História do Urbanismo em Portugal - Francisco Queiroz · Por exemplo, os geógrafos focam...

12
| 121 | É relativamente recente a maior parte da investigação já feita sobre a evolução dos núcleos urbanos portugueses. Aliás, o interesse por esta área é crescente, interesse esse certamente cada vez mais aliado a questões práticas que se colocam de forma intensa às autarquias quan- to à gestão dos seus centros históricos. Existem já vários estudos monográficos realizados sobre aspectos urbanísticos de cidades portuguesas. Alguns destes estudos são muito válidos, mas outros (a maioria) são superficiais ou parciais. Aliás, são muito raros em Portugal os estudos de História do Urbanismo que abranjam um largo período cronológico. Mesmo os estudos mais válidos sobre História do Urbanismo em Portugal possuem quase sempre - pelo menos - um destes três grandes óbices: 1. são estudos de carácter tendencialmente "paroquial", que não têm em conta a com- paração com outras cidades portuguesas, resultando em conclusões pouco fundamentadas ou até mesmo ilusórias; 2. são estudos que procuram sobretudo fazer uma história do planeamento urbanístico ao longo dos tempos e não propriamente a leitur a his t ór ica do espaço urbano t al como ele se apr esent a (fig. 1), sobretudo do espaço urbano que não foi planeado (que é, geralmente, a maior parte). 3. são estudos com uma abordagem metodológica restrita e um âmbito cronológico e espacial limitados. Uma das razões para o ponto 3. é o facto destes estudos serem conduzidos por pessoas de áreas científicas diversas, que incidem a investigação em apenas uma ou duas das vertentes possíveis de análise de uma cidade. FRANCISCO QUEIROZ 1 HISTÓRIA DO URBANISMO EM PORTUGAL - PONTO DE SITUAÇÃO E PERSPECTIVAS DE INVESTIGAÇÃO 1 Doutor em História da Arte pela Universidade do Porto. Docente de História da Arquitectura e Urbanismo no Curso Superior de Arquitectura da ESAP. Email: [email protected] Fig. 1 - Uma verdadeira História do Urbanismo pressupõe a leitura do urbano tal e qual este se apresenta, determinando as suas causas. Montalvão, com o seu plano medieval regulado e com os seus trilhos de origem orgânica transformados em ruas, incarna o típico exemplo desta mistura entre o planeado e o espontâneo, mistura essa que deve ser destrinçada mas também estudada como um todo articulado.

Transcript of História do Urbanismo em Portugal - Francisco Queiroz · Por exemplo, os geógrafos focam...

| 121 |

É relativamente recente a maior parte da investigação já feita sobre a evolução dos núcleosurbanos portugueses. Aliás, o interesse por esta área é crescente, interesse esse certamentecada vez mais aliado a questões práticas que se colocam de forma intensa às autarquias quan-to à gestão dos seus centros históricos.

Existem já vários estudos monográficos realizados sobre aspectos urbanísticos de cidadesportuguesas. Alguns destes estudos são muito válidos, mas outros (a maioria) são superficiaisou parciais. Aliás, são muito raros em Portugal os estudos de História do Urbanismo queabranjam um largo período cronológico.

Mesmo os estudos mais válidos sobre História do Urbanismo em Portugal possuem quasesempre - pelo menos - um destes três grandes óbices:

1. são estudos de carácter tendencialmente "paroquial", que não têm em conta a com-paração com outras cidades portuguesas, resultando em conclusões pouco fundamentadasou até mesmo ilusórias;

2. são estudos que procuram sobretudo fazer uma história do planeamento urbanísticoao longo dos tempos e não propriamente a leitura histórica do espaço urbano tal como elese apresenta (fig. 1), sobretudo do espaço urbano que não foi planeado (que é, geralmente,a maior parte).

3. são estudos com uma abordagem metodológica restrita e um âmbito cronológico eespacial limitados.

Uma das razões para o ponto 3. é o facto destes estudos serem conduzidos por pessoas deáreas científicas diversas, que incidem a investigação em apenas uma ou duas das vertentespossíveis de análise de uma cidade.

FRANCISCO QUEIROZ1 HISTÓRIA DO URBANISMO EM PORTUGAL - PONTODE SITUAÇÃO E PERSPECTIVAS DE INVESTIGAÇÃO

1 Doutor em História da Arte pela Universidade do Porto. Docente de História da Arquitectura e Urbanismo noCurso Superior de Arquitectura da ESAP. Email: [email protected]

Fig. 1 - Uma verdadeira História do Urbanismo pressupõe a leiturado urbano tal e qual este se apresenta, determinando as suascausas. Montalvão, com o seu plano medieval regulado e com osseus trilhos de origem orgânica transformados em ruas, incarna otípico exemplo desta mistura entre o planeado e o espontâneo,mistura essa que deve ser destrinçada mas também estudadacomo um todo articulado.

Por exemplo, os geógrafos focam sobretudo os aspectos de ocupação do espaço, dis-tribuição das funções/serviços, mas não estão geralmente habilitados para fazer uma consis-tente leitura histórica por camadas e, sobretudo, uma leitura arquitectónica e estética.

Quanto aos historiadores, quase sempre valorizam excessivamente os documentos, sempor vezes perceberem que os indícios in situ podem contradizer os documentos e reflectiruma alterabilidade bem maior da cidade, alterabilidade essa que - muitas vezes - não deixasequer rasto documental e só pode ser inferida depois de um aturado trabalho de campo. Porvezes, uma tortuosidade num arruamento ou um determinado tipo de edifício dão-nos maispistas sobre o seu significado do que os próprios documentos (fig. 2).

Mas estes documentos são também frequentemente neglicenciados quando os estudosde História do Urbanismo são realizados por arquitectos, que se preocupam sobretudo comos volumes e a ordenação das malhas urbanas, havendo quase sempre a intenção subjacentede propor intervenções e de corrigir disfuncionalidades.

Há pouco mais de uma década, o historiador de urbanismo português Walter Rossa afir-mava: "Não é por acaso que as análises feitas por historiadores de arte e, em parte, por arqui-tectos, andam muito em torno da constatação da regularidade e do estabelecimento dosmodelos teóricos de base e não sobre o objecto em si. É que o discurso sobre os aspectosespontâneos da cidade, a sua "organicidade", são normalmente redundantes porquedescrevem o óbvio, impossíveis de manter dentro da esfera científica e pouco permeáveis às

| 122 |

Fig. 2 - Fazer História do Urbanismo é tambémprocurar determinar causas para fenómenosurbanos singulares, como este em Castro Daire,certamente não derivado de um qualquer planourbanístico.

Fig. 3 - Vila Viçosa. Apesar do planeamentourbano ocorrido ao longo dos séculos ser oprincipal objecto dos estudos publicados sobreHistória do Urbanismo em Portugal, há aindamuitos núcleos urbanos, muitos quarteirões emuitas ruas de matriz planeada cujo interessereclama há muito um estudo de investigaçãoconsistente.

| 123 |

metodologias das análises estéticas".2

Como é evidente, esta afirmação encerra uma perigosa falácia. A referida organicidadenão é verdadeiramente algo de espontâneo, pois quase tudo na cidade tem uma justificação,mesmo que não seja possível conhecê-la objectivamente em termos históricos. Toda a organi-cidade encerra em si mesma um planeamento, não à escala da cidade ou do quarteirão, masà escala do edifício, quase sempre de um edifício vernacular. Deste modo, há que compreen-der que motivações, que causas, que leis orientaram estes procedimentos avulsos de con-strução que, em conjunto e articuladamente, sedimentaram as cidades onde predomina umamatriz orgânica.

É certo que não é por acaso que os historiadores de arte e arquitectos (e outros) se têmdedicado às questões da regularidade e do planeamento teórico da cidade. Porém as princi-pais razões para tal facto não são bem as apontadas por Walter Rossa. A verdade é que essetipo de abordagem é securizante, uma vez que existem âncoras fortíssimas: as plantas, osdocumentos escritos, os nomes dos arquitectos e engenheiros militares. Ou seja, estamosconvencidos que a generalidade dos investigadores portugueses que se dedicam à Históriado Urbanismo opta por esse tipo de abordagem simplesmente por ser a mais fácil de fazer etambém por ser aquela para a qual estão melhor preparados academicamente (fig. 3).

Abordar o lado orgânico da cidade limitando-se a constatar "o óbvio" reflectirá grandescarências de formação científica por parte de quem assim procede. É certo que não é possív-el evitar que isto continue a suceder enquanto não existirem bons manuais em portuguêsque abordem o urbanismo orgânico de forma problematizada, pois só compreendendo estesprocessos de evolução dita "espontânea" é possível ter capacidade de previsão relativamenteà forma como a cidade vai responder perante os actuais projectos de intervenção que lhe sãoinduzidos. Assim, relativamente a uma qualquer cidade, se tivéssemos de colocar, de um ladoo estudo histórico dos planos, dos arquitectos e engenheiros militares e, do outro, o estudohistórico do objecto urbano tal e qual se apresenta - incluindo tudo o que não aparente vestí-gios de planeamento prévio a uma escala mais lata que a do edifício; então só poderíamosconcluir que a última abordagem é a mais útil para a prática da arquitectura e do urbanismoactuais, sobretudo quando esta prática se enquadra na gestão e salvaguarda dos núcleoshistóricos.

Encontrar fórmulas geométricas em planos de cidades, descobrir nomes de projectistas,dar à estampa elencos de planos; tudo isto é geralmente um tipo de produção científica inter-essante mas também algo estéril, pois quase sempre nada adianta ao que necessitamos hojemais de saber sobre as nossas cidades - como elas evoluem, que leis estão por detrás do seucrescimento ou definhamento, quais os seus mais relevantes aspectos estéticos e patrimoni-ais de matriz vernacular.

Assim, seria bom que a investigação actualmente desenvolvida em Portugal sobre aHistória do Urbanismo deixasse de redundar tanto na produção de obras com um conteúdo

2 ROSSA, Walter - A cidade Portuguesa. In "História da Arte Portuguesa", vol. 3, p. 234. O sublinhado é nosso.

algo livresco (porque pouco útil para a prática actual da arquitectura e do urbanismo), com adesculpa da pretensa maior cientificidade (figs. 4 e 4A). Se continuarmos neste caminho,qualquer dia ainda poderá surgir alguém a defender publicamente não ser possível com-preender a História da cidade portuguesa sem documentos! Admiti-lo seria quase desistir doestudo histórico da cidade e tal não pode ser feito, sobretudo hoje, quando o fenómenourbano abrange a grande maioria da população portuguesa, sabendo-se que muitos erros deurbanismo têm sido cometidos por deficiente formação e por desconhecimento dos mecan-ismos orgânicos das cidades.

Se o carácter orgânico das cidades não é geralmente passível de ser estudado por docu-mentos, tem de ser estudado por outras formas. O carácter orgânico de qualquer cidade ésempre a tendência de base da sua evolução urbana. O planeamento é uma forma de con-trariar esse processo e procurar ordenar a cidade a uma escala superior à do lote, isto demodo a beneficiar a estética, determinadas concepções de poder ou mesmo filosofias sobreo que deve ser a cidade (fig. 5). Através da investigação por nós já carreada, é possível afir-mar que mesmo todo o planeamento acaba por ser corrompido organicamente, até naqueleplano que eventualmente logre ser controlado por uma só entidade desde a fase do projec-to até à execução. Deste modo, é absolutamente fundamental entender os mecanismosorgânicos do urbanismo, quanto mais não seja para evitar que o planeamento actual váfrontalmente contra esses mecanismos e acabe por se tornar prejudicial à própria vida urbana,como hoje sucede com perigosa frequência em Portugal.

| 124 |

3 ROSSA, Walter - A cidade Portuguesa, p. 234.

Figs. 4 e 4A - Angra do Heroísmo (detalhe de planta do início do século XIX) e projec-to iluminista para o Largo de S. Domingos, no Porto. Por vezes, parece existir umgrande interesse em publicar cartografia antiga (de modo a reclamar o mérito da suaretirada do limbo dos "documentos inéditos") e não tanto um interesse em estudarao detalhe essa mesma cartografia. Consequentemente, muita cartografia antigatende a ser publicada numa escala de tal modo reduzida que fica impossibilitado oposterior confronto e estudo da mesma sem voltar a ser efectuada uma análise direc-ta ao original.

Fig. 5 - Miragaia (Porto) é um dos exemplos mais interessantes de como o planea-mento à escala do lote sobrepõe-se geralmente a um plano com escala mais ampla.Na imagem, um dos capilares de acesso à antiga praia.

| 125 |

Ao contrário do que afirma Walter Rossa, também não é verdade que as abordagens ao carác-ter orgânico das cidades sejam "pouco permeáveis às metodologias das análises estéticas"3.Tencionamos demonstrá-lo em obra a publicar futuramente. Não negamos a nossa formação emHistória da Arte, muito pelo contrário. Contudo, temos noção do valor histórico e material dacomponente vernacular da arquitectura portuguesa, algo que muitos investigadores daHistória do Urbanismo (e da própria História da Arte) ainda não assimilaram devidamente,habituados que estão a focar apenas os grandes monumentos, de certo modo paraagradarem aos seus mestres académicos e seguir-lhes as suas pisadas, incorrendo, pois,numa História do Urbanismo (e numa História da Arte) metodologicamente algo ultrapassa-da. Uma cidade não é feita de grandes monumentos. Esses são simplesmente a "cereja notopo do bolo". Ninguém hoje se atreveria a intervir num núcleo histórico português demolin-do tudo o que é vernacular, para deixar ficar somente alguns edifícios mais eruditos.Felizmente parece que já ultrapassámos essa fase. É necessário que o subjacente preconceitometodológico também passe de vez ao nível da própria investigação histórica sobre ascidades (fig. 6).

Para alguns autores, a própria palavra "urbanismo" é quase um antónimo de "orgânico".Não entraremos por esta questão da terminologia. Também não vamos esmiuçar, como out-ros já o fizeram, a questão da diferença entre História do Urbanismo e História Urbana.Idealmente, deveriam ser uma mesma coisa, mas a realidade actual não é bem essa. Muitasvezes, debaixo do epíteto de "história urbana" deparamo-nos com trabalhos que são sobretu-do de pura sociologia urbana. Não queremos com isto dizer que não sejam importantes parao estudo das cidades. Porém, não são trabalhos de matriz histórica ou estética e, mesmo osque o são, geralmente não recuam para lá da Época Contemporânea. Ora, os nossos cascoshistóricos são bem anteriores a essa época. Não poderá haver uma efectiva história urbanapara esses núcleos urbanos mais antigos?

A urban history da poderosa "escola" americana está sobretudo baseada nos séculos XIXe XX, como seria natural: terão os norte-americanos uma verdadeira história urbana anterior aessa época? E uma história do urbanismo? Mesmo a história do urbanismo é, para a general-idade dos autores norte-americanos, uma história do planeamento urbano. Trata-se de umfacto de explicação óbvia: o fenómeno urbano nasce nos EUA quando a figura do riscador decidades está plenamente instituída e já mesmo com um corpo teórico/académico, o que jus-

Fig. 6 - O chamado "bairro judeu" de Salzedas, tipica-mente orgânico e vernacular, é um dos vários sítiosem Portugal que há muito merecem um estudo con-sistente, o qual possa fundamentar os pressupostospara a sua salvaguarda.

tifica a quase ausência de abordagens da História do Urbanismo norte-americano ao carácterorgânico das cidades.

Apesar disso, alguns autores norte-americanos têm-se dedicado também às cidadeseuropeias, bem mais antigas, não escondendo um certo fascínio precisamente por essaorganicidade que falta na quase totalidade das cidades norte-americanas. Gutkind foi umdesses exemplos4, tendo sido talvez o primeiro autor internacional interessado no urbanismoportuguês como um todo. Apesar da sua abordagem ter sido imbuída de uma certaingenuidade e de um espírito de curiosidade pelo não planeamento das cidades, Gutkindnão poderia fazer mais, dado que - há quarenta anos - não existia um suporte bibliográficominimamente à altura em português.

Assim, julgamos que a História do Urbanismo Português deverá basear-se sobretudo ecada vez mais na já vasta produção científica da "escola" italiana, nomeadamente em autorescomo Enrico Guidoni ou Cesare de Seta, embora nos revejamos também em muitas das teo-rias de Spiro Kostof - investigador que exerceu a sua actividade docente nos EUA, apesar dese ter dedicado com rigor à história da cidade europeia. Nas suas duas principais obras5, SpiroKostof fez também uma abordagem bastante válida a questões do urbanismo orgânico,mesmo que resumida e sem sistematização das leis que o regem.

Como se pode constatar, não nos filiamos facilmente nas tendências de investigaçãoainda vigentes dentro da História do Urbanismo Português, pois duvidamos da sua real utili-dade em muitos casos; rejeitamos o carácter hermético e elitista das abordagens e a rigidezde métodos de investigação, bem como as já referidas lacunas ao nível do estudo do urban-ismo orgânico. Quem intervém nas cidades, sobretudo nos núcleos históricos, precisa essen-cialmente de compreender a evolução orgânica, as suas leis e as subsequentes causas dedecadência dos cascos urbanos antigos. Supomos que a total ausência de bibliografia sobreesta temática em português ajuda a explicar porque razão se tem geralmente "marcadopasso" na reabilitação integrada dos nossos núcleos históricos e - pior - cometido mesmosucessivos erros irreparáveis.

Ainda assim, reconhecemos que nos últimos anos têm sido publicados bons trabalhossobre urbanismo planeado no mundo português.

Destacamos sobretudo dois livros:- TEIXEIRA, Manuel C. / VALLA, Margarida - O urbanismo português. Séculos XIII-XVIII,

Portugal - Brasil. Lisboa, Livros Horizonte, 1999. Este livro representa o máximo que se atingiuaté hoje em Portugal, em termos de bibliografia de síntese minimamente abrangente nestaárea do saber. Trata-se de uma obra arriscada e corajosa, tendo em conta que empreendevárias análises propositadas, de modo a poder chegar a algumas sínteses. Por essa mesmarazão, é uma obra que está sujeita a muitas correcções no futuro, ainda que no presentedesempenhe um importantíssimo papel como o manual possível para o ensino universitário.

| 126 |

4 GUTKIND, E. A. - Urban development in Southern Europe: Spain and Portugal. Vol. III. New York, The Free Press / London,Collier-Macmillan, 1967.5 KOSTOF, Spiro - The city assembled. The elements of urban form through history. London, Thames & Hudson, 1999;KOSTOF, Spiro - The city shaped. Urban patterns and meanings through history. London, Thames & Hudson, 20012.

| 127 |

De facto, tal como o título indica, apesar de inúmeras virtualidades, este é um estudo quenão aborda o importantíssimo século XIX. Por outro lado, dentro dos séculos XIII a XVIII, cen-tra-se somente nos aspectos planeados dos núcleos urbanos e, por essa mesma razão, focaespecialmente aqueles para os quais subsistiu cartografia antiga, mesmo que estes nãosejam os mais representativos do urbanismo português.

- FERNANDES, Mário Gonçalves - Urbanismo e morfologia urbana no norte de Portugal.Viana do Castelo, Póvoa de Varzim, Guimarães, Vila Real, Chaves e Bragança entre 1852 e1926. Porto, FAUP publicações, 2005. Este livro representa também o máximo que se atingiuaté hoje em Portugal em termos de produção científica sobre o urbanismo de uma época emparticular, uma vez que tem o mérito de abordar detalhadamente vários núcleos urbanos deuma mesma região. Contudo, trata-se de uma tese de geografia urbana, na qual as compo-nentes estética, arquitectónica e patrimonial estão praticamente ausentes. Por outro lado, aedição em livro manteve as características de uma tese, tornando a obra pouco acessível àcompreensão por parte de leigos na matéria, assim como dos estudantes. De facto, nestelivro existe certa desproporção entre análises muitíssimo depuradas e sínteses algo lacónicas,característica compreensível com base no típico princípio académico da precaução.

Em termos de bibliografia de qualidade sobre História do Urbanismo em Portugal, para alémdas duas obras que acabámos de referenciar, existem sobretudo parcos estudos sobrenúcleos urbanos medievais concretos e sobre alguns exemplos de renovação urbana noperíodo da Renascença (fig. 7), para além de algumas publicações sobre arte efémera noperíodo barroco. Sobre o período iluminista, quase só Lisboa, Porto e Vila Real de SantoAntónio foram já objecto de algum tratamento exaustivo. Sobre a cidade no Romantismo,quase só Lisboa e Porto possuem já alguns trabalhos monográficos consistentes publicados.Quanto à cidade portuguesa no século XX, o panorama editorial actual não é melhor.

Lembramos que quase todos os supramencionados estudos sobre núcleos urbanos por-tugueses têm carácter monográfico mas não são interdisciplinares.

Fig. 7 - Apesar de abordada já em mais do que umaobra, a abertura no século XVI da Rua de S. João doSouto, em Braga, carece ainda de maior aprofunda-mento e de uma contextualização baseada no con-fronto com modelos internacionais.

CCoonncclluussããooPerante todas estas lacunas bibliográficas, ainda não será possível nos próximos anos elabo-rar um manual verdadeiramente consistente e exaustivo sobre a História do Urbanismo emPortugal. Para que tal obra seja viável, falta sobretudo fazer:

- Uma abordagem efectivamente interdisciplinar da evolução histórica do fenómenourbano em Portugal;

- Uma abordagem mais comparativa que monográfica, ainda que sejam também necessáriasmuitas novas monografias históricas sobre cidades, vilas e antigas vilas portuguesas;

- Uma abordagem muitíssimo mais assumida e aprofundada sobre o urbanismo nãoplaneado da Idade Média, por serem maioritariamente de morfologia medieval orgânica oscascos históricos portugueses;

- Uma abordagem específica sobre os diversos fenómenos de crescimento orgânico aolongo de vários séculos, fenómenos esses que não foram ainda objecto de qualquer estudoem Portugal;

- Uma abordagem mais aprofundada e efectivamente interdisciplinar à cidade doRomantismo, porque representa o início da modernidade em termos de urbanismo e porquea sua compreensão permitirá também entender melhor os processos de abandono e dedecadência dos núcleos históricos, que hoje ainda sofremos de forma aguda (fig. 8).

De qualquer modo, e porque todos estes propósitos demorariam várias décadas mesmo quefossem empreendidos por grupos numerosos de investigadores de diversas áreas do saber,defendemos que deve ser desenvolvido para já um estudo que possa ser publicado comomanual de apoio ao ensino universitário e que sirva de base a todos quantos gerem e inter-vêm nas cidades, sobretudo nos seus aspectos mais físicos - a malha urbana, o edificado, oespaço público, etc. Arquitectos, urbanistas, paisagistas, historiadores de arte e estudantesdentro destas áreas, bem como outros técnicos ligados à recuperação e reabilitação denúcleos históricos serão talvez os destinatários preferenciais deste estudo, o qual deve tomar

| 128 |

Fig. 8 - Porto, Cruz do Souto e entrada da Rua da Bainharia. Apesar destafotografia de cerca de 1902 representar o âmago do burgo medieval,praticamente todos os alçados que se vêem (sobretudo à esquerda) sãoda segunda metade do século XIX, não se vislumbrando sequer nenhumelemento arquitectónico anterior ao século XVIII. Este exemplo é clarifi-cador das mudanças ocorridas durante o Romantismo nos cascos antigosdaqueles núcleos urbanos portugueses mais expostos a uma influênciacosmopolita.

| 129 |

o formato de um manual que compare fenómenos urbanos em todo o país e estabeleça asprimeiras macro-sínteses históricas (fig. 9), ainda que provisórias; um manual com carácterefectivamente nacional, mesmo que não possa ser exaustivo neste mesmo carácter.Julgamos que tal estudo de investigação deverá seguir a seguinte metodologia:

- Recolha e análise crítica de bibliografia dispersa sobre aspectos da História do Urbanismoem Portugal (especialmente monografias e obras de carácter local).

- Contextualização crítica dessa bibliografia dispersa, em função de bibliografiaestrangeira de referência e de ulterior confronto com o trabalho de campo.

- Trabalho de campo realizado em praticamente todas as cidades de Portugal continentalcom origem anterior ao século XIX e em grande parte das vilas cujo urbanismo se consolidouantes desse século, ainda que estas vilas actualmente não sejam sede de concelho. Este tra-balho de campo deverá incluir fotografia de espaços e edifícios, bem como o registo escritode muitos outros aspectos urbanos relevantes e posterior análise interpretativa desses aspec-tos - alinhamentos, vãos, sacadas, decoração de fachadas, epígrafes, azulejo, elementos dereligiosidade (fig. 10), mobiliário urbano, etc.

Fig. 9 - Em trabalho publicado há alguns anos conjuntamentecom Ana Margarida Portela, demonstrámos como o Conventode Nossa Senhora da Saudação de Montemor-o-Novo, mesmosendo Monumento Nacional, não estava estudado do pontode vista urbanístico. Note-se que é precisamente pelo prismada relação com o espaço público que este convento de fun-dação quinhentista se destaca dos demais em Portugal. Apesarde algumas alterações já sofridas, o seu terreiro é talvez o maisinteressante exemplo português de um modelo estético quin-hentista de praça urbana que viria a ser levado às últimas con-sequências nas praças maiores de Madrid e Salamanca, assimcomo no Terreiro do Paço pombalino.

Fig. 10 - Em Portugal existe ainda um conjunto numeroso einteressante de calvários urbanos, praticamente por estudar,como é o caso do calvário de Escalhão.

| 130 |

- Recurso a fontes manuscritas, impressas, cartográficas e iconográficas (fig. 11), sobretu-do imagens antigas de cidades, tais como postais antigos e fundos fotográficos do século XIX/ início do século XX (fig. 12). Esta pesquisa arquivística, iconográfica e cartográfica, pelanatureza do estudo que se pretende, tem de ser feita em grande parte nos próprios locaisonde é realizado o trabalho de campo, em arquivos municipais e nas respectivas autarquias(sobretudo no que diz respeito à cartografia).

- Confronto de todos os dados e investigação comparada, de modo a buscar aspectos sin-crónicos comuns (constantes) e a fundamentar as leis do urbanismo orgânico, que necessi-tam de urgente sistematização em Portugal.

- Investigação comparada direccionada para uma síntese de aspectos diacrónicos: assoluções mais interessantes do urbanismo português na sucessão dos vários séculos, o seusignificado histórico, a compreensão dos núcleos urbanos no seu todo (localizando a flutu-ação de fulcros urbanos, determinando causas e assinalando os efeitos desta flutuação nacidade actual). Sempre que se justifique, devem ser compilados e tratados dados sobre con-strutores, arquitectos e promotores de obras.

"Enquadramento dos principais marcos da História do Urbanismo em Portugal no contex-to da Europa central e mediterrânica, de modo a ser mais facilmente entendido o significadoda urbanística portuguesa e também a sua especificidade (fig. 13).

Fig. 11 - Detalhe de uma vista de Viana do Castelotirada por Pier Maria Baldi no século XVII. Até hoje,muito raramente a pouquíssima iconografia antigaexistente sobre as cidades portuguesas tem sidoutilizada de forma exaustiva. As famosas vistas dePier Maria Baldi só em alguns casos foram jáusadas para fundamentar trabalhos de História doUrbanismo, mas em nenhum desses casos pareceter sido aproveitado todo o potencial de infor-mação dessas vistas. Geralmente falta trabalho decampo suficientemente exaustivo e que sedi-mente o sentido crítica necessário para discernirquais são os aspectos mais ou menos fiáveis destasvistas seiscentistas.

Fig. 12 - Porto, detalhe do desaparecido Mercadodo Peixe da Cordoaria. Tal como sucede com a car-tografia e a iconografia antigas, tem-se usado asfotografias do século XIX sobretudo como merocomplemento visual do texto, sem uma análise dosdetalhes, os quais por vezes são importantíssimos.

| 131 |

Fig. 13 - Belíssimo conjunto dos paços doconcelho adossados à porta da cercamedieval de Moura. A solução urbanística étipicamente portuguesa e muito comum nosséculos XV e XVI, embora os resultadosestéticos tivessem variado muito caso acaso. Contudo, tendo sido Moura um dosprimeiros núcleos urbanos em Portugal con-templados com um Plano de Pormenor parao centro histórico, poder-se-á aceitar facil-mente que os seus principais valoresurbanísticos continuem ainda hoje sem serobjecto de estudo aprofundado?

| 132 |