Historia Social Do Brasil

download Historia Social Do Brasil

of 238

Transcript of Historia Social Do Brasil

HISTRIA SOCIALDa invaso do Brasil ao maxixe e lambari

Elias Canuto Brando

HISTRIA SOCIALDa invaso do Brasil ao maxixe e lambari

Maring - 2003

Editorao e Capa: Rogerio Bernardino da Silva Fotos da Capa: Agostinho Anghinoni, Elias Brando, Maria Ceclio, Rosiany Maria da Silva, Sem-terra de Amapor e Reserva / PR. Organizao e Diagramao: Dr. Jorge G. Villalobos e Rogerio Bernardino da Silva Reviso Grfica: Elias Brando Reviso Ortogrfica: Maria Tempelin Ferreira Negro e Nelso Rettori Editores Responsveis: Dr. Jorge G. Villalobos e Jefferson Cordeiro Assoni.

Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP) (Biblioteca Central - UEM, Maring PR., Brasil)B817c Brando, Elias Canuto Histria Social : da invaso do Brasil ao maxixe e lambari / Elias Canuto Brando. Maring : Massoni, 2003. Nmero de pginas.:235 ISBN : 85-88905-06-X Livro indexado em GeoDados http://www.geodados.uem.br 1. Reforma agrria - Brasil. 2. Reforma agrria - Sociologia. 3. Sociologia poltica. I. Ttulo.

CDD 21.ed.

O contedo da obra, bem como os argumentos expostos, so de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es), no representando o ponto de vista da editora, seus representantes e editores. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrnico, ou mecnico, incluindo fotocpia e gravao) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permisso escrita do autor.

Av. Colombo, 5540 - Zona 07 - CEP 87030-121 - Fone |44| 3263.6712 - Maring - PR www.graficamassoni.com.br - [email protected]

SUMRIOAGRADECIMENTOS ................................................. 09 APRESENTAO ....................................................... 11 CAPTULO I A QUESTO AGRRIA...................... 21 A QUESTO AGRRIA .............................................. 23 Da invaso do Brasil .................................................... 23 Histria dos Projetos de Reforma Agrria.................... 28 A organizao do MST ................................................ 32 O MST, a UDR e a Associao Nacional dos Produtores Rurais .......................................................................... 34 A violncia no campo ................................................... 39 A CPT e o MST ............................................................ 47 Apoio social ao MST .................................................... 52 A mdia e o MST .......................................................... 55 CAPTULO II O MUNDO DOS ASSENTADOS ........ 59 O MUNDO DOS ASSENTADOS ................................. 61 Pontal do Tigre ............................................................ 61 O passado de um povo ................................................ 62 A ocupao .................................................................. 647

Amapor ...................................................................... 75 Capanema ................................................................... 78 Reserva ....................................................................... 81 Castro .......................................................................... 85 ADECOM ..................................................................... 87 Unio Tibagi.............................................................. 91 Organizao, produo e comercializao .................. 92 Do passado ao presente o mundo em evoluo ....... 102 Diferenas polticas e ideolgicas ................................ 110 Educao formal e informal ......................................... 114 Negociaes: desapropriao, sade, educao ........ 122 Fome: Maxixe e Lambari ............................................. 125 Os Despejos ................................................................ 129 O papel da mulher ....................................................... 132 CAPTULO III ENTRE A IMAGINAO E A REALIDADE: A Conscincia ..................................... 137 ENTRE A IMAGINAO E A REALIDADE: A Conscincia ............................................................ 139 A conscincia como fruto dos conflitos sociais ............ 139 Conscincia ingnua.................................................... 141 Conscincia filosfica .................................................. 145 Conscincia crtica ....................................................... 147 Conscincia scio-poltica organizativa ....................... 149 Conscincia tica ......................................................... 151 Conscincia pedaggica .............................................. 153 Conscincia poltico-ideolgica.................................... 155 CAPTULO IV DESENVOLVIMENTO DA CONSCINCIA SCIO-POLTICO ....................................................... 1598

DESENVOLVIMENTO DA CONSCINCIA SCIOPOLITICO .................................................................... 161 As experincias no desenvolvimento da conscincia .. 164 Meio social e diferenas culturais ................................ 169 A vida como escola e socializao do conhecimento .. 181 A educao no assentamento ..................................... 187 O desenvolvimento da conscincia ............................. 189 Conscincia poltica do MST ....................................... 197 Conscincia poltica da Reforma Agrria ..................... 199 A vida ensina mas, precisamos ir alm dela ................ 203 CONSIDERAES FINAIS ........................................ 215 ANEXOS...................................................................... 219 Siglas ........................................................................... 219 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................... 223

9

10

AGRADECIMENTOS

Meus especiais agradecimentos a todos que participaram deste livro: Maria Aparecida Ceclio (Universidade Estadual de Maring/PR UEM), minha companheira, pela compreenso, leituras e apoio em todos os momentos desta pesquisa. Assentados do Pontal do Tigre, em Querncia do Norte/PR. Prof. Dr. Valdemar Sguissardi (Universidade Metodista de Piracicaba/SP UNIMEP), pelas leituras, contribuies e orientaes durante o mestrado. Prof Dra. Elisa Pereira Gonalves (Universidade Federal de So Carlos UFSCar) e Prof Dra. Sueli Mazzilli (UNIMEP), pela participao na banca de minha defesa e pelas questes levantadas e contribuies oferecidas. CAPES, pela bolsa de estudo que, apesar de insuficiente, contribuiu com a pesquisa. Rosinz Vinci de Souza Neto, por suas degravaes das filmagens e sua filha, Amanda Vinci de Souza Neto, a sobrinha questionadora de 3 anos: tio, por que voc no sai do computador?. Finalmente a meus pais, Pedro Alves Canuto e Elizabeth Brando Canuto e aos meus irmos Jos Nildo, Paulo Brando e Maria Inz, por compreenderem minha ausncia em visit-los durante a realizao da pesquisa.

11

12

APRESENTAO

O presente livro um estudo histrico da luta pela terra no Brasil, desde a invaso portuguesa em 1500, passando pelo Quilombo dos Palmares, Canudos e Contestado, at o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no ano de 2000. resultado de um estudo sobre o mundo dos assentados do MST e est voltado para o desenvolvimento da conscincia social e poltica. Foi desenvolvido no Assentamento Pontal do Tigre, municpio de Querncia do Norte/PR, s margens do Rio Paran e, defendido na Universidade Metodista de Piracicaba/SP UNIMEP, como exigncia para obteno do ttulo de Mestre em Educao, em 19 de dezembro de 2000, sob o ttulo: Educao e conscincia: o desenvolvimento da conscincia scio-poltica dos trabalhadores rurais assentados. Para o feito, alm de um estudo histrico, permeamos a vida de dezenas de trabalhadores rurais, atualmente assentados, que nos contaram suas histrias de vida, desde as ocupaes, passando pelas negociaes, despejos, organizao, educao, produo e comercializao. Para que a pesquisa ultrapasse as barreiras acadmicas, utilizamos um linguajar cientfico, tambm acessvel aos no acadmicos. Na pesquisa, dezenas de tericos nos subsidiaram para a compreenso da conscincia ingnua, filosfica, crtica, scio-poltica13

organizativa, tica, pedaggica e poltico-ideolgica, desde Marx, passando por Thompson e chegando a Paulo Freire. Alm da histria do MST, debruamo-nos na histria de vida real dos assentados. Entre dezenas de opes, Brasil adentro, escolhemos o assentamento Pontal do Tigre, em Querncia do Norte/PR, para realizarmos a pesquisa de campo que, durante meses de investigao e milhares de picadas de pernilongos, resultou em um documentrio concreto sobre o mundo dos assentados: ocupaes, ameaas, despejos, reocupaes e, por fim, o assentamento definitivo. a histria real dos trabalhadores militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra que, a nosso ver, talvez seja o nico movimento, do final do II Milnio e incio do III, norteador das lutas sociais no campo e na cidade. A escolha do assentamento pesou-nos por aglutinar, em um mesmo espao geopoltico, grupos distintos de pessoas, com experincias culturais, sociais e polticas diferenciadas. So famlias naturais de So Paulo, Cear, Minas Gerais, Paraba, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Alagoas, Paran, entre outros. Algumas expulsas das terras inundadas pela Binacional Itaipu e outras retornadas do Paraguai aps tentarem sobreviver naquele Pas. A investigao foi direcionada para a identificao do desenvolvimento da conscincia scio-poltica dos assentados que, diariamente, esto envolvidos em situaes adversas s experincias anteriormente vivenciadas e tem tudo a ver com o desenvolvimento da conscincia dos agricultores assentados e no assentados e dos operrios urbanos de qualquer parte do Brasil e do mundo. Na pesquisa, constatamos que as atividades polticas desenvolvidas, as funes exercidas internamente no Movimento e a representatividade ou responsabilidade de14

cada um: criana, jovem, adulto ou idoso, homem ou mulher, durante o tempo em que estiveram acampados, foram fatores que proporcionaram o desenvolvimento da conscincia pessoal ou coletiva, nas atuaes coletivas ou individuais. Alguns assentados ampliaram suas percepes de mundo mais que outros e assim, avaliam suas diferentes formas de ver a vida:[...] a nossa vida [...] igual uma escada, que a gente pisou no primeiro degrau, que a gente pisou no segundo degrau. Hoje em dia ns estamos em volta do meio da escada [...], a gente j subiu esses quatorze 1 degrau [...], a gente conseguiu aprender vrias coisas [...], a gente conseguiu compreender melhor os companheiros no sei se os companheiros conseguiu entender melhor a gente [...] 2.

No observamos, na regio estudada, trabalhos sistemticos que possibilitassem o desenvolvimento homogneo da coletividade dos assentados e, consequentemente, uma ampliao da conscincia sciopoltica. Poucos so os assentados que passaram e passam pelo processo de construo de uma identidade sciopoltica prpria do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e a maioria no participa de processos (cursos de formao e reunies) que ampliem o desenvolvimento da conscincia coletiva, prevalecendo o individualismo. Internamente as famlias assentadas esto organizadas em 34 ncleos e participam de um MovimentoQuatorze degraus porque a maioria dos assentados do Pontal do Tigre est a mais ou menos quatorze anos participando do processo de Reforma Agrria e esta entrevista foi realizada em fevereiro/maro de 2000. A pesquisa de campo, como um todo, foi realizada nos anos de 1999 e 2000.2 1

Assentado Samuel Entrevista: 13/02/2000. 15

em constante formao poltico-ideolgico. A maioria delas vivem isoladas em seus respectivos lotes e, talvez, devido formao cultural, poltica, ideolgica e organizativa, no convivem harmoniosamente. Para realizarmos a pesquisa de campo, levantamos duas questes bsicas: como acontece a formao e a socializao do conhecimento scio-poltico entre os assentados? Que conscincia eles tm da organizao e do Movimento? Organizamos nosso estudo em quatro captulos. No primeiro, estudamos, analisamos e discutimos a histria do MST; sua relao com a UDR Unio Democrtica Ruralista; a histria dos projetos de Reforma Agrria; a violncia no campo; o papel da Comisso Pastoral da Terra no surgimento do MST, o apoio da sociedade ao MST e a mdia frente ao Movimento. No segundo, realizamos um estudo do mundo dos assentados do Pontal do Tigre a partir da histria de vida e procedncia de cada grupo, passando pelas ocupaes, organizao, produo e comercializao. Verificamos as diferenas ideolgicas entre eles, assim como a educao por eles vivida, as negociaes e os despejos, sem esquecer as prises, perseguies, a educao formal e informal e o papel e participao da mulher no decorrer das experincias dos assentados. No terceiro, desenvolvemos um estudo terico sobre a conscincia ingnua, filosfica; crtica; scio-poltica organizativa; tica; pedaggica e poltico-ideolgica, visando realizao com maior segurana nossa anlise sobre as entrevistas junto aos assentados. No quarto e ltimo captulo, retomamos a histria dos assentados e analisamos os dados de nossas observaes, amparados por uma ampla bibliografia a cerca do16

desenvolvimento da conscincia social e poltica e seus valores. Levantamos, tambm, algumas hipteses de explicao sobre a manuteno de formas tradicionais de pensar e agir entre os assentados, conseqncia da fora material e ideolgica da sociedade capitalista, das polticas neoliberais representadas pelo Estado privatizado, pelo sistema financeiro, pelos grandes grupos e blocos econmicos nacionais, multinacionais e organismos multilaterais, entre estes o FMI Fundo Monetrio Internacional e o Banco Mundial. O desenvolvimento da conscincia dos assentados nada difere do desenvolvimento da conscincia de todos ns. Mudam os personagens e o espao geogrfico da formao poltica. A escola a mesma a vida, as experincias, as decepes, a luta de classes, os confrontos com o sistema capitalista, com a polcia, com o Estado, com a justia. Todos aprendemos, todos ensinamos. Ora nos decepcionamos, ora ficamos felizes. o que o leitor vivenciar nos captulos a seguir. Nosso objetivo contribuir para o processo de efetivao de polticas pblicas que conduzam superao do secular problema agrrio no Brasil entre elas a Reforma Agrria, que muito maior que apenas a distribuio da terra e, para isto, fomos fiis s falas dos entrevistados e rigorosos nas anlises scio-polticas realizadas. Durante a realizao da pesquisa, comemorava-se os 500 anos de invaso do Brasil. E, motivado pela conjuntura, escrevi e divulguei um relato da situao dos ndios, desempregados, bias-frias, sem-terra, sem-moradia, entre tantos outros e outras, politicamente abandonados e esquecidos pelos administradores pblicos do Brasil e Mundo adentro, na seguinte poesia:17

NATIVOS DIZIMADOSBrasil dos nativos, Dos ndios que ainda existem. Dos milhes no princpio, Apenas milhares persistem. Os polticos, o Governo e o sistema, Aos massacres insistem. E mesmo em dificuldades, Os nativos terra-vida, no desistem. II Brasil 500 anos, De ndios despatriados. Engolidos ano a ano, Foram pisados e maltratados. Como nativos, indianos, Avistados foram enganados. E em nome da civilizao, Foram dizimados. III Avistados foram encarados, Como ameaa ao sistema. A liberdade de ir e vir, Virou um grande problema. No mato foram encurralados, Apanhados perderam as penas. E pelos europeus foram en-roupa-dos,

IV18

Agora vivem dilemas. De donos a expropriados, Como ficaram seus alentos? Os nativos cheios de sonho, Chegaro aos anos seiscentos? O que se espera do futuro? Lembranas e pensamentos? Em constante perseguio e prantos, Restam-lhes ficarem atentos.

V 500 anos de explorao, De trabalho infanto-juvenil e escravido. De motoristas a professores, Desvalorizados em sua profisso. De nativos a dizimados Lutando por direitos de cidado. De Direitos Humanos, Na prtica, a explorao.

VI Brasil 500 anos: De concentrao e de sem-terras, De bias-frias e domsticas, E, nas florestas, o motor-serra. Daqui outros 500, Que ser do povo e das terras? Na histria oficial, Registros de muitas guerras.

VII Brasil 500 anos: De histria e de vergonha.19

De homens massacrados, acusados de manha. Vivendo mendigando, Desgastados com o que ganham. E, na mdia, todo dia, Contra si muitas campanhas.

VIII Brasil 500 anos, Das matas, A sem matas, Sem reservas florestais e sem meio ambiente. De operrios, camels, lavradores e serventes, ndios, brancos e mulatos, somos desobedientes? H outra sada, a no ser estarmos descontentes?

IX Brasil 500 anos De pura especulao. Dos ndios de raa pura globalizao. De povos nativos a sem-terras dizimados. nosso Brasil: sempre dominado. Alcanou uma certa prosperao, Parou na desnutrio.

O poema teve como objetivo registrar que, antes da chegada dos portugueses, espanhis e franceses, esta terra tinha dono, tinha nativos e foram chamados de ndios. Atualmente, alm dos ndios, foram produzidos os sem-terra, bias-frias, desocupados, desempregados, menores de rua, moradores de rua, catadores de papel, entre tantos outros e outras.

20

Fizeram com os nativos do Brasil e da Amrica, o mesmo que estavam acostumados a fazer com os pobres da Roma Antiga e da Europa: escraviz-los. Escravizaram os ndios e em seguida os negros da frica. Atualmente, os diversos sistemas polticos e econmicos, dos cinco continentes, escravizam: ndios, negros e brancos, homens mulheres e crianas, operrios da cidade, camponeses, sem-terra e bias-frias, professores, advogados e cientistas, escritores e jornalistas, apresentadores e fotgrafos. Ningum escapa s regras do sistema. o mundo de perna para cima. Aps a pausa ao poema: Nativos dizimados, deixolhes disposio, a viagem no livro: Histria Social: Da invaso do Brasil ao maxixe e lambari.

21

22

CAPTULO I A QUESTO AGRRIA

Foto: Agostinho Anghinoni. Assemblia dos Sem-Terra Faz. Padroeira. 1986.

23

24

A QUESTO AGRRIA

Da invaso do Brasil A questo agrria e agrcola no Brasil comea a partir da invaso dos portugueses em 1500. Aps a invaso, inicia-se o processo de concentrao de terras, em 1534, quando o Rei de Portugal divide o Brasil em capitanias hereditrias 3, distribuindo-as a amigos de Portugal. A ao distributiva foi o incio da concentrao de terra por particulares atravs da compra legal e ilegal, da grilagem, da posse pela violncia para-militar, ou das negociaes diretas com os poderes pblicos 4. O resultado das aes, desde o sculo XVI, caracteriza-se pelo massacre de milhes de nativos, de negros e de pequenos trabalhadores rurais e seus respectivos familiares, desencadeando manifestaes de descontentamento e mobilizaes de trabalhadores rurais em vrias partes do Brasil. A histria tem registrado questionamentos em relao aos tratamentos polticos sociais, como o caso de Quilombo3

Capitanias hereditrias: Vm de capito-mor, administrador ou chefe. O Brasil foi dividido em capitanias, em grandes extenses e a maioria de seus herdeiros administraram de Portugal, podendo pass-las a seus filhos. Por isso, hereditrias, pois se transmitem por sucesso, dos ascendentes aos descendentes, por hereditariedade natural.

Aes de grilagens e para-militares no ocorreram somente no Brasil. Foi uma prtica do final da Idade Mdia que atingiu a Amrica, a frica e a sia, com conseqncias negativas para a sociedade que perduram at hoje. 25

4

dos Palmares (1630-1695), ou sobre a poltica agrcola 5 e agrria 6 do Governo Federal. Entre elas, destacamos os movimentos de [...] Canudos, na Bahia (1870-1897), que teve como lder Antonio Conselheiro; Contestado, em Santa Catarina (1912-1916), tendo como lder o monge Jos Maria 7[...]; as Ligas Camponesas no Nordeste (entre 1945/64) e o MASTER Movimento dos Agricultores Sem Terra no Rio Grande do Sul (entre 1959/62), sob a influncia do ento governador Leonel Brizola e do PTB Partido Trabalhista Brasileiro.As Ligas Camponesas, que nasceram na luta dos engenhos em Pernambuco, em 1954, foram o movimento mais massivo e radical na luta pela reforma agrria. Organizavam-se basicamente na regio nordeste do pas e tinham como lema; reforma agrria na lei ou na marra. Sofriam a influncia poltico-ideolgica de diversos partidos e grupos de esquerda e se destacaram pela conquista de diversos engenhos, pela influncia que tiveram na eleio do governador Miguel Arraes, em Pernambuco, e pela contnua presso de massa que faziam sobre o governo Goulart, para que implantasse uma Lei de Reforma Agrria (STDILE, 1993: 20).

No caso da revolta do Contestado na regio de Curitibanos/SC, o Governo Federal impulsiona a violncia ao contratar:[...] uma firma norte americana (Cia. Southern Brazil5

Poltica agrcola = aes polticas do Estado que favorecem ou deveriam favorecer a populao agrcola, o agricultor e seus familiares.

Poltica agrria = so aes polticas do Estado relativas s terras, ao campo, agricultura. Leis agrrias em favor dos trabalhadores, impedindo o aambarcamento das terras pblicas por quem dela no precisa. Reforma agrria, ou seja, conjunto de leis que modificam a distribuio das terras.7

6

STDILE, 1993: 17-18. 26

Lumber and Colonization) para construir a estrada de ferro ligando So Paulo a Rio Grande [...]. Em troca da construo, o governo deu Companhia 9 km de terra de cada lado da estrada (MOVIMENTO SEM TERRA, 1986: 19).

A ao do governo revolta os colonos sem terra e resulta em uma luta armada que fica conhecida como a revolta do Contestado 8. Autores como Martins (1997) e Foweraker (1982), estudando a questo agrria e agrcola verificam que at 1950, a populao brasileira vive majoritariamente no campo e enfrenta srios conflitos de terra com a omisso e conivncia dos governos: federal e estaduais. Em muitas regies do Brasil, a mesma terra mais de uma vez titulada pelo Estado s companhias colonizadoras que as vendem aos camponeses por diversas vezes, causando srios e constantes conflitos, mobilizaes e denncias de violncia. Estudando a questo dos conflitos de terra, escreve o professor Joe Foweraker, da Universidade de Essex, Inglaterra, em pesquisa realizada sobre a luta pela terra no Brasil:Os jagunos da companhia 9 comearam ento a campanha de intimidao para persuadir os camponeses a pagarem ou partirem e deixarem as terras livres para serem vendidas especulativamente a novos migrantes. AsObservamos ao leitor que o nome Contestado resultado de uma luta poltica na justia entre Paran e Santa Catarina, quando o Paran contestava judicialmente a divisa de Estado estabelecida com Santa Catarina. Por estar ocorrendo um conflito agrrio na faixa contestada, o exrcito paranaense invade Santa Catarina e ataca os sertanejos que, alm de serem perseguidos e mortos, ainda so responsabilizados pelo conflito. Foweraker referia-se aos jagunos da companhia colonizadora CITLA Clevelndia Territorial e Agrcola Ltda, na Regio Oeste do Paran. 279 8

casas foram queimadas e arrasadas, o gado assassinado, mulheres e crianas violadas. Os camponeses foram baleados e enterrados em seus prprios terrenos. Muitos concordaram em pagar, e pagaram de novo inmeras vezes; outros fugiram, tanto que relatos posteriores afirmam que pelo menos quinhentas famlias passaram-se para a Argentina (1982: 49-50).

Aps os anos 50, para captar recursos e indstrias, a poltica econmica brasileira, submete-se s exigncias externas do FMI Fundo Monetrio Internacional e Banco Mundial. O resultado so populaes camponesas migrando em direo s cidades em busca de trabalho assalariado, deteriorando as condies de sade, emprego, moradia e educao na periferia urbana. Os incentivos financeiros e polticos, federal e estadual voltam-se poltica para exportao, forando o crescimento do setor industrial, comercial e das cidades, aumentando a concentrao da terra os latifndios. A falta de polticas agrcolas e agrrias, acompanhadas da inexistncia de preos sobre os produtos colhidos, desanima os pequenos agricultores, tornando-se fator determinante no desencadeamento da migrao para cidade. Diante da conjuntura, as cidades passam a ser um sonho possvel aos agricultores que passam a ver a industrializao como possibilidade de sobrevivncia, resultando em um crescimento desordenado com problemas estruturais e econmicos. Neste momento histrico as cidades no esto preparadas e no comportam as milhares de famlias que a elas se dirigem. O salrio mnimo achatase; surgem problemas de moradia, gua e esgoto; favelas; assaltos; falta de emprego; drogas; assassinatos; violncias generalizadas; problemas familiares; superpopulao carcerria; falta de escola, sade, lazer e explorao do28

trabalho infanto-juvenil. A populao rural que migra s cidades durante o regime militar - anos 60 e 70 - no tem profisso ou especializao. Os mais jovens tm mais oportunidades e se encaixam no setor secundrio ou tercirio. Os mais velhos perambulam biscateando, como serventes de pedreiro, bias-frias, vigias ou pedintes. No final da dcada de 70, a populao, que antes sonhara com empregos nas cidades e sentindo-se merc dos acontecimentos estruturais e conjunturais, desempregada, sem possibilidade de futuro na zona urbana e com vasta experincia de trabalho no campo, sonha voltar terra e por ela passa a lutar, embora, no trajeto, enfrente inesperadas decepes e confrontos scio-polticos. Nesse perodo (1979), no Rio Grande do Sul, centenas de famlias se organizam e realizam duas ocupaes de terra nas fazendas Macali e Brilhante. Foi o comeo do MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. A partir da, muitas famlias do Sul ao Norte do Pas passam a fazer parte do Movimento na concretizao da Reforma Agrria respaldada no Estatuto da Terra e anunciada pelo Governo Federal Militar em 30 de novembro de 1964. Stdile e Gorgen reconhecem, no livro A luta pela terra no Brasil, que as lutas ocorridas nos diferentes Estados da Federao, entre 1978 e 1981, foram vitoriosas, mas as iniciativas eram isoladas. No havia nenhum contato entre uma ocupao e outra 10. Somente a partir de 1981 que observamos o incio de uma organizao mnima, atravs de encontros de lideranas promovidos pela CPT Comisso Pastoral da Terra,10

STDILE, 1993: 30. 29

resultando, anos mais tarde no nome MST. Histria dos projetos de Reforma Agrria Reforma Agrria no , apenas, a distribuio de terra s famlias. A distribuio, em si, desacompanhada de um conjunto de polticas agrrias e agrcolas, resulta em xodo do novo proprietrio. A pura distribuio, prejudica e banaliza o conceito Reforma Agrria e, provoca na sociedade, atitudes sociais e polticas contrrias ao Projeto. A Reforma Agrria um conjunto de aes de governo, resultando na redistribuio das terras, sejam elas ociosas, abandonadas ou cultivadas, sejam particulares ou do governo, atravs de medidas polticas institucionais srias, garantindo aos beneficiados, condies mnimas de, no somente sobreviverem, mas permanecerem, cultivar, produzir e multiplicar a produo e a produtividade da terra e de seus dependentes. So aes polticas, acompanhadas de leis agrrias, favorecendo a populao agrcola, o agricultor e seus familiares que, assentados, produziro e manipularo a terra, comercializaro a produo, adquiriro mantimentos, insumos e mquinas, sem medo de serem, a curto, mdio ou longo prazos, tirados ou arrancados da terra, nela permanecendo protegidos por leis inflexveis aos ditames individuais dos latifundirios ou de governos. Ou seja, Reforma Agrria o conjunto de leis que modifica a distribuio das terras, garantindo a posse da terra ao agricultor e seus famlias, aps respeitar as individualidades do agricultor, as condies da terra e da regio. A palavra Reforma Agrria tem sido, nas ltimas dcadas do Sculo XX, no Brasil e no Mundo, centro de discusses nos setores privados, Organizaes NoGovernamentais (ONGs) e setores estatais, resultado da30

forte conotao poltica que sua implementao tem causado nas estruturas polticas, econmicas e sociais. No Brasil, o xodo rural desencadeado na segunda metade do Sculo XX, resultado, entre outros, da ausncia de polticas pblicas agrrias e agrcolas dos governos estaduais e federal, favoreceram grandes concentraes de terras em poucas mos e, atualmente, falar em Reforma Agrria, amedronta os latifundirios que pressionam os diferentes governos para no realiz-la. Tal presso, no ser diferente em um governo de esquerda. Estudos sociolgicos mais aprofundados levam-nos a observar que, desde o final da Segunda Guerra Mundial dezenas de Projetos-de-lei de Reforma Agrria foram apresentados ao Congresso Nacional 11, mas nenhum foi aprovado e, desde 1954, os governos da Repblica tentam, de forma paliativa, amenizar as questes e tenses sociais no campo, criando vrios projetos de colonizao. Naquele ano, por exemplo, fundado o INIC Instituto Nacional para Imigrao e Colonizao com a inteno de planejar e executar a colonizao e concesses de terras nos Estados 12. Em 1962 o Governo de Joo Goulart substitui o INIC pela SUPRA Superintendncia para Reforma Agrria , com a responsabilidade de executar a reforma agrria. EmConsultar http://www.planalto.gov.br/secom/colecao/refagr3.htm. Reforma Agrria: Compromisso de todos. Presidncia da Repblica, 1997. O INIC absorveu trs departamentos federais existentes na poca: o CIC - Conselho de Imigrao e Colonizao; a DTCMA - Diviso de Terras e Colonizao do Ministrio da Agricultura e; o DNIMT Departamento Nacional de Imigrao do Ministrio do Trabalho. A absoro objetivou, alm do exposto no texto, os trabalhos de colonizao executados pelas companhias particulares nos estados da federao. 3112 11

13 de maro de 1964, Goulart assina um decreto que desapropria, para fins de reforma agrria, terras numa faixa de 10 quilmetros ao longo dos audes, ferrovias e rodovias, desde que construdos pela Unio. Dois dias depois, a 15 de maro, o Presidente encaminha uma mensagem ao Congresso Nacional propondo srias e urgentes providncias indispensveis ao atendimento da populao. Entre as providncias encontrase, como a mais importante a reforma agrria. No entanto, em 31 de maro do mesmo ano d-se o golpe militar, iniciando uma fase de perseguio a lideranas no campo e na cidade. O governo militar representado pelo Presidente General Humberto de Alencar Castello Branco atento s manifestaes no campo, inclui a reforma agrria em suas prioridades e designa um grupo de tcnicos sob a orientao e coordenao do Ministrio do Planejamento para que elaborem um Projeto-de-lei de Reforma Agrria. O projeto torna-se a Lei n 4.504 no dia 30 de novembro de 1964, com o nome de Estatuto da Terra 13. Ainda, no mesmo ano, o governo militar substitui a recm criada SUPRA pelas agncias INDA Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrrio e IBRA Instituto Brasileiro de Reforma Agrria. Seis anos aps o golpe militar (1970), funda-se o INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria que absorve os INDA e IBRA. O INCRA, inicialmente criado para colonizar uma [...] faixa de 10 km a cada lado das estradas de penetrao13

Para Jos de Souza Martins, o Estatuto da Terra [...] foi utilizado para desmontar as tenses sociais no campo e no para resolver a questo agrria; foi utilizado para resolver a questo poltica sem resolver a questo agrria. In: STDILE (Org.), 1997: 34. 32

Transamaznica e Cuiab-Santarm 14. Com a criao do INCRA, vrios projetos/programas so elaborados e administrados sob sua superviso entre eles o PIN Plano de Integrao Nacional (1970) ; PICs Projetos Integrados de Colonizao e PFs Projetos Fundirios. Alm destes projetos de colonizao que foram criados para substituir a reforma agrria, o governo lana ainda outros de desenvolvimento regional como: PROTERRA Programa de Redistribuio de Terras e de Estmulo Agroindstria do Norte e Nordeste (1971); PROVALE Programa Especial para o Vale do So Francisco (1972); POLAMAZONIA Programa de Plos Agropecurios e Agrominerais da Amaznia (1974) e o POLONORDESTE Programa de Desenvolvimento de reas Integradas do Nordeste (1974). Na prtica nenhum destes projetos se efetivaram. Devido aos conflitos no campo no final dos anos 70 e incio dos anos 80, o governo federal, ainda militar, cria o MIRAD (Ministrio da Reforma Agrria e Desenvolvimento) para cuidar dos problemas agrrios. Em conjunto com o INCRA, elaboram em 1985 o 1 PNRA 1 Plano Nacional de Reforma Agrria 15. Este Plano, imediatamente sua criao, atacado pela UDR Unio Democrtica Ruralista atravs de aes judiciais (mandados de segurana) que bloqueiam as desapropriaes para efeito da Reforma Agrria 16. Logo aps a elaborao do PNRA, o MIRAD/INCRA14 15

FOWERAKER, 1982: 180.

A proposta do 1 PNRA que a Reforma Agrria seria executada pelo INCRA, INCRA/ITCF Instituto de Terra e Cartografia Florestal , INCRA/SECRAs - Secretaria Especial para Colonizao e Reforma Agrria de cada Estado.16

BONIM et al, 1987: 70. 33

negociam com os Estados para que estes criem Secretarias Especiais para Reforma Agrria. Para Foweraker, as criaes, mudanas e alteraes constantes de rgos e projetos afins, parecem ter o objetivo de dificultar a viabilizao da Reforma:Essa sucesso de rgos, contudo, levou a descontinuidades administrativas que prejudicaram o desenvolvimento de projetos existentes e expuseram as agncias manipulao pela burocracia estadual (1982: 180).

A organizao do MST Apesar das lutas pela terra no Brasil serem histricas, de vrios projetos terem sido criados e vrias promessas feitas, neste estudo, a questo agrria discutida a partir da organizao do MST que se reinicia 17, em 1979, no Rio Grande do Sul.Em 1979, houveram as lutas das fazendas Macali e Brilhante, relacionadas com a reserva indgena de Nonoai no Rio Grande do Sul. No Paran, a luta dos agricultores que perderam a terra com a construo da Barragem de Itaipu. Em 1980, famlias ocuparam a fazenda Burro Branco, em Santa Catarina, no municpio de Campo Er. Em So Paulo, 400 famlias ocuparam a fazenda Primavera, em Andradina. E no Mato Grosso do Sul, se desenvolvia uma intensa luta pela resistncia na terra, por milhares de arrendatrios que trabalhavam nas fazendas nos municpios de Navira, Glria de Dourados, etc. Em 1981, surgiu o acampamento da EncruzilhadaReinicia porque antes do golpe militar, direto ou indiretamente, j ocorriam lutas pela Reforma Agrria nos diferentes cantos do Brasil: Canudos, Contestado, MASTER, Ligas Camponesas... 3417

Natalino, em Ronda Alta, no Rio Grande do Sul que mexeu com a opinio pblica nacional, estimulando todos os trabalhadores sem terra do Brasil a lutarem pela terra. Dessas lutas no sul do pas, bastante isoladas, nasceu a necessidade dos trabalhadores sem terra se conhecerem, se articularem e discutirem suas experincias concretas. Comeou ento a articulao dentro dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, de onde nasceu a idia de juntar todos os interessados e criar o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Inicia-se o intercmbio. Diversas reunies foram feitas entre vrios Estados (Movimento Sem Terra, 1986: 42-43).

Segundo dados do MST, cinco momentos marcam oficialmente o nascimento do Movimento Sem Terra 18: 1 - um grande encontro de trabalhadores rurais sem terra das regies Sul e Sudeste do Pas: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paran, So Paulo e Mato Grosso do Sul, no Municpio de Medianeira/PR, em julho de 1982; 2 - o encontro nacional em Goinia, com a participao de 16 Estados, em setembro de 1982. 3 - a criao da Comisso Regional Provisria, formada com 2 lavradores de cada Estado, em janeiro de 1983. Esta comisso se reunia a cada 3 meses. 4 - a realizao do 1 Encontro Nacional do MST, entre 21 e 24 de janeiro de 1984, em Cascavel/PR, com a participao de representantes de 16 Estados, o que fez constituir formalmente o MST como um movimento nacional. Diz Stdile:Esse encontro nacional representou [...] a fundao e a organizao de um movimento de camponeses sem terra,Dados disponveis no livro: Construindo o caminho, junho de 1986, pp. 37, 43 e 44 e Agenda 1986, ambos documentos publicados pela Secretaria Nacional do MST. 3518

a nvel nacional, que iria se articular para lutar por terra e pela reforma agrria. A nasceu o Movimento Sem-Terra, como uma articulao dos diversos movimentos que estavam acontecendo a nvel localizado. E foi ento batizado como Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (1993: 30-31).

5 - a organizao do 1 Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, com a participao de 1.500 pessoas de 22 19 Estados brasileiros, incluindo convidados e representantes de organizaes de trabalhadores rurais de vrios pases da Amrica Latina, ocorrido entre 29 a 31 de janeiro de 1985, em Curitiba/PR. A partir do Congresso em Curitiba, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no pra de crescer em todo Brasil e, medida que cresce, conquista sua independncia poltica e administrativa das mais diferentes entidades e instituies. O pesadelo das cidades (sub-emprego, violncia urbana, assassinatos, drogas...) e o sonho pela terra resulta em um novo pesadelo: os conflitos com as milcias organizadas nas fazendas para defend-las. O MST, a UDR e a Associao Nacional dos Produtores Rurais Segundo a Comisso Pastoral da Terra, Joo Pedro Stdile, Srgio Antonio Gorgen (Frei Srgio), entre outros, se, por um lado organiza-se o MST, por outro, como resposta, organiza-se a UDR Unio DemocrticaH divergncias sobre a quantidade de estados que participaram do Congresso, uma vez que no livro Construindo o caminho registram-se 22 estados e na Agenda 1986 registram-se 23 estados. Ambos documentos elaborados e publicados pelo MST. 3619

Ruralista. O MST objetivando conquistar a terra pela ocupao e resistncia 20; a UDR, defender a propriedade. Ambos com objetivos claros: o MST, ocupar, forando a Reforma Agrria ocupar, resistir e produzir 21. A UDR defender o patrimnio particular do MST, acionando o poder judicirio atravs de aes judiciais para despejo. A UDR criada em maio de 1985, em Gois, trs meses aps a realizao do Congresso do MST em Curitiba/PR, para impedir que o MST participe na luta pela Reforma Agrria atravs da ocupao e indiretamente do processo poltico. Na poca, o MST teve o apoio da CPT Comisso Pastoral da Terra e a UDR passa a comprar armas e atacar integrantes dessa entidade, ameaando ou assassinando seus agentes. No documento A ofensiva da direita no campo publicado pela CPT, Associao Brasileira de Reforma Agrria (ABRA) , Instituto Brasileiro de Anlises ScioEconmicas (IBASE) e MST com colaborao de representantes da Campanha Nacional pela Reforma Agrria (CNRA), Instituto de Estudos Scio-Econmicos (INESC) e Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) , constam os dizeres de um fazendeiro integrante da direo nacional e presidente da UDR de Gois:Hoje j podemos confessar que realmente compramos armas com os leiles. No primeiro, realizado em Goinia,Consultar: Movimento Sem Terra. Construindo o caminho, junho de 1986; Agenda MST 1986; A ofensiva da direita no campo, elaborado pela CPT, ABRA Associao Brasileira de Reforma Agrria , IBASE Instituto Brasileiro de Anlises Scio-Econmicas , MST; Lilian Ferracini, entre outros.21 20

Conflitos no campo Brasil 94: 11. 37

adquirimos 1.636 armas. Com o segundo, em Presidente Prudente (SP), adquirimos mais 2.430 armas e a proliferaram as UDRs. Atualmente, temos mais ou menos 70 mil armas, representando a cabea de cada homem da UDR, homens que deixaram de ser omissos na histria do nosso pas (A OFENSIVA DA DIREITA NO CAMPO, 1987: 21 22).

A UDR, enquanto entidade organizada e em crise financeira, encerra suas atividades em 1994. Diz a CPT, atravs do documento Conflitos no campo Brasil 94: 14:Em 29 de novembro, a UDR anunciou que oficialmente fechava as portas. Em crise financeira, no tinha como se sustentar. Passara os tempos das vacas gordas, em leiles milionrios. Na verdade, no se justificava mais como entidade nacional, articuladora da raivosa reao latifundista proposta de reforma agrria que assulou (sic) os debates da Constituinte de 87/88.

Por outro lado, as informaes contidas na Revista Caros Amigos, de junho de 1999 e no artigo Produtores rurais X Movimento Sem Terra: o setor de segurana entra nessa briga, de Lilian Ferracini, demonstram que a UDR continua estruturada:A UDR, segundo relatam os advogados do MST em Curitiba (Darci Frigo) e em Querncia (Avanilson Alves Arajo), montou um verdadeiro exrcito paramilitar como fora auxiliar na tarefa de expulsar os sem-terra. Os exemplos, infelizmente, se multiplicam, tanto quanto as declaraes de trabalhadores que foram vtimas das aes. A fazenda Saudade, em Santa Izabel do Iva, foi invadida, na madrugada de 16 de setembro de 1997, por oitenta pistoleiros fortemente armados e encapuzados, todos portando armas pesadas e tpicas da Polcia Militar (fuzis, escopetas, metralhadoras e coletes prova deSustentado em notcias veiculadas pelo jornal O Germinal CentroOeste / abril/87. 3822

bala). Dispararam suas armas, queimaram barracos e ameaaram lideranas. Foram despejadas 46 famlias, que procuraram a delegacia do municpio para fazer um boletim de ocorrncia, mas estranhamente depararam com a recusa do delegado (CAROS AMIGOS, junho de 1999: 11).

Segundo Lilian Ferracini, atualmente os produtores rurais esto organizados em duas frentes: a UDR e a ANPRU Associao Nacional dos Produtores Rurais. A criao da ANPRU, segundo a autora, tem o objetivo de prestar servios de segurana aos produtores rurais, mesmo considerando que a segurana da populao esteja a cargo das Polcias Militares de cada Estado. Descreve que, como h lugares onde apenas uma viatura policial no garante a segurana, a ANPRU defende um apoio tcnico paramilitar aps uma seleo de empresas para prestarem segurana ao produtor rural. Na prtica descreve Ferracini:[...] o trabalho da Associao Nacional dos Produtores Rurais baseia-se em selecionar as empresas de segurana e indic-las aos seus associados. Todo o processo de contratao ser feito entre o produtor rural e a prpria empresa de segurana patrimonial que mandar fazenda um coordenador de segurana para avaliar as condies de implantao do servio: quantos seguranas sero necessrios, equipamentos de comunicao, viaturas, utilizao ou no de cavalos, etc. (Impresso).

A ANPRU, de acordo com Ferracini, defende a tese de que a simples presena de seguranas em uma propriedade inibe a ocupao de uma rea pelos sem-terra. Observando os noticirios da imprensa Folha de Londrina/Folha do Paran, O Dirio do Norte do Paran, Gazeta do Povo e o Estado do Paran, nos dia 26 de fevereiro e 03 de maro de 2000, sobre um despejo ocorrido39

em 25/02/2000 na Fazenda Figueira em Guaira, conhecida como Cobrinco, verificamos que, aps o despejo a rea foi resguardada por mais de 20 seguranas particulares, o que no foi empecilho reocupao pelos trabalhadores sem terra uma semana depois, conforme matrias abaixo:Um grupo de aproximadamente 400 sem-terra invadiu pela segunda vez, ontem de manh, a Fazenda Figueira, no municpio de Guaira, a 150 quilmetros de Maring, Noroeste do Estado. A rea considerada produtiva pelo Incra (Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria) e havia sido desocupada na semana passada pela Polcia Militar. Um grupo de cerca de trinta seguranas protegia a fazenda na hora da invaso, armados com revlveres, espingardas e carabinas (O ESTADO DO PARAN, 3 de maro de 2000: 12). O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) mobilizou ontem mais de 400 pessoas para retomar a Fazenda Figueira, em Guaira (26 quilmetros a noroeste de Paranava). Um segurana da fazenda, um sem-terra e um policial ficaram feridos sem gravidade. Trs viaturas da PM foram danificadas. Na sexta-feira da semana passada pelo menos 600 policiais militares desalojaram as 150 famlias que estavam h quatro meses acampadas na propriedade. O lder do movimento afirmou que a permanncia naquele local uma questo de honra [...]. Os mais de 20 seguranas que estavam na rea, fortemente armados, reagiram atirando contra os sem-terra. Joo Lori Macri, 32 anos, levou um tiro de raspo no pescoo. Senti o baque e ca de costas, contou. Os seguranas, que estavam em menor nmero e reclamavam que as armas no eram suficientes para enfrentar os sem-terra, fugiram da rea. Eles ainda ameaaram atirar nos jornalistas que estavam no local e de tomar os carros da reportagem da Folha (sic) e do O Estado do Paran (sic) (FOLHA DE LONDRINA/FOLHA40

DO PARAN, 3 de maro de 2000: 8).

A organizao da ANPRU desencadeou crticas do MST, do Ministro da Poltica Fundiria, Raul Jungman e da presidente da UDR, Tnia Maria Tenrio de Farias 23. A violncia no campo A violncia no campo acontece desde a antigidade, perpassando a Roma Antiga e a Grcia, o Ocidente e o Oriente, alcanando atualmente o sculo XXI. No Brasil, os conflitos no campo so marcas registradas desde as invases portuguesas, espanholas e francesas no sculo XV-XVI, quando se inicia a explorao do ouro, do pau brasil e das terras, dizimando os nativos e dividindo as terras vista em grandes latifndios Capitanias Hereditrias e Sesmarias 24 em parte, administradas, longa distncia por famlias residentes em Portugal. Na contemporaneidade, a grande maioria dos latifundirios 25 administra e recebe informaes de e sobre suas propriedades longa distncia pelo telefone, celular ou e-mail e, sem participar diretamente de um conflito, ordena a defesa de sua propriedade. Constatamos, em diferentes publicaes: livros,FERRACINI, Lilian. Produtores Rurais X Movimento Sem-Terra: O setor de segurana entra nesta briga. Impresso. A extenso das capitanias (...) compreendia milhes de hectares, ou a dimenso de vrios estados contemporneos e a das sesmarias abrangia milhares de hectares, na verdade, at onde o sesmeiro conseguisse controlar (VARELLA, 1997: 193). A este respeito leia, entre outros: OLIVEIRA FILHO, Moacyr de. Rio Maria: a terra da morte anunciada. So Paulo : Editora Anita Garibaldi, 1991. 4125 24 23

revistas, jornais e peridicos, que a propriedade da terra tem sido marcada por conflitos entre trabalhadores e latifundirios. Em alguns nmeros da Revista Veja; Famlia Crist n 607; Conflitos no Campo da CPT; Revista de Informao Legislativa, n 130; Caros Amigos n 27; Dossi Maurcio Fernandes Gutierres; jornais Folha de Londrina/Folha do Paran; O Dirio do Norte do Paran; Gazeta do Povo; O Estado do Paran, entre outros, podemos destacar os seguintes fatos: Massacres de Eldorado/PA e Corumbiara/RO; Violncia contra lideranas e pessoas isoladas; Assassinatos de lideranas dos sem terra, sindicalistas, lideranas de associaes ou cooperativas de pequenos agricultores, advogados, agentes pastorais e religiosos por todo Brasil. Perseguies e ameaas de mortes; Ameaas contra crianas, mulheres e idosos acampados; Humilhaes de policiais famlias acampadas; e jagunos sobre

Trabalho escravo no campo, e

Trabalho rural infanto-juvenil. A preocupao da CPT est na forma como a violncia vem sendo aperfeioada e refinada para destruir os trabalhadores rurais, suas organizaes e movimentos.[...] a gravidade da violncia no campo, no se limita ao nmero elevado de conflitos. O mais grave so as formas refinadas da violncia. a pedagogia do terror seletivo, utilizada para golpear as organizaes dos trabalhadores42

e destruir os meios de produo dos pobres do campo, submet-los [...]. (CPT, Conflitos no Campo Brasil/1991: 32).

Na medida em que ocorre e aumenta o monoplio da propriedade da terra, tambm aumenta a violncia e a impunidade. Neste sentido, Hlio Bicudo muito claro ao afirmar que: espantoso o nmero de lderes rurais assassinados por pistoleiros a soldo de grandes latifundirios. E lamentvel a impunidade alimentada pelas deficincias e vcios dos aparelhamentos policiais e judiciais. [...] Em geral, os assassinatos tm motivao poltica, atingindo principalmente lderes especficos, e so cometidos por pessoas que, na maioria dos casos, escapam identificao (1994: 17-18).

De acordo com os documentos citados anteriormente, podemos observar que o Estado, como administrador poltico, tem desenvolvido poucas aes concretas para implementao de uma poltica agrcola e agrria com o objetivo de diminuir a violncia no campo e em troca intensifica-se o uso da fora policial. A mdia tem assumido um papel de divulgadora das aes e reaes do Estado e das organizaes e movimentos sociais. Entre eles, foi a responsvel pela divulgao dos massacres de Eldorado dos Carajs/PA, Corumbiara/RO e da megaoperao policial de maio de 99 na Regio de Querncia do Norte/PR (foto abaixo), municpio da realizao da presente pesquisa, atravs de imagens televisivas e matrias em jornais escritos quando questiona a execuo de 19 despejos; priso de 41 semterra; desrespeito dos direitos humanos; coao de mulheres, crianas e idosos; alm do espancamento do advogado do MST, conforme jornais: Folha de Londrina/Folha do Paran; Gazeta do Povo; Estado do43

Paran; O Dirio do Norte do Paran; Folha de So Paulo; etc., entre os dias 07 e 23 de maio, 25 e 30 de junho e Revista Caros Amigos, n 27 junho de 1999.

Foto: Rosiany Maria da Silva. Fazenda Rio Novo, Querncia do Norte/PR, 1999.

A imprensa questionou a forma da ao operacional desencadeada pela polcia do Paran e a proibio de ela acompanhar as execues judiciais de despejos, visualizadas como megaoperaes que resultaram em prises e torturas de sem-terra em todo o Estado 26.26

Verificando a divulgao dos despejos de maio de 1999 no Paran, pela mdia, observamos que a ao do Governo revoltou a imprensa/jornalistas, no por que a mesma seria a favor ou contra os despejos ou as aes do Governo, mas por que foi impedida em documentar os fatos. Os jornais e jornalistas no se neutralizaram em apenas divulgar os despejos e passaram a duvidar e questionar as informaes oficiais circuladas pelo Governo do Paran. 44

De acordo com os noticirios, a realizao da megaoperao comeou pelos bloqueios nas estradas e proibio aos jornalistas de documentarem os despejos. Depoimentos dos trabalhadores divulgados pela mdia indicam que a UDR se fez presente nos despejos atravs de jagunos entre os policiais. Dois depoimentos em lugares diferentes no Estado do Paran em 1999 demonstram tratamento que o homem do campo recebe, durante esses conflitos. Em um deles, o senhor Geraldo Jos dos Santos, 84 anos, torturado na Regio de Querncia do Norte, descreveu:Eles espancaram vrios e outros foram queimados pelas bombas. Um filho meu de mais de 50 anos, que tem problema de corao, ficou 2 dias perdido no mato. Eu levei um chute de um policial na altura da costela e no cho fui em seguida novamente chutado (Depoimento impresso divulgado pelo MST e CPT/PR no ms de maio de 1999).

Valdecir Bordignon, uma das lideranas do MST no Paran, relata um fato ocorrido na desocupao da Fazenda Santa Maria em Ortigueira/PR, no dia 29 de abril de 1999, para em seguida, ser levado priso:[...] eu disse que era bia-fria, tinha chegado recentemente na fazenda, no sabia de nada, comearam a me torturar, foram duas horas e meia de tortura. Me torturaram algemado onde meus braos esto cheios de feridas das algemas. Na tortura teve afogamento, enforcamento, espancamento com pisoteio na barriga, tiraram minha roupa e ameaaram estuprar-me com uma cana de acar depois mandaram eu correr para que eles pudessem me matar, onde eu no corri. Colocaram-me de joelho em frente um monte de esterco de vaca recm estercado, encostaram uma faca em meu pescoo e me fizeram comer mais ou menos meio quilo de esterco. Foi brbaro e humilhante. Depois me levaram at a viatura45

onde j estavam os outros presos (CAROS AMIGOS, junho 1999: 12).

Pesquisando as aes do Estado sobre o MST, observamos que a violncia no campo parece-nos ser uma questo de deciso poltica e social sustentada na coao psicolgica e na agresso fsica intimidatria que, na ltima dcada do sculo XX, sempre que foi exercida, funcionou em favor da organizao do Movimento Sem Terra. Aparentemente, pensa-se que, fazendo-se a Reforma Agrria elimina-se a violncia, a fome e o desemprego, alm de aumentar a produo e a produtividade. Na prtica, no temos tal confirmao, uma vez que a Reforma Agrria, historicamente no Brasil, tem sido uma reivindicao no concretizada, a no ser por experincias isoladas em forma de assentamentos, resultado de presses polticas e sociais. Tratando da violncia no campo, entende o advogado e deputado Aldo Arantes, que os juzes, como parte do Poder Judicirio e parte do Estado, defendem os interesses das elites e do poder, contribuindo para que reine a impunidade da violncia contra os trabalhadores (FILGUEIRAS, 1997: 9) Essas informaes levam-nos a inferir que os juzes em suas aes tm conhecimento dos conflitos sociais, mas ignoram os problemas e conflitos agrrios quando de uma deciso judicial. Distantes do fato e baseando-se apenas no que est escrito na Lei ou nas peties, os juzes acabam prejudicando uma das partes, e quase sempre, a prpria Lei sentencia, como culpada, a parte sem poder econmico e poltico. O advogado Antonio Evaristo de Moraes Filho, Coordenador-Geral da Comisso de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB Ordem dos Advogados do46

Brasil, em pronunciamento durante a Sesso do dia 18 de dezembro de 1985, em Marab/PA, disse:[...] sem concretizarmos uma Reforma Agrria autntica, que reflita os anseios da Justia Social, no teremos a paz no campo, paz que surgir como uma alvorada, marcando uma etapa de nossa luta por um mundo mais fraterno e melhor (OAB, 1985: 62).

Por outro lado, o presidente da FAEP Federao da Agricultura do Estado do Paran gide Meneguete, em matria no COCAMAR Jornal de Servio da Cooperativa COCAMAR, n 399, em setembro de 1998, afirma que o culpado pela impunidade e pelos conflitos no campo o governo, por permitir que os sem-terra invadam as propriedades particulares. Para o presidente da Federao, a questo central das invases est na impunidade que os governos concedem ao MST e defende os produtores rurais a exercerem a defesa de seus patrimnios quando a justia conceder reintegrao de posse, mesmo parte do governo e da fora policial. O presidente da FAEP, observamos, defende as aes violentas como violncias legitimadas pela justia. A poltica de excluso social atual e a forma como o sistema capitalista est organizado tm provocado a violncia no campo. Por exemplo, enquanto para o MST, fechar uma agncia bancria ou fazer uma ocupao ou acampamento participar da conquista do direito de viver, trabalhar e produzir; para os latifundirios e muitos integrantes do governo, as aes dos sem-terras so sinnimos de ataque ao direito de propriedade adquirida, de vadiagem 27 e de agresso ao governo. So duasOs conceitos propriedade e vadiagem datam da Revoluo Industrial no sculo XVIII na Inglaterra, durante o processo de 4727

interpretaes que traduzem a dinmica dos conflitos. Enquanto, para o MST, a fome e o desemprego so sinnimos de violncia social, para os latifundirios ligados ou no UDR e para setores dos governos, so problemas de ordem estrutural a serem acomodados. Essa diferena de compreenso e de ideologia mostra-nos a violncia como uma ao 28 e reao 29 de quem estiver manipulando a organizao social ou o sistema poltico. A ao-reao do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra est voltada para quebrar a organizao do sistema poltico e judicirio que, como est organizado, impede mudanas no sistema agrrio, agrcola, poltico e econmico. A ao-reao do Estado e do judicirio, voltase ao impedimento de que setores organizados da sociedade os desestruturem. No sabemos se a inverso no e do poder mudar substancialmente a ordem estrutural e conjuntural da ao-reao. A violncia e os conflitos sociais e a forma deindustrializao. Propriedade por ser prprio e pertencente a algum. Vadiagem era e ainda hoje dado quele que no tem domiclio certo, que no tem parada: errante, que no tem ocupao conhecida, que no trabalha ou estuda.28

Ao enquanto manifestao manifesta-ao de uma fora agente: ocupa-ao de terra ou rgo pblico; greve, marcha ou passeata. Meio legal para obter um direito em juzo atravs de uma ao judicial ou uma ao entre amigos: rifa.

Reao a uma ao ao contrrio. Manifesta-ao contrria ao, exemplo: tal acontecimento no poderia deixar-nos sem reao e se repetirem, reagiremos. Reao contrria a determinadas aes sociais, polticas, econmicas ou religiosas. Reao contra uma greve, uma marcha ou uma passeata. A reao pode vir do Estado ou da sociedade contra uma determinada ao e, pode ter sido uma ao em reao a uma ao invisvel ou camuflada. 48

29

divulgao da mdia tm levado a sociedade a acostumar-se com a violncia cotidiana, achando-a normal, corriqueira e at banal. Isto no significa que a sociedade a evite e se acomode. Por outro lado, o desafio contemporneo o de conviver com a violncia, com indignao e compromisso com sua erradicao, o que geralmente no acontece por acomodao, independente de onde ela se manifeste. Comentando o fenmeno da violncia e o risco de a sociedade banaliz-la, a CPT adverte que:A violncia no Brasil [...] um fenmeno estrutural sociedade, est enraizada no ethos social, entranhada em nosso modo jeitoso de ser. Muitas vezes exacerbada, persistente sempre, tornou-se corriqueira, banalizada; parece ter embotado nossa capacidade de indignao. Com muitas faces, nem sempre evidente, exercida de modo polivalente, nos espaos infinitesimais da vida cotidiana, a violncia nossa de cada dia constitui um desafio compreenso, maior ainda superao (Conflitos no Campo Brasil 94, 1995: 7).

A CPT e o MST Diferentes autores analisam o golpe militar ocorrido em 31 de maro de 1964 como perodo de extermnio social. Durante o perodo militar foram exterminadas centenas de vidas, experincias, organizaes e entidades ou foram anestesiadas algumas outras por muitos anos que, aps o perodo de turbulncia militar, floresceram com maior intensidade. O mesmo ocorre com pessoas de setores avanados de algumas Igrejas, entre elas, a Igreja Catlica, atravs de perseguies, ameaas e assassinatos. Aps a turbulncia, apenas dois partidos polticos: ARENA Aliana de Renovao Nacional , do governo e MDB Movimento Democrtico Brasileiro dos contrrios ao49

governo, foram autorizados a existir como opes polticas partidrias. Os sindicatos e associaes no puderam ser combativos, crticos e livres. Qualquer ato ou mobilizao no autorizado pelos governos significava riscos e eram sufocados pelas aes militares que magicamente faziam as lideranas desaparecerem do cenrio poltico-social local ou nacional. Apesar das fortes perseguies militares, dos desaparecimentos, dos presos e da relativa baixa dos sindicatos e do movimento estudantil desencadeados pelo golpe de estado militar (1964 1994), religiosos crticos e combativos, sobretudo da Igreja Catlica, incentivam direta ou indiretamente setores sociais e sindicais a se organizarem politicamente, cedendo muitas vezes seus espaos a reunies, encontros, cursos e assemblias dos operrios, sobretudo na regio do ABC paulista Santo Andr, So Bernardo do Campo e So Caetano do Sul , na grande So Paulo e contribuiu com o incio das organizaes dos movimentos sociais e sindicais no campo. O incentivo e o envolvimento de religiosos fez surgirem as CEBs Comunidades Eclesiais de Base, a CPT Comisso Pastoral da Terra ; a PO Pastoral Operria ; a PJR Pastoral da Juventude Rural ; a PU Pastoral Universitria ; a PC Pastoral Carcerria, entre outras.A Comisso Pastoral da Terra (CPT), criada em 1975, um servio causa dos camponeses e trabalhadores rurais do Brasil. Sua realidade e seus anseios definem a misso e as tarefas da CPT. A CPT colabora diretamente com as iniciativas das Igrejas crists de modo especial com a Igreja Catlica e a Igreja Evanglica de Confisso Luterana no Brasil, atuando em conjunto com muitas dioceses, parquias e comunidades50

eclesiais. Assessora sindicatos, associaes de pequenos produtores, movimentos sociais e outras iniciativas populares. Enquanto Comisso de Servio, anima e acompanha os homens e mulheres do campo e suas organizaes em suas lutas. Presta-lhes assessoria pastoral, teolgica, metodolgica, jurdica, poltica e sociolgica. Celebra sua f, suas iniciativas, vitrias e fracassos (CPT www.cptnac.com.br/q-somos.html; www.cptnac.com.br/estudos/conflca1.html).

No mesmo perodo surgem as oposies sindicais, os sindicatos combativos urbanos e rurais, o PT Partido dos Trabalhadores, e o MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. A CPT teve papel primordial na PJR, nas oposies sindicais rurais em muitos municpios Brasil afora, nos sindicatos combativos rurais e no apoio s ocupaes de terras aps 1979, onde prestava assessoria jurdica e poltica, resultando posteriormente nos Congressos e na criao do MST nos anos 1983, 1984 e 1985. Em 1987, por exemplo, a CPT do Paran teve como objetivo geral servir os trabalhadores rurais 30, capacitandoos, para a construo da sociedade socialista, ligando mstica e luta, interligando lutas e apoios e unindo campo e cidade. Para concretizar seu objetivo, elegeu trs prioridades: 1) sindicalismo: trabalho de base, reforma agrria e Movimento Sem Terra; 2) Construo do poder popular participao poltica e 3) Formao bblica 31. O MST, historicamente, nunca ficou fora dosConsiderava-se trabalhadores rurais os pequenos agricultores e os assentados do MST. Anotaes pessoais na agenda, poca em que este autor foi Assessor Educacional da CPT/PR 1985-1990. 5131 30

planejamentos da CPT. A Comisso Pastoral da Terra no s contribuiu com o surgimento do MST, como ainda hoje o tem como uma de suas prioridades. H presena de membros da equipe, coordenao ou de advogados nas negociaes, nas prises, nas denncias de agresses, na mdia e nos processos ou aes judiciais. Observamos que a CPT, alm de assessorar o MST:Assessora sindicatos, associaes de produtores, movimentos sociais e outras iniciativas populares. [...] O ponto de partida de nossa ao a experincia dos camponeses e trabalhadores rurais, sua cultura, sua f e sua capacidade de assumir sua prpria histria. A CPT procura unir o conhecimento popular e a anlise cientfica da realidade (CONFLITOS NO CAMPO BRASIL 1996 [parte 1-4], www.cnbb.org.br/estudos/conflca1.html;).

Na comemorao dos vinte anos da CPT, Hebert de Souza (Betinho) diz que a expresso mais importante, nos ltimos anos, o surgimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e que a CPT teve papel fundamental em todos os acontecimentos que culminaram com seu surgimento. Reconhece Betinho que,[...] as denncias de trabalho escravo, das condies de trabalho a que so submetidas as crianas no campo, de assassinato de lideranas e de grilagem de terras, ganharam, a partir da atuao da CPT, visibilidade e dimenso internacionais (www.cptnac.com.br/betinho.htm). Destaca Betinho que com a criao da CPT e o [...] surgimento do MST a questo da terra rompeu as cercas do campo. Ocupou espao pblico. E este no um ganho pequeno. mexer com a viso de mundo predominante na sociedade, com a cultura, com valores sociais arraigados (Ibidem).

52

A CPT, atravs de seus agentes espalhados por todos os estados, teve fundamental atuao nos conflitos de terra, no surgimento do MST e investia na formao de lideranas. Com sua metodologia de ao, nem sempre havia apenas uma pessoa em evidncia e talvez por esse motivo, confundia policiais, investigadores, estado, justia e latifundirios, sobre quem deviam perseguir, ameaar ou prender. As pessoas que mais se destacavam at meados da dcada de 80 eram os agentes da CPT que no eram parte do MST mas que davam apoio, formao e assessoria jurdica e poltica, no s ao MST, como tambm aos sindicatos combativos, oposies sindicais, pastorais rurais e pastorais da juventude rural, em diferentes regies ou Dioceses. As aes foram motivos de muitas perseguies, ameaas e assassinatos de membros da CPT e de sindicatos na dcada de 80 e incio da dcada de 90 32. As perseguies eram claras aos membros da CPT, e a organizao tinha cincia de que o seu papel era fomentar e investir na formao de lideranas de pequenos agricultores, sem-terra, ribeirinhos, atingidos por barragens, despejados, bias-fria, canavieiros, dirigentes sindicais rurais 33, entre outros, para que em poucos anos tivessem lideranas preparadas, capazes e organizadas para caminharem com independncia, em vrias frentes de trabalho e ao.

Consultar: Comisso Pastoral da Terra nas revistas Conflitos no Campo; Campanha Nacional pela Reforma Agrria atravs do livro Violncia no campo; Pe. Josimo: A velha violncia da nova repblica; Assassinatos no campo crime e impunidade, entre outros. Ler site: www.cptnac.com.br/ e documentos Conflitos no Campo aps 1985. 5333

32

A partir do final da dcada de 80 as perseguies deixam de serem diretamente CPT e aos dirigentes sindicais rurais, para tambm serem, em maior intensidade, s lideranas do MST, conforme constantes publicaes34 e noticirios da imprensa escrita e televisiva nos ltimos anos. Alm das perseguies, as aes ou reaes voltadas ao MST so distintas nos diferentes setores, entidades, instituies e organizaes sociais. H os simpticos que apoiam e h os contra. Alguns radicalmente contra e outros radicalmente a favor. Nos rgos governamentais municipal, estadual ou federal, h semelhantes manifestaes. H pessoas simpticas que apoiam discretamente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra mas no opinam para evitarem perseguies polticas. Em sntese, na dcada de 80, confundia-se MST com CPT e, muitas vezes com PT, isto porque a CPT era suporte ao MST. Nos finais dos anos 80, o MST passa a ter sua prpria estrutura, caminhando com independncia, com sua prpria coordenao local, regional, estadual e nacional. Atualmente, nenhuma das entidades comentadas, confundem-se entre si. No passado prximo, as lideranas eram lideranas em duas ou mais entidades ou movimentos. Hoje, cada entidade tem suas lideranas, apoios e independncias polticas, econmicas e estruturais. Apoio social ao MST Os comportamentos das pessoas ou entidades soEntre as fontes consultadas, citamos: A ofensiva da direita no campo; o livro: Assassinatos no campo crime e impunidade e Conflito no Araguaia pees e posseiros contra a grande empresa. 5434

diferenciados em relao ao apoio ao MST. Algumas tm conceitos prprios, mas preferem no coment-los. Outras assumem abertamente posies favorveis, enquanto outras se dizem contra justificando suas posies com base nas informaes da mdia. Parte da sociedade organizada presta apoio e solidariedade e, publicamente, assume o que pensa. So Universidades que desenvolvem trabalhos, pesquisas e projetos para ou com o MST; so Sindicatos rurais e urbanos das mais diferentes categorias, setores das Igrejas e Associaes que apiam, muitas vezes at trabalhando em campanhas e visitas s ocupaes, assentamentos e marchas. Elizeu Arajo Silva, membro da direo do SINDAEN Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas de gua, Esgoto e Saneamento de Maring e Regio Noroeste do Paran e Aparecido Faustino da direo do STEEM Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas de Energia Eltrica de Maring e Regio Noroeste do Paran , colocam que importante o apoio ao MST por que:[...] no momento a nica luta contra o projeto neoliberal no Brasil tem sido [...] do MST [...]. Por este motivo no nos resta outra alternativa se no a de apoiar, no que for possvel e mais, unir-se a estes heris nacionais que lutam por dias melhores para todos. O apoio parte de pessoas conscientes que buscam uma sociedade mais justa e fraterna, de pessoas que acreditam na transformao atravs do trabalho 35.

A advogada Teresa Cofr 36, da RENAAP Rede Nacional Autnoma de Advogados Populares considera35 36

Questionrio respondido em 24 de novembro de 1999.

Teresa Cofr, chilena naturalizada brasileira e advogada da RENAAP. 55

importante o apoio ao MST porque[...] o nico movimento organizado neste pas que tem uma viso clara a respeito da nossa realidade e objetivos definidos para mudar o quadro de excluso social existente, e, o mais importante, est realizando uma luta de massas 37, com as bases, para atingir as metas propostas. No fica s nas discusses tericas como fazem os partidos polticos, inclusive os de esquerda.

Para Cofr, uma parte da sociedade no apoia o MST porque [...] tm interesses particulares, como os ruralistas e alguns polticos [...]. Quando a populao, contra por ignorncia, porque tem sido manipulada pela imprensa e, principalmente, pela educao em geral, que cria seres sem o [...] mnimo senso crtico [...] 38. Na mesma linha de pensamento o advogado Alberto Abrao Vagner da Rocha, membro da coordenao do MNDH Movimento Nacional de Direitos Humanos em Maring e Sul do Brasil, diz que apoiar o MST significa compreender o estratgico instrumento que representa a reforma agrria para o pas e entende que parte da sociedade no apoia por estar desinformada e porque quase toda notcia sobre o MST, de forma explcita ou subliminar, qualifica-o de marginal, relacionando a marginalidade apresentada ao regime comunista 39 queDurante a pesquisa, observamos que parte dos assentados questiona a direo do MST em Querncia do Norte por no fazerem trabalho de base e usarem os trabalhadores como massa. Os assentados no questionam o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e sim a forma como est se dando a direo do Movimento. Pelo contrrio, afirmam que sem o Movimento no h Reforma Agrria.38 39 37

Questionrio respondido em dezembro de 1999. Questionrio respondido em dezembro de 1999. 56

produz nas pessoas o medo e o temor ao que diferente do regime poltico em vigncia. A mdia e o MST Observando os despejos ocorridos nos anos de 1999 e 2000, constatamos que os jornalistas, reprteres e redatores agem sentimentalmente dependendo do momento e da ao ou pela presso da parte mais forte. Um exemplo foi o impedimento imprensa em documentar os despejos ocorridos em maio de 1999 no Noroeste do Paran. Os jornalistas revoltaram-se e as matrias veiculadas questionavam o Estado e as estratgias da polcia em impedi-los de acompanhar as aes. A revolta foi resposta s aes do Governo do Estado do Paran pelo fato de terem sido impedidos de documentarem os fatos e venderem notcias. O ocorrido revoltou os jornalistas de O Estado do Paran, O Dirio do Norte do Paran, Folha do Paran/Folha de Londrina, entre outros, nas matrias veiculadas no dia 08 de maio de 1999 que, na maioria, passaram a duvidar e questionar as informaes oficiais: Sem testemunhas, PM faz desocupaes; Mil policiais militares atuaram na megaoperao; Imprensa foi impedida de registrar a ao contra os sem-terra; Governo e PM anunciam que desocupao foi pacfica; MST diz que houve violncia e h desaparecidos; Querncia do Norte ficou sitiada por doze horas; Secretrio da Segurana afirma que operao vai continuar (O ESTADO DO PARAN, p. 1). Jornalistas condenam proibio de acesso polcia que pretende realizar aes pacficas no precisa temer a presena da imprensa (Ibidem).57

Pisou na bola: O secretrio de Segurana Pblica do Paran, Cndido Manoel Martins de Oliveira, bacharel em Direito, proibiu a imprensa de cobrir a megaoperao policial-militar de cumprimento dos mandados judiciais de reintegrao de posse de fazendas ocupadas por integrantes do MST. Errou! Usou uma autoridade que no tem. Imitou os ditadores de outrora e os poucos governantes truculentos que ainda existem no mundo. Ao impedir que reprteres acompanhassem o despejo, o secretrio renunciou ao privilgio de contar com importantes testemunhas do despejo dos invasores. Agora, a imprensa ter de se basear nas informaes dos despejados, das lideranas do MST. Eles dizem que houve violncia, truculncia desmedida, seqestro e prises ilegais. Que a polcia entrou em ao na madrugada, no esperou o dia amanhecer. Que vrias pessoas esto desaparecidas, que houve saque nos acampamentos. E agora, bacharel? a palavra deles contra a do governo. Infelizmente para a verdade, a imprensa no tem o que dizer, pois foi proibida de ver o que de fato aconteceu. Os reprteres de Kosovo tm mais liberdade para o exerccio da profisso do que os jornalistas do Paran, que sequer puderam entrar na cidade de Querncia do Norte na madrugada de ontem. Viva Kosovo! (Ibidem, p. 3).

Matrias veiculadas pela imprensa, sobretudo a televisiva, tm poderes de mobilizar a opinio pblica, ainda mais quando divulgadas vrias vezes seguidas. Da mesma forma os jornalistas e reprteres no tm apresentado imparcialidade na divulgao ou retratao de muitos fatos que envolvem conflitos de reintegraes de posse. Tais alteraes e mudanas ainda no nos esto claras se resultado da mudana de mentalidade, por serem jornalistas novos; se influncia do ensino atual das universidades; se influncia das novas leituras conjunturais58

influenciadas pelo mundo globalizado ou se; pelo fato de serem trabalhadores, deixam-se influenciar pelos acontecimentos sociais por mais que queiram demonstrar imparcialidade. A maioria dos jornalistas que fazem as coberturas no so os mesmos que autorizam a publicao ou dirigem a imprensa. Entre o escrever a matria e a publicao final h filtraes, h representantes diretos da imprensa que autorizam ou no a ntegra ou as alteraes na matria escrita ou falada. As leituras feitas e a pesquisa de campo tm-nos levado a entender que imprensa, o que interessa a venda das informaes, independente a quem ela favorea. Observamos, finalmente, que o momento em que a imprensa mais vende quando uma matria causa sensao e, para causar sensao, retrata situaes que envolvam humilhao, poder, morte, priso, fome, doena, catstrofe, seqestro... que, nos momentos de despejos so intensificados com as prticas de represso.

59

60

CAPTULO II O MUNDO DOS ASSENTADOS

Foto: Acampado de Amapor. Acampamento na beira da Rodovia entre Amapor e Paranava / Pr. 1987

61

62

O MUNDO DOS ASSENTADOS

Pontal do Tigre Analisaremos neste captulo o mundo dos assentados, ou seja, as experincias e histrias de vida dos trabalhadores rurais do Assentamento Pontal do Tigre, localizado no municpio de Querncia do Norte/PR, a 230 km de Maring e 630 km de Curitiba, ao lado do Rio Paran, divisa com Mato Grosso do Sul. Tratando-se deste tema, lembramo-nos de Husserl quando diz que,O mundo a soma dos objetos de uma experincia possvel e de um conhecimento possvel por experincia, a soma dos objetos que, com o fundamento da experincia atual [...], podem ser conhecidos no quadro de um pensamento terico correto (HUSSERL, In: RUSS, 1994 : 192).

A rea do assentamento sobre o qual nos debruaremos a partir daqui, de 10.800 (dez mil e oitocentos) hectares pertenceu ao Grupo Atalla e foi ocupada a partir de maro de 1988. A imisso 40 de posse ocorreu em 1995, sete anos aps a ocupao e at o ano de 2000, os assentados no haviam recebido as escrituras definitivas de propriedade da terra. Atualmente encontramse assentadas por volta de 336 famlias, provenientes dos municpios de Querncia do Norte (Grupo ADECOM), Amapor, Reserva, Castro, Capanema e Tibagi,Todas as vezes que tratarmos de posse, neste livro, utilizaremos o termo imisso, visto significar investir em, mandar para dentro, fazer entrar (Antn.: de emisso). Ver Aurlio e Koogan Larrousse. 6340

procedentes das regies noroeste, centro, oeste e sudoeste do Estado do Paran. A histria dos assentados tem incio em 1983, quando um dos grupos sub-arrendou parte das terras do Pontal para plantio de algodo. Os demais grupos iniciaram suas trajetrias aps 1984 em lugares e regies diferentes no Paran. A deciso de ocuparem e permanecerem na rea, independentemente das ameaas e dos conflitos foi conseqncia das dificuldades de sobrevivncia onde residiam e trabalhavam, colonos, bias-fria, operrios nas cidades ou nos acampamentos, ocupaes ou assentamentos:Falar verdade pro senhor, quando trabalhava de bia-fria, tinha dia que a pessoa no tinha nada o que comer. No vou mentir. Antes deu vim pra c, no sei que era de minha vida. Depois que eu vim pra c, minha vida transformou em outra vida. Agora aqui, graas a Deus, nunca faltou po pra mim, pros meus filhos. Sempre a gente tem no terreiro, a gente tem um frango, a gente tem um porco no chiqueiro, a gente tem uma vaca de leite, tem um animal, tem carrinho a. Graas a Deus entremos aqui num barraco de lona [...], a gente tem uma casinha [...] e t a a vida que eu pedi pra Deus 41.

O passado de um povo Refletir o passado, buscando no ba da conscincia o que lembravam de suas histrias foi, para os assentados, um exerccio que demandou horas de conversas. O dilogo possibilitou o resgate de experincias de vida e recordaes de informaes e acontecimentos, contribuindo nas explicaes do que ocorreu historicamente e de como se41

Assentada Dolores Entrevista: 19/02/2000. 64

refletem no presente. Alguns observaram que no gostariam de repetir ou relembrar algumas experincias por ser doloroso. Ao mesmo tempo percebiam que tudo o que enfrentaram e aprenderam foi importante e positivo. Foram unnimes em afirmar que j esqueceram parte das experincias e dos acontecimentos como: datas, nome de pessoas, locais, quantidade, viagens... e se arrependem de no terem escrito a histria dos acontecimentos e as experincias pessoais. O assentado Paschoal disse que so muitos os momentos tristes e por isso no compensa lembr-los.[...] A gente tem que pedir a Deus que esquea. No adianta comentar e passar por cima, porque momentos tristes a gente sempre tem. Porque a gente passa aquele dia mal, amargurado e preocupao tal. Mais pedindo a Deus sorte at que vence. O importante isso 42.

Algumas experincias foram trabalhadores rurais assentados: tenses, medo e incertezas; fome e doaes de alimentos;

marcantes

nos

ocupaes, negociaes e despejos;

prises de lideranas e priso de policiais pelos sem-terra; imisso de posse da terra em 22/10/1995, entre outras. A expresso de Iracema traduz o que mais marcou os assentados que chegaram em 1988 na rea:[...] Foi muito difcil. Passamos por muitas dificuldades [...]. Perseguio da polcia, ameaas de despejo. Quantas42

Assentado Paschoal Entrevista: 20/02/2000. 65

vezes ns foi ameaado a ser despejado aqui da rea [...] 43.

Os gestos apresentados pelos assentados durante a pesquisa indicam que as experincias de resistncia foram compensadoras. Compreenderemos doravante a histria dos diferentes grupos de assentados: experincias de ocupaes, organizao, produo e comercializao, o mundo em evoluo, a educao formal e informal, as experincias de negociaes, despejos, prises e perseguies e o papel da mulher. No ltimo captulo, analisaremos o desenvolvimento da conscincia dos assentados. A ocupao

Foto: Elias Brando. Querncia do Norte / PR. 1999.

43

Assentada Iracema Entrevista: 13/02/2000. 66

Pelo que observamos, no decorrer de nossa pesquisa, a ocupao a ao de preencher um espao ocioso que no est cumprindo sua funo social e poltica, que no est proporcionando bem estar coletividade e sim a indivduos particulares em detrimento de um nmero maior de indivduos social-poltico-econmico e culturalmente necessitados. A participao nas ocupaes sobretudo da rea Pontal do Tigre foi conseqncia da falta de trabalho, da falta de perspectiva de moradia, da incerteza do futuro e da possibilidade de terem sua prpria terra. O impulso maior foi caracterizado pelo desemprego, pelo sofrimento em trabalhar de bia-fria, pela substituio do posseiro, meeiro e diarista pela mquina, pela transformao de grandes reas de plantios por pastagens, entre outras:A gente no tinha trabalho fixo. A gente era agricultor e se sente desenraizado enquanto no trabalha na lavoura. L a gente ficou trabalhando de bia-fria, enfrentava uma vida muito difcil, ento foi a que surgiu aquelas manifestao em 85. Pessoal comeou fazer manifesto [...] para o pessoal se acampar e, quando a gente ouviu falar que lutar, se acampar para conseguir um pedao de terra, ento a gente ficou naquele desejo de ter um pedao de terra para trabalhar, porque era muito triste quando amanhecia o dia e fazia a bia e ficava em uma esquina da rua esperando o caminho passar pra levar, e todos passavam, e via que no tinha servio. A gente via que os homens voltava pra casa todo triste [...]. A gente passava uma vida muito difcil, a o pessoal resolveu tambm a se acampar para ver se conseguia um pedao de terra 44. Comecei a arrendar uns pedao de terra com o pai [...] e tinha aquilo na cabea: no, tenho que sair um dia pra44

Assentada Iracema Entrevista: 13/02/2000. 67

melhor [...]. A roa de terra no estava dando mais direito [...]. A apareceu a mquina [...] que vai mais ligeiro e plantar com maquinrio d muito mais produo [...]. S sobrava onde tinha pedra, onde tinha pirambeira, assim, que trator no ia l [...] 45.

Para o assentado Wilson, tais transformaes estruturais conduziam as famlias a duas alternativas, ir [...] embora pra So Paulo, Campinas, Rio [...] ou ocupar terra, e:Um dia saiu uma ocupao de terra, a primeira ocupao que deu foi na fazenda Pinheiro, os primeiros que se acamparam levaram um pau da bexiga. Foram preso [...], pegaram a famlia, [...] levaram [...] os homens aqui, levaram as mulheres l no sei aonde [...] 46.

Muitas famlias no imaginavam o que era nem como seria uma ocupao. Aps chegarem no local da ocupao que tomavam cincia do que era, da vida que levariam e das necessidades vigentes (falta de mantimentos, vida em barracos, fome, doenas...). Apenas os grupos de Amapor, Reserva e Castro tinham experincias com ocupaes, sendo para eles normal realizarem, no s a ocupao do Pontal, como tambm outras ocupaes e enfrentarem dificuldades. Na dcada de 80, antes de os trabalhadores sem terra realizarem uma ocupao, o Movimento realizava trabalhos de base, reunies nas periferias das cidades e nas vilas, atravs de grupos de estudo, preparando as pessoas para ocupaes, acampamento, despejo, perseguio, resistncia, assentamento, cooperativa. Mesmo com estes trabalhos educativos, algumas famlias45 46

Assentado Wilson Entrevista: 20/02 e 11/03/2000. Ibidem. 68

desistiam do Movimento. Disse Cludio que o povo comea a desistir desde o primeiro dia 47. Neste incio de milnio, estes trabalhos preparatrios no so mais uma prtica. Primeiro se ocupa, depois realiza-se a preparao. A metodologia utilizada na dcada de 80, era fortalecida pela mstica que dava suporte resistncia, atravs de um ensaio (celebrao) em preparao ao que poderia acontecer. Atualmente, as pessoas ocupam ou acampam para, posteriormente, serem preparadas resistncia. As msticas atuais, celebradas no Movimento, a representao do que acontece contra os integrantes do Movimento e no mais o porvir, a preparao do poder acontecer. Ocupao, resistncia e mstica, caminham juntos. A ao de ocupao de uma rea muito rpida. Comea pela escolha da rea e local onde erguer o acampamento e, na rea, pela realizao de assemblias permanentes para organizao de comisses de infraestrutura, higiene, sade, negociao, segurana, entre outras necessidades. Os dias que se seguem em um acampamento, so problemticos: fome; dvidas; medo; doenas; presses; ameaas; negociaes; desnimo, desistncias... As experincias pessoais anteriores primeira ocupao e a forma de pensar so fundamentais como estrutura permanncia no Movimento e ao desenvolvimento da conscincia de cada assentado. A noadaptao s novas experincias e vida em grupo significava sair espontaneamente ou ser convidado a sair

47

Assentado Cludio Entrevista: 20/02/2000. 69

para no criar problemas internos. Este processo defendido por Douglas como natural:[...] ocorre assim de algumas pessoas vim de forma despreparado [...]. Mas a tambm a histria mostrou que tem um fator importante, uma espcie de seleo natural 48 que aquelas pessoas que no tm muita determinao, no t bem convencida que isso mesmo que quer, uma parcela dessa desiste e uma grande maioria permanece [...] 49.

Se antes quem decidia na famlia era o homem ou a mulher, aps ocuparem/acamparem, quem passa a decidir a vida so as comisses ou a coordenao geral da ocupao ou Movimento. Para compreendermos melhor este processo visitamos alguns acampamentos e ocupaes e observamos que esta metodologia de ao sofre alterao aps o assentamento das famlias. Os assentados so mais livres que os acampados 50, significando que quando viveram em acampamentos no eram livres como so atualmente. Se antes de entrarem no Movimento no existiam regras nas famlias e se existiam no eram obedecidas ou seguidas, na ocupao/acampamento, obedecer as regras o meio de continuarem e viverem no Movimento. Se antes da insero no MST existiam desejos e pensamentos prprios e familiares, vontades e interesses particulares, na ocupao/acampamento o que prevalece a ideologia, a vontade e o interesse do coletivo e do Movimento.48

A seleo natural pode ser a desistncia espontnea como a expulso do grupo, acampamento ou Movimento. Assentado Douglas Entrevista: 11/03/2000.

49 50

A diferena que os acampados necessitam ficar vigilantes na rea ocupada para um eventual despejo pelo Estado ou ataque das milcias armadas dos fazendeiros. 70

No processo de ocupao o sonho, por questes de segurana, passa a ser coletivo. O individualismo pode problematizar o grupo, o coletivo e comprometer o objetivo da ocupao, acampamento e Movimento. A preocupao com a vida grupal traz a substituio do eu pelo ns: nosso sonho, nosso objetivo, nosso acampamento, nosso assentamento, nossa luta, nosso grupo, nossa cooperativa, nosso ncleo, nossa associao, nosso centro, nossa escola... comum ouvirmos nos assentamentos as expresses: temos, fazemos, fizemos, queremos, conquistamos, marchamos... Muitos assentados entraram no Movimento sem conhecer as normas e s passaram a compreender o que e como funciona a vida no Movimento aps adentrarem-no, vivenciando variadas situaes. A vivncia e a convivncia com a diversidade levaram muitas famlias a desistirem, uma vez que as pessoas no estavam preparadas social e politicamente para uma vida coletiva e, vrias situaes marcaram o cotidiano dos assentados, como: boatos de despejo, tenso, medo e conflitos internos entre grupos ou entre diferentes grupos. Para os assentados, diante da conjuntura social e econmica que as famlias viviam nas cidades, as ocupaes, entre elas a Pontal do Tigre, foram as nicas formas de presso poltica e de concretizao da Reforma Agrria. Quase todos os assentados defendem que sem ocupar e resistir, no h Reforma Agrria.Sem as ocupaes no, porque se ns espera pro governo fazer h, acho que nunca sai. Se o povo fica ali esperando pra ele fazer, acho que no. Acho que tem que

71

esforcejar. O povo tem que ir pra luta [...] 51. A reforma agrria do governo na televiso, no no cho no 52.

Os assentados tiveram experincias diversificadas quando viveram nas periferias das cidades trabalhando como operrios, biscateiros, ou bias-frias. Pensavam voltar a ter sua prpria terra e justificam a insero no Movimento, as ocupaes ou acampamentos como resultado da conjuntura e da estrutura social, resultado do desemprego nas cidades. Descrevem Wilson e Douglas que:[...] a veio aquele negcio, o corte, desemprego em 81 para 82 [...], mas no foi s eu. Foi geralzo. Naquela poca foi tudo pro ar, uns saiu [...] foi embora pra So Paulo, Campinas, Rio [...]. Eu sei que eu voltei pra lavoura [...] 53. As ocupaes [...] sempre tem manifestado em maior nmero e quantidade [...] na regio onde tem por um lado muita terra concentrada, muita fazenda e por um lado, pequena cidade com muitas pessoas que no tm mais opo, no tm qualificao pra arrumar emprego. As cidades j to assim: cada vez aumentando o nmero de desempregado, problema de moradia [...]. Nossa regio at se destacou nisso, muitas ocupaes porque o povo j no t vendo outras sadas. Ir pra cidade [...] j no v outra lgica a no ser v mais um desempregado, mais um assim com problema da fome, problema de moradia e a reforma agrria uma resposta concreta [...] mesmo que a imprensa, o tempo todo, ficou dando pau, ficou falando do Movimento Sem Terra [...] 54.

Diante da situao de inconformidade com as condies de sobrevivncia em que estavam organizados51 52 53 54

Assentada Margarida Entrevista: 27/02/2000. Assentado Hilrio Entrevista: 27/02/2000. Assentado Wilson Entrevista: 20/02/ e 11/03/2000. Assentado Douglas Entrevista: 11/03/2000. 72

em acampamentos, associao ou assentamento e na perspectiva da Fazenda 29, no Pontal do Tigre, pertencente ao Grupo Atalla ser desapropriada para fins de reforma agrria, uma vez que estava em dbito com o Banco do Estado do Paran Banestado , decidiram arriscar e iniciaram a ocupao em 03 de maro de 1988 (ver quadro 1). QUADRO 1PROCEDNCIA DOS GRUPOSGrupoADECOM Castro Amapor Reserva Capanema Tibagi

Ano Organizado1983 1984 1985 1985 1985/1986 1992

Municpio ProcedenteQuerncia do Norte Castro, Ilhus e Outros Amapor, Terra Rica Reserva e outros Capanema Tibagi e outros

Famlias86 30/33 86 70 65 08

Ao SituaoSubArrendamento Assentamento Bias-frias Assentamento Associao Assentamento

Ano ocupao1988 1988 1988 1988 1988 1994

Quadro demonstrativo da histria e procedncia dos diferentes grupos do Pontal do Tigre.

Fonte: Entrevistas realizadas juntos aos assentados do Pontal do Tigre em Querncia do Norte/PR, nos anos de 1999 e 2000.

O perodo que antecedeu desapropriao da rea Pontal do Tigre foi de altos e baixos. Foram momentos de alerta, ameaas de despejos, desnimo por parte dos acampados, dvidas sobre a imisso de posse, somados seca, falta de comida, ao gado da fazenda intencionalmente solto para destruir as plantaes, alm de prises de trabalhadores e lideranas. A superao destes desafios possibilitou a subsistncia das famlias no local. Uma das prises, em 1989, de quatro integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, no Pontal do Tigre, sendo trs deles lideranas: um de Reserva, uma73

de Amapor e um de Castro, desencadeou uma reao imediata dos sem-terra acampados na rea, ocupando a Delegacia de Polcia de Querncia do Norte, prendendo os qua