História de Deus

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Livro em Destaque UMA HISTORIA DE DEUS KAREN ARMSTRONG Uma História de Deus ( Quatro Milênios de Busca, do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo). Trad. Marcos Santarrita Com- panhia das Letras, 1995, São Paulo, 460 pp. Este livro não é uma história da inefável realidade do próprio Deus, que transcende o tempo e a transformação, mas uma história de como homens e mulheres o têm percebido desde Abraão até hoje. A idéia humana de Deus tem história. Sempre significou coisa ligeiramente diferente para cada grupo de pessoas que a usou em vários pontos do tempo. A idéia de Deus formada numa geração por um conjunto de seres humanos pode não ter sentido em outra. A afirmação "Eu creio em Deus" não tem sentido objetivo como tal. Como qualquer outra afirmação, só significa alguma coisa dentro de um contexto quando proclamada por determinada comunidade. Esta história se limita ao Deus Único adorado por judeus, cristãos e muçulmanos, embora tenha por vezes considerado conceitos pagãos, hindus e budistas da realidade última, para esclarecer melhor alguma questão monoteísta. A idéia de Deus está admiravelmente perto da idéia de religiões que se desenvolveram de maneira inteiramente independente. Toda discussão sobre Deus cambaleia sob dificuldades incríveis. Todos os monoteístas foram muito positivos sobre a linguagem, ao mesmo tempo em que negavam a capacidade dessa linguagem de expressar a realidade transcendente. O Deus dos judeus, cristãos e muçulmanos é um Deus que - em algum sentido - fala. Sua Palavra é crucial em todas as três fés. A Palavra de Deus moldou a história de nossa cultura. Temos de decidir se a palavra "Deus" tem algum sentido para nós hoje. Examinando a história de Deus da perspectiva judaica e muçulmana, além da cristã, os termos "AC" e "De", convencionalmente usados no Oci-

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Livro em Destaque

UMA HISTORIA DE DEUS KAREN ARMSTRONG Uma História de Deus ( Quatro Milênios de Busca, do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo). Trad. Marcos Santarrita Com-panhia das Letras, 1995, São Paulo, 460 pp.

Este livro não é uma história da inefável realidade do próprio Deus, que

transcende o tempo e a transformação, mas uma história de como homens e

mulheres o têm percebido desde Abraão até hoje. A idéia humana de Deus

tem história. Sempre significou coisa ligeiramente diferente para cada grupo

de pessoas que a usou em vários pontos do tempo. A idéia de Deus formada

numa geração por um conjunto de seres humanos pode não ter sentido em

outra. A afirmação "Eu creio em Deus" não tem sentido objetivo como tal.

Como qualquer outra afirmação, só significa alguma coisa dentro de um

contexto quando proclamada por determinada comunidade.

Esta história se limita ao Deus Único adorado por judeus, cristãos e

muçulmanos, embora tenha por vezes considerado conceitos pagãos, hindus

e budistas da realidade última, para esclarecer melhor alguma questão

monoteísta. A idéia de Deus está admiravelmente perto da idéia de religiões

que se desenvolveram de maneira inteiramente independente.

Toda discussão sobre Deus cambaleia sob dificuldades incríveis. Todos

os monoteístas foram muito positivos sobre a linguagem, ao mesmo tempo

em que negavam a capacidade dessa linguagem de expressar a realidade

transcendente. O Deus dos judeus, cristãos e muçulmanos é um Deus que -

em algum sentido - fala. Sua Palavra é crucial em todas as três fés. A Palavra

de Deus moldou a história de nossa cultura. Temos de decidir se a palavra

"Deus" tem algum sentido para nós hoje.

Examinando a história de Deus da perspectiva judaica e muçulmana, além

da cristã, os termos "AC" e "De", convencionalmente usados no Oci-

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dente, não são apropriados. Daí, alternativos" AEC" (Antes da Era Comum) e

"EC" (Era Comum).

1. No começo

Tem havido muitas teorias sobre a origem da religião. Criar deuses é coisa que os seres humanos sempre fizeram. Quando uma idéia reli- giosa deixa de funcionar para eles, simplesmente a substituem. Essas idéias desaparecem discretamente, como o Deus do Céu, sem grande fanfarra.

No século XIX, alguns estudiosos bíblicos alemães desenvolveram um método crítico que discerniaA quatro diferentes fontes nos primeiros cinco livros da Bíblia: Gênesis, Exodo, Números e Deuteronômi.o Estes foram depois colecionados no texto final do que conhecemos como o Pentateuco no século V AEC. Essa forma de crítica sofreu muitos ata- ques, mas ninguém produziu ainda uma teoria mais satisfatória para explicar por que há duas versões bastantes diferentes de acontecimentos bíblicos chave, como a Criação e o Dilúvio, e por que a Bíblia às vezes se contradiz. Os ~ois primeiros autores bíblicos, cuja obra se encontra no Gênesis e no Exodo, escreveram provavelmente no século VIII, em- bora alguns lhe atribuam uma data anterior. Um é conhecido com "J", porque chama seu Deus de "Javé", e o outro como "E", porque prefere o título divino mais formal de "Elohim". No século VIII, os israelitas haviam dividido Canaã em dois reinos separados. J escrevia no Reino de Judá, no sul, e vinha do reino de Israel, no norte.

Mas quem é Javé? Adorava Abraão o mesmo Deus que Moisés, ou o conhecia por um nome diferente? Isso seria uma questão de primeira importância para nós hoje, mas a Bíblia parece curiosamente vaga sobre o assunto.

Mas embora mostrem os patriarcas encontrando seus deuses quase do mesmo modo que seus contemporâneos pagãos, essas primeiras nar- rativas introduzem uma nova categoria de experiências religiosas. Por toda a Bíblia, Abraão é chamado de homem de "fé". Hoje tendemos a definir fé como a aceitação intelectual de um credo. Os autores bíblicos não viam a fé em Deus como uma crença abstrata ou metafísica. Quando louvam a fé de Abraão, não estão comentando a ortodoxia dele (a acei- tação de uma opinião teológica correta sobre Deus), mas a sua confian- ça, mais ou menos como quando dizemos que temos fé numa pessoa ou num ideal. Na Bíblia, Abraão é um homem de fé porque confia em que Deus cumprirá suas promessas, mesmo que pareçam absurdas. Como poderia Abraão ser o pai de uma grande nação quando sua esposa, Sara, era estéril? Na verdade, a própria idéia de que poderia ter um filho é tão ridícula - Sara já passara da menopausa - que quando ouvem a promes- sa, Sara e Abraão caem na gargalhada. Quando, contra todas as possi- bilidades, o filho afinal nasce, eles o chamam de Isaac, um nome que pode significar "risada". Mas a piada azeda quando Deus faz uma apa- vorante exigência: Abraão deve sacrificar-lhe seu único filho.

Os gregos, por outro lado, interessavam-se apaixonadamente pela lógica e pela razão. Platão (c. 428-c. 348) tratou constantemente de proble-

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mas de epistomologia e de natureza da sabedoria. Grande parte de suas

primeiras obras foi dedicada à defesa de Sócrates, que obrigara os ho-mens

a clarearem as idéias com perguntas que os faziam pensar, mas fora

condenado à morte em 399, sob acusação de irreligiosidade e corrupção da

juventude.

2. Um único Deus

Quando usamos a palavra "santo" hoje, em geral nos referimos a um

estado de excelência moral. O hebraíco kaddosh, porém, nada tem a ver com a moralidade enquanto tal, mas significa a condição de "outro", uma separação radical. A aparição de Javé no Monte Sinai enfatizara o imenso fosso que de repente se escancarava entre o homem e o mundo divino. Agora os serafins gritavam: "Javé é outro! Outro! Outro!". Isaías experimentou essa sensação do numinoso que periodicamente baixava sobre homens e mulheres e enchia-o de fascinação e temor. No clássico A idéia do sagrado, Rudolph otto descreveu essa terrível experiência de realidade transcendente como mysterium terríbíle et fascínans; é terrível porque se dá como um profundo choque que nos isola das consolações da normalidade, e fascinans porque, paradoxalmente, exerce atração irresistível. Nada há de racional nessa experiência arrasadora, que otto compara à da música ou do erotismo: as emoções que engendra não podem ser adequadamente expressas em palavras ou conceitos.

Quando atribuíam seus próprios sentimentos e experiências huma- nas a Javé, os profetas estavam, num sentido importante, criando um deus à sua imagem. Isaías, membro da família real, vira Javé como um rei. Amós atribuíra sua própria empatia com os pobres sofredores a Javé; oséias via Javé como um marido traído que continuava sentindo uma anelante ternura pela esposa. Toda religião deve começar com certo antropomorfismo.

Como todos os outros profetas, oséias era obcecado pelo horror à

idolatria. Previa a vingança divina que as tribos setentrionais iriam tra-zer

sobre si mesmas ao adorar deuses que na verdade elas mesmas haviam

criado.

3. Luz para os Gentios

Durante o primeiro século, os cristãos continuaram a pensar em Deus

e a rezar a ele como judeus: discutiam como rabinos, e suas igrejas eram semelhantes às sinagogas. Houve algumas acres disputas nos anos 80 com os judeus, quando os cristãos foram formalmente expulsos das si- nagogas por se recusaram a observar a Torá. Mas a maioria dos cristãos era formada por escravos e membros das classes baixas. Só no fim do século 11pagãos de alta cultura se tornaram cristãos e puderam explicar a nova religião a um desconfiado mundo. pagão.

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No Império romano, o cristianismo foi no início visto como um ramo do judaísmo, mas quando os cristãos deixaram claro que não mais eram membros da sinagoga, foram encarados com desprezo como uma religio de fanáticos que haviam cometido o pecado capital da impiedade rom- pendo com a fé original.

Os gnósticos todos começavam com uma realidade absolutamente

incompreensível a que chamavam de Divindade, pois era a fonte de ser

menor a que chamamos "Deus".

Como Celso, Plotino achava o cristianismo um credo absolutamente inaceitável, mas ele influenciou gerações de futuros monoteístas em todas as três religiões de Deus. É importante, portanto, dar uma detalhada consideração à sua visão de Deus. Plotino foi descrito como um divisor de águas: absorveu as principais correntes de cerca de oitocentos anos de especulação grega e transmitiu-as numa forma que continuou a influ- enciar figuras cruciais de nosso século, como T. S. Eliot e Henri Bergson. Usando as idéias de Platão, Plotino desenvolveu um sistema destinado a atingir uma compreensão do eu. Também aqui, não estava de modo algum interessado em encontrar uma explicação científica do universo, nem tentou explicar as origens físicas da vida; em vez de buscar no mundo lá fora uma explicação objetiva, Plotino exortava seus discípulos a recolher-se dentro de si mesmos e iniciar sua exploração nas profundezas da psique.

Assim, apesar das diferenças mais superficiais, havia profundas se- melhanças entre as visões monoteístas e outras da realidade. Parece que, quando contemplam o absoluto, os seres humanos têm idéias e experi- ências semelhantes. O senso de presença, êxtase e temor diante de uma realidade - chamada nirvana, o Uno, Brahma ou Deus - parece ser um estado da mente e uma percepção natural e interminavelmente buscada pelos seres humanos.

4. Trindade: O Deus Cristão

Os cristãos sabiam que Jesus Cristo salvara com sua morte e ressurreição

tinham sido redimidos da extinção e um dia partilhariam da existência de Deus, que era o próprio Ser e Vida. De algum modo, Cristo possibilitara-lhes cruzar o fosso que separava Deus da humanidade A questão era: como fizera isso? De que lado do grande Desfiladeiro estava ele? Não havia mais um Pleroma, um Lugar de Plenitude de intermediários e éons. Ou Cristo, a Pala- vra, pertencia ao reino divino (agora domínio de Deus apenas) ou â frágil ordem criada. Ário e Atanásio o punham em lados opostos do fosso: Atanásio

no mundo divino, e Ário na ordem criada.

A Trindade não devia ser interpretada de modo literal; não era uma

"teoria" abstrusa, mas resultado de theoria, contemplação. Quando os

cristãos no Ocidente se atrapalharam com esse dogma no século VIII e

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tentaram livrar-se dele, estavam tentando tornar Deus racional e com- preensível para a Era da Razão. Esse foi um dos fatores que levariam à chamada Morte de Deus nos séculos XIX e XX. Um dos motivos pelos quais os capadócios desenvolveram esse paradigma imaginativo foi para impedir que Deus se tornasse tão racional quanto o era a filosofia grega, no entendimento de hereges como Ário. A teologia de Ário era um pouco clara e lógica demais. A Trindade lembrava aos cristãos que a realidade que chamamos "Deus" não podia ser captada pelo intelecto humano. A doutrina da Encarnação, como foi expressa em Nicéia, era importante mas não podia levar a uma idolatria simplista.

5. Unidade: O Deus do Islã

Jesus foi a primeira Palavra de Deus à raça humana, tornando

desnecessária uma revelação futura. Por conseguinte, como os judeus, eles

ficaram escandalizados quando surgiu na Arábia um profeta,no século VII,

alegando ter recebido uma revelação direta do Deus deles e trazendo uma

nova escritura para seu novo povo. Contudo, a nova versão do

monoteísmo, que acabou tornando-se conhecida como "islamismo",

espalhou-se com espantosa rapidez por todo o Oriente Médio e norte da

África. Muitos de seus entusiásticos convertidos naquelas terras (onde o

helenismo não estava em solo natal) deram as costas com alívio ao

trinitarismo grego, que expressava o mistério de Deus num idiota alheio a

eles, e adotaram uma idéia mais semita da realidade divina.

.

Como os philosophes franceses, os ffaylasufs queriam viver

racionalmente de acordo com as leis que acreditavam governar o

cosmo, e que podiam ser discernidas em cada nível da realidade. No

principio, concentraram-se na ciência natural, mas depois, inevitavelmente,

voltaram-se para a metafísica grega e decidiram aplicar seus princípio ao

islamismo. Acreditavam que o Deus dos filósofos gregos era idêntico a

Alá.

Quando se tratou de escolher entre o Deus da Bíblia e o Deus dos

filósofos, Maimônides sempre escolheu o primeiro. Mesmo sendo a

doutrina da criação ex nihilo filosoficamente heterodoxa aimônides

aderia à tradicional doutrina bíblica e descartava a idéia filosófica da

encarnação. Como observou, nem a criação ex nihilo nem a emanação

podiam ser provadas definitivamente só pela razão. Também aqui,

considerava a profecia superior à filosofia.Tanto o profeta Tanto o profeta

quanto o filósofo falavam do mesmo Deus, mas o profeta tinha de ser

tão dotado imaginativa quanto intelectualmente. Tinha um conhecimento

direto, intuiti vo, de Deus, superior ao conhecimento atingido pelo raciocínio

discursivo. O próprio Maimônides parece ter sido meio místico.

Poucos pensadores deram uma contribuição tão duradoura ao cristi-

anismo ocidental quanto' Tomás de Aquino (1225-74), que tentou uma

síntese de Agostinho e da filosofia grega recentemente redescoberta no

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Ocidente. No século XII, os estudiosos europeus acorreram à Espanha, onde encontraram os estudiosos muçulmanos. Com a ajuda de intelec- tuais muçulmanos e judeus, empreenderam um vasto projeto de tradu- ção, a fim de tornar essa riqueza intelectual acessível ao Ocidente. Tra- duções árabes de Pia tão, Aristóteles e dos outros filósofos do mundo antigo eram agora retraduzidas para o latim e tornaram-se disponíveis pela primeira vez para as pessoas do norte da Europa. Os tradutores também trabalharam sobre estudos muçulmanos mais recentes, incluin- do a obra de Ibn Rushd e as descobertas de cientistas e médicos árabes. Ao mesmo tempo em que alguns cristãos europeus se entregavam à destruição do islamismo no Oriente Próximo, os muçulmanos na Espanha ajudavam o Ocidente a construir sua própria civilização. A Summa theologiae de Tomás de Aquino foi uma tentativa de integrar a nova filosofia com a tradição cristã ocidental. Tomás de Aquino ficara parti- cularmente impressionado com a explicação de Aristóteles por Ibn Rushd.

6. O Deus dos Místicos

Um Deus pessoal pode tonar-se uma séria responsabilidade. Pode ser

mero ídolo esculpido à nossa imagem, uma projeção de nossas limitadas necessidades, temores e desejos. Podemos supor que ele ama o que ama- mos e odeia o que odiamos, endossando nossos preconceitos em vez de nos obrigar a transcendê-los.

O próprio fato de que, como pessoa, Deus tem um gênero sexual é também limitante: significa que a sexualidade de metade da raça huma- na é sacralizada nos costumes sexuais humanos. Um Deus pessoal pode ser perigoso, portanto. Em vez de nos puxar para além de nossas limi- tações, "ele" pode nos encorajar a permanecer complacentemente nelas; "ele" pode nos tornar tão cruéis, insensíveis e auto-satisfeitos quando "ele" parece ser. Em vez de inspirar a compaixão que deve caracterizar toda religião avançada, "ele" pode nos estimular a julgar, condenar e excluir. Aparentemente, portanto, a idéia de um Deus pessoal só pode ser uma etapa em nosso desenvolvimento religioso. As religiões do mundo parecem ter reconhecido esse perigo, e procuraram transcender a concepção pessoal de realidade suprema.

O Profeta Maomé despertara para esse mundo intermediário durante a Visão Noturna, que o levara ao limiar do mundo divino. Suhrawadi também teria afirmado que as visões dos Místicos do Trono judeus ocor- reram quando eles aprenderam a entrar no alam al-mithal, durante seus exercícios de concentração. O caminho para Deus, portanto, não passava apenas pela razão, como os faylasufs pensavam, mas pela imaginação criadora, o reino do místico.

Hoje, muita gente no Ocidente ficaria consternada se um grande teólogo

sugerisse que Deus era, em algum sentido profundo, um produto da

imaginação. Contudo, devia ser óbvio que a imaginação é a principal

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faculdade religiosa. Foi definida por Jean-Paul Sartre como a capacidade de pensar o que não existe.

Deus só podia ser conhecido por expenencia mística. Era melhor falar dele em terminologia negativa, como sugerira Maimônides. Na verdade, tínhamos de purificar nossa concepção de Deus, livrando-nos de nossas ridículas preconcepções e imagens antropomórficas. Devía- mos até evitar o próprio termo "Deus". Era o que Maimônides queria dizer quando afirmou: "A última e mais elevada separação do homem é quando, por Deus, se despede de Deus."

7. Um Deus para os Reformadores

Os cristãos da Europa não conseguiram produzir uma espiritualidade

positiva. Também eles sofrem desastres históricos que não podiam ser aliviados pela religião filosófica dos escolásticos. A Peste Negra de 1348, a queda de Constantinopla em 1453 e o Grande Cisma do Ocidente (1378-1417) lançaram a impotência da condição humana em vívido rele- vo e levaram ao desprestígio da Igreja. A humanidade parecia incapaz de se desembaraçar de sua terrível situação sem a ajuda de Deus. Nos séculos XIV e XV, portanto, teólogos como Duns Scotus, de Oxford (1265- 1308) - não confundir com Duns Scotus Erigena - e o teólogo francês Jean de Gerson 0363-1420) enfatizaram a soberania de Deus, que con- trolava os assuntos humanos com o mesmo rigor de um monarca abso- luto.

Satanás emergira como a sombra de um Deus impossivelmente bom e poderoso. Isso não acontecera nas outras religiões de Deus. O Corão, por exemplo, deixa claro que Satanás será perdoado no Último Dia.

Martinho Lutero 0483-1546) acreditava firmemente na bruxaria e via a vida cristã como uma batalha contra Satanás. A Reforma pode ser vista como uma tentativa de lidar com essa ansiedade, embora a maioria dos reformadores não promovesse qualquer concepção de Deus. É simplismo chamar o imenso ciclo de transformação religiosa que ocor- reu na Europa no século XVI de "a Reforma". O termo sugere um movimento mais deliberado e unificado do que aquilo que de fato ocor- reu. Os vários reformadores - católicos e protestantes - tentavam todos articular uma nova consciência religiosa imensamente sentida, mas que não fora conceitualizada nem conscientemente pensada. Não sabemos exatamente porque ocorreu "a Reforma": hoje, os estudiosos nos adver- tem contra as velhas versões dos manuais escolares. As mudanças não se deveram inteiramente à corrupção da Igreja, como muitas vezes se supõe, nem ao declínio no fervor religioso. Na verdade, parece ter havi- do um entusiasmo religioso na Europa, que levou as pessoas a critica- rem abusos que antes aceitavam como normais. As idéias concretas dos reforma dores brotaram todas de teologias medievais católicas .

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· Católicos e protestantes passaram a se considerar como inimigos, embora na verdade sua concepção e a experiência de Deus fossem de uma notável semelhança. Após o Concílio de Trento (1545-63), teológos católicos também se emprenharam na teologia neo-aristotélica, que re- duzia o estudo de Deus a uma ciência natural.

Os Exercícios espirituais, que Inácio de Loyola elaborou para seus primeiros jesuítas, destinavam-se a induzir uma conversão, que podia ser uma experiência tanto dilacerante e dolorosa quanto extremamente agradável. Com sua ênfase no auto-exame e na decisão pessoal, esse retiro de trinta dias em que cada noviço era acompanhado por seu di- retor não diferia da espiritualidade puritana. Os Exercícios são um trei- namento intensivo, sistemático, e altamente eficaz em misticismo. Os místicos muitas vezes desenvolveram disciplinas semelhantes às usadas hoje pelos psicanalistas e é, assim, interessante que os Exercícios tam- bém estejam sendo usados hoje por catÓlicos e anglicanos como um tipo de terapia alternativa.

Inácio de Loyola, contudo, estava consciente dos perigos do falso misticismo. Como Luria, enfatizou a importância da serenidade e ale- gria, advertindo seus discípulos - em suas Regras para o discernimento de espíritos - contra os extremos de emoção que levaram alguns purita- nos a passar dos limites. Ele divide as várias emoções que o exercitante poderá experimentar em seu retiro entre as que provavelmente viriam de Deus e aquelas originárias do demônio. Deus devia ser vivenciado como paz, esperança, alegria e uma "elevação da mente", enquanto in- quietação, tristeza, aridez e distração vinham do "mau espírito". A per- cepção de Deus do próprio Inácio Loyola era aguda: fazia-o chorar de alegria, e ele certa vez disse que sem isso seria incapaz de viver. Mas desconfiava das mudanças violentas de emoção e acentuava a necessida- de de disciplina em sua jornada para um novo eu. Como Calvino, via o cristianismo como um encontro com Deus, que mapeou os Exercícios: a culminação era a "Contemplação para Obter Amor", que vê "todas as coisas como criaturas da bondade de Deus e reflexos dela".

Como os puritanos, os jesuítas experimentavam Deus como uma força dinâmica que, em seu aspecto, podia enchê-Ios de confiança e energia. Como os puritanos, que enfrentaram o Atlântico para assentar-se na Nova Inglaterra, missionários jesuítas viajaram por todo o globo: Fran- cisco Xavier (1506-52) evangelizou à China; e Roberto de Nobili (1557- 1656), à Índia.

8. O Iluminismo

No fim do século XVI,o Ocidente embarca num processo de tecnização

que iria produzir um tipo inteiramente diferente de sociedade, e um novo ideal de humanidade. Inevitavelmente isso iria afetar a percepção ocidental do papel e natureza de Deus. As conquistas do recém-indus- trializado e eficiente Ocidente também mudaram o curso da história mundial. Os outros países do Oikumene acharam cada vez mais difícil

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ignorar o mundo ocidental, como no passado, quando ele ficava atrás das outras grandes civilizações, ou chegar a termos com ele. Como ne- nhuma sociedade atingiria qualquer coisa semelhante, o Ocidente criou problemas inteiramente novos, e portanto muito difíceis de lidar. Até o século XVIII, por exemplo, o islamismo tinha sido o poder mundial dominante na Africa, Oriente Médio e na área do Mediterrâneo. Embora o renascimento no século XV tenha levado o cristianismo ocidental à frente do islamismo em alguns aspectos, as várias potências muçulma- nas puderam facilmente conter o desafio. Os otomanos continuaram a avançar na Europa, os muçulmanos puderam manter seu terreno contra os exploradores portugueses e os mercadores que seguiram na esteira deles. No fim do século XVIII, porém, a Europa tinha começado a do- minar o mundo, e a própria natureza de sua realização significava que era impossível o resto do mundo alcançá-Ia. Os britânicos também ha- viam conquistado o controle da Índia, e a Europa estava em posição para colonizar o máximo possível do mundo. Iniciara-se o processo de ocidentalização, e com ele o culto do secularismo, que reivindicava a independência de Deus.

Ao contrário de Pascal e Descartes, Newton, quando contemplava o universo, estava convencido de que tinha prova da existência de Deus. Por que a gravidade interna dos corpos celestes não os atraíra todos para uma única e imensa esférica? Porque haviam sido cuidadosamente dispostos por todo o espaço infinito com suficiente distância entre si para impedir disso. Como ele explicou a seu amigo Richard Bentley, deão da igreja de São Paulo, isso teria sido impossível sem um Supervisor divino inteligente: "Não acho isso explicável por simples causas natu- rais, mas sou obrigado a atribuí-Io ao desígnio e engenho de um agente voluntário" .

Como Descartes, Spinoza retomou à Prova Ontológica da existência de Deus. A própria idéia de "Deus" contém umà validação da existência de Deus, porque um ser perfeito que não existisse seria uma contradição em termos. A existência de Deus erà necessária porque só ela proporci- onava a certeza e confiança necessárias para se extraírem outras dedu- ções sobre a realidade. Nossa compreensão científica do mundo nos mostra que ele é governado por leis imutáveis. Para Spinoza, Deus é simplesmente o princípio da lei, a soma de todas as leis eternas existen- tes. Deus é um ser material, idêntico e equivalente à ordem que governa o universo. Como Newton, Spinoza retomou à antiga idéia filosófica de emanação.

Felizmente o Iluminismo ia possibilitar à humanidade livrar-se desse infantilismo. A ciência substituiria a religião. "Se a ignorância da natu- reza deu origem aos deuses o conhecimento da natureza é calculado para destruí-Ios". Não há verdades superiores nem padrões por baixo, nenhum desígnio grandioso. Há só a própria natureza: a natureza não é uma obra: sempre existiu por si mesma; é em seu seio que tudo se opera: é um imenso laboratório, equipado como os materiais, e que faz os instrumentos dos quais se vale para atuar. Todas as obras são os efeitos de sua própria energia, e dos agentes ou causas que ela cria, que ela contém, que põe em ação.

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Quando Napoleão perguntou: "Quem foi o autor disso?, Laplace res-

pondeu: "Je n' avais pas besoin de cette hypothese lá" [Não precisei dessa

hipótesel.

9. A Morte de Deus?

No início do século XIX, o ateísmo estava definidamente em pauta.

Os avanços na ciência e tecnologia criavam um novo espírito de autono- mia que levou alguns a declararem sua independência de Deus. Foi o século em que Ludwig Feuerbach, Karl Marx, Charles Darwin, Friedrich Neitzsche e Sigmund Freud elaboraram filosofias e interpretações çien- tíficas da realidade que não deixavam lugar para Deus. Na verdade, no fim do século, um número significativo de pessoas começava a sentir que, se Deus ainda não estava morto, era dever dos seres humanos ra- cionais e emancipados matá-Io. A idéia de Deus apresentada por séculos no Ocidente cristão parecia agora desastrosamente inadequada e a Era da Razão parecia ter triunfado sobre século de superstição e fanatismo. Ou não?

Jean-Paul Sartre(190S-80)falou do buraco em forma de Deus na consci-

ência humana, onde Deus sempre esteve. Apesar disso, insistia em que,

mesmo que Deus existisse, ainda seria necessário rejeitá-Io, pois a idéia dele

nega nossa liberdade. A religião tradicional diz-nos que devemos amoldar-nos

à idéia divina da humanidade para nos tornar plenamente humanos. Em vez

disso, devemos ser os seres humanos como a liberdade encarnada. O

ateísmo de Sartre não era um credo consolador, mas outros existencialistas

viram a ausência de Deus como uma liberação positiva. Maurice Merleau-

Ponty (1908-61)afirmava que, em vez de aumentar nosso senso de mara-

vilha, Deus na verdade o nega. Como representa a perfeição absoluta, nada nos resta para fazer ou conseguir. Albert Camus (1913-60) pregou um ateísmo heróico. As pessoas deviam rejeitar Deus desafiadoramente, a fim de despejar toda a sua amorosa solicitude sobre a humanidade. Como sempre, os ateus têm certa razão. Deus foi de fato usado antes para sufocar a criatividade: se fazem dele uma resposta geral para todo problema e contingência possíveis, ele pode na verdade abafar nosso senso de maravilha ou realização. Um ateísmo apaixonado e engajado pode ser mais religioso que um teísmo cansado ou inadequado.

Desde que os profetas de Israel começaram a atribuir seus próprios

sentimentos e experiências a Deus, os monoteístas num certo sentido criaram

um Deus para si. Raramente foi Deus visto como um fato evidente por si

mesmo, que pode ser encontrado como qualquer outro objeto existente. Hoje

muita gente parece ter perdido a vontade de fazer esse esforço de

imaginação. Isso não precisa ser uma catástrofe. Quando perderam sua

validade, as idéias religiosas em geral desapareceram de maneira indolor: se

a idéia humana de Deus não funciona para nós na era empírica, será

descartada. Contudo, no passado, as pessoas sempre cri-aram novos

símbolos para atuar como focos de espiritualidade. Os seres humanos

sempre criaram uma fé para si, para cultivar seu senso de

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maravilha e do inefável significado da vida. A falta de sentido, a alie-nação,

anomia e violência que caracterizam tanto da vida moderna parecem indicar

que, agora que não estão criando deliberadamente uma fé em "Deus" ou

qualquer outra coisa - pouco importa o quê - muitas pessoas estão caindo em

desespero.

Nos Estados Unidos, 99% da população diz crer em Deus, mas a predominância do fundamentalismo, apocalipsismo e formas carismáticas de religiosidade "instantânea" no país não é nada tranqüilizante. A es- calada da taxa de criminalidade, vício de drogas e a ressurreição da pena de morte não são sinais de uma sociedade espiritualmente saudá- vel. Na Europa, há um crescente vazio onde antes existia Deus na cons-

ciência humana.

Os seres humanos não podem suportar vazio e desolação; enchem o

vácuo criando novos focos de sentido. Os ídolos do fundamentalismo não são

bons substitutos para Deus; se queremos criar uma nova fé vibrante para o

século XXI, devemos talvez estudar a história de Deus, em busca de algumas

lições e advertências.

Lemos muitas vezes o livro de Karen Armstrong. Para estabelecer esta

síntese, foram várias redações. Não discutimos a sua erudição nem a

coragem quanto à abrangência de seu tema com as três religiões

monoteistas.

Porém, dentro mesmo deste horizonte tão vasto percebe-se, clara-mente,

uma fusão ao nosso ver descabida entre história e visão de Deus, idéia de

Deus, religião e religiões. Particularmente chama a atenção a ausência de

uma exata conceituação de revelação. O texto refere-se, e muito, à

experiência de Deus. Raramente se percebe com clareza se o Deus em

questão realmente fala. Se não se pode negar o subjetivo da experiência de

Deus quanto ao indivíduo que a experimenta com todos suas idiossincrasias,

não se percebe a validez de um "conteúdo" objetivo, de fato revelado ou

comunicado!

De modo especial no universo do judaismo e do cristianismo, Deus é

alguém que se revela, que se manifesta. Não se trata pois de uma "idéia" que

poderá variar ou transmudar-se, mas de uma comunicação objetiva, revelada!

Além da realidade básica de revelação que a Autora não privilegia, esta

história fica sendo apenas um "poupourri" de idéias ... Além da A. unir sempre

esta "idéia" de Deus com religião, Fé ou crença, também não dá o volume de

atenção a um outro aspecto sobre Deus no universo judáico-cristão: Javé é

um Deus que intervem na história de Jesus, na história de cada indivíduo.

Sem um posicionamento acerca da revelação tudo, neste "mundo" da história

de idéia de Deus, fica sujeito à tremenda relatividade ou relativização! Daí o

desrespeito à objetividade para se fixar numa incrível relatividade: "Desde que

os profetas de Israel começaram a atribuir

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seus próprios sentimentos e expenencias a Deus, os monoteístas num certo

sentido criaram um Deus para si. Raramente foi Deus visto como um fato

evidente por si mesmo, que pode ser encontrado como qualquer outro

objetivo existente".

Exatamente esta afirmação quase final desta "História" contradiz a

animação inicial da autora: "este livro não é uma história da inefável realidade

do próprio Deus ..., mas uma história de como homens e mulheres o têm

percebido desde Abraão até hoje".

Ao invés da realização deste projeto, vemos a autora passar constan-

temente da idéia, de experiência, da objetividade à negação da realidade

existente, do "conteúdo" envolucrado na tal de idéia! Daí a ousada afir-

mação: "Se a idéia humana de Deus não funciona mais luminosa para nós na

era empírica, será descartada." Acontece, porém, que Deus é Deus e sempre

o será seja qual for a era"ou "as eras" em questão! A idéia será sempre algo

subjetivo? Exclusivamente subjetivo? Foi somente o ser humano que pensou,

que interpretou? Deus, realmente, nem fala nem se revela?

Síntese: Pe. Pedra Américo Maia, 5.J.