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ANAIS DO VI SIPEM RESUMO ABSTRACT 15 a 19 de novembro de 2015 Pirenópolis - Goiás - Brasil Palavras-chave: Keywords História do Conceito culturalmente significada e a Organização da Atividade de Ensino de Matemática Culturally Meant Concept's History And The Organization Of Mathematics Teaching Activity 1 Vanessa Dias Moretti, 2 Luis Radford 1 Universidade Federal de São Paulo – Brasil [email protected] 2 Laurentian University – Canadá [email protected] Formação de Professores, História da Matemática, Atividade de Ensino, Práticas Sociais, Filogênese, Ontogênese. A pesquisa assumiu como problema a aprendizagem da docência da Matemática e teve por objetivo investigar implicações para a formação de professores da relação entre a filogênese e ontogênese na organização do ensino da Matemática, fundamentando a relação entre atividade humana, prática social e história dos conceitos na perspectiva histórico-cultural. O conceito de história é compreendido como categoria ontológica ligada à maneira como os indivíduos produzem sua existência por meio da produção de novas necessidades sociais, culturais e históricas. A produção de ideias matemáticas é entendida em unidade com sua significação manifesta em práticas sociais, o que remete à ontogênese do conceito considerando a dialética entre indivíduo e coletivo no movimento ontofilogenético da aprendizagem conceitual. Focando a formação do professor conclui-se que o estudo da história da matemática permite tanto o reconhecimento das práticas sociais relacionadas à produção histórica e cultural dos conceitos, quanto a compreensão dos limites e mudanças qualitativas dessas práticas que podem indicar um pensar teórico sobre a prática sem o qual não haveria a produção do conceito. Além disso, permite ao professor compreender limites dos problemas matemáticos que pode formular e a mediação necessária para que o estudante tome consciência de formas teóricas de pensar matematicamente. The research assumed as a problem mathematics teaching learning and aimed to investigate implications of the relationship between phylogeny and ontogeny in the organization of mathematics teaching in teacher education process, basing on the relationship between human activity, social practice and history of concepts in historical and cultural perspective. The concept of history is understood as ontological category linked to how individuals produce their existence through the production of new social, cultural and historical needs. Mathematical ideas production is understood as unity with its manifested meaning in social practices, which refers to the concept of ontogenesis, considering the dialectic between individual and collective in an ontophilogenetic movement of conceptual learning. Focusing on teacher education it is concluded that the mathematics history’s study allows the recognition of social practices related to historical and cultural production of concepts and, also, the understanding of the limits and qualitative changes of these practices that might indicate a theoretical thinking about practice without which there would not be concept’s production. In addition, it allows the teacher understanding of the limits of mathematical problems which can be formulated and its necessary mediation in order to the student to become aware of theoretical ways of thinking mathematically. Teacher Education, History of Mathematics, Teaching Activity, Social Practices, Phylogeny, Ontogenesis.

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ANAIS DO VI SIPEM

RESUMO

ABSTRACT

15 a 19 de novembro de 2015 Pirenópolis - Goiás - Brasil

Palavras-chave:

Keywords

História do Conceito culturalmente significada e a Organização da Atividade de Ensino de Matemática

Culturally Meant Concept's History And The Organization Of Mathematics Teaching Activity 1Vanessa Dias Moretti, 2Luis Radford

1Universidade Federal de São Paulo – Brasil [email protected] 2Laurentian University – Canadá [email protected]

Formação de Professores, História da Matemática, Atividade de Ensino, Práticas Sociais, Filogênese, Ontogênese.

A pesquisa assumiu como problema a aprendizagem da docência da Matemática e teve por objetivo investigar implicações para a formação de professores da relação entre a filogênese e ontogênese na organização do ensino da Matemática, fundamentando a relação entre atividade humana, prática social e história dos conceitos na perspectiva histórico-cultural. O conceito de história é compreendido como categoria ontológica ligada à maneira como os indivíduos produzem sua existência por meio da produção de novas necessidades sociais, culturais e históricas. A produção de ideias matemáticas é entendida em unidade com sua significação manifesta em práticas sociais, o que remete à ontogênese do conceito considerando a dialética entre indivíduo e coletivo no movimento ontofilogenético da aprendizagem conceitual. Focando a formação do professor conclui-se que o estudo da história da matemática permite tanto o reconhecimento das práticas sociais relacionadas à produção histórica e cultural dos conceitos, quanto a compreensão dos limites e mudanças qualitativas dessas práticas que podem indicar um pensar teórico sobre a prática sem o qual não haveria a produção do conceito. Além disso, permite ao professor compreender limites dos problemas matemáticos que pode formular e a mediação necessária para que o estudante tome consciência de formas teóricas de pensar matematicamente.

The research assumed as a problem mathematics teaching learning and aimed to investigate implications of the relationship between phylogeny and ontogeny in the organization of mathematics teaching in teacher education process, basing on the relationship between human activity, social practice and history of concepts in historical and cultural perspective. The concept of history is understood as ontological category linked to how individuals produce their existence through the production of new social, cultural and historical needs. Mathematical ideas production is understood as unity with its manifested meaning in social practices, which refers to the concept of ontogenesis, considering the dialectic between individual and collective in an ontophilogenetic movement of conceptual learning. Focusing on teacher education it is concluded that the mathematics history’s study allows the recognition of social practices related to historical and cultural production of concepts and, also, the understanding of the limits and qualitative changes of these practices that might indicate a theoretical thinking about practice without which there would not be concept’s production. In addition, it allows the teacher understanding of the limits of mathematical problems which can be formulated and its necessary mediation in order to the student to become aware of theoretical ways of thinking mathematically.

Teacher Education, History of Mathematics, Teaching Activity, Social Practices, Phylogeny, Ontogenesis.

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Neste texto discutiremos alguns dos resultados de uma pesquisa de pós-doutorado que

assumiu como problema a aprendizagem da docência da Matemática e que teve por objetivo

investigar possíveis implicações para a formação de professores da relação entre a filogênese e

ontogênese na organização do ensino da Matemática, buscando estabelecer relações entre

uma abordagem pedagógica dos conceitos matemáticos e a história do conceito e sua

significação cultural. A pesquisa de cunho teórico fundamentou-se na perspectiva histórico-

cultural (VIGOTSKI, 2002; LEONTIEV, 1983; KOPNIN, 1978) e em elementos da Teoria Cultural

da Objetivação (RADFORD, 2006, 2011, 2013a, 2013b). Para os fins deste artigo, focamos a

discussão teórica sobre a relação entre atividade humana, prática social e história dos

conceitos. Como resultado, apresentamos algumas possíveis implicações desta relação para a

organização do ensino e para a formação de professores que ensinam Matemática.

A formação de professores é uma área de pesquisa bastante consolidada no campo da

Educação Matemática e tem acumulado, ao longo dos últimos anos, uma expressiva produção

acadêmica amplamente divulgada em periódicos, nacionais e internacionais, de relevância

reconhecida na área. No entanto, ainda são poucos os reflexos dessa produção de

conhecimento na transformação efetiva do cotidiano escolar e das práticas de ensino e de

aprendizagem relacionadas à área de Matemática. Diferentes pesquisadores (PONTE, 1992;

FIORENTINI, 1995; NACARATO, MENGALI e PASSOS, 2009) têm abordado a relação existente

entre as práticas pedagógicas dos professores, suas experiências formativas e as suas

concepções sobre matemática e o ensino e a aprendizagem da matemática. Segundo

Nacarato, Mengali e Passos (2009), em uma análise teórica sobre as mudanças curriculares

proposta na Educação Básica no Brasil ao longo dos últimos vinte anos seria de se esperar que

os jovens que chegam hoje aos cursos de licenciaturas tivessem vivenciado práticas não

tradicionais de ensino em relação à Matemática. No entanto, as autoras ressaltam que a

realidade encontrada pelos formadores de professores em tais cursos é bastante diferente

disso. Os futuros professores “trazem marcas profundas de sentimentos negativos em relação

a essa disciplina as quais implicam, muitas vezes, bloqueios para aprender e para

ensinar” (NACARATO, MENGALI e PASSOS, 2009, p.23) e que, por sua vez, influenciam a

constituição de sua prática profissional.

Introdução

Sobre a Aprendizagem Docente

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Aliado a esse aspecto, os cursos de licenciatura não têm trabalhado de forma suficiente

os conteúdos das disciplinas a serem ensinadas na educação básica (GATTI, 2010; ORTEGA e

SANTOS, 2012). Mais do que trabalhar os conteúdos a serem ensinados na educação básica,

os cursos de formação inicial de professores têm o desafio desenvolver percursos de formação

docente que possibilitem aos futuros professores ressignificarem suas relações com as

diferentes áreas do conhecimento uma vez que, assim como Fiorentini (2012),

compreendemos que

[...] para ser professor de matemática não basta ter um domínio conceitual e procedimental da matemática produzida historicamente. Sobretudo, necessita conhecer seus fundamentos epistemológicos, sua evolução histórica, a relação da matemática com a realidade, seus usos sociais e as diferentes linguagens com as quais se pode representar ou expressar um conceito matemático. (FIORENTINI, 2012, p.110).

Tomando a complexidade do processo de formação do professor de matemática

apontada por Fiorentini (2012) como contexto, o processo de aprendizagem docente é

compreendido como sendo permeado pela apropriação de conceitos, práticas, valores e

modos de ação que constituem a objetivação de um arcabouço cultural produzido histórica e

socialmente. Segundo Vigotski, essa apropriação dá-se de forma mediada por signos e

instrumentos, num movimento dialético entre processos inter e intrapsíquicos (VIGOTSKI,

2002). Ainda nesta perspectiva teórica de abordagem histórico-cultural, compreende-se que a

apropriação produz-se na atividade do sujeito e resulta na produção de sentido pessoal que,

em relação à apropriação conceitual, espera-se coincidir com a significação social (LEONTIEV,

1983). Segundo Leontiev (1983), o sentido é sempre o sentido de algo, não sendo possível

falar em sentido puro, e relaciona-se com o motivo que incita o sujeito a agir. Assim, qualquer

mudança de sentido pessoal relaciona-se com uma mudança de motivo na atividade

desenvolvida pelo sujeito, a partir de uma necessidade.

O conceito de necessidade, compreendido a partir de uma perspectiva dialética, amplia-

se para além da relação imediata entre sujeito-necessidade-objetivo. Fraser (1998) aborda a

questão da necessidade retomando as obras de Hegel e Marx e estabelecendo conexões,

continuidades e rupturas entre as proposições desses dois teóricos. A necessidade toma

dimensão ética, social, estética e seu estudo passa por analisar e elucidar as formas que as

necessidades naturais tomam na sociedade capitalista, conforme proposto por Marx, ao

considerar que as necessidades dos trabalhadores individuais relacionam-se com a necessidade

de reprodução de sua força de trabalho para o capital. A distinção entre necessidades naturais

e necessidades criadas socialmente indica a alteração na forma como cada pessoa satisfaz suas

necessidades (FRASER, 1998, p.125). Segundo esse autor, o conceito de necessidade humana

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em Marx relaciona-se com a realização da essência humana mediada pela consciência (FRASER,

1998, p.143).

Ao compreender a aprendizagem docente como processo de tomada de consciência do

sujeito sobre sua atividade de ensino, decorre daí que mudanças significativas na prática

docente só são possíveis por meio da transformação do sentido atribuído pelo sujeito às suas

ações em atividade (MORETTI e MOURA, 2010). Nesse processo, por meio da revisão dos

motivos que impulsionam a atividade, dá-se a atribuição de sentido pessoal a elementos

essenciais à aprendizagem da docência e, em particular, ao conceito matemático.

Em uma perspectiva histórica e cultural, apoiada nas produções de Vigotski (2000, 2002),

Leontiev (1983, 2001), Moura (2007), Radford (2006, 2011, 2013a, 2013b) entre outros, os

conceitos matemáticos são compreendidos como produções humanas que objetivam respostas

às necessidades (FRASER, 1998) dos sujeitos em um determinado lugar e tempo histórico.

Nesse sentido, a matemática “é apenas parte do incessante processo de análise e síntese

gerado na dinâmica da construção de respostas a problemas gerados na busca do

aprimoramento da vida no coletivo” (MOURA, 2007, p.45).

A relação entre a produção do conhecimento matemático e as atividades humanas e

práticas sociais é especialmente abordada por Høyrup (1994). Este autor aborda com

profundidade a relação entre a História da Matemática e a Cultura na Mesopotâmia e na

Grécia, focando especialmente os conceitos de medida, número e peso. Neste percurso, o

autor busca superar uma compreensão platônica de Matemática e propõe a discussão sobre o

papel das instituições, explorando noções como poder, burocracia estatal e práticas sociais

diversas. Neste sentido, entende que as instituições medeiam a influência de forças

socioculturais gerais sobre os sujeitos ao mesmo tempo em que esses também contribuem

para modelar a interação com as forças socioculturais. Um exemplo dessa mediação é o

sentido que ao autor explicita acerca do trabalho dos escribas naquele contexto social e

histórico. Embora houvesse inicialmente uma demanda relacionada às necessidades imediatas

do cotidiano, especialmente orientadas à solução de problemas de controle administrativo,

Høyrup mostra que a motivação dos escribas para a resolução de problemas passa por um

reconhecimento social dessa atividade de forma que “tudo tem a ver com a prática dos

escribas, mas a prática de escriba transposta da região de necessidade prática para a de

Atividade Humana, Prática Social e História do Conceito

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virtuosismo” (HØYRUP, 1994, p. 66). A análise de Høyrup sobre textos didáticos elaborados

para a formação de escribas demonstra que a sua identidade profissional constituía-se a partir

do reconhecimento social de modo que do “escriba é esperado ser orgulhoso, não de realizar

suas tarefas reais, mas de sua identidade e capacidade como um escriba” (HØYRUP, 1994, p.

66), o que só foi possível em uma determinada sociedade que valorizava e encorajava isso. A

análise do contexto explicitado por Hoyrup nos permite reconhecer na ideia de necessidade a

sua vinculação histórica e cultural de modo que as necessidades que desencadeiam as

atividades humanas encontram-se imbrincadas ou subsumidas a sistemas sociais de produção

de sentido.

Outro aspecto explorado pelo autor é a dialética entre a tradição e a situação real na

História da Matemática, compreendendo que embora o conhecimento de uma geração

dependa do que foi feito anteriormente, em geral, tal relação precisa ser compreendida através

de conceitos e hábitos mentais decorrentes de uma prática real. Assim, “a característica

distintiva da matemática como uma entidade é a coordenação da abstração de diversas

práticas” o que implica compreender a constituição da Matemática como entidade e campo de

conhecimento no “ponto onde as práticas matemáticas pré-existentes e anteriormente

independentes são coordenadas através, pelo menos, de um mínimo de compreensão intuitiva

de relações formais”. (HØYRUP, 1994, p.67- 68). Tal compreensão acerca da relação entre

práticas sociais e conhecimento matemático abstrato remete à discussão de Kopnin (1978)

sobre os aspectos históricos e lógicos do conceito. O conceito de história tal como assumido

por Kopnin (1978), ao diferenciar-se de uma visão positivista de história, vai ao encontro do

conceito proposto pela perspectiva histórico-cultural. Segundo Marx e Engels (1993)

[...] o primeiro pressuposto de toda a existência humana e de toda a história é que os homens devem estar em condições de viver para poder “fazer história”. Mas, para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e de fato este é um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, como há milhares de anos, deve ser cumprido todos os dias e todas as horas, simplesmente para manter os seres humanos vivos. [...] O segundo ponto é que, satisfeita essa primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento de satisfação já adquirido conduzem a novas necessidades — e esta produção de novas necessidades é o primeiro ato histórico. (MARX E ENGELS, 1993, pp. 39-40)

Desta forma, no materialismo dialético o conceito de história é compreendido como

categoria ontológica, de constituição do humano, diretamente ligada à maneira como os

indivíduos produzem sua vida e sua existência por meio da produção de novas necessidades

que superam as necessidades naturais. Essas novas necessidades, intrinsecamente humanas,

são sociais, culturais e históricas.

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É imerso nessa compreensão de história que Kopnin (1978) entende que o movimento

histórico da produção dos conceitos, em particular de conceitos matemáticos, ao ser

apropriado pelo pensamento humano, constitui o aspecto lógico do conceito. Assim, o lógico

é “a reprodução da essência do objeto e da história do seu desenvolvimento no sistema de

abstrações” (KOPNIN, 1978, p. 183), é a apropriação do histórico pelo pensamento humano e,

“por isso, o lógico é o histórico libertado das casualidades que o perturbam” (KOPNIN, 1978,

p. 184). Nessa perspectiva, o conceito é compreendido na unidade entre a lógica e a produção

humana histórica desse conhecimento. Segundo Kopnin (1978),

À base do conhecimento da dialética do histórico e do lógico resolve-se o problema da correlação entre o pensamento individual e o social; em seu desenvolvimento intelectual individual o homem repete em forma resumida toda a história do pensamento humano. (KOPNIN, 1978, p. 186).

No entanto, o risco de assumir essa afirmação sem uma devida compreensão dialética

entre a filogênese e a ontogênese é tomá-la como correspondente ao pensamento piagetiano

acerca de “o papel da psicogênese e das suas notáveis convergências com a história do

pensamento científico” (PIAGET e GARCIA, 1987, p. 250). Acerca da unidade entre a

filogênese e a ontogênese, Vigotski afirma ser esta “a força motriz básica do

desenvolvimento” cultural (VIGOTSKI, 2000, p.27). Segundo Pino (2000), Vigotski preocupa-se

em articular dois sentidos da história: o sentido ontogenético, relacionado com a história

pessoal do sujeito, e o sentido filogenético, relacionado com a história da espécie humana.

A história pessoal (desenvolvimento cultural), sem deixar de ser obra da pessoa singular, faz parte da história humana. A transformação que ocorre no plano ontogenético é um caso particular da que ocorre no plano filogenético. (PINO, p. 51).

Referindo-se a essa relação a partir da compreensão vigotskiana, Radford (2011, p.82)

destaca a importância da interação entre a história sociocultural e o desenvolvimento

ontogenético da cultura. Segundo esse autor, “para compreender os desenvolvimentos

conceituais precisamos colocar o sujeito conhecedor e toda a atividade matemática em estudo

dentro da sua concepção cultural da Matemática e da ciência geral.” (RADFORD, 2011, p.82).

Radford aborda a relação entre a filogênese e a ontogênese e suas implicações para o ensino

da Matemática em diferentes produções (RADFORD, 2006; 2011; 2013a, 2013b), destacando

a importância de que os conceitos sejam estudados no seu processo de produção com os

significados culturais intrínsecos à cultura nas quais estão inseridos, uma vez que

ontogeneticamente o pensamento humano está subsumido a uma realidade cultural

(RADFORD, 2006). Segundo ele,

[...] do ponto de vista filogenético, a atividade humana é geradora dos objetos conceituais, os quais se transformam na raiz de mudanças nas próprias atividades. Do

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ponto de vista ontogenético, o problema central é explicar como se realiza a aquisição do saber depositado na cultura: este é um problema fundamental da didática das matemáticas em particular, e da aprendizagem em geral. (RADFORD, 2006, p.112).

Esse autor desenvolve o conceito de objetivação como forma de compreensão do

conhecimento como objetivo cultural e sua relação como objeto de consciência:

A aprendizagem é a transformação subjetiva e idiossincrática do conhecimento "em si" em um conhecimento "para si", ou seja, uma transformação do conhecimento cultural objetivo em um objeto de consciência. Essa transformação é o que eu chamo de objetivação. (RADFORD, 2013a, p.25).

A relação entre a prática social e os processos de atribuição de significados conceitual dá-

se mediada por sistemas semióticos de significação cultural de modo que:

[...] É através da prática social que [os homens] produzem suas ideias (matemáticas ou outras), é claro que a prática social não opera de forma autônoma por si só: a prática social está imersa em sistemas simbólicos que a organizam de uma forma ou de outra. São estes sistemas simbólicos que chamamos de sistemas semióticos de significação cultural. (RADFORD, 2013b, p.10).

Assim, a produção de ideias matemáticas é entendida em unidade com a sua significação

manifesta em práticas sociais em um ambiente culturalmente determinado, o que remete à

ontogênese do conceito considerando a dialética entre indivíduo e coletivo no movimento

ontofilogenético da aprendizagem conceitual. Sendo assim, a unidade entre a filogênese e a

ontogênese como “força motriz básica do desenvolvimento” cultural conforme indicada por

Vigotski (2000, p.27) não significa que a ontogênese recapitule a filogênese, mas sim a

“revive” no sentido lógico do conceito tal como propõe Kopnin (1978), ou seja, como

reprodução da essência do objeto e da história do seu desenvolvimento no sistema de

abstrações que se retraem e se expandem segundo todo um sistema histórico­cultural de

modos de ação conjunta que se objetivam por meio de atividades (cf. LEONTIEV, 1983) que

contemplam o movimento entre o individual e o coletivo na apropriação do conceito.

A busca de metodologias de formação docente que favoreçam mudanças de sentido dos

sujeitos e a constituição de novas práticas: mais conscientes, autônomas e fundamentadas

teoricamente, constituiu a motivação inicial para o desenvolvimento dessa pesquisa. Tendo

como referencial de pesquisa a teoria histórico-cultural, buscamos compreender o potencial da

história do conceito como suporte para a elaboração de situações potencialmente

desencadeadoras da aprendizagem. A pesquisa acerca da relação dialética entre filogênese e

ontogênese, reveladora da importância das práticas sociais vinculadas à atividade humana

social e historicamente situadas, indica o potencial da história da matemática como suporte à

Conclusões e Implicações para a Formação Docente e a Atividade de Ensino

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organização do ensino que vise o desenvolvimento do pensamento teórico dos estudantes,

para além da cotidianização das situações-problemas envolvidas. Para isso, o conhecimento

profundo sobre o objeto matemático a ser ensinado precisa constituir-se para os professores

como necessidade urgente na organização da sua atividade docente.

Embora o uso da História da Matemática como fonte de problemas que são adaptados

para a sala de aula, com reconhecida competência e resultando em atividades didáticas

bastante interessantes, não seja uma novidade no campo de pesquisa da Educação

Matemática, o que propomos aqui difere dessa abordagem podendo ser-lhe complementar.

Propomos que o sentido de problema, comumente utilizado em Educação Matemática tome

uma dimensão que associe elementos da História da Matemática, o conceito de atividade e os

sistemas simbólicos de significação cultural, conforme Figura 1.

O estudo da história da matemática permite tanto o reconhecimento das práticas sociais

relacionadas à produção histórica e cultural dos conceitos, quanto permite ao educador

compreender os limites e as mudanças qualitativas dessas práticas que podem indicar um

pensar teórico sobre a prática sem o qual não haveria a produção do conceito. Segundo

Radford (MORETTI, PANOSSIAN e MOURA, 2015, p.254), o conhecimento da história da

matemática permite-nos compreender que para qualquer saber “há sempre uma possibilidade

já construída para pensá-lo”, o que não significa repeti-la.

Problema

Atividade

- Objetivo

- Ações

- Operações

- Divisão de trabalho

História da Matemática

Dimensão histórico-cultural

Sistemas Semióticos de Significação Cultural

- Concepções sobre objetos conceituais

- Padrões sociais de produção de significados

Figura 1: Dimensões do Problema: História da Matemática, Atividade e Sistemas Semióticos de Significação Cultural (adaptado de RADFORD, 2006, p. 109).

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[...] isso significa que esse saber tem uma trajetória, uma história e o estudo dessa história, o estudo de suas condições de possibilidades, de transformação, de generalização, de refinamento, dá-nos uma ideia da densidade epistemológica do saber, que pode ser muito importante no momento de desenhar atividades didáticas e interpretar o que se passa na sala aula. (Entrevista com Luis Radford em MORETTI, PANOSSIAN e MOURA, 2015, p.254).

Tal conhecimento permite a elaboração de situações desencadeadoras de aprendizagem

que potencialmente coloquem o estudante diante da necessidade do conceito ao

demandarem um pensar teórico sobre a prática e o reconhecimento de determinadas formas

de conhecimento histórica e culturalmente significadas. Tal necessidade, não necessariamente

está relacionada com problemas históricos reais e pode emergir a partir de diferentes tipos de

situações-problema tais como “um jogo, um problema contextualizado ou até mesmo um

problema de compatibilidade lógica dentro da própria matemática.” (MORETTI e MOURA,

2011, p. 443).

Ao transformar-se em necessidade para o estudante, de ordem cognitiva ou material,

pode mobilizá-lo na busca da solução de forma que as ações que desenvolva tenham como

objetivo a resolução da situação proposta e não apenas responder a uma demanda do

professor. Neste sentido, o problema proposto constitui-se de fato como situação

desencadeadora da atividade do sujeito (LEONTEV, 1983).

Outro aspecto relacionado à contribuição da história da matemática para a organização

do ensino, em uma perspectiva histórico-cultural, diz respeito ao reconhecimento, por parte do

professor, de uma perspectiva histórica e epistemológica do saber, sem a qual

[...] arriscamo-nos a não entender as dificuldades que muitos estudantes podem atravessar em seu encontro com essas formas condensadas de refletir e atuar e também perdemos possibilidades para a geração de desenhos sofisticados das atividades que queremos trazer para a sala de aula. (Entrevista com Luis Radford em MORETTI, PANOSSIAN e MOURA, 2015, p.254)

Por fim, focando a formação do educador matemático, compreendemos que não há uma

formulação de problema matemático que, por ela mesma, faça emergir um determinado

conceito ou conhecimento e, nesse sentido, o que apresentamos neste texto distingue-se da

Teoria das Situações Didáticas (BROUSSEAU, 2008) segundo a qual para todo conceito

matemático lhe corresponde uma situação, um problema matemático, que de certa forma vai

forçar o aluno a utilizá-lo (o conceito).

A proposição de problemas fundamentados na história da matemática, tal como

compreendemos, só pode se constituir como desencadeadora de aprendizagem por meio de

um trabalho conjunto com o professor. Neste sentido, a história da matemática é aclaradora,

pois permite ao professor compreender os limites dos problemas matemáticos que pode

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formular, bem como a mediação necessária para que o estudante tome consciência de formas

teóricas de pensar matematicamente. Isso é algo que, como formadores de professores,

podemos trabalhar com os nossos futuros professores.

À FAPESP pelo financiamento concedido à pesquisa de pós-doutorado e à Laurentian

University, ON, Canadá, local no qual a pesquisa foi desenvolvida.

Agradecimentos

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VI Seminário Internacional de Pesquisa em Educação Matemática

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15 a 19 de novembro de 2015 | Pirenópolis - Goiás - Brasil

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