso dos herdeiros Coelho da Silva ........................................................................ 240

    Registros paroquiais senhoriais e seus desdobramentos (1854-1889) ................ 245

    Fazenda Pedregoso ........................................................................................................... 246

    Fazenda das Capoeiras e Guandu ..................................................................................... 254

    Fazenda Coqueiros ............................................................................................................ 260

    Fazenda do Viegas ............................................................................................................. 261

    Fazenda do Rio da Prata do Cabuu .................................................................................. 264

    Fazenda do Cabuu ........................................................................................................... 268

    Registros paroquiais de terras de sitiantes e seus desdobramentos (1854-1889) 271

    Herdeiros de Mateus Antunes Susano .............................................................................. 271

    Herdeiros do capito Incio Coelho Borges ...................................................................... 274

    Estabilidade da dinmica agrria tradicional ..................................................... 277

    Os empreendimentos familiares ....................................................................................... 279

    O mercado tradicional de terras e fbricas ....................................................................... 285

  • xix

    Concluso ........................................................................................................ 288

    Bibliografia do captulo III................................................................................. 293

    Captulo IV Limites, Conflitos e Rupturas ...................................................... 295

    Introduo ....................................................................................................... 295

    Conflitos sobre Limites ..................................................................................... 296

    Madeira ............................................................................................................................. 296

    Derrubadas e posse .......................................................................................................... 299

    Conflitos de cercas ............................................................................................................ 300

    Conflitos com arrendatrios ............................................................................. 305

    Panorama geral ................................................................................................................. 307

    Arrendamentos e economia moral ................................................................................... 315

    Arrendatrios e sitiantes ................................................................................................... 317

    Arrendatrios e senhores.................................................................................................. 321

    Arrendatrios e justia ...................................................................................................... 323

    Justia e moral .................................................................................................................. 328

    Conflitos por direitos de herana ...................................................................... 336

    Francisco Cardoso dos Santos Peixoto .............................................................................. 336

    Marcolino da Costa Borges ............................................................................................... 336

    Maria Isabel da Conceio ................................................................................................ 340

    Conflitos pelo direito de propriedade ............................................................... 343

    A cesso de direitos de herana ....................................................................................... 344

    Os ttulos de propriedade ................................................................................................. 345

    Concluso ........................................................................................................ 359

    Concluso ...................................................................................................... 367 Eplogo .......................................................................................................... 373 Fontes ........................................................................................................... 377 Bibliografia .................................................................................................... 383 Anexos .......................................................................................................... 395

  • xx

  • xxi

    GLOSSRIO

    Esse glossrio no tem pretenso de ser completo ou exaustivo, j que existem obras mais especializadas sobre medidas de poca. Sobretudo para as medidas agrrias e suas variantes regionaisdata, prazo, sorte, sesmaria, etc. trabalhos de historiadores que discutiram os termos utilizados nos registros paroquiais de terras de localidades diferentes podem ser de muita valia.2 Gostaramos apenas de compartilhar com o leitor a dificuldade de se falar em medidas exatas de terras, plantaes e produtos, se dependemos das referncias contidas em fontes histricas. Explicitamos aqui, portanto, um dos meandros de nosso trabalho, que foi o de conseguir fazer esse tipo de investigao e clculo, cujos resultados foram expressos no correr dessa tese. preciso remarcar que utilizamos, recorrentemente, as medidas fornecidas por Nilo Cairo, no Guia Prtico do Pequeno Lavrador, editado em 1938. Encontramos fortuitamente muitas informaes de qualidade no site http://www.imoveisvirtuais.com.br/medidas.htm. Essas e outras referncias para essa pesquisa esto citadas em bibliografia.

    Medidas de comprimento Braa Do latim brachia, plural brao, equivalente a 10 palmos, ou 2,2 metros. Braa

    tambm unidade de comprimento do sistema ingls, equivalente a cerca de 1,8 metro

    Covado 0,68 metro

    Dedo Correspondia a 2/3 da polegada (16,5 mm). Considerava-se a largura do dedo com a mo espalmada.

    Lgua Segundo Nilo Cairo (Cairo 1938. ), equivale a 6.500 metros ou 3.000 braas. Segundo Dicionrio Aurlio equivale a 6.000 metros. O Aurlio refere-se, tambm, lgua de sesmaria, medida itinerria antiga, equivalente a 6.600 metros.

    Palmo 0,22 metro ou 8 polegadas

    P 0,33 metro

    Polegada 0,027 metro

    Vara 1,10 metro

    Medidas de capacidade para lquidos

    Cargueiro 80 litros

    Dcimo (de pipa) 40 litros

    Pipa Meio tonel, ou de 400 a 480 litros

    2 Castro 1987. Graner 1985. Silveira 1998. Souza 1992.

  • xxii

    Quartola Pequena pipa para o transporte de gua, equivalente a um quarto de tonel.

    Quinto (de pipa) 80 litros

    Tonel Equivalente a duas pipas, de 500 a 600 litros aproximadamente.

    Medidas de Capacidade para Secos e Medidas de Peso

    Alqueire (medida de secos) Equivale a 36,27 litros ou a quatro 'quartas'. Dependendo da regio pode equivaler de 10 a 14 litros de cereais, (mais comumente a 13 litros), ou de 11 e 15 quilos.

    Arroba 15 quilos

    Caixa 3 quintais (para acar), tambm chamada de po de acar

    Carro de cana 1500 quilos no Estado do Rio de Janeiro

    Carro de milho 800 litros no Estado do Rio de Janeiro

    Libra 500 gramas

    Metro Quadrado (m2) 700 quilos (de lenha)

    Ona 28,3 quilos

    Quarta 120 gramas

    Quarto (de alqueire) varia de 10 a 80 litros

    Quintal 40 arrobas

    Saco de acar 60 quilos no Estado do Rio de Janeiro

    Sacos diversos 100 litros aproximadamente.

    Medidas Agrrias (superfcie)

    Para a medida de superfcie, a unidade legal adotada atualmente o metro quadrado. Porm, as unidades agrrias antigas so quase todas derivadas da braa de 2,20 metros. Estas unidades de acordo com a regio ou zona em que so empregadas, adquirem designao prpria e carter tipicamente regional, visto no possurem valores definidos, variando em funo das qualidades da terra e de outros fatores.

    Alqueire Medida baseada na quantidade de terreno que se pode cobrir com um alqueire de semeadura, aproximadamente 100 braas (de 2,20 metros) ou 15.625 palmos quadrados (cerce de 4,48 hectares). Varia de acordo com o nmero de litros ou pratos de plantio de milho que comporta, segundo os costumes locais. Da a expresso de alqueire de tantos litros ou alqueire de tantos pratos. Esta quantidade de semente de plantio varia muito de regio para regio, de um mnimo de 20 litros a um mximo de 320 litros, correspondendo desde o alqueire de 50 x 50 braas (1,21 ha) at o de 200 x 200 braas (19,36 ha).

    Alqueire fluminense Mediria 27.225 m, equivalente a 75 x 75 braas, mas, em outras referncias, tem a mesma medida do alqueire mineiro.

  • xxiii

    Alqueire mineiro (Tambm usado no Rio de Janeiro) 100 braas X 100 braas, ou 48.400,00 m2, ou 4,84 ha, ou 10.000 braas quadradas. ( o dobro do alqueire paulista)

    Alqueire paulista 24.200 m2, ou 5.000 braas quadradas, ou 2,42 hectares

    Biboca Casebre barreado, casa de barro. (Correa 1936. )

    Braa (superfcie) Segundo Fridman, seria uma braa de sesmaria = 2,2m X 6,6 km = 14520 m2 = 1,4 hectare. (Fridman 1999. P. 217)

    Braa quadrada Equivale a 4,84 m2, ou 30 x 30 braas, aproximadamente

    Hectare (ha) Equivale a 100 ares, ou 1 hectmetro quadrado, ou 10.000 metros quadrados.

    Lgua quadrada Segundo Garavaglia, na Argentina mede 27 km2 (Garavaglia 1999. )

    Litro a rea do terreno em que se faz a semeadura de um litro (capacidade) de sementes de milho debulhado, num compasso de um metro quadrado, para cada cinco ou seis gros, cobrindo uma rea de 605 m2.

    Morgadio Tambm chamado morgado. Conjunto de bens indivisveis que, na morte do possuidor, passam para o primognito (Fridman 131). O morgado um vnculo entre um pai e sua descendncia no qual seus bens so transmitidos ao filho primognito, sem que este os possa vender. Por extenso, o morgado tambm o filho mais velho de um casal, beneficiado pelo morgadio ou no.

    Prato Corresponde rea de um terreno com capacidade de plantio de um prato de milho, sendo as suas dimenses de 10 x 20 braas ou 968 m2.

    Prazo Na Fazenda Nacional de Santa Cruz (Estado do Rio de Janeiro) equivalia a 16 alqueires, ou 77,44 m2. No geral, so chamados de prazos os grandes terrenos, arrendados pelo governo portugus a particulares por um determinado perodo. (Silveira 1998. p. 104)

    Quarta a medida de terreno correspondente quarta parte do alqueire. Dadas as variaes das dimenses do alqueire, a quarta varia na mesma proporo, isto , no mnimo de 25 x 25 braas a um mximo de 100 x 100 braas.

    Quilmetro Quadrado (km2) 1.000.000 m2, ou 100 hectares.

    Rancho Abrigo rural, com cobertura de sap e sustentado por moires, em duas guas. (Correa 1936. )

    Tarefa Medida agrria constituda para terras destinadas cana de acar. No Cear equivale a 3.630m, em Alagoas e em Sergipe a 3.052m e na Bahia a 4.356m. No temos a informao para o Rio de Janeiro.

    Testada Lado da frente do quadrado de uma fazenda, ou seja, aquele considerado de entrada, quase sempre limtrofe com uma estrada, caminho, ou com a testada de outrem. A testada se ope aos fundos, quase sempre no medidos. (definio da autora)

    Tigueira Roa depois da colheita. (Correa 1936. )

  • xxiv

    Vala cabocla Vala profunda de diviso de terras e domnios. (Correa 1936. )

  • xxv

    BIBL I OGRA FIA D O GL OSSRIO

    CAIRO, NILO. Guia prtico do pequeno lavrador destinado a pequena propriedade rural no Brasil. So Paulo: Livraria Teixeira. 1938

    CASTRO, HEBE MARIA MATTOS DE. Ao Sul da Histria: lavradores pobres na crise do escravismo. So Paulo: Brasiliense. 1987

    CORREA, ARMANDO DE MAGALHES. O serto carioca. Revista do IHGB, 170, 1936. pescrito em 1932.

    FRIDMAN, FANIA. Donos do Rio em nome do Rei: uma histria fundiria da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1999

    GARAVAGLIA, JUAN CARLOS. Pastores y labradores de Buenos Aires: una historia agraria de la campaa bonarense 1700-1830. Buenos Aires: Ediciones de la flor. 1999

    GRANER, MARIA PAULA. A estrutura fundiria do municpio de Araruama (1850-1920). Um estudo da distribuio de terras: continuidades e transformaes. (Dissertao de mestrado). PPG Histria- UFF, Niteri, 1985.

    SILVEIRA, JORGE LUIZ ROCHA. Transformaes na estrutura fundiria do municpio de Nova Iguau durante a crise do escravismo fluminense (1850-1890). (Dissertao de mestrado). PPG Histria- UFF, Niteri, 1998.

    TA B E L A S P A R A C O N V E R S O D E ME D I D A S AG R R I A S (H T T P ://W W W. I M O V E I S V I R T U A I S . C O M .B R/M E D I D A S. H T M )

    QUADRO - Tipos de alqueires Valor em Braa

    Valor Sistema Antigo Valor Sistema Mtrico Br Litro Prato m ha

    50 x 50 50 x 75 50 x 100* 75 x 75 75 x 80 80 x 80 75 x 100 100 x 100* 100 x 200 200 x 200*

    2.500 3.750 5.000 5.625 6.000 6.400 7.500 10.000 20.000 40.000

    20 30 40 45 48 - 60 80 160 320

    - - 25 - - 32 - 50 100 200

    12.100 18.150 24.200 27.225 29.040 30.976 36.300 48.400 96.800 193.600

    1,2100 1,8150 2,4200 2,7225 2,9040 3,0976 3,6300 4,8400 9,6800 19,3600

    Multiplique o Nmero de Por Para obter o equivalente em

    Are 100 metros quadrados Acres 4.047 metros quadrados Acres 0,4047 hectares Hectares 10.000 metros quadrados alqueires paulistas 2,42 hectares alqueires mineiros 4,84 hectares alqueires baianos 9,68 hectares alqueires do norte 2,72 hectares

  • xxvi

    SOUZA, SONALI MARIA DE. Da laranja ao lote: transformaes sociais em Nova Iguau. (Dissertao de mestrado). PPGAS- UFRJ, Rio de Janeiro, 1992.

  • 1

    INTRODUO

    No foi fcil chegarmos s engenhocas da moral, e parece justo que o leitor conhea ao

    menos os maiores percalos da nossa caminhada, para que tambm compreenda algumas

    limitaes deste trabalho. H exatos dez anos foi despertado o nosso interesse em pesquisar

    algum aspecto da histria agrria brasileira, na etapa da iniciao cientfica. Quando terminamos

    a graduao em histria, na Universidade Federal Fluminense, em 2001, depois de uma breve

    incurso sobre as imagens do trabalhador rural na primeira repblica, pensvamos em trabalhar

    com o que chamvamos de posseiros e suas formas de resistncia aos despejos violentos na

    Baixada Fluminense, na dcada de 1950. Na poca, a militncia no Movimento Sem Terra nos

    impeliu a continuar esse caminho um pouco mais ao Sul.

    Durante o mestrado, em 2001, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o recorte

    temporal e temtico escolhidoconflitos de terra no sculo XXnos obrigava a conhecer o

    debate no campo da Sociologia Rural, para o qual estvamos completamente despreparados.

    Nesse nterim, fundamentais para a nossa formao mais multidisciplinar foram os cursos no

    Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Rural, alm do aprofundamento nas leituras

    do Programa de Histria. Nesse meio tempo, havamos organizado uma considervel base de

    dados com fontes peridicas sobre conflitos no Rio de Janeiro e estvamos recolhendo dados

    recm disponibilizados do DOPS-RJ, um corpus documental da represso aos movimentos do

    campo, de onde emergiam, por exemplo, longos pronturios de lideranas camponesas que j

    conhecamos nos peridicos. Pela exigidade de tempo do novo mestrado, no foi possvel

    tratar daquelas fontes e de todo o debate na Sociologia Rural que nos interessava. Tivemos de

    eleger prioridades e ficamos com o ltimo, sobre o qual fizemos nossa dissertao. Assim, no

    utilizamos a maior parte das fontes coletadas, que ficaram para uma futura pesquisa de

    doutorado.

    O projeto de doutorado aprovado no Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais

    da UNICAMP, em dezembro de 2003, era para analisar os conflitos de terra nos sertes cariocas

    entre 1940 e 1968. Tnhamos as fontes e conhecamos uma considervel bibliografia sobre o

    assunto, sobretudo no que se referia histria agrria e sociologia rural para o Estado do Rio de

    Janeiro e Rio Grande do Sul. Mas optamos por um Programa de Cincias Sociais, porque, a

    nosso ver, urgia conhecer outros campos e temticas.

  • 2

    A experincia acadmica na UNICAMP foi bastante enriquecedora. Conhecemos o

    professor Fernando Loureno, nosso orientador, que se tornou tambm um incentivador e

    colega. Tivemos acesso a uma incrvel biblioteca que tinha ttulos que nem sonhvamos

    encontrar. Alm disso, o acesso a bases de dados internacionais nos levou ao conhecimento de

    artigos mais recentes e ao debate acadmico mais cosmopolita. Paralelamente, nas disciplinas da

    nossa rea de concentraoProcessos Sociais e Identidades no Mundo Ruralconsolidamos o

    que deveramos conhecer na Sociologia Rural, porm, foi a Antropologia Rural que se abriu para

    ns como um mundo maravilhoso de etnografias, cadernos de campo, conceitos e debates

    nunca dantes navegados.

    As metodologias antropolgicas aplicadas histria acabam por se desdobrar em

    microhistria. Durante 2004 e 2005, portanto, cursamos disciplinas e tentamos conhecer melhor

    um campo terico-metodolgico novo. A microhistria italiana se filia a trs paradigmas terico-

    metodolgicos: a antropologia etnogrfica de Mauss, Boas, Malinowski e Geertz, que pretende

    analisar relaes sociais concretas em seu contexto; a histria vista de baixo, de Edward

    Thompson, outra preocupada com a ao humana em seu contexto, mas especificamente

    pensada para o trabalho dos historiadores; e a noo de economia como produto histrico de

    relaes sociais, proposta por Karl Polanyi.3 A partir desses paradigmas, a proposta

    microanaltica entende que a reduo do objeto de investigao para campos pequenos a nica

    forma de perceber a microeconomia em contextos de escolhas reais, analisar as relaes em toda

    a sua complexidade, e no aceitar nada fora de um contexto. Alm disso, seguimos com a coleta

    de fontes disponveis na UNICAMP, sobretudo os Boletins Geogrficos e Revista Brasileira de

    Geografia, onde encontramos interessantes trabalhos de campo sobre a Baixada Fluminense a

    partir da dcada de 1930, e as obras raras da Coleo Srgio Buarque de Hollanda, na biblioteca

    Central.

    De novas leituras emergiam vrias questes. Isto porque os modelos construdos

    oscilaram, freqentemente, entre uma caracterizao rica, articulada, mas imvel, e outra de uma

    populao indefesa em relao s transformaes que vinham de fora.4 Isto , embora houvesse

    trabalhos sobre os grandes processos (modernizao, represso, mobilizao poltica), eles nos

    3 Levi 1992. 4 Levi 2000. (p. 44)

  • 3

    pareceram absolutamente unidirecionais: o grande-poder de um lado (ou de cima) e as suas

    pequenas-vtimas de outro (ou de baixo). E, em outro campo, os estudos de vis mais micro

    antropolgico se assemelhavam, a nosso ver, a um mosaico pouco entrosado, em que descries

    densas no se relacionam umas com as outras em tentativas de snteses explicativas mais amplas,

    que dessem conta da diversidade de resultados e respostas aos mesmos determinantes.

    Nessa poca, j desconfivamos que a viso teleolgica do processo de expropriao

    fundiria tivesse projetado sobre um passado muito recente uma inexorabilidade que ele no

    comportava. Concordando com Dbora Pupo, em sua anlise sobre a Sabinada baiana,

    julgvamos que as anlises produzidas sobre conflitos pela posse da terra reafirmassem a idia de

    que havia apenas um nico caminho a ser trilhado por uma regio agrcola: ser transformada em

    zona suburbana perifrica cidade do Rio de Janeiro. Ficava patente para ns a hegemonia de

    uma viso nica da histria, em que o projeto vencedor seria o nico possvel, e que todos os

    outros, perdidos, reprimidos ou sufocados, seriam inferiores, anmalos, desviantes dessa rota

    nica em direo ao progresso da Nao.5

    Comevamos a perceber que tnhamos perguntas que s seriam respondidas com uma

    mudana de escala na anlise dos processos de expropriao fundiria e mobilizao poltica.

    Mudana que nos permitisse ampliar o conhecimento acerca da capacidade scio-poltica de

    pessoas que, localmente, colaboraram ou reagiram segundo suas estratgias pessoais ou

    familiares aos grandes processos. Cada vez mais nos convencamos de que grandes

    transformaes sociais fossem fruto da ao e da reflexo de pessoas ou grupos que, mesmo que

    no tivessem projetado resultados mais amplos (agindo muitas vezes por interesses pessoais ou

    corporativos), acabaram produzindo diferenciais, e nos intrigava saber como essas aes

    facilitaram, impediram ou desviaram os rumos projetados por outras pessoas, sobretudo pelas

    agncias e agentes do Estado. Em outros termos, comevamos a construir a hiptese de que

    existia uma articulao estreita entre as opes microscpicas dos sujeitos com a construo dos

    macro fenmenos e, principalmente, que a anlise dessas articulaes poderia lanar novas luzes

    sobre a gnese, transformaes e resultados do processo de urbanizao dos sertes cariocas.

    5 Cf. PUPO, Dbora. Doutor Sabino in VESPUCCI, Ricardo (ed) Rebeldes Brasileiros: homens e mulheres que desafiaram o poder. So Paulo. Editora Casa Amarela. S/d (vol 1)

  • 4

    Terminadas as disciplinas na UNICAMP, era tempo de arquivos. Com os jornais da

    Biblioteca Nacional, peridicos da UNICAMP e pronturios do DOPS j coletados, fomos em

    busca de processos judiciais no Museu da Justia, no Arquivo Pblico do Rio de Janeiro e no

    Arquivo Nacional. Neste ltimo as nossas certezas se dissolveram. A documentao depositada

    no Arquivo Nacional foi de uma riqueza inesgotvel. Certamente por inexperincia e despreparo

    metodolgico, durante meses de 8 horas de trabalho por dia, 5 dias por semana, no segundo

    semestre de 2005 e primeiro de 2006, ainda no era possvel dizer que havamos esgotado algum

    corpus documental, que dir todos os que nos interessavam. Passamos do fundo IBRA para o

    fundo TERRAS, deste para os processos criminais, depois para os processos diversos e, meio

    sem querer, nos deparamos com a documentao da Fazenda Imperial de Santa Cruz.

    O impacto foi enorme. Depois de anos lidando com reportagens e fontes de segunda

    mo, que dizem o que os outros fazem ou devem fazer, vamos, pela primeira vez, os homens e

    mulheres efetivamente fazendo sua histria, sem mediadores. As pessoas estavam ali,

    conflitando com os projetos governamentais para aquelas terras, teimando em no pagar foros,

    fazendo parte da construo histrica daqueles sertes e, se no estavam em carne e osso, pelo

    menos tinham nomes, sobrenomes, endereos, lotes, problemas... e muitos! A documentao

    nos parecia to densa que justificava uma mudana de nossos recortes de pesquisa: resolvemos

    recuar um pouco no tempo, e acompanhar a vida e problemas agrrios dos foreiros da Fazenda

    entre 1920 e 1940.

    Tomada a deciso, era necessrio arregaar as mangas, pois o fundo era imenso.

    Trabalhamos sem parar, envolvemos duas assistentes de pesquisa e mesmo a nossa famlia no

    tabelamento de dados, e assim chegamos data limite do exame de qualificao, em maio de

    2006. Infelizmente, o despreparo terico-metodolgico, agravado pela mudana recente de

    temas e fontes, teve suas conseqncias na qualidade do nosso trabalho. Mas as ponderaes da

    banca examinadoraprofessoras Lygia Sigaud e Silvia Lara, sobretudo seu incentivo para que

    trilhssemos esses novos caminhos, nos motivaram a partir para um estgio de doutorado no

    exterior com vontade de aprender a fazer histria de verdade. Bastava de amadorismo, era o que

    nos repetamos.

    Cinco meses na Universidade Ca Foscari e na biblioteca Querini Stampalia, em Veneza,

    sob a orientao do professor Giovanni Levi, mudaram nossas concepes sobre a microhistria

    italiana. O que nos chegava, no Brasil, no era nada comparado diversidade de autores e

  • 5

    riqueza das temticas e trabalhos que encontramos in loco. Era preciso tirar o atraso, e

    mergulhamos numa bibliografia riqussima, casos, discusso terico-metodolgica. Aprendemos

    com Levi que em nvel local possvel ver a estrutura folheada do social, o espao concreto de

    interao entre vrias temporalidades no presente e de vrios nveis de interveno que, em

    disputa, tambm davam abertura s aes e apropriaes estratgicas das normas ou de suas

    brechas. Segundo ele,

    Nos intervalos entre sistemas normativos estveis ou em formao, os grupos e as pessoas atuam com uma prpria estratgia significativa, capaz de deixar marcas duradouras na realidade poltica que, embora no sejam suficientes para impedir as formas de dominao, conseguem condicion-las ou modific- las.6

    Reforando essa idia, lembrvamos das lies de E. P. Thompson7 de que a histria no

    se faz de processos abstratos, mas sim de atos, reflexos e erros de pessoas concretas, homens e

    mulheres tambm portadores de interesses de classe. J era possvel perceber, por exemplo, no

    emaranhado dos conflitos e tambm na sua represso, que os agentes do Estado eram

    portadores de interesses que se combinavam confusamente entre si, muitas vezes inoculando-se

    mutuamente ou permitindo brechas em que outros grupos tinham possibilidade de atuar.

    Ao final do soggiorno em Veneza, nos sentamos um pouco mais vontade na seara da

    microhistria, e a julgvamos cada vez mais pertinente como opo de anlise para um macro

    fenmeno. Em nosso ver, mesmo que se admita o fato de que a urbanizao e conseqente

    expropriao dos lavradores dos sertes cariocas foi um processo avassalador, continuava sendo

    necessrio entender como essa eficcia se construiu em contextos infinitamente variveis e

    heterogneos. Comeamos a olhar nossas fontes, agora nossos agentes, com outros olhos.

    Passvamos a querer entender a construo desses contextos, anterior aos conflitos, porque

    localizvamos a as razes da diversidade de resultados. Para alm de uma quantificao meio sem

    graa de tamanhos de lotes e valores de foros, comevamos a nos perguntar sobre como

    pensaram e agiram aquelas pessoas, agrup-las, ver suas relaes com os governos, com os

    vizinhos, enfim, esbovamos estratgias familiares. Eram aproximadamente 400 foreiros que

    nos remetiam a um mundo de histrias e relaes... comevamos a nos afogar em nomes.

    6 Levi 2000. (p. 45) 7 Thompson 1998a.

  • 6

    A continuao do nosso estgio na cole de Hautes tudes en Sciences Sociales, em

    Paris, nos forneceu novas ferramentas para a empreitada. Na biblioteca, grupos de estudo,

    debates e seminrios que freqentvamos, para alm das obrigaes de rotina, nos foramos a

    aprimorar duas frentes: a primeira era a qualificao metodolgica, sobretudo no trato com

    softwares de anlise de redes, bancos de dados, grficos relacionais, enfim, uma parafernlia que

    precisvamos regar para que rendesse frutos. Segundo, tentamos conhecer a bibliografia francesa

    recente sobre sistemas de transmisso patrimonial. Deparamo-nos com trabalhos riqussimos e

    de grande fineza metodolgica que, alm de valerem por si, nos forneceram novas pistas e

    ferramentas para a tarefa que nos propnhamos. Nesse momento, comeamos a perceber o

    quanto as terras de uma regio podem circular segundo normas tradicionais que envolvem as

    estratgias camponesas de transmisso de patrimnio, e o quanto essas regras podem estar

    distantes do que espera o expectador externo, com outros valores, ou do que determina a lei.

    Ao voltamos para o Brasil, em julho de 2007, alimentvamos o firme propsito de reunir

    em nossa tese tudo, ou quase tudo, que tnhamos aprendido (honrar o investimento pblico, era

    o que nos dizamos). Isso implicava em no priorizar unicamente os conflitos pela terra no

    sculo XX, encarar um longo histrico de problemas e questes envolvendo terras e direitos de

    uso e, principalmente, pensar a circulao de terras em outros sentidos e meios que no o

    mercado moderno. Como fazer isso na prtica?

    Tnhamos chegado ao ponto de agregar centenas de conflitos em torno de trs

    mesorregies, com histricos de ocupao agrria e produo agrcola semelhantes e, todas, por

    caminhos diversos, palco de conflitos pela posse da terra no sculo XX: os 3 e 6 distritos do

    municpio de Iguau (desmembramentos do antigo morgadio de Marapicu), reas vizinhas a

    Piranema, no municpio de Itagua e bairro de Santa Cruz (pertencentes antiga Fazenda

    Imperial de Santa Cruz), e a regio conhecida como Mendanha, dentro do bairro de Campo

    Grande, de antiga produo canavieira desde o sculo XVIII. Reunir essas trs regies, num

    estudo comparativo de formas de ocupao, produo agrcola, sistemas de transmisso e o

    perfil e resultados dos conflitos pela posse da terra, no sculo XX, para chegar a um modelo

    generativo dos conflitos de terra no entorno da Guanabara era a nossa ambio. Mas,

    infelizmente, as fontes que havamos reunido sobre cada uma delas, embora numerosas, eram

    muito desiguais, nos remetiam a questes diferentes e, alm do mais, requeriam tratamentos e

    mtodos diversos. Embora tenhamos feito todo o esforo, depois de longos anos, era preciso

  • 7

    reconhecer que as fontes que havamos coletado, serviam a problemas, recortes espaciais e

    temporais muito diversos.

    Certamente devamos priorizar as fontes, digamos, mais qualitativas que j havamos

    coletado, sobretudo os processos judiciais, mas preciso dizer que qualquer das regies que

    viesse a ser escolhida nos imporia ainda a complementao da documentao, j que o recorte,

    os problemas e mtodos previstos inicialmente mudaram radicalmente. Portanto, escolhas muito

    pragmticas se impuseram na segunda metade de 2007. Primeiro, priorizaramos as fontes que

    mostrassem a vida de gente de verdade, e no discursos, verses ou representaes. Tnhamos

    muita informao sobre conflitos de terras nos jornais, mas essa fonte de segunda mo j no

    nos contentava. Ela serviu apenas como bssola inicial, bastante teleolgica, para balizarmos os

    locais de conflitos. Segunda condio, a regio deveria fornecer fontes produzidas por rgos,

    olhares e sujeitos diversos, para que no ficssemos refns de um olhar parcial. Com isso,

    descartamos com pesar a regio de Santa Cruz e Itagua, cujos foreiros haviam nos encantado,

    mas que podamos entrever, apenas, pela documentao produzida pelos protocolos da Fazenda

    Nacional de Santa Cruz, entre 1920 e 40. Terceiro, tivemos de priorizar os documentos que

    pudessem ser acessados no Arquivo Nacional ou outros na cidade do Rio de Janeiro, devido a

    questes prticas e urgncia. Com isso, eliminamos as regies de conflito fora da cidade do Rio

    de Janeiro, ou que se encontravam arquivstica e administrativamente divididas entre vrios

    municpios, porque isso nos dificultava novas coletas. Essa condio exclua Marapicu e

    Piranema.

    Fizemos a escolha do recorte espacial e temporal final, da freguesia de Campo Grande,

    durante o sculo XIX, com base em algumas de suas qualidades: inmeros processos judiciais e

    outros documentos que nos remetiam a questes de terras, explicitando agentes, prticas

    costumeiras, estratgias e direitos, reunidos no Arquivo Nacional e da Cidade do Rio de Janeiro.

    Por outro lado, inmeras reportagens de jornais que, mesmo tardias, nos davam algumas pistas

    do histrico da ocupao local, incluindo nomes de fazendeiros, grileiros, posseiros e famlias

    ilustres. Mesmo assim, embora o tempo de tese estivesse terminando, o problema documental

    estava longe de acabar: as fontes que julgvamos preciosas versavam, todas, sobre um perodo

    que nunca havamos estudado, o sculo XIX. Alm disso, digamos que seu excesso de qualidade

    no permitia uma abordagem verdadeiramente microanaltica, e por isso, alm de dispensar uma

  • 8

    enorme massa documental que havamos coletado sobre outras regies, ainda tnhamos que

    reunir outras que ancorassem os processos judiciais de Campo Grande no sculo XIX.

    Portanto, em poucos meses finais de 2007 nos impusemos a quase insana tarefa de

    compor um novo conjunto de documentos, que nos permitissem um mergulho mais profundo

    na freguesia de Campo Grande: registros de batismo, casamento e bito, registros paroquiais de

    Terras, anncios no Almanak Laemmert e inventrios. Quando nossos colegas comearam a

    escrever suas teses, ns voltamos aos arquivos. Simultaneamente, tentamos dar conta de leituras

    sobre um perodo que no dominvamos com a profundidade devida. A freguesia de Campo

    Grande foi, portanto, o recorte espacial escolhido para esta tese, considerada como uma sub-

    regio dos sertes cariocas. Mas no enganamos o leitor quanto s fraquezas, incertezas, recuos e

    pragmatismos que orientaram essa escolha, de forma que possa reconhecer, ao menos, nossa

    franqueza. Esperamos, em outros trabalhos, conseguir dar conta do estudo comparativo mais

    amplo a que nos propnhamos: chegar aos conflitos pela posse da terra no sculo XX e,

    inclusive, finalmente utilizar as fontes que h dez anos esperam vir luz!

    Depois de conhecer as intenes to grandiosas que nos motivaram inicialmente, o leitor

    pode se compadecer do nosso infortnio, ou confirmar nossa incompetncia, por termos de nos

    restringir a mais um recorte espacial to pequeno e ensimesmado. Ratificamos que a nossa

    inteno sempre foi entender a dinmica agrria brasileira e seus revezes, mas, depois de todo o

    percurso que nos levou at aqui, aprendemos que devemos usar ferramentas mais cortantes, sob

    o risco de apenas arranharmos velhos jarges. Hoje, concordamos e defendemos que apenas dos

    estudos micro se pode chegar ao macro com mais propriedade, sem banalizaes ou falsas

    imagens que se perpetuam pela ausncia de dados que as contraponham. Portanto, sabemos que

    lupas potentes nos foraram a diminuir o objeto, e vamos apenas destrinchar as engenhocas de

    uma determinada dinmica agrria local. Mas aceitamos a sua pequeneza para que as nossas

    concluses tenham flego e lastro suficiente para dialogar com o que se entende da grande

    dinmica agrria brasileira. Convidamos o leitor ao mergulho, com a promessa de que, se

    tivermos flego suficiente, voltaremos tona com uma viso mais rica do que a que se esconde

    sob a superfcie.

  • 9

    A parquia de Campo Grande foi criada em 1673, com a fundao de uma capela

    particular nos campos de Bangu e, em 18348, fundou-se a freguesia, que fazia parte do bispado

    da provncia do Rio de Janeiro, mais tarde integrada ao Municpio Neutro da Corte.9 A freguesia

    de Campo Grande se inseria no Recncavo da Guanabara, termo com o qual Monsenhor

    Pizarro, em 1793, denominou toda a regio do entorno da Baa de Guanabara, onde prevalecia a

    plantao e manufatura de gneros agrcolas de exportao, sobretudo a cana-de-acar.10 Seus

    limites eram bem mais amplos do que o do atual bairro de Campo Grande, da cidade do Rio de

    Janeiro. Na poca, ela englobava toda a extenso geogrfica entre a Serra de Gericin e a Serra

    de Bangu, constituindo atualmente os bairros de Campo Grande, Santssimo, Augusto de

    Vasconcelos, Inhoaba e Cosmos, do municpio do Rio de Janeiro.11

    Geograficamente, a regio da antiga freguesia de Campo Grande se assemelhava a um

    vale em forma de funil, entre as Serras do Gericin, ao norte, e de Bangu, ao sul, abrindo-se a

    oeste na extensa plancie de Sepetiba, tambm chamada, no perodo, de campos de Santa Cruz.

    O macio de Gericin, localmente conhecido como Serra do Mendanha, era o divisor geogrfico

    entre o Municpio Neutro da Corte e a vila de Iguau, ao norte. Entre a Serra do Mendanha e a

    serra de Bangu, que dividia a freguesia ao sul da de Nossa Senhora do Loreto de Jacarepagu, se

    dispunham algumas serras menores, como a Serra do Quitungo, a Serra dos Coqueiros e a Serra

    da Posse.12 Todo esse vale tem formao vulcnica e, portanto, possui solo muito frtil e

    8 As freguesias que compunham os sertes cariocas, ou freguesias de fora, segundo o Ato Adicional de 1834, eram Campo Grande, Guaratiba, Jacarepagu, Iraj, Inhama, Engenho Novo, Santo Antnio e Santa Cruz. Cf Mattos 1987. apud Santos, L. S. 2005. (p. 29).

    9 A unidade territorial da freguesia tem sido o recorte por excelncia dos trabalhos de histria agrria no Brasil at o incio do sculo XX, por constituir uma unidade administrativa relativamente homognea, sobre a qual convergiam as aes tanto do cartrio quanto da igreja/parquia local. Para uma discusso sobre a delimitao de recortes espaciais em histria agrria ver Silva, F. C. T. L., Maria Yedda 1995. (pp. 17-26). No caso da freguesia especfica que ser analisada aqui, Nossa Senhora do Desterro de Campo Grande, ver Abreu 1994. Fres 2004. Santos, N. 1965 . Sustentando a validade metodolgia de uma histria regional da agricultura, Ciro Flamarion Cardoso nos explicou que os historiadores preferem recortar a regio levando em considerao as caractersticas do grupo humano, mais do que as caractersticas naturais, e que no haveria nenhum problema em agir assim. Cf Cardoso, C. F. S. 1982. (p. 78)

    10 A maioria dos gegrafos que pesquisaram a Baixada Fluminense, sobretudo nas dcadas de 1950 e 60, incorporou o uso do termo Recncavo da Guanabara cunhado por Pizarro (op. cit). Como exemplo, ver trabalhos de Bernardes 1961. Soares 1962. Para uma discusso sobre os estudos regionais e as mudanas de denominaes do conjunto da Baixada Fluminense, ver Alves 2003. Oliveira 2004.

    11 Fres 2004. 12 Carvalho, D. 1926. (p. 22); e AGCRJ, 68-3-74 (p. 18).

  • 10

    propcio para a ocupao agrcola.13 Alis, a rea de Campo Grande pode ser considerada

    privilegiada, em meio a uma baixada situada, no mximo, a poucos centmetros acima do nvel

    do mar e, portanto, extremamente sensvel s chuvas, facilmente inundvel e com dificuldades

    naturais de escoamento, o que acarretava a formao de brejos e dificultava o aproveitamento

    agrcola.14 Mesmo a parte baixa da freguesia de Campo Grande era formada por uma plancie

    menos alagvel e mais salubre, em comparao com o seu entorno, e apenas no extremo

    noroeste havia riscos de cheias nos rios Guandu Mirim e Guanduau.

    Mas no foi uma suposta unidade ecolgica ou natural que nos levou escolha dessa

    freguesia, e sim, o fato de ela ser extremamente significativa como universo de anlise para as

    transformaes da estrutura fundiria por que passavam regies agrcolas brasileiras.15 Aps a

    expulso dos franceses em 1565, sua colonizao foi oficialmente baseada na concesso de

    sesmarias, com posterior instalao de engenhos e produo de acar para exportao. Ela

    vivenciou a passagem de uma economia pobremente agrcola, at o sculo XVII, em que os

    primeiros conquistadores dominavam a poltica, os homens e as terras, para outra em que o Rio

    de Janeiro se tornava centro do imprio ultramarino portugus, com supremacia dos interesses

    mercantis.

    Isso at o esgotamento do ciclo do ouro, em meados do sculo XVIII, que iniciou a

    lenta decadncia da produo canavieira no Recncavo. Durante o sculo XIX, a freguesia viveu

    relativo isolamento e estagnao econmica, tanto por suas particularidades locais (que

    discutiremos no primeiro captulo) quanto porque outros passaram a ser os centros dinmicos da

    produo agroexportadora do Rio de Janeiro: o Vale do Paraba, para o caf, e Campos dos

    Goytacazes, para a cana. Para piorar, a baixa lucratividade de seus empreendimentos agrcolas

    aguou localmente a crise de mo-de-obra iniciada pelo fim do trfico negreiro, e quem sabe

    mesmo a tenha antecipado. Mas mesmo assim a freguesia no esteve alheia ao processo de

    consolidao do Estado nacional, nem das obrigaes, deveres e direitos que provinham do

    13 Silva, H. D. 1958. 14 Para maiores informaes sobre as caractersticas geogrficas do Recncavo da Guanabara, ver

    Lamego 1948. Especificamente sobre a sub-regio do Mendanha, onde se situava o stio de Anna Joaquina, na freguesia de Campo Grande, ver Silva, H. D. 1958.

    15 Ciro Cardoso um dos que sustenta que o que importa definir operacionalmente a regio e saber integr-la num conjunto significativo. Afinal, o enfoque regional no um mtodo, e sim uma opo quanto delimitao do universo de anlise. Cardoso, C. F. S. 1982. (p. 78)

  • 11

    novo corpus legal e do aparelho administrativo que se criava. Dialogou com ele pela linguagem

    local, como tentaremos demonstrar no correr deste trabalho.

    Nossa questo central est situada no conjunto de estratgias adotadas pelos moradores

    de Campo Grande, mesmo fora ou nos intervalos de sistemas normativos que, embora no

    tenham sido suficientes para impedir as formas de dominao, processos econmicos e prticas

    culturais mais amplas, conseguiram condicion-las e modific-las localmente.16 Nossa hiptese

    principal que, a partir da compreenso da teia de relaes sociais, da estrutura econmica e das

    caractersticas da ocupao fundiria, possvel compreender por que alguns homens e mulheres

    foram capazes de deixar marcas duradouras na dinmica agrria local.

    No campo temtico, importante relembrar que as hipteses centrais deste trabalho so

    ligadas aos meandros do poder, em ver como disputas de poder tiveram efeitos sobre a estrutura

    agrria de Campo Grande. Partimos de uma concepo ampla e no formal desse poder, ou seja,

    de que vnculos entre pessoas, os mais diversos, podem se traduzir na maior ou menor

    possibilidade de fazer valer direitos ou de gerar e influenciar aes, isto , de ter ou no poder.

    Por isso, fizemos questo de no traar a vida de uma pessoa, ou de uma famlia, ou de um

    grupo social, mas de ver os indivduos em redes, isto , ver como agiam mobilizando recursos e

    vnculos diversos: com parentes, mas tambm com vizinhos, com afilhados, com juzes locais,

    com a administrao pblica.

    Alguns conceitos correntemente utilizados merecem ser previamente esclarecidos.

    Primeiro o de parentela. Segundo Linda Lewin, parentela seria o correlato da famlia extensa,

    aquela que reuniria, alm da descendncia de um casal, seus parentes laterais (primos e tios) e

    aqueles advindos dos casamentos (genros, noras, sogros e cunhados).17 Para os objetivos da

    nossa pesquisa, a parentela tambm incluir os parentes rituais, isto , padrinhos e afilhados, j

    que eles desempenharam importante papel na concesso de dotes e legados, e no arranjo de

    bons casamentos para seus afilhados, alm de serem possveis tutores ou inventariantes de

    rfos herdeiros. Mesmo assim, no correr da pesquisa percebemos que essa extensa famlia no

    seria suficiente para explicar a movimentao de terras e pessoas, j que os indivduos se

    estabeleciam, transitavam por ou mesmo herdavam terras de famlias diferentes da sua de origem

    16 Levi 2000. (p. 45) 17 Lewin 1993.

  • 12

    ou de casamento. Por isso, trabalhamos com o termo redes de parentela, que seria anlogo a

    uma coalizo de grupos de base familiar, segundo definio de Linda Lewin.18

    Outro termo recorrente o de famlia senhorial, cunhado por Joo Fragoso.19 Segundo

    ele, trata-se de uma famlia na qual algum descendente masculinho se tornou, em algum

    momento, senhor de engenho. No caso em que haja mais de uma famlia nuclear que possua um

    engenho dentro da mesma parentela, ela chamada por Fragoso de famlia extensa senhorial,

    como no caso de um senhor de engenho que casa sua filha com outro senhor. O conceito, mais

    historiogrfico do que antropolgico, visa a compreender os mecanismos de formao e marcar

    a continuidade temporal das fortunas senhoriais da colnia. Em nosso caso, ele foi o ponto de

    partida da pesquisa, pois iniciamos com as redes de passado das famlias senhoriais da freguesia

    em 1813.

    Devemos tambm contextualizar o uso que estamos fazendo do termo paternalismo. No

    captulo Patrcios e Plebeus, Thompson criticou a forma como era usado pela historiografia

    inglesa sobre o sculo XVIII.20 Segundo ele, metodologicamente o recurso ao paternalismo era

    empobrecedor, pois servia como um grande guarda-chuva rotulador de fenmenos

    historicamente distintos. Como mito ou ideologia, o paternalismo promovia uma viso

    idealizadora do passado, confundindo atributos reais e ideolgicos, e minimizando os conflitos

    entre classes.21 Seu uso criava a imagem de uma sociedade de uma s classe, onde clivagens

    verticais teriam mais importncia que as horizontais, e onde a histria era decidida no nvel

    superior, o que desconsiderava solenemente as aes das classes subalternas.22 Ao final,

    Thompson nos alertava que nenhum historiador sensato deve caracterizar toda uma sociedade como

    paternalista ou patriarcal, posto que esse um termo vacilante que subentende um modelo da ordem

    social visto de cima.23

    18 O grupo de base familiar eram a famlia extensa e os amigos leais de um poltico, a unidade fundamental do sistema poltico informal, no municpio de origem. Esses grupos se ligavam entre si por casamentos, formando uma coalizo de faces. Lewin 1993. (p. 22)

    19 Fragoso 2000. 20 Thompson, E. P., Patrcios e Plebeus. In Thompson 1998a. ( pp. 29 e ss). 21 Negro, Antonio L., Imperfeita ou Refeita? O Debate sobre o Fazer-se da Classe Trabalhadora

    Inglesa. In: Revista Brasileira de Histria, vol. 16, no 31/32, 1996. 22 Negro, 2004 23 Thompson 1998a. (p. 32)

  • 13

    Felizmente, foi essa a primeira impresso que tivemos do assunto, o que nos alertou para

    inmeros erros. Mas, depois de muito neg-lo, e de evitar o termo paternalismo em qualquer de

    suas acepes, reconhecemos ter incorrido no movimento pendular que caracterizou os estudos

    sobre classes subalternas no Brasil: ora priorizando a fora, a violncia e a onipotncia dos

    dominadores, ora obliterando-a totalmente em prol de formas de luta, liberdade e resistncia dos

    oprimidos.24 Ambos os plos priorizam um aspecto e desconsideram a complexidade de uma

    relao.

    No Brasil, a discusso sobre paternalismo nas relaes escravistas esteve amplamente

    ancorada no trabalho de Eugene Genovese, acerca da escravido no Sul dos Estados Unidos.

    Genovese caracteriza o paternalismo como um sistema de dominao onde o opressor relaciona-

    se com cada indivduo explorado como um provedor prestando assistncia direta, em nvel

    pessoal. Essa relao destri a solidariedade entre os oprimidos, mas, dialeticamente pensada,

    pode ser uma poderosa arma de resistncia escrava contra a desumanizao e um meio de

    conquistar direitos e espaos de autonomia (formao de famlias nucleares, prtica de cultos

    religiosos, etc.).

    Segundo Ricardo Ruiz, o paternalismo de Genovese no deve ser encarado como um

    sinal de benevolncia do sistema, mas um canal de comunicao importante sua existncia.

    Numa sociedade onde nem a populao livre conseguia sobreviver sem um protetor, o que dizer dos escravos? 25

    Hebe de Mattos, ao analisar a generosidade dos senhores prximo ao 13 de maio de 1888,

    concluiu que, se todos os escravos no deserdaram, a ascendncia moral dos senhores

    construda por uma pedagogia de terror e paternalismoera comprovadamente o pilar central

    da ordem social no mundo rural e se dilua mais lentamente do que as condies externas que a

    viabilizaram. O grande desafio dos senhores foi transitar para a liberdade, sem que esta ordem se

    visse irremediavelmente abalada.26 A historiografia da escravido brasileira tem avanado no

    sentido de no dissociar os plos da relao social escravista, ou seja, em perceber que a

    resistncia podia ser abrandada com a acomodao, que havia normas tcitas de convivncia

    24 Essa hiptese foi defendida por Melina Perussatto. Perussatto 2007. 25 Ruiz 1997. Ver tambm Perussatto 2007. Ramos 2007. 26 Castro 1993.

  • 14

    mtua entre senhores e escravos, e que ambas as aes dependiam das circunstncias. Ao lado

    da violncia sempre houve espao para a barganha e o conflito.

    Em nosso caso, tentaremos balizar uma forma historicamente determinada de

    paternalismo, enquanto mscara e azeite da dominao social entre homens livres, numa ordem

    corporativa e escravista. E nesse sentido precisamos remarcar algumas diferenas em relao aos

    trabalhos sobre relaes escravistas. Novamente foi Thompson quem a definiu melhor.

    "As ocasies de patronagem da aristocracia e da gentry certamente merecem ateno: esse lubrificante social dos gestos podia, com bastante facilidade, fazer os mecanismos de poder e explorao girar mais suavemente. Os pobres, habituados sua posio irrevogvel, eram freqentemente transformados, pela sua prpria boa ndole, em cmplices da sua prpria opresso: um ano de provises escassas podia ser compensado por uma generosa doao no Natal. Os governantes sabiam disso".27

    Richard Graham, analisando o fenmeno do clientelismo na histria poltica brasileira,

    em vrios momentos relacionou-o ao que entendia por paternalismo. O clientelismo local era o

    que se expressava pela proteo de pessoas humildes. Para um senhor, no havia qualquer

    dicotomia entre fora e benevolncia, pois ambos eram aspectos do seu controle, mas no podia

    exercer a fora como regra na sua relao com outro homem livre. Portanto, foi necessrio criar

    um processo de trocas assimtricas, em que a barganha substitusse o aoite como tcnica de

    dominao. Assim, todos os que protegiam se sentiam no direito de castigar ou punir. Quem

    obedecia bem tinha direito a proteo e recursos. Obedincia e lealdade se tornavam pilares da

    ordem poltica, e a falta desses atributos deixava um indivduo exposto punio do patro ou

    explorao de outros.

    importante lembrar que era vaga a distino entre famlia e unidade domstica. No

    caso de fazendas, a famlia inclua escravos, empregados, arrendatrios, agregados, parentes

    afastados, etc, todos os que viviam na propriedade e reconheciam a autoridade do chefe.28

    Nesses termos, e para distinguirmos da famlia consangnea, a chamaremos de casa, cuja

    acepo vai um pouco mais alm. O pertencimento a uma casa derivava da organizao

    corporativa da sociedade, que aceitava uma hierarquia social de vrios estratos, concebendo a

    sociedade (seres humanos e coisas, mundo visvel e metafsica) como um corpo internamente

    27Thompson 1998a. (p. 49). 28 Graham 1997. (p. 37)

  • 15

    organizado, uma unidade pelo arranjo das partes para um fim comum. Nesse sentido

    corporativo, o poder era por natureza repartido, o que se traduzia em autonomia poltico-jurdica

    dos corpos sociais, onde a cabea garantia o direito diferenciado de todos, segundo seu estatuto.

    Ou seja, uma sociedade onde cada um tinha o seu lugar, e ningum era igual a outro. Segundo

    Manuel Antnio Hespanha,

    Do ponto de vista social, o corporativismo promovia a imagem de uma sociedade rigorosamente hierarquizada, pois, numa sociedade naturalmente ordenada, a irredutibilidade das funes sociais conduz irredutibilidade dos estatutos jurdico-institucionais (dos estados, das ordens).29

    Essa era uma ordenao tida como natural, em que mesmo o Rei era obrigado a respeitar

    direitos adquiridos. Portanto, essa ordem previa que, em nvel local, fosse a casa o fundamento

    de uma estrutura de poder socialmente articulada, que reforava suas posies no apenas pelo

    poder econmico e pela violncia, mas pela cultura arraigada e pelas tradies. Segundo Graham,

    as oligarquias brasileiras compartilhavam uma viso de mundo elitista, em que classe e status

    entrelaavam-se. Nesse contexto, o sistema poltico e a desigualdade social dependiam das

    relaes de patronagem, clientelismo e do face a face, pois dessa forma se legitimavam.30 Eram

    os ricos quem mais usavam a metfora da famlia para manter a ordem, porque isso

    economizaria o uso da fora.31 Somado pouca mobilidade social, paternalismo e clientelismo

    serviam para afirmar a justeza dos estratos, dentro de uma ideologia da hierarquia. 32

    Alm disso, como princpios da autoridade familiar, casa e clientela ganhavam

    legitimidade ao serem refletidas nas vises de mundo, no papel do Estado e no funcionamento

    do universo. Em todos esses campos havia uma autoridade que flua de cima para baixo e a

    gratido e obedincia de baixo para cima. Imagem semelhante foi encontrada por Sidney

    Chalhoub nos contos machadianos. Segundo o autor, o paternalismo anulava os antagonismos

    sociais e traduzia a viso senhorial vigente, em que os dependentes deveriam perceber suas

    condies somente a partir dos valores ou significados sociais gerais impostos pelos senhores.33

    29 Hespanha (p. 130) 30 Graham 1997. 31 Graham 1997. (p. 62) 32 Graham 1997. (p. 42) 33 Chalhoub 2003. (p. 41).

  • 16

    Ainda devemos explicitar de que maneira usamos o termo estratgia e projeto, j que

    quase sempre ele leva o leitor idia de intencionalidade, conscincia, ao individual e, s vezes,

    pode adquirir sentido de desprezo por condicionantes estruturais, ou de excessiva autonomia

    dos indivduos. Segundo Fernando Loureno, a noo de estratgia, ao menos nas cincias

    sociais, no se limita a uma clara inteno dos agentes, a um tipo de clculo consciente e

    racional, mas abarca tambm todo um senso prtico historicamente incorporado pelos prprios

    agentes; uma regularidade (no uma regra), cuja eficcia depende da ao dos prprios. Essa

    percepo da diferena entre sentido e prtica j havia sido ponderada por Max Weber, ao

    discutir os conceitos construtivos da Sociologia como tpico-ideais no apenas externa como

    tambm internamente. Segundo Weber

    "A ao real sucede, na maioria dos casos, em surda semiconscincia ou inconscincia de seu 'sentido visado'. O agente mais o 'sente', de forma indeterminada, do que o sabe ou tem 'clara idia' dele; na maioria dos casos, age instintiva ou habitualmente. Apenas ocasionalmente e, no caso de aes anlogas em massa, muitas vezes s em poucos indivduos, eleva-se conscincia um sentido (seja racional, seja irracional) da ao. Uma ao determinada pelo sentido efetivamente, isto , claramente e com plena conscincia, na realidade apenas um caso-limite.34

    Mesmo admitindo a inconscincia do sentido visado pela maior parte das aes

    humanas, Weber no exime a anlise histrica e sociolgica de construir seus conceitos a partir do

    possvel 'sentido subjetivo', isto , como se a ao, seu decorrer real, se orientasse

    conscientemente por um sentido. Pierre Bourdieu continuou pensando sobre essa questo.

    Segundo ele, o conceito de estratgia deveria romper com o ponto de vista estruturalista,

    segundo o qual o movimento das estruturas se daria sem a necessidade de agentes, por exemplo,

    com o recurso noo de inconsciente. Por outro lado, tambm no se podia fazer dela o

    produto de um clculo consciente e racional. Segundo Bourdieu, estratgia o produto do senso

    prtico como sentido do jogo, de um jogo social e particular, historicamente definido, que se

    adquire desde a infncia, participando das atividades sociais.

    O bom jogador, que de algum modo o jogo feito homem, faz a todo instante o que deve ser feito, o que o jogo demanda e exige. Isso supe uma inveno permanente, indispensvel para se adaptar s situaes indefinidamente variadas, nunca perfeitamente idnticas. O que no garante a obedincia mecnica regra explicitada, codificada (quando ela existe). () Visto dessa forma, o habitus como sentido do jogo o jogo social incorporado, transformado em natureza. Nada simultaneamente

    34 Weber 1991. (p. 13)

  • 17

    mais livre e mais coagido do que a ao do bom jogador. Ele fica naturalmente no lugar em que a bola vai cair, como se a bola o comandasse, mas, desse modo, ele comanda a bola."35

    Em uma fortuita coincidncia temtica, Bourdieu discutiu a pertinncia do termo

    estratgia justamente ao lidar com sistemas de transmisso patrimonial, casamentos e heranas,

    algo muito prximo do que tentaremos fazer neste trabalho. Para ele, ao lidar com este tipo de

    questo social era preciso criar instrumentos de anlise que rompessem com a oposio entre

    etnologia e sociologia, pois

    Essa diviso residual, vestigial, impede uns e outros de colocar adequadamente os problemas mais fundamentais que todas as sociedades colocam, os da lgica especfica das estratgias que os grupos, e particularmente as famlias, empregam para se produzir e reproduzir, isto , para criar e perpetuar sua unidade, logo, sua existncia enquanto grupos, o que quase sempre, e em todas as sociedades, a condio de perpetuao de sua posio no espao social.36

    Por ltimo, usamos o conceito de redes de passado, de autoria prpria, na falta de um

    correlato de mais estirpe. Essas redes seriam, a nosso ver, aquelas que se haveriam estruturado

    de modo pregresso, nas quais o indivduo se inseriria por herana recebida das estratgias

    patrimoniais e alianas familiares de seus antecessores. Em termos prximos, seria a estrutura

    social na forma que se mostrava no nascimento de um indivduo, mas, para os nossos

    problemas, pinamos dessa estrutura precisamente as redes sociais que envolviam o patrimnio

    familiar e a posio de um membro da famlia frente a ele.

    Esclarecidos alguns conceitos bsicos, chegamos execuo. Traduzir hipteses e

    preocupaes tericas em termos metodolgicos sempre um desafio. Ciro Cardoso j nos

    alertou que o estudo do movimento de uma populao, mesmo que reduzida, implica na

    manipulao de considervel nmero de fichas, o que torna os trabalhos com essa proposta

    presas fceis da quantificao sumria e da formao de sries estatsticas.37 Ainda na primeira

    metade dos anos 1970, Edoardo Grendi props a ruptura com o paradigma braudeliano: serial,

    35 Bourdieu 1990. (p. 81-82) 36 Bourdieu 1990. (p. 94) 37 Cardoso, C. F. S. B., Hctor 1979. (p. 131)

  • 18

    quantitativo e de longa durao.38 A microanlise, no seu conjunto, se posicionou de maneira

    bastante crtica em relao s possibilidades da histria serial como feita pelos Annales.

    Carlo Ginsburg defendeu que a documentao que se torna disponvel como fonte

    expressa as relaes de fora entre as classes de uma sociedade determinada e, por isso, as fontes

    seriais deformariam a cultura das classes subalternas. Tudo o que consegue fugir disso seria

    excepcional e revelador, devendo ser aproveitado como a outra face da normalidade das

    fontes indiretas. Sua proposta terico-metodolgica a investigao calcada no nome prprio,

    que busca o mesmo indivduo em contextos diferentes e, a partir destes, reconstri a rede de

    relaes sociais em que ele est integrado. 39

    J Giovanni Levi disse que o problema dos trabalhos quantitativos que provocam

    sempre a sensao de demasiado impessoais e imprecisos. O que causa isso no a quantificao

    em si, mas o fato de se querer uma tipologizao, sem procurar chegar a um esquema analtico

    do comportamento que tenha por base a estrutura complexa das necessidades e das lgicas de

    ao daqueles sujeitos. Por isso, ao analisar as fontes sobre uma pequena vila piemontesa no

    sculo XVII, Levi no se preocupou em abranger quantitativamente toda a populao, mas em

    ressaltar alguns comportamentos que podem ser verificados mesmo dentro de uma seleo

    incompleta.40

    No caso desta tese, pensamos inicialmente em partir de um ponto zero e avaliar, a partir

    dele, as diversas estratgias dos moradores e a atuao dessas redes em relao aos conflitos de

    terra, e os seus resultados em termos de direitos e patrimnio. Em busca desse ponto zero,

    partimos de um censo paroquial feito em 1813, que se constituiu na primeira fonte que nos

    mostrou quem eram os moradores da freguesia de Campo Grande de ento. Dessa lista,

    emergiram os nomes completos dos poucos senhores de engenho do local, ao lado de dezenas

    de famlias de moradores dessas mesmas fazendas.

    Mas o padre, no muito acurado na realizao de sua misso, registrou apenas o primeiro

    nome desses outros moradores, isso quando o fez. Na maior parte das vezes, descreveu

    sucintamente a existncia de tantos fogos na fazenda de fulano de tal, para alm da famlia do

    38 Levi 1992. 39 Levi 1992. 40 Levi 1981a.

  • 19

    prprio fulano.41 O quadro rascunhado pelo proco, com todas as suas incompletudes, nos

    intrigou. Partiramos desse conjunto de famlias, senhores de engenho e moradores, mas, afinal,

    quem seriam esses moradores? Posseiros? Situados? Pequenos proprietrios? Arrendatrios?

    Agregados? O que estavam fazendo nas terras do senhor fulano? Estavam l antes de ele

    chegar, como posseiros ou situados? Foram convidados, pediram morada, assumiram relao de

    arrendamento?

    Os meandros da pesquisa so caminhos surpreendentes. Parecia-nos fundamental

    esclarecer esse ponto de partida, ou seja, desvendar o mistrio da relao de moradores das

    fazendas com os senhores locais de terras, j que, em nossa opinio, essa relao influenciaria no

    comportamento dessas famlias nos conflitos que se seguiriam. Nesse ponto, ento, optamos por

    trilhar o caminho inverso e, ao invs de olhar para a frente, vendo redes de futuro, olhamos para

    trs, vendo redes de passado. Traduzindo: pinamos da lista de 1813 todos os nomes com

    sobrenomes, que se restringiam, basicamente, aos senhores de engenho, e fomos buscar o

    histrico dessas pessoas e, conseqentemente, o de suas famlias. Teria sido metodologicamente

    mais consistente se tivssemos conseguido traar a origem de todas as famlias, incluindo as dos

    moradores e agregados, mas, como j dissemos, esses no tinham sobrenomes (quando tinham

    nomes), o que os afogava no mar de Joes, Manois, Anas, Joss, Conceies... no qual no

    poderamos discernir indivduos precisos. Traamos as redes das poucas famlias de moradores

    de que dispnhamos do sobrenome, como o leitor ver na ltima parte.

    Onde buscamos essas informaes? Esse foi efetivamente um problema a ser superado,

    at porque os poucos processos judiciais que recolhemos no Arquivo Nacional envolvendo

    aquelas famlias, a partir de 1822, davam apenas informaes esparsas sobre a origem da

    ocupao das terras, dificilmente articulveis entre si, e pouco se preocupavam com seus

    moradores. Para agravar, alm dos relatrios do Marqus do Lavradio, de 1777 e 1797, e das

    visitas paroquiais de 1794, no havamos recolhido mais fontes nem nunca tnhamos trabalhado

    com o sculo XVIII...

    41 No documento original haveria dados diferentes? No podemos dizer. Como discutiremos melhor posteriormente, tivemos acesso apenas a uma transcrio dessa listagem, feita por Jos Nazareth Fres, em seu livro publicado em 2004. O documento original foi extraviado do Arquivo da Cria da Arquidiocese do Rio de Janeiro (doravante ACARJ).

  • 20

    Nesse momento, contamos com a ajuda inestimvel do professor Joo Luiz Ribeiro

    Fragoso, do departamento de Histria da UFRJ, e do LIPHIS, laboratrio coordenado por ele.

    Fragoso nos indicou uma srie de textos, artigos, livros e teses, que versavam, basicamente,

    sobre os meandros da colonizao portuguesa no Rio de Janeiro, alguns tratando

    especificamente da nobreza da terra e dos senhores de engenho, at o sculo XVIII.42 O

    LIPHIS, por sua vez, nos forneceu uma imensa base de dados, com mais de 16.000 fichas

    nominais de moradores do Rio de Janeiro, fruto da tabulao dos dados fornecidos pelo

    genealogista Carlos Rheigantz, em sua imensa obra sobre as primeiras famlias do Rio de

    Janeiro.43 Somente com essa ajuda foi possvel tomar impulso para realizar a empreitada que nos

    propnhamos, que, de outra feita, no seria vivel.

    A pesquisa inicial a partir dos nomes completos da lista de 1813 nos levou, basicamente,

    a trs casais, que se fixaram em Campo Grande de 1722 at 1768, multiplicando seus

    descendentes e gerindo seus engenhos a partir de ento, cu