Historia Economica - Jobson Arruda

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    Histria Econmica e Histria Cultural:uma trajetria historiogrfica

    Jos Jobson de Andrade Arruda 1

    ResumoPor meio de uma reflexo bibliogrfica exploratria, o artigo discute oposicionamento da histria econmica no contexto dominado pelanevuelle historie que dominou ideologicamente a historiografia dosculo XX, utilizando os meios clssicos para se ampliar. Destaca comoa antropologia, ao se firmar como cincia, provoca uma reestruturaometodolgica na historiografia. A associao da antropologia com ahistria faz com que a nova nevuelle historie emerge da ps-modernidade, apontando para dois aspectos metodolgicos principaisna nova histria econmica: Partindo de bases materiais ou simblicaspossa compreender o universal partindo do singular e vice-versa e,inscrevendo as particularidades na macro-histria, na sua cadeiarelacional, transcorrer da descrio anlise, da narrao reflexosistemtica.

    Palavras chave: Historiografia; Histria econmica; metodologia.

    1Livre-docente pela USP, Doutor em Histria Econmica pela USP. End: UniversidadeEstadual de Campinas. Cidade Universitria. Baro Geraldo. 05508-900 - Campinas, SP Brasil. E-mail: [email protected]

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    Economic history and cultural history:historiography trajectory

    Abstract

    Through an exploratory reflection, this paper discusses the position of economic history in the context called "nevuelle historie", thatdominated ideologically the historiography of the twentieth century.Highlights how the anthropology, as a new science, caused amethodology restructuring in historiography. The association of anthropology with the history makes the new "nevuelle historie"emerge from post-modernity, focousing to two major methodologicalaspects in the new economic history: the use material or symbolicbases to understand the universal and particular and vice versa andfinding the particular aspects on macro-history, in a relational chain,from description to analysis, from narration to systematic reflection.

    Key words: Historiography; economic history; methodology.

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    O enfrentamento desse tema pressupe, antes de tudo, umareflexo sobre a natureza da historiografia ou a Histria da Histria.Em sntese, a Histria se refere tanto ao conjunto da produo humana,aes e/ou prticas humanas concretas, quanto obra histrica, ouseja, a Histria-Conhecimento. No obstante, quando nos referimos obra histrica, ou produo de obras de Histria, o termo passa ater tambm o significado de resultado de uma investigao. Pordecorrncia, um subproduto imediato do termo o prprio ofcio dohistoriador.

    Cabe historiografia, no uma reflexo sobre a Histria,enquanto um conjunto da produo humana, mas sobre o conhecimentoda Histria, ou seja, a reflexo sobre a produo histrica ou, em

    termos correntes, sobre as obras histricas, como quer Carbonell. Valedizer, o debruar-se sobre a Histria-Conhecimento. Nestes termos,nenhuma reflexo sobre a produo histrica pode descuidar-se doscircunstanciamentos mais gerais que so tambm histricos e queestabelecem a conexo entre autor-obra-meio, ou seja, a sociedade.

    Neste passo, preciso ter em conta que os fundamentos doconhecimento da Histria residem na ultrapassagem do eu e do tupara o ns. Equivale dizer, como ensina Goldmann, que oembasamento ontolgico da Histria a relao do homem com os

    outros homens, o fato de que o eu individual s existe enquanto panode fundo da comunidade (GOLDMANN, 1967, p. 22). Por esta razo, aconscincia histrica, que parte fundante do conhecimento daHistria, pressupe a ultrapassagem do eu individualista e ,concomitantemente, um dos principais caminhos para realizar essasuperao.

    Neste sentido, o historiador tenta compreender as aesprticas dos homens, os mveis que os animam, os fins que osnorteiam, o seu universo simblico e as significaes que para esseshomens tinham seus comportamentos e aes. O historiador operadiante de aes realizadas, cuja significao procura desvendar. Noentanto, a Histria encontra-se permeada no apenas por significaesatribudas pelos homens s suas aes e expressas nas suas intenes,mas tambm por uma significao objetiva. Delineia-se por esse meioum duplo plano, que preciso apreender no tecido da Histria: o dasprticas dos sujeitos e suas formas de conscincia e o da realidadeobjetiva, isto , da significao objetiva.

    A anlise historiogrfica ou a apreenso historiogrfica deveesforar-se por integrar a compreenso da Histria obtida pelas obrashistricas, a Histria das vises ou teorias que as orientaram ou

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    circunstanciaram, bem como o estudo das foras de percepo, valedizer, da conscincia ou ideologias que subjazem s obras, no interiordas quais ganha realce o significado dos temas em apreo.

    A abordagem historiogrfica , portanto, aparentada da teoriada ideologia e da sociologia do conhecimento. No a concepo banalde ideologia, segundo a qual a ideologia a teoria dos adversrios(ARON, 1983, p.23). Mas a concepo proposta por George Dumsil,que considera a ideologia como a estrutura conceitual, consciente einconsciente, que sustenta uma sociedade (DUMSIL, 1967, p.65), eque Louis Dumont entende como o conjunto das idias e valorescomuns numa dada sociedade (DUMONT, 1977, p.16), atravs dasquais filtramos os dados que importa conhecer, num procedimento

    seletivo que retm o essencial e descarta o acessrio.Por outro lado, a aproximao com a sociologia doconhecimento pressupe a conexo entre o conhecimento e asdiferentes formas de insero social dos historiadores. Esta especialinsero orienta a ateno, o interesse para determinados problemas,para a formulao terica, para a fixao de pressupostos e valores queafetam, em certo grau, a escolha dos materiais e a eleio dosproblemas, intervindo diretamente no processo de investigao(DUMONT, 1977, p.16). Retorna-se, por esta via, ao aforismo de

    Benedetto Groce, toda Histria uma Histria contempornea.Neste contexto, a reflexo historiogrfica pressupe,necessariamente, o reconhecimento dos limites cientficos da produodos historiadores que, em ltima instncia, so os limites cientficos daprpria cincia humana, o que refora a dimenso docircunstanciamento ideolgico no processo de conhecimento e queteria levado Pomian a afirmar que para a Histria da Histria, aHistria no uma cincia. Ela se situa antes, do lado da ideologia(POMIAN, 1975, p.932-35).

    Se achamos que a Histria deva compreender alguma coisa eno apenas descrever, ela se encontra inexoravelmente atrelada aoprprio desenvolvimento do pensamento cientfico. Para oshistoriadores da Alta Idade Mdia, os acontecimentos dos quais no separticipava, e nem se testemunhava, no poderiam ser conhecidos. Jno sculo XVII, o conhecimento, sem o testemunho, julgado possvel,sobretudo por eruditos, como por exemplo Mabillon, delineando-seuma clara relao entre o avano do conhecimento da Histria e arevoluo cientfica dos sculos XVI e XVII. Definem-se a asobrigaes profissionais dos historiadores e a idia de que possvelolhar sobre o passado de forma objetiva. A gnese da reflexo

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    historiogrfica estaria assim na base do desenvolvimento dopensamento cientfico, porque dela no pode estar ausente aperspectiva de avaliao, de classificao segundo critriosdeterminados. A reflexo sobre a produo histrica tem como base aruptura da episteme (conhecimento/cincia), para usarmos aexpresso de Foucault, ruptura esta da qual emergem as CinciasHumanas. Nesta perspectiva, o homem nunca surge na suapositividade sem que esta seja logo limitada pelo ilimitado da Histria(FOUCAULT, 1967, p. 77), respondo de maneira sempre renovada osproblemas da investigao histrica. O ilimitado da Histria oilimitado do conhecimento sobre ela e o ilimitado da reflexo sobreesse conhecimento, o que significa reconhecer que as relaes entre a

    produo cultural e a prpria Histria que a produziu so conexescomplexas e que escapam, freqentemente, a uma abordagem assenteem critrios rgidos de classificao.

    Nouvelle histoire e nova nouvelle histoire

    no escopo destes circunstanciamentos que abordamos ofenmeno Nouvelle histoire , entendida como um continuum encadeadopela sucesso de geraes de historiadores que dominaram o poderhistoriogrfico em quase todo o sculo XX, como entende Coutau-Begarie (1983), ou um corte que faz diferir essencialmente a NovaHistria Social da sua matriz geradora, a Nouvelle histoire , expressanos manifestos de Le Goff e Nora e, sobretudo, na diferena essencialentre duas obras fundantes: o Mediterrneo de Braudel, de 1949, e

    Montaillou de Leroy Ladurie, publicada em 1975.As condies para emergncia da Nouvelle histoire tornaram-

    se propcias j no final dos anos 20, quando os paradigmas positivistasde Langlois e Seignobos comearam a ser colocados em xeque naFrana. Marc Bloch e Lucien Febvre, professores em Strasbourg,influenciados pela historiografia (COUTAU-BEGARIE, 1983, p. 19)alem, iniciaram o movimento que imediatamente acolheu novosparceiros, Fernand Braudel e Ernest Labrousse, tendo na revista

    Annales um veculo essencial de difuso das novas idias e umaestratgia de ao que passava pela formao de estudantes, de suaalocao nos postos universitrios, pela multiplicao de artigosmetodolgicos, de debates, de textos, de teses, com a finalidade de seapresentar s disciplinas concorrentes como a imagem de uma Histrianova e dinmica e, assim, legitimar a reivindicao de um lugar

    central. A vitria das idias passava pela instalao sistemtica dosdiscpulos das novas concepes no aparelho universitrio e o controle

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    da media , das casas editoriais, com vistas a monitorar a produohistrica destinada ao pblico. Um exemplo notvel deste poderhistoriogrfico o xito retumbante e largamente merecido da obracapital de Fernand Braudel, publicada em 1949, e o ostracismo quaseabsoluto da obra de Philippe Aris, Histoire des populations franaiseset leurs attitudes devant la vie , publicada em 1948, que traziainovaes considerveis para o estudo das mentalidades e que poderiater, precocemente, deslocado o poder dos historiadores economistas nogrupo dos Annales e favorecido os estudos que ficaram emudecidos poruma dcada, pelo menos. A diferena que Braudel tinha o apoio deLucien Febvre, dos Annales , da VI Seo da Escola de Altos Estudos,enquanto Aris era um pesquisador isolado, um especialista em

    geografia tropical, no formava alunos, nem tinha meios para difundirsuas idias. O silenciamento de Aris, mantido no ostracismo por quasetrs dcadas, d bem a medida do poder historiogrfico exercido porBraudel.

    Como grupo gerador de idias e com projeto hegemnico, aEscola dos Annales utilizou todos os meios clssicos conhecidos para seimpor: a desvalorizao dos predecessores, o afastamento dosadversrios que foram excludos da ribalta e a cooptao daqueles quepoderiam ser assimilados. A Nouvelle histoire ensaiava seus passos na

    direo da media e da esfera do sagrado. Braudel tornou-seprogressivamente uma figura mitolgica, juntando-se a Bloch e aFebvre no panteo dos novos historiadores, com a diferena de que suacanonizao comeou ainda em vida (COUTAU-BEGARIE, 1983, p.19).

    A desconstruo e a construo de um novo cnon, no concertoda Nouvelle histoire , j se anunciavam em 1971 quando Pierre Nora,profundamente influenciado pelas idias de Michel Foucault, d incio publicao de uma nova coleo, sugestivamente intitulada Labibliothque des histoires e no La bibliothque de histoire . Eraevidente a inflexo epistemolgica. No lugar de uma grande Histria,pequenas e variadas histrias. Franois Dosse lembra que o texto daapresentao da coleo, vincado pela filosofia foucautiana, anunciavaa imploso da Histria, a emergncia de novas interrogaesfecundadas pelas cincias sociais vizinhas, a extenso ao mundo daconscincia histrica que tinha sido privilgio da Europa, novosmtodos, novos recortes do passado e novos objetos. Lembra, ainda,que Nora e Foucault explodiram em gargalhadas quando souberam dacrise de raiva que se apossara de Braudel diante do manifesto. O corte

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    evidente. Era a profanao de Braudel e de tudo que representava avelha Nouvelle histoire em face da realmente nova Nouvelle histoire .

    A publicao, em 1974, da coletneaFaire de lhistoire , dirigidapor Le Goff e Nora, consolida as posies. Consuma-se o assalto aosvelhos postulados. Fala-se em novos problemas que obrigam arepensar a prpria Histria; novas aproximaes que modificam,enriquecem, revolucionam os setores tradicionais da histria; novosobjetos, enfim, aparecem no campo epistemolgico da histria (LEGOFF, 1974: 211). Apelava-se cooperao entre as cincias humanas,a antropologia, as cincias econmicas, a sociologia e a psicanlise,evidenciando o papel distinguido dos mtodos quantitativos, aplicadossobre uma base documental seriada, alargando-se o campo de

    observao do historiador. Le Goff (1974) reafirmava sua convico deestar diante de uma nova histria. No a histria de uma equipe ou deuma escola. Sem nenhuma ortodoxia, apresentava-se totalmenteaberta. Isto se fazia em defesa da Histria, considerando-se que aposio ocupada por ela at ento a condio de ser uma cinciacapaz de explicar a dinmica histrica , vinha sendo invadida por suasvizinhas de contornos mal definidos, ameaando aspir-la, dissolv-la,no lhe restando outra alternativa que no fosse abdicar de suavocao globalizadora em favor de uma histria geral, de um espao de

    disperso.Literalmente, a nova histria poderia fazer-se sem os homens, qual, sob o imprio das idias de Foucault, aderia mais aoprocedimento do que explicao. Interessava o como, muito mais doque o porqu. Enfatizava-se a dimenso descritiva do arquivo,prevalecendo um certo positivismo, fortemente criticado por PierreVilar na mesma coletnea Faire de lhistoire (VILAR, 1974, p. 188), eque prodigalizou a Nora um srio contencioso que lhe coubeadministrar, envolvendo Vilar e Foucault, que exigia a retirada dascrticas feitas por Vilar em seu texto, na segunda edio do livro,exemplificando com notvel transparncia mais uma das facetas dopoder historiogrfico (DOSSE, 1994, p. 295-6). O cardpio clssico daantropologia fez sua estria triunfal na Histria com a consagrao deAris, um verdadeiro renascer do autor e do tema do homem diante damorte,2 o espelho invertido de seu estudo sobre o homem diante davida,3 uma clara sinalizao de que o poder historiogrfico trocava demos. Se Faire de lhistoire era a bblia da histria, Montaillou e o

    (2) O homem diante da morte(3) O homem diante da vida

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    Homem diante da morte seus modelos clssicos , a Biblioteque desHistoire era seu instrumento de divulgao cientfica e afirmao danova escola, cabendo ao Dictionaire de la Nouvelle Histoire 4 fechar oconhecimento por via das snteses objetivas que facultassem a rpidaapreenso das boas-novas, um papel evangelizador e catequtico.

    Se o propsito da novaNouvelle histoire era a ampliao de seuterritrio com vistas a impedir a aspirao da Histria pelas demaiscincias, deu-se exatamente o inverso, quando pensamos a naturezados novos procedimentos, seus temas, vis--vis da antropologia e daetnologia. uma rendio. Trata-se sempre de descobrir a figura doOutro, no em lugares distantes, mas a alteridade no prprio interiorda civilizao ocidental, nas profundezas do passado (DOSSE, 1994, p.

    299), em decorrncia, a sensibilidade histrica volta-se para osdomnios da histria cultural, do estudo das mentalidades. O exemplomais acabado desta histria cientfica e antropologizada Montaillou ,de Ladurie, publicado em 1975, que vendeu mais de 300 milexemplares, assegurando o xito da antropologizao do discursohistrico, presente nos textos sobre a sexualidade, a famlia, o medo e amorte.

    Assume-se que antropologia e etnologia so termos sinnimospara os novos historiadores. Em Le Goff aparece como o estudo do

    homem cotidiano; em Andr Burghire o estudo dos costumes, gestos,ritos, pensamentos e comportamentos e, em Carlo Ginzburg, a cinciado vivido, portanto, histria. Os precursores desta antropologiahistrica remontam a Marc Bloch, Norbert Elias e Johan Huizinga.5 Depois de uma manifestao explcita em favor da histriaantropolgica em 1972, Le Goff muda, em 1976, o nome do seminrioda IV Seo de Histoire et sociologie de loccident mdieval para

    Antropologie historique de loccident mdieval . Um balano feito porLe Goff sobre a histria medieval na Frana, no ano de 1992, apontavamais de 120 ttulos inscritos na temtica da antropologia histrica,trajetria consolidada nas noes e nos verbetes que compem oDicionrio Temtico do Ocidente Medieval , do prprio Le Goff eSchimitt.6

    O olhar do historiador sobre a histria, informado pela etno-histria, d-lhe melhor compreenso do que h de litrgico nestas

    (4) Dictionaire de la Nouvelle Histoire. (ver citao)(5) Referncia a Rois Thaumaturges. Civilisation des moeurs e O outono da IdadeMdia .(6) LE GOFF, J.; SCHIMITT, J.-C..Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval. Bauru:EDUSC; So Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002.

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    sociedades histricas, obrigando-o a recorrer a uma diferenciao detempos na histria, realando o papel dos fenmenos tradicionais, cujaevoluo somente pode ser captada no nvel da longa durao(CARBONELL, 1993, p. 97-8). Por isso, o tempo longo de Braudel otempo privilegiado dos novos historiadores, da nova histria. Ostempos mdios, estruturais, so descartados e o tempo curto, doseventos, remetido aos movimentos longos. Subsumidos pelaantropologia retrospectiva, o cardpio est pronto, no restando aosnovos historiadores mais do que exploraes, inveneshistoriogrficas (CARBONELL, 1993, p. 98). a histria daalimentao: hbitos, gostos, sensibilidade. Do corpo: constituio,enfermidades, socializao do corpo, sexualidade, atitudes diante da

    vida e da morte. Escudado na antropologia econmica, o historiadorantroplogo por em evidncia as lgicas no-econmicas, ou atmesmo antieconmicas, mas que tm condicionado os hbitoseconmicos. Assim, emprestou-se a Mauss a teoria do dom, a Sahlins ado gosto ostentatrio, a Polanyi a de economia camponesa, a Pritchardo conceito de sociedade fragmentria.7 Um vasto leque de opesemerge da antropologia cultural e poltica: o estudo das crenaspopulares; dos gestos cotidianos, expresso de uma representao domundo; a cultura de elite e a cultura popular, as idias polticas e os

    mitos. Assim, a antropologia histrica permitir a revanche doirracional (o sagrado, as pulsaes, os mitos) sobre o racional; o banal,o cotidiano, sobre o excepcional; o baixo (os esquecidos, osmarginalizados) sobre o alto (os privilegiados, a elite) (DAVIES,p.98).

    A subsuno real e formal do Historiador antropologiahistrica envolve ambigidades lamentveis. A formalizao doprocedimento da antropologia e da etnologia decorre de umaexperincia nica que, repassada aos procedimentos e escrita daHistria, produz incompreenses brutais na apropriao de conceitos,no estudo das fontes, na diferena entre sociedades primitivas esociedades histricas, na forma regressiva de tratamento do tempo emum e evolutiva no outro. O historiador renuncia ao seu ofcio, suapersonalidade cientfica e produz uma histria impressionista, na quala falta de explicao terica, de anlise abstrata, sobreleva a descriodas prticas, incrementando a fora da narrao, da qual o livro de

    (7) Teorias assumidas respectivamente por Georges Duby, Guerrier et Paysans, queutilizou Mauss e Sahlins na reinterpretao econmica da Idade Mdia; E. Valensi queutilizou E. Pritchard no seu estudo sobre a Tunsia no sculo XVIII e XIX; E. Plantageanque se apoiou em Polanyi para reinterpretar Bizncio.

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    Natalie Davies (1992), sobre o regresso de Martin Gure, um beloexemplo. A microhistria se sobrepe macrohistria, umapersonalidade ao invs de uma classe ou uma sociedade inteira, umavida ou mesmo poucos dias no lugar de um sculo, um povo e no umimprio. E, como os novos historiadores da nova histria se opem aouso de conceitos tericos, resta-lhes mais uma vez o apelo aosantroplogos, noo de thick description , de Clifford Geertz, ou seja,uma descrio forte, densa, em substituio conceitualizao dopassado, que teria a funo de dar-lhe sua prpria significao,subtraindo-se s teorias genticas, reforando uma nova aproximaohermenutica aos seres do passado, enfatizando a forma pela qual estesseres experimentavam e interpretavam seu prprio mundo e a si

    mesmos, inquirindo sobre a conscincia e as condies de vida,tentando devolver-lhes sua autonomia cultural. O resultado final seriao contar de uma boa histria. Ancorada na densa descrio, a narraotem que produzir um quadro, uma imagem esttica do passado. Masno haveria uma teoria oculta na proposta da descrio densa? Existeuma descrio logicamente possvel sem categorias tericas? Outeorizveis? Talvez os recursos hermenuticos da nova histriapudessem ser assumidos, mais amplamente, a partir do concursocognitivo da teorizao (RUSSEN, 1993, p.312).

    Como duas cincias que nasceram apartadas na histriaacabaram por unir-se, de forma to indelvel, na nova Nouvellehistoire ? De fato, a antropologia nasceu com o descobrimento peloseuropeus das sociedades exticas e com a preocupao do iluminismoem dar uma fundamentao racional para as descontinuidadesculturais. Como lembra Carbonell (000993, p.93), foi a oposio entre omundo civilizado, cujo conhecimento ficaria a cargo da Histria, e omundo selvagem, que se cria primitivo e imvel, cuja exploraocaberia aos etnlogos, que definiu dois tipos de humanidades s quaiscorrespondiam dois tipos de saber Porm, os ltimos cinqenta anosconsumaram o projeto universalista da ilustrao, marcando o fim daHistria como um processo gradativo de emancipao. De um lado, acrise do colonialismo e do imperialismo europeus, de outro, odesenvolvimento das mass media , expuseram diante da opiniopblica todo tipo de culturas e subculturas, marcando a passagem ps-modernidade (RUSSEN, 1993, p. 151). Mas, no era apenas oconfronto com as culturas extra-europias, era o dilaceramento daprpria Europa, tragada por uma situao quase convulsiva, de umapluralizao irrefrevel que tornaria impossvel a apreenso dahistria e do mundo com base em pontos unitrios. Finda a idia de

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    uma racionalidade central na Histria, multiplicaram-se asracionalidades locais, na forma de minorias tnicas, sexuais, religiosas,estticas, que romperam o silncio fazendo ouvir suas vozes. Aatomizao, o estilhaamento, o esgaramento sobreleva asindividualidades limitadas, efmeras, contingentes, faz crescer acomplexidade e rompe o mito da transparncia prodigalizando aemergncia de incontveis histrias, de experincias histricas, emoposio grande Histria. A queda do comunismo arrastou consigotodos os projetos de transformao da sociedade atravs do Estado,criou um vazio que extinguiu as utopias e matou as teorias. Para a novaNouvelle histoire a realidade seria o resultado do entrecruzamento, ocontaminar-se de uma multiplicidade de imagens interpretaes e

    reconstrues, num mundo competitivo e dominado pelascomunicaes.Esta fragmentao do real e do conhecimento levou ao

    questionamento do edifcio hegeliano que, em larga medida, lastreava odiscurso histrico e a imploso do elemento unificador do campo deconhecimento o homem como sujeito dessa histria, enquantoindivduo ou coletivo. Essa excentrao do homem une-se temticade uma escritura estruturalista ao proclamar a morte do homem, ainsignificncia do sujeito. Permite ao historiador, assim como ao

    lingista ou antroplogo, promover um discurso que se apresenta comocientfico, na medida em que marginaliza a menos manejvel de suasvariveis para uma histria quantitativa (DOSSE, 1994, p. 295).

    Tenho a sensao de sufocamento, desabafou Georges Duby(1994, p. 418), referindo-se ao momento crtico vivido pela tradio dos

    Annales . Quais as alternativas para o impasse da nova Nouvellehistoire que tende a desembocar num completo relativismo? A perda dadimenso pblica da vida social, anunciadora da barbrie, suscitouresistncias. Habermas manteve seus projetos ancorados nos ideais dailustrao, a chamada teoria comunicativa da ao, que mediante umasntese dialtica busca a reordenao dos diferentes nveis daracionalidade (HABERMAS, 1991). Claude Meillasoux (1975) retoma aidia de uma identidade social fundamental que se perpetua emdiversos modos de produo, a chamada comunidade domstica, quepermitiria assegurar a reproduo sob diversas formas, apresentando-se as relaes de produo e reproduo como substrato de relaes jurdico-ideolgicas de parentesco. Maurice Godelier (1994, p.470)abre o campo de investigao antropolgica para o econmico, para asrelaes sociais de produo, recuperando a idia de totalidade social ea preocupao em investigar uma hierarquia de coeres e das funes

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    que permitem a reproduo. Seu meio ambiente define-se tambm poruma dimenso imaginria, ampliando-se sua concepo de forasprodutivas, pela assimilao do horizonte estrutural do pensamento eda linguagem como dimenses essenciais.Por outro lado, levantamento realizado pela revista LHomme ,em 1986, revela uma fragmentao do campo antropolgico, tanto emvirtude da multiplicidade dos objetos constitutivos da disciplina,quanto pela pluralidade de seus mtodos. Se a vitalidade daantropologia ainda grande, j no se apresenta mais como modo depensamento com vocao globalizante para as outras disciplinas. Jno tem o otimismo de uma rpida acomodao cientfica em torno doseu sistema de modelizao (DOSSE, 1994, p. 437).

    O retorno historicidade um fato. Se d por caminhosinesperados, com a recuperao da temporalidade no discursocientfico, pois onde a cincia falava de leis eternas, hoje fala dehistria do universo ou da matria, evidenciando-se a aproximaocom as cincias humanas, deixando o cientista de isolar-se nummundo particular, onde seus modelos e sua cincia global do homem,que recupera a historicidade ao reaproximar as cincias ditas durasdas cincias humanas. Num mundo cada vez mais complexo, busca-se afixao de novos paradigmas capazes de fundamentar lgicas

    interdisciplinares.Mas o sopro efetivamente renovador vem das cincias dalinguagem, da literatura, exatamente o campo do conhecimento que foiduramente marcado pelo formalismo, pelo estruturalismo limite, pelaextino total do criador literrio e sua transformao em simplesobjetos de procedimentos e processos, que, no limite, extingue oescritor e o sujeito. A excessiva formalizao da lingstica haviaeliminado o histrico, o social, transformando a dimenso humana dacriao numa abstrao destituda de todo e qualquer significado. Aocontrrio dos ensinamentos de Chomsky, portanto, o lingsta devefazer-se historiador para apreender as vrias etapas na estruturaodas lnguas. O princpio da dupla estruturao, pelo qual ao falar domundo as lnguas o reinventam pela criao de categorias abstratas, aomesmo tempo que todas as lnguas organizam-se em sua sincronia, emredes de solidariedade, autonomizando-as enquanto modelosprodutores de sentido, fazendo-as funcionar como reservatriosconceituais em princpios classificatrios. Hagge recusa a dicotomiaentre lngua e fala, proposta por Saussure, pois ignora-se osconstrangimentos que a lngua impe fala, de um lado, e a relaodialogal que a segunda instaura (HEGGE, 1994, p. 495).

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    O que significa a dialgica, que para Edgard Morin (1994,p.497) nada mais do que outra palavra para dialtica, mas que tem avantagem de pensar a contradio sem o necessrio colorrio daultrapassagem a partir da fratura da unidade. Numa linhagem queremonta a Mikhail Bakhtin, Julia Kristeva e Tzvetan Todorov, GradGenette enfatiza a noo de transtextualidade, definida como a relaomanifesta ou secreta de um texto com outros textos, pressupondo-seuma arquitextualidade, uma relao intrnseca, silenciosa, entre umtexto anterior e um posterior, de todos os textos anteriores quecontriburam para um texto posterior. nessa polifonia de vozes, a doautor, do leitor e do crtico, que essa liberdade pode encontrar umlugar de exerccio: no falar das obras, mas com as obras (GENETTE,

    1994, p. 494). Num cerrado dilogo entre o texto e o contexto culturalque o rodeia, na sua contigidade e na sua diacronia.Em Tzvetan Todorov (1984, p.189), o apelo histria ainda

    mais radical, acercando-se dos domnios das ideologias. Usando aferramenta da transtextualidade, enfrenta as concepes dosformalistas russos sobre a autonomia da potica em relao linguagem, recuperando sua funo de comunicao, sua capacidadepara consignar valores, vises de mundo, no sendo ela prpria umaideologia. O sujeito e a histria esto decididamente de volta e os

    pressupostos da dialgica, uma nova dialtica, firmam paradigmas queultrapassam o momento estruturalista, sem uma ruptura virtual.Em marcha, portanto, a recuperao da realidade, do sujeito, do

    sentido da histria, a recuperao da razo, pois o historiador ps-moderno da nova Nouvelle histoire , ao renunciar a racionalidade, aintegrao da realidade, ao exaltar os arquiplagos sem relao entresi, refugia-se em prises douradas, dominado por um completorelativismo pela quebra da noo de uma unidade da experinciahistrica, que os levar das micro-histrias ego-histria, seno potica e mstica, assoberbado pela tarefa inextricvel que se pordiante de seus talentos.

    Em suma, uma sntese, envolvendo elementos modernos e ps-modernos, que enlace micro e macro-histria, gestando uma estruturacognocitiva que represente uma nova aproximao com a experinciahistrica e que sintetize, ao mesmo tempo, a unidade do gnerohumano e seu desenvolvimento temporal, ao lado da variedade deculturas. Uma nova hermenutica que incorpore renovadas estratgiasde aproximao com o passado, assimilando o valor inextrincvel dasubjetividade humana, sem perder de vista os fenmenos estruturais,as classes, os grupos, as formas coletivas de vida, integrando a

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    descontinuidade, a quebra de relaes entre autoconhecimento e auto-interpretao das pessoas e das circunstncias de suas vidas, rupturaesta que deveria ser observada e interpretada pelos historiadores,transcendendo o horizonte cultural do passado (RUSSEN, 1983).Razo e imaginao, racionalidade e narrao, orientaoprtica e fascinao esttica, eis as polaridades cuja simbiose se devealmejar no caminho possvel em busca da histria-conhecimento. Poisela transita da fico realidade, da escrita potica, do sensvel aointeligvel, das nvoas densas do imaginrio ao brilho ofuscante darealidade imediata. Enquanto a literatura desentranha e combina asfantasias do sujeito, a ideologia fixa signos e idias, fechando sempreque possvel o universo do sentido. Estruturas sociais e campos de

    significao se tangenciam, por serem vias de dupla mo entre o sociale o imaginrio, cuja expresso no exclui a ideologia, enquanto tecidode representaes e valores integrados na escrita da histria, damesma forma que o imaginrio, ao compor snteses originais, combinae produz imagens, numa dinmica por vezes prxima, por vezesdistante, da experincia sensvel.

    Uma tarefa inexaurvel resta, pois, ao historiador. Nodescuidar dos detalhes, da filigrana, do aparentemente desprezvel,mas tambm no deixar de inscrev-lo na teia ampla da macro-

    histria, na sua cadeia relacional e, da, inverter a trajetria,retornando ao pontual, ao contingente tornado emblemtico. A estaprimeira aproximao, impe-se uma segunda viagem que transcorreda descrio anlise, da narrao reflexo terica. Nesse entrelace,signos e sentidos se explicitam, smbolos e conceitos se completam ouse revelam. Enfim, busca-se neste terceiro nvel, atingir os tesourosocultos do subconsciente, expresso no imaginrio, e realizar a travessiade volta s formaes mentais dominantes, de carter iminentementeideolgico, cuja significao , inequivocadamente, produzida nasclivagens e tenses sociais. Instaura-se, nesse passo, a hegemonia darazo, da compreensividade, mas cuja unicidade rompida pela aoda sensibilidade que, ao iluminar os mltiplos perfis trabalhados pelasingularidade, repe, de maneira adensada e renovada, os objetos dapercepo.

    Histria econmica e a nova Nouvelle histoire

    A nova Nouvelle histoire , como vimos, emerge num mundodilacerado, da morte das utopias, da dessacralizao da razo, da

    emergncia da personalidade narcsica, vincada por uma excessivamentalizao, v-se constrangida a recorrer a uma psicologia sem

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    mtodo e a conceitos sem estatuto. No se vislumbra o rio denso daHistria, mas sim uma multido de pequenos riachos interrompidos,um amplo leque de experincias, descries, narraes que noconduzem ao oceano do saber, da Histria-Conhecimento, dainteligncia. Destitudos dos sujeitos, individuais ou coletivos,descarnados de sentido, o imprio do como, o soterramento doporqu, a morte da interrogao, do sentido da vida, da prpriaHistria. Uma cincia negada, uma diletncia instaurada, um retornoamargo aos prdromos positivistas, ao domnio do imediato, docontingente, do fugaz, do instantneo e, sobretudo, do evento, doaparente sem razes.

    Qual o lugar da Histria Econmica neste concerto dominado

    pela polifonia da histria das mentalidades?A Histria Econmica teve um lugar privilegiado na primeiragerao dos historiadores do grupo dos Annales . Como j se disse, suafora impediu mesmo a abertura de espao para a histria dasmentalidades, que despontava como fogo ftuo na obra de Aris, j em1948. Sua trajetria configura uma pluralidade de opes, de diferentesmodos de ver e de fazer Histria Econmica, to diferentes quanto aHistria Serial de Chaunu, a Histria Quantitativa de Marczewski, aNew economic history de Fogel, a Histria Econmica de Labrousse e

    Vilar, ou as histrias econmicas de fundamentao marxista,emblematicamente representadas pelo texto clssico de Maurice Dobb(1965), A evoluo do capitalismo . Talvez a melhor HistriaEconmica, alicerada nos pressupostos da Nouvelle histoire , tenhasido o livro de Valentin Vasquez de Prada (1964).

    Configuram-se, portanto, histrias econmicas, mais ou menosempiricistas, mais ou menos analticas, mais ou menos crticas. Oproblema em questo o seu posicionamento no concerto hegemnicoda nova Nouvelle histoire , do estudo das mentalidades, dasrepresentaes e da simbologia social, em detrimento das relaesmateriais de produo.

    No fundo, configuram-se duas formas distintas de penetraono conhecimento histrico e que no so, necessariamente,excludentes. O estudo do tempo, do trabalho e da cultura no OcidenteMedieval, de Jacques Le Goff, no apontaria no sentido de umainterpenetrao possvel? Seno mesmo necessria! Suas conclusespartem de subsdios preciosos extrados da obra de historiadoresclssicos, como Henri Pirenne, cujas idias sobre o nascimento de umanova sociedade no so refutadas e sim confirmadas pelas conclusesde Le Goff, que surpreende uma nova temporalidade com a passagem

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    da hegemonia dos sinos (1284) hegemonia do relgio (1354),simbolizando a substituio do tempo eclesistico pelo tempo laico, osurgimento da mentalidade calculadora no universo da produo e dotrabalho,8 em suma, a emergncia da sociedade burguesa.Desse encontro nasceria, por certo, uma nova HistriaEconmica, que se realizaria no espao ampliado da dimensohistrica, recuperando a um s tempo a histria das relaes sociais deproduo, da circulao e consumo de mercadorias, do universo mentale simblico de produtores e consumidores. Um exemplo paradigmticodesta possibilidade a compreenso do consumo na sociedade ps-moderna, a partir do universo simblico ligado s aspiraes sociais.Esta Histria comportaria mltiplas entradas. Seria indiferente se o

    historiador partisse das bases materiais ou do universo simblico,desde que o universal pudesse ser surpreendido no singular, e vice-versa.

    Um exemplo concreto dessa interpretao possvel pode serdado com a Revoluo Industrial, tema magno da grande histria daCivilizao Ocidental, que se pensado no nvel das representaescoletivas, no imaginrio presente na literatura, traduziria um mundoainda a devassar, especialmente, se centrssemos a ateno naliteratura policial, no romance policial, certamente descortinaramos

    mundos insuspeitados.Esta literatura, por vezes considerada uma literatura menor, oroman noir , no era apenas fico, pois em larga medida era memria,aparentada das crnicas judiciais em voga nos sculos XVIII e XIX,tanto na Frana quanto na Inglaterra. J em 1698, publicava-se napriso de Newgate , com grande xito, uma srie de confisses decondenados morte, disputadas pelos editores, sequiosos em explorara voracidade do pblico na sua atrao pelos criminosos e seus atos.Livretos publicados a partir de snteses extradas dos documentosoficiais da corte de Old Bailey, em Londres, traziam detalhes mrbidose compuseram o The newgate calendar e o The malefactors register ,originando biografias romanceadas que se tornaram clebres, como asvidas de bandidos e facnoras famosos a exemplo John Sheppard,Jonathan Wild e Mandrin, publicadas por Daniel Defoe(BENVENUTTI, RIZZONI & LEBRUN, 1979, p.14).

    Na mesma linhagem se inscrevem as Mmories de FranoisEugne Vidocq, de 1828. Desertor, falsrio, ladro, escapuliu

    (8) Espinas & Pirenne (1906) e Le Goff (1980)para um novo conceito da Idade Mdia, especialmente o artigo O tempo de trabalho na crise do sculo XIV; do tempo medievalao tempo moderno (p. 61-73).

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    incontveis vezes das malhas da lei, tornou-se informante e, maistarde, agente policial, chegando a chefe da primeira polcia realmentemoderna, a Sret , da qual foi o criador. Uma fantstica trajetria domundo da contraveno ao mundo da represso. Seus subordinados,quase todos ex-malfeitores como ele mesmo, disfaravam-se depessoas comuns, infiltravam-se nos redutos da pobreza e da misria,onde o crime campeava, ganhavam a simpatia dos prpriosdelinqentes para depois lev-los s malhas da justia. Por isso, as

    Mmories de Vidocq tiveram um xito enorme e receberam vriastradues. Mas, seu grande mrito foi o de ter inspirado Victor Hugona composio de Jean Valdjean e, sobretudo, Vautrin da Comdie humaine , de Balzac (TALMON, 1967; BOWRA, 1972).

    Destes exemplos emerge a estreita vinculao entre literatura erealidade. Portanto atravs dos textos de Defoe, Poe, Victor Hugo,Balzac, muito se poderia recuperar da simbologia prevalescente nosanos de constituio da sociedade industrial.

    Mesmo na literatura ficcional possvel captar um mundoprojetado nas representaes. Frankenstein de Mary Godwin Shelley,publicado em 1818, o fausto do mundo industrial. Expe o medo dohomem diante da Revoluo Tecnolgica, gestadora de forasincontrolveis, capazes de lev-lo destruio. Teme-se a fora

    ameaadora da massa urbana, constituda por um mltiplo de homens,um coletivo, que ao mesmo tempo aterrador e redentor, poisrepresenta a mo cientfica do homem capaz de gestar a vida eanunciar a morte. Dr. Jekyll and Mr. Hide , publicado em 1886 porRobert Louis Stevenson, desenvolve essa problemtica, exibindo umhomem duplicado, elaborado pela cincia, revelando sua face aomesmo tempo criadora e destruidora (BENVENUTTI, RIZZONI &LEBRUN, 1979, p.32).

    A Revoluo Industrial trouxera consigo o mundo misteriosodas cidades, com suas zonas de pobreza, de criminalidade, de violncia,de selvageria, mas trouxera tambm o mistrio da noite, o incgnito,um mundo a interrogar. Medo e emoo a aguar o mistrio da esfinge,do desvendamento. Neste contexto, o romance policial representa adefesa da ordem contra a simbologia do crime, nascido,invariavelmente, nos tugrios recnditos da excluso social. SherlockHolmes, criado por Artur Conan Doyle, o arqutipo do heri da elitebranca, intelectualizada, calculista e cientificista. Ele o prottipo dohomem racional, iluminado, gestado no mundo da cincia e daadministrao. Era capaz de tudo deduzir. De uma simples gotadgua um ser lgico pode inferir a possibilidade de um Atlntico ou

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    de um Nigara, sem ter jamais conhecido ou ouvido falar de um ou deoutro. Numa passagem clebre, que se multiplica em suas novelas,diz: Considero que o crebro de um homem originalmente como umpequeno sto vazio e temos de ench-lo com mobilirio de nossaescolha. Um tolo coloca dentro todo o tipo de coisa que encontra pelafrente e, assim, o conhecimento que lhe poderia ser til fica do lado defora ou, na melhor das hipteses, se entulha com uma poro de outrosobjetos, de modo que ele tem dificuldade em colocar as mos naquiloque realmente importante. J o trabalhador habilidoso usa realmentemuito critrio com relao ao que vai acolher no seu sto-crebro. Saceitar as ferramentas que o ajudem na execuo do seu trabalho,mas ter destas um amplo sortimento e tudo na mais perfeita ordem.

    um erro imaginar que aquele pequeno aposento tem paredes elsticas epode dilatar-se infinitamente. Acredite-me, chega o momento em que,a cada adio de conhecimento, voc se esquece de algo que sabiaantes. da maior importncia, por isso, no ter fatos inteisacotovelando-se com os teis.9 Exemplo mais acabado do homemracional, gerado pela sociedade industrial, impossvel; atestado pelasignificao desta personagem no imaginrio das elites brancaseuropias, que o transformaram no heri permanente, onipresente,imortal. Quando, em 1893, na novela denominada Le dernier problme ,

    Conan Doyle faz desaparecer o heri numa luta mortal contra seuinimigo, o professor Moriarty, a reao popular face ao crime deDoyle foi imediata. Os empresrios londrinos reuniram-se na City paraprotestar; alguns milhares de trabalhadores fizeram greve e o governofoi diretamente interpelado por um parlamentar (BENVENUTTI,RIZZONI & LEBRUN, 1979, p.32).

    A Era Vitoriana, marcada por uma forte represso institucional,revela-se uma sociedade neurtica ao transformar cruis assassinosem higienistas sociais. Jack, o estripador, um mito. Um enigmaindecifrvel. Mas a quem atacava? A elite branca? Certamente que no.Dentre as cinco mulheres que assassinou e esquartejou, apenas umaera bonita, as demais eram prostitutas esqulidas, sofridas, acabadas,alcolatras e que representam, por certo, a marginlia socialconstituda pelas prostitutas cujo nmero se elevava a mais de 80 milalmas, s em Londres. O que fica exposto? A natureza da sociedade, naqual as mulheres de baixa condio social, se no encontrassemguarida no casamento, ou ficassem vivas, ou rfs, no tinham outraescolha para sobreviver. Elas evidenciam as chagas sociais na Londres

    (9) DOYLE, A.Um estudo em vermelho.

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    monstruosa, onde chafurdavam no reino da bebida, das enfermidadesvenreas, na mais completa degradao humana, para as quais, atmesmo o encontro com o estripador Jack, poderia representar aredeno, o resgate do aviltamento moral ao qual foram lanadas pelaprpria sociedade.

    Eis o caminho possvel na trajetria da Histria-Conhecimento.Entre a fico e a realidade, entre a escrita e a potica, a viagem dohistoriador inescapvel. Do sensvel ao inteligvel, das nvoas densasdo imaginrio ao brilho ofuscante da realidade imediata. Se a literaturadesentranha e combina as fantasias do sujeito, a ideologia fixa signos eidias, fechando sempre que possvel o universo do sentido. Estruturassociais e campos de significao se tangenciam, enquanto vias de dupla

    mo entre o social e o imaginrio, cuja expresso no exclui aideologia, enquanto tecido de representaes e valores integrados naescrita da Histria. Obviamente, o imaginrio, ao compor sntesesoriginais, combina e produz imagens, numa dinmica de construopor vezes prxima, por vezes afastada, da experincia sensvel.

    Um movimento complexo resta como tarefa inexaurvel aohistoriador. No descuidar dos detalhes, da filigrana, mas tambm nodeixar de inscrev-la na teia ampla da macro-histria, na sua cadeiarelacional, e da, retornar ao pontual, ao contingente, ao aparentemente

    insignificante. Depois dessa primeira aproximao, impe-se umasegunda viagem metodolgica que transcorre da descrio anlise, danarrao reflexo sistemtica. Nesse entrelace, signos e sentidos seexplicitam, conceitos e smbolos se completam, ou se revelam. Enfim,busca-se atingir os tesouros ocultos do subconsciente, manifesto noimaginrio, e realizar a travessia rumo s formaes mentaisdominantes, de carter ideolgico, cuja expressividade inequivocamente produzida nas clivagens e tenses sociais. Nessepasso, instala-se a hegemonia da razo, mas sua unicidade rompidapela ao da sensibilidade que, ao iluminar os mltiplos perfistrabalhados pela singularidade repe, de maneira adensada erenovada, os objetos da percepo.

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