HISTÓRIA DO TEATRO - A farsa de Inês Pereira

9
HISTÓRIA DO TEATRO SINOPSE A peça tem início com a entrada de Inês Pereira cantando e fingindo que trabalha em um bordado. Logo começa a reclamar do tédio deste serviço e da vida que leva, sempre fechada em casa. A mãe, ouvindo suas reclamações, aconselha-a a ter paciência. Inês é uma jovem solteira que sofre a pressão constante do casamento. Imagina Inês casar-se com um homem que ao mesmo tempo seja alegre, bem-humorado, galante e que goste de dançar e cantar, o que já se percebe na primeira conversa que estabelece com sua mãe e Leonor Vaz. Essas duas têm uma visão mais prática do matrimônio: o que importa é que o marido cumpra suas obrigações financeiras, enquanto que Inês está apenas preocupada com o lado prazeroso, cortesão. Lianor Vaz aproxima-se contando que um padre a assediou no caminho. Depois de contar suas aventuras, diz que veio trazer uma proposta de casamento para Inês e lhe entrega uma carta de seu pretendente, Pero Marques, filho de lavrador rico, o que satisfazia a idéia de marido na visão de sua mãe. Inês aceita conhecê-lo apesar de não ter se interessado pela carta. Pessoalmente, acha Pero ainda mais desinteressante ainda e recusa o casamento. Sua esperança agora está nos Judeus casamenteiros a quem encomendou o noivo de seus sonhos. Aceita então a proposta de dois judeus casamenteiros divertidíssimos, Latão e Vidal, que somente se interessam no dinheiro que o casamento arranjado pode lhes render, não dando importância ao bem-estar da moça. Então lhe apresentam Brás da Mata, um escudeiro, que mostra-se exatamente do jeito que Inês esperava, apesar das desconfianças de sua mãe. Antes de vir conhecê-la, porém, o tal Escudeiro, na verdade, pretensioso e falido, combina com seu mal-humorado pajem as mentiras que dirá para enganar Inês. O plano dá certo e eles se casam. No entanto, consumado o casamento, Brás, seu marido, mostra ser tirano, proibindo-a de tudo, até de ir à janela. Chegava a pregar as janelas para que Inês não olhasse para a rua. Proibia Inês de A farsa de Inês Pereira 1

Transcript of HISTÓRIA DO TEATRO - A farsa de Inês Pereira

Page 1: HISTÓRIA DO TEATRO - A farsa de Inês Pereira

HISTÓRIA DO TEATRO

SINOPSE

A peça tem início com a entrada de Inês Pereira cantando e fingindo que trabalha em um bordado. Logo começa a reclamar do tédio deste serviço e da vida que leva, sempre fechada em casa. A mãe, ouvindo suas reclamações, aconselha-a a ter paciência. Inês é uma jovem solteira que sofre a pressão constante do casamento. Imagina Inês casar-se com um homem que ao mesmo tempo seja alegre, bem-humorado, galante e que goste de dançar e cantar, o que já se percebe na primeira conversa que estabelece com sua mãe e Leonor Vaz. Essas duas têm uma visão mais prática do matrimônio: o que importa é que o marido cumpra suas obrigações financeiras, enquanto que Inês está apenas preocupada com o lado prazeroso, cortesão.

Lianor Vaz aproxima-se contando que um padre a assediou no caminho. Depois de contar suas aventuras, diz que veio trazer uma proposta de casamento para Inês e lhe entrega uma carta de seu pretendente, Pero Marques, filho de lavrador rico, o que satisfazia a idéia de marido na visão de sua mãe. Inês aceita conhecê-lo apesar de não ter se interessado pela carta. Pessoalmente, acha Pero ainda mais desinteressante ainda e recusa o casamento. Sua esperança agora está nos Judeus casamenteiros a quem encomendou o noivo de seus sonhos.

Aceita então a proposta de dois judeus casamenteiros divertidíssimos, Latão e Vidal, que somente se interessam no dinheiro que o casamento arranjado pode lhes render, não dando importância ao bem-estar da moça. Então lhe apresentam Brás da Mata, um escudeiro, que mostra-se exatamente do jeito que Inês esperava, apesar das desconfianças de sua mãe. Antes de vir conhecê-la, porém, o tal Escudeiro, na verdade, pretensioso e falido, combina com seu mal-humorado pajem as mentiras que dirá para enganar Inês.

O plano dá certo e eles se casam. No entanto, consumado o casamento, Brás, seu marido, mostra ser tirano, proibindo-a de tudo, até de ir à janela. Chegava a pregar as janelas para que Inês não olhasse para a rua. Proibia Inês de cantar dentro de casa, pois queria uma mulher obediente e discreta.

Encarcerada em sua própria casa, Inês encontra sua desgraça. Mas a desventura dura pouco pois Brás torna-se cavaleiro e é chamado para a guerra, onde morre nas mãos de um mouro quando fugia de forma covarde.

Finalmente em liberdade, a moça não perde tempo.Viúva e mais experiente, fingindo tristeza pela morte do marido tirano, Inês aceita casar-se com Pero Marques, seu antigo pretendente. Aproveitando-se da ingenuidade de Pero, o trai descaradamente quando é procurada por um ermitão que tinha sido um antigo apaixonado seu. Marcam um encontro na ermida e Inês exige que Pero, seu marido, a leve ao encontro do ermitão. Ele obedece colocando-a montada em suas costas e levando Inês ao encontro do amante.

Consuma-se assim o tema, que era um ditado popular de que "é melhor um asno que nos carregue do que um cavalo que nos derrube".

A farsa de Inês Pereira 1

Page 2: HISTÓRIA DO TEATRO - A farsa de Inês Pereira

HISTÓRIA DO TEATRO

A OBRA

A Farsa de Inês Pereira é considerada a mais complexa peça de Gil Vicente. Gil Vicente havia sido acusado de plagiar obras do teatro espanhol de Juan del Encina. Em vista disso, pediu para que aqueles que o acusavam dessem um tema para que ele pudesse, sobre ele, escrever uma peça. Deram-lhe o seguinte ditado popular como tema: “Mais vale asno que me leve que cavalo que me derrube”. No auge de sua carreira dramática, sobre este tema, Gil Vicente criou A Farsa de Inês Pereira, respondendo assim àqueles que o acusavam de plágio. A peça foi apresentada pela primeira vez para o rei D. João III, em 1523.

Ao apresentá-la, o teatrólogo português diz:

"A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, na era do Senhor 1523. O seu argumento é que, porquanto duvidavam certos homens de bom saber, se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se as furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse: é um exemplo comum que dizem: Mais vale asno que me leve que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa."

A Farsa de Inês Pereira é também considerada a peça mais divertida e humanista de Gil Vicente. O aspecto humanístico da obra vê-se pelo fato de que a protagonista trai o marido e não recebe por isso nenhuma punição ou censura, diferentemente de personagens de O Auto da Barca do Inferno e O Velho da Horta, que são castigadas por fatos moralmente parecidos.

É uma comédia de caráter e de costumes, que retrata a vida doméstica e envolve tipos psicologicamente bem definidos. A protagonista, Inês Pereira, é uma típica rapariga, leviana, ociosa, namoradeira, que passa o tempo todo diante do espelho, a se enfeitar, tendo em vista um casamento nobre. Por meio dessa personagem, Gil Vicente critica as jovens burguesas, ambiciosas e insensatas. Criticas também na figura de Brás da Mata, o falso escudeiro, tirano e ambicioso, malandro, galanteador, bem-falante e bom cantante, superficial e covarde. As alcoviteiras, alvo freqüente da sátira de Gil Vicente, têm na fofoqueira Lianor Vaz mais um tipo inesquecível da galeria gilvicentina. A classe sacerdotal também é satirizada. Os judeus casamenteiros, Latão e Vidal,  aparecem com seu linguajar e atitudes característicos. Gil Vicente esmera-se em compor o contraste entre Pero Marques, o primeiro pretendente, camponês rústico, provinciano, meio bobo, mas honesto e com boas intenções, e Inês Pereira, calculista, frívola e ambiciosa - uma rapariga fútil e insensata, a quem a experiência acabou ensinando a sua lição de vida.

Acreditando que a atitude da protagonista – expressa, inclusive, a partir de seu discurso - simboliza os valores de um mundo em transição, propiciando uma reflexão acerca das mentalidades medieval e pré-renascentista, nosso estudo propõe uma análise do auto em questão à luz dessa transição, em seus aspectos histórico, social e lingüístico, no olhar desse escritor situado entre dois mundos, sobretudo no que se refere ao papel da mulher.

A farsa de Inês Pereira 2

Page 3: HISTÓRIA DO TEATRO - A farsa de Inês Pereira

HISTÓRIA DO TEATRO

O AUTOR

Pouco se sabe a respeito da Biografia de Gil Vicente. Presume-se que tenha nascido entre 1460 e 1470, sem se saber, ao certo, o ano e, tão pouco, a cidade que lhe serviram de berço. Outras dúvidas sobre o artista envolvem as datas e circunstâncias de publicação e de encenação de suas peças; do que se tem mais certeza, a primeira, Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro, teria sido encenada em 1502, por ocasião do nascimento do príncipe herdeiro D. João III, filho de D. Manuel e D. Maria de Castela. Independentemente, porém, destas dúvidas biográficas, pode-se afirmar, com clareza, que Gil Vicente desfrutou de grande prestígio nas Cortes de D. João II, de D. Manuel e de D. João III, graças, provavelmente, às proteções de D. Leonor, viúva de D. João II e irmã de D. Manuel.

Ainda, do pouco que se sabe sobre Gil Vicente, diz-se que ele, apesar de respirar os ares da revolução cultural, econômica e social promovida pelo Renascimento crítico, racionalista e pagão, permaneceu apegado aos valores do passado: teocêntrico e feudal, conservador e moralista – imbuído, ao lado da rainha D. Leonor, do propósito de vitalizar valores reformistas nacionais e religiosos, fato que lhe valeu, até recentemente, a alcunha de erasmista – seguidor das doutrinas religiosas influenciadas pelo pensamento humanista e reformista.

Suspeita-se, de outro modo, que Gil Vicente, para além da Dramaturgia, tenha trabalhado também como Ourives na Casa da Balança Real, o que não se pode, porém, comprovar com certeza, mas que, uma vez provado, seria de grande valia para avaliar que o prestígio desfrutado pelo autor na Corte Portuguesa ultrapassou os limites até mesmo de sua Arte.

O último fato nebuloso, porém, sobre o dramaturgo português é exatamente a data de sua morte que, teria sido 1537, segundo a hipótese mais corrente, data que surge, entretanto, apenas como um limite didático para circunscrever a Obra do criador do Teatro Popular em Língua Portuguesa, que continua fazendo adeptos, inclusive, fora de Portugal.

O TEATRO VICENTINO

O Teatro Popular de Gil Vicente apareceu no contexto de transição do Humanista como uma das mais contundentes representações das oscilações daquela época. Inspirado no Teatro Pastoril Espanhol, de Juan Del Encina, e, ao mesmo tempo, no Teatro Humanista, de Giovanni Boccácio, o Teatro Vicentino constituiu-se como caudatário de valores renascentes renovadores, sem abrir mão dos maniqueísmos religiosos medievais. Nesse sentido, podemos conforma-lo a uma Dramaturgia contraditória, dividida entre atitudes estéticas e sócio-culturais medievais e renascentes – que circunscreveram o Período Humanista.

Desse modo, podemos tentar explicar a Dramaturgia Vicentina a partir de três contradições: a primeira, na Forma de Expressão – que é vincada pela pobreza cenográfica e, ao mesmo tempo, pela riqueza textual - ; a segunda, na construção do Conteúdo – reflexo do contraste entre a cultura medieval e a cultura renascente -; e,

A farsa de Inês Pereira 3

Page 4: HISTÓRIA DO TEATRO - A farsa de Inês Pereira

HISTÓRIA DO TEATRO

ainda, a terceira, encontrada na construção dos Personagens – entregue, ora à Tipificação, ora à Alegorização. Uma Dramaturgia que, apesar de ter origem no Teatro Religioso Medieval – Autos Religiosos –, popularizou-se, alcançando características renascentes, ao tornar-se mais telúrico, pagão, humorado e cotidiano.

CONTEXTO HISTÓRICO

Na transição do século XV para o século XVI, a Cultura e a Sociedade Portuguesa inclinaram-se para o caminho do Renascimento: revitalizando a Cultura Pagã dos antigos Gregos e Romanos e implementando sua Revolução Comercial Expansionista, Portugal lançou-se ao mar das conquistas, à globalização da economia e à paganização de sua cultura. O Teocentrismo e a Sociedade Feudal foram perdendo suas forças, proporcionando, num primeiro momento, um convívio mais ou menos pacífico entre valores medievais remanescentes e valores renascentes transformadores. Era o fim da Idade Média e do Mundo dos Cavaleiros que cedia lugar ao Renascimento e ao Mundo dos Mercantilistas Navegadores. Neste tempo de transição, os contrastes, contradições culturais foram invitáveis e atingiram inclusive os conceitos estéticos. Mudaram o caminho da Arte e, de modo especial, da Literatura que, naquele momento, tornou-se um misto de tendência medievais e renascentes.

A chamada Literatura Humanista representou assim, um homem dividido entre as belezas da Alma e as belezas do Corpo, entre as belezas da Fé e as belezas da Razão, entre as belezas da Religião e as belezas da Ciência, enfim, entre as belezas do Céu e as belezas da Terra até quando, mais tarde decidir entre um dos dois caminhos: ou da religiosidade cristã ou do paganismo materialista renascente. De qualquer modo, as tensões sociais e culturais da era Humanista construíram um Teatro Popular, uma Poesia Palaciana e uma Crônica Histórica, como expressões literárias marcas pela oscilação entre dois mundos: em primeiro lugar, como uma extensão da velha ordem feudal e teocêntrica; em segundo lugar, como uma busca de renovações propugnadas pelo novo contexto mercantilista e antropocêntrico.

INÊS PEREIRA E A FARSA

Segundo Massaud Moisés:

“do Latim farsa; farcire, rechear. Sutil, se não difícil de precisar, é a distinção entre a Farsa e a Comédia. De modo genérico, pode-se afirmar que a diferença é de grau: a farsa consistiria no exagero do cômico, graças ao emprego de processos grosseiros, como o absurdo, as incongruências, os equívocos, os enganos, a caricatura, o humor primário, as situações ridículas. A Farsa dependeria mais da ação que do diálogo, mais dos aspectos externos (cenário, roupagem, gestos, etc) que do conflito dramático (...) Lembrando o burlesco nalguns aspectos e relacionada até certo ponto com a “Fabliau”, a Farsa despontou no crepúsculo da Idade Média Francesa: a princípio, consistia numa breve peça cômica inscrita, a modo de intervalo, no meio de mistérios.

A farsa de Inês Pereira 4

Page 5: HISTÓRIA DO TEATRO - A farsa de Inês Pereira

HISTÓRIA DO TEATRO

Dentre os numerosos exemplares no gênero (mais de cento e cinqüenta), produzidos entre 1440 e 1560, época do seu florescimento, destaca-se La farce de maítre Pathélin, composta entre 1460 e 1470. Após exercer notável influência sobre o teatro seiscentista (Molière, Shakespeare, Commedia dell’arte) a Farsa continuou a ser apreciada até os nossos dias com experientes pediculares à Farsa. Em vernáculo e em Espanhol, o vocábulo Farsa não encerra sentido determinado: tendia a comutar com as palavras “comédia” e “auto” (por exemplo: Farsa dos Físicos, de Gil Vicente, Farsas Del Nascimiento de Nuestro Redemtor Jesu-cristo, de Lucas Fernández).

A rigor, a Antigüidade greco-latina desconheceu a Farsa conforme se cultivou na Idade Média: não que a gênese da Farsa Medieval se encontra no teatro satírico pré-cristão”.

(Moisés, Massaud, Dicionário de Termos Literários; São Paulo; Cultrix, s/d.)

A Farsa de Inês Pereira é, na obra vicentina, a modalidade teatral que alcançou assim, maior organicidade; a que ganhou, efetivamente, uma estória, muito próxima da narrativa. É exatamente por isso que Segismundo Spina a coloca no campo das Farás Novelescas de Gil Vicente, que versam, de modo geral, sobre as intrigas do cotidiano, intencionando sempre uma moralidade, uma aprendizagem a partir da representação humorada dos costumes. Nesse sentido, a Farsa constitui uma exceção no conjunto das peça vicentinas, já, que, de modo mais geral, elas não passavam de seqüências de canas desconexas, que desrespeitavam nas noções de unidade do teatro de caráter mais clássico.            No caso da Farsa de Inês Pereira, em especial, o conteúdo do enredo nos encaminha, entretanto, para o lugar comum da obra vicentina: a crítica e caricatura dos costumes – faz humor com a situação da mocinha casadoira; da mulher que se casa e sofre o ciúme e a impertinência do marido; da mulher que fica viúva de um homem carrasco e explorador, casando-se, imediatamente, a seguir, com um marido tolo, de quem se aproveita, como fora feito primeiro com ela.

A tipificação desta situação é que permite-nos uma visão da vida privada e da vida pública na Idade Média Portuguesa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muitos autores reconhecem que a originalidade de Gil Vicente reside, sobretudo, na variedade de suas obras. Vicente estava tecnicamente limitado a ousar, mas a falta de recursos, ao contrário, contribuiu para uma melhor exploração do texto, a tal ponto artisticamente trabalhado que Vicente é, justamente, considerado o verdadeiro introdutor do teatro em Portugal.

A poesia lírica da primeira fase vicentina marca com autenticidade e funcionalidade a estruturação do roteiro das peças. Já a música serviu para complementar, na composição dos personagens, aspectos psicológicos e motivações de sentimentos. Gil Vicente se diferencia especialmente pela atenção a pequenos detalhes.

A farsa de Inês Pereira 5

Page 6: HISTÓRIA DO TEATRO - A farsa de Inês Pereira

HISTÓRIA DO TEATRO

Estudar a obra de Gil Vicente é mergulhar num período conturbado da história da Península Ibérica, momento de transição entre o homem medieval agonizante e o renascentista abrindo seu “par de asas novinho em folha”. Não causa surpresa, então, que a obra vicentina esteja fincada em valores teológicos, religiosos, e também numa necessidade de projetar os olhos para o futuro que chegava de modo avassalador.

Não obstante tudo isso, a liberdade com que Vicente criticava o clero (incluindo até mesmo o papa), e por outro lado conclamava o povo a voltar aos “ensinos verdadeiros” da Madre Igreja, não deve ser visto como paradoxal, mas sim como elementos de uma mesma personalidade complexa. Tal aparente dualidade se desfaz quando a figura é recolocada em sua época, pois nenhuma personalidade histórica sobrevive a um julgamento com critérios alheios ao seu tempo.

Portanto, Gil Vicente foi um autor muito inovador, tendo até mesmo feito “espantosas antecipações de artifícios modernos” como sejam o “monólogo telefônico” e o “fade-in” do cinema”. Ler as peças de Vicente e perceber que elas continuam atuais, porque tratam de temas humanos universais – e parece que o homem tem mudado pouco em tantos anos – só reforça a idéia de que certos autores se tornaram imortais justamente porque abordaram pontos essenciais para a compreensão do ser humano.

Inês e seu caráter fanfarrão e egoísta poderiam ser perfeitamente concebidos como próprios de uma moça arrogante dos nossos dias, alguém que busca apenas o prazer. A atualidade de seu caráter reside no fato incontestável de que muitas mulheres, mesmo hoje, sonham com príncipes encantados. Esfacelada a ilusão, casam-se novamente, como se o casamento fosse uma espécie de antídoto contra o tédio da vida. Como Inês, muitas do nosso tempo estão a esvoaçar os cabelos ao vento, atravessando rios no lombo de maridos apaixonados e tolos, enquanto aguardam amantes. Inês não deixou de existir porque ela é um fragmento da própria condição humana.

 

A farsa de Inês Pereira 6