Histórias da Literatura em Cursos de Literatura Brasileira para o Ensino Médio

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Uma avaliação dos manuais de ensino de literatura para o Ensino Médio utilizados nas escolas privadas de uma pequena cidade gaucha

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AS HISTÓRIAS DA LITERATURA NARRADAS EMCURSOS DE LITERATURA BRASILEIRA PARA O ENSINO MÉDIO1

Valéria Moura Venturella2

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Brasil, 1999), o

ensino das arte – que inclui o ensino da literatura – tem por objetivo levar os educandos a

“apropriarem-se de saberes culturais e estéticos inseridos nas práticas de produção e

apreciação artísticas, fundamentais para a formação e o desempenho social do cidadão” (p.

46). Segundo esse documento, tanto a experiência sensível quanto a inventiva são

fundamentais para o exercício pleno da cidadania e o desenvolvimento da identidade dos

estudantes.

Ao mesmo tempo que o texto do Ministério da Educação coloca a necessidade e a

relevância da educação artística, ele denuncia o descaso com que essa área do

conhecimento tem tradicionalmente sido tratado pelos organizadores dos currículos

escolares. Para compensar esse “descaso” (op. cit., p. 46) e auxiliar no enfrentamento e na

superação de lacunas tanto teóricas quanto metodológicas, o texto coloca a urgência da

realização de estudos que possam embasar “mudanças profundas nos valores, conceitos e

práticas que sustentem a presença da Arte, de suas linguagens, de seus modos de

conhecer contemporâneos em nossas escolas” (op. cit., p. 48).

Os Parâmetros Curriculares Nacionais, assim, afirmam tanto a importância do

aprendizado de artes – campo no qual a literatura tem especial relevância, considerando

seu caráter essencialmente transdisciplinar, capaz de ilustrar a cultura, o conhecimento e a

identidade humanos de modo tão integrado – quanto a necessidade de uma preparação

teórica e metodológica por parte dos educadores, de modo trazê-lo da posição secundária

que hoje esse aprendizado ocupa no ensino brasileiro para uma prática contextualizada,

sensibilizadora e humanizadora.

Os questionamentos que podemos nos fazer após a leitura dos Parâmetros passam

pela relação existente hoje entre as recomendações do documento e a prática exercida nas

escolas. Como a Literatura Brasileira é abordada em uma típica instituição privada de

Ensino Médio de nosso país? Quais são os objetivos desse trabalho? Quais são as histórias

contadas pelos professores? De que modo essas narrativas são construídas? Em que

recursos os educadores se apóiam e que materiais recomendam a seus estudantes?

1 Texto produzido como pré-requisito para a aprovação na disciplina Tópicos da História da Literatura, ministrada pela Profa. Dra. Maria Eunice Moreira no Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – de agosto a dezembro de 2006.

2 Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre; professora dos cursos de Pedagogia e Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Campus Uruguaiana.

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Sensibilizada pela urgência do apelo colocado pelo documento e instigada por essas

questões, tomei o desafio de investigar as práticas realizadas nas aulas de literatura na

cidade onde hoje resido e trabalho – Uruguaiana, no Rio Grande do Sul – e realizei

entrevistas com as professoras de Literatura Brasileira que atuam nas três instituições

privadas de Ensino Médio da cidade de para melhor conhecer e compreender seu trabalho.

Quando entrevistadas, as três professoras, embora afirmem utilizar também filmes,

programas de televisão, páginas da world wide web e outros meios, disseram lançar mão de

manuais de Literatura Brasileira, os chamados “cursos de literatura”, em geral volumes

únicos, “narrativas mais extensas do processo literário – as histórias literárias em sentido

estrito – com propósitos didáticos” (SOUZA, 2003) para estruturarem seus cursos e

planejarem suas aulas.

O primeiro passo do trabalho foi a realização de leituras cuidadosas verticais de cada

um dos volumes, buscando neles informações e dados sobre seus objetivos, sua

abrangência, seu público-alvo, os conceitos e noções-chave que lhe dão fundamentos, e

também tentando identificar o paradigma que estrutura sua forma de narrar a história da

Literatura Brasileira. Após essa leitura vertical, realizei uma literatura horizontal comparativa,

buscando pontos de coincidência e de divergência entre as obras.

O próximo passo foi interpretar as informações contidas ou sustentadas nos

materiais à luz dos textos estudados e das discussões realizados na disciplina de Tópicos

da História da Literatura, ministrada pela professora Maria Eunice Moreira, no segundo

semestre letivo de 2006. Os textos que embasaram este trabalho foram então História da

Literatura e da Narração, de David Perkins (1999), uma referência teórica alinhada à

historiografia mais tradicional, além de textos representativos das novas teorias da

historiografia, mais próximos à teoria da complexidade e ao construtivismo radical: Sobre a

Escrita de Histórias da Literatura, de Siegfried J. Schmidt (1996), Voracidade e Velocidade:

Historiografia Literária sob o Signo da Contingência, de Heidrum Krieger Olinto (2003), e

História da Literatura: Fragmento de uma Totalidade Desaparecida? de Hans Ulrich

Gumbrecht (1996).

O objetivo deste estudo, então, foi identificar e criticar, à luz de teorias

contemporâneas da historiografia literária, o discurso historiográfico explícito e implícito

contido nos materiais adotados e indicados – e, por isso, legitimados – pelas professoras

consultadas, identificando a posição de onde os autores partem, seus objetivos declarados e

também os tácitos, as inferências que assumem sobre o público a quem se dirigem, os

conceitos e as funções de literatura apresentados, a abrangência a que os estudos se

propõem, as obras incluídas em cada volume e os critérios utilizados para essas inclusões,

os modos como as Histórias da Literatura são organizada e os paradigmas que embasam

essas construções, e também as verdades ou plausibilidades assumidas pelos textos.

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Embora este estudo se ocupe de uma gama restrita de instituições de ensino, de

professoras e de manuais, acredito que seus resultados podem nos auxiliar a assumir

alguns pontos de referência sobre a prática de ensino de Literatura Brasileira, os propósitos

e as preocupações que movem os professores, e os resultados desse trabalho em termos

da formação de nossos leitores. Esses pontos de referência, por sua vez, podem contribuir

para que continuemos pensando e repensando a formação de professores de Literatura, de

modo a tentar nos aproximar do ideal colocado nos Parâmetros Curriculares Nacionais.

As professoras entrevistadas afirmaram se apoiar em um ou dois manuais para a

preparação de seus cursos e aulas de Literatura Brasileira. Quando questionadas sobre a

utilidades desses materiais, todas mencionaram a praticidade e a possibilidade de

“encontrar todas as informações em um único lugar”, como colocado pela segunda

professora consultada. Os quatro livros mencionados pelas professoras foram os seguintes:

Literatura Brasileira, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães (1998),

Literatura Brasileira, de José de Nicola (1999), Literatura Brasileira, de Carlos Emílio Faraco

e Francisco Marto Moura (1999) e Curso de Literatura Brasileira, de Sergius Gonzaga

(2004).

Os quatro autores se apresentam aos leitores como professores. Embora também

ofereçam uma breve descrição de sua titulação e de seu envolvimento em outras atividades

ligadas ao ensino, o lugar de professor – de cursos preparatórios para o vestibular, da rede

regular de ensino médio ou de universidades – é onde eles se colocam em relação a seu

público leitor, em uma clara tentativa de identificação com as expectativas e as

necessidades desse público.

Os livros apresentam capas coloridas e atraentes e contêm inúmeras ilustrações de

apoio, tais como gravuras e fotos de autores, de personagens e de lugares relevantes para

a história da literatura sendo narrada, além de fac-símiles de capas e de conteúdos das

edições originais a que os textos se referem. Essas ilustrações, segundo as professoras,

atraem os alunos, que “vivem muito na cultura visual”, como afirma a terceira professora

entrevistada, além de facilitar a compreensão do texto e localizar o aluno no tempo e no

espaço daquela obra.

No livro de autoria de Cereja e Magalhães (1998), cada unidade é aberta com uma

fotografia de época ou com a reprodução de uma obra de artes plásticas ilustrativa do

período literário a ser estudado, além de um minitexto introdutório. A presença desses

complementos aos textos didáticos em si revela a intenção didática dos materiais.

Todos os materiais mencionados são organizados em volumes únicos, contando com

mais de 450 páginas, o que confirma a preferência das professoras por manuais que

reúnam todas as informações que elas consideram relevantes em um único manuscrito.

Essa apresentação em bloco único também confirma o objetivo desses textos, que é

o de apresentar ao leitor um panorama total e geral da Literatura Brasileira. Os textos todos

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pretendem ser um curso completo, e ambicionam a totalidade da História da Literatura

Brasileira, desde suas origens até o final do século XX. Um deles, o manual de Faraco e

Moura (1999), apresenta ainda um capítulo sobre a História da Literatura Portuguesa, desde

seus primórdios até os dias atuais.

Apesar dessa aspiração de abrangente, todos os autores realizam recortes, ou seja,

fazem escolhas e omissões necessárias dada a limitação imposta pela necessidade de

apresentar toda a história da literatura em um único volume. Faraco e Moura (1999), por

exemplo, não incluem o drama e nenhuma das obras aborda as tradições orais dos povos

nativos do Brasil. Mas, apesar desses recortes se tornarem aparentes em uma leitura mais

atenta, nenhum dos autores os justifica, como se não os tivessem feito, ou como se eles

fossem naturalmente dados em uma narrativa da história da literatura. Segundo Gumbrecht

(1996) toda narrativa da história da literatura é um recorte e uma colagem intencionais de

fatos selecionados à luz de crenças e valores do historiador, e não deve ambicionar ser uma

história completa, sob risco de ser sempre falsa.

Por outro lado, esses livros extensos e pesados têm preços muito elevados. Nenhum

deles tem valor inferior a cinqüenta reais, o que dificulta o acesso tanto de estudantes

provenientes de famílias menos favorecidas financeiramente quanto dos próprios

professores da rede pública brasileira, cuja renda é sabidamente baixa.

Os materiais declaradamente se dirigem a estudantes e a professores do ensino

médio. Apenas um deles, o manual de Gonzaga (2004) – afirma estar direcionado também a

estudantes de cursos de Letras.

O objetivo principal – declarado ou não – desses textos é a preparação dos

estudantes de ensino médio para os exames de literatura dos concursos vestibulares, e o

auxílio aos professores em sua tarefa e monitorar a preparação de seus alunos. Essa

preocupação é revelada pela onipresença de exercícios e questões de concursos

vestibulares, com suas respectivas respostas no volume do professor. Todos os manuais

apresentam uma seção de questões de Concursos Vestibulares, seja ao final de cada

capítulo ou unidade, seja no final do volume, seja em um compêndio em separado.

Nenhum dos autores revela a intenção desenvolver o gosto pela leitura, de formar

leitores críticos ou posicionados, ou de oferecer aos estudantes uma experiência de

conhecimento e construção de cidadania e de uma identidade cultural. Apenas um dos

materiais, o de Cereja e Magalhães (1998), revela preocupação com a formação mais ampla

dos leitores, através do conhecimento da cultura brasileira e da condição humana.

As definições de Literatura apresentados por esses materiais vão desde “toda

palavra escrita” (GONZAGA, 2004, p. 7) até a arte da palavra e uma forma especial de

utilizar a linguagem (CEREJA; MAGALHÃES, 1998) passando pelo tratamento poético do

mundo real ou possível (FARACO; MOURA, 1998) e pela reconstrução simbólica da

realidade que usa palavras como seu material (NICOLA, 1999). Em todas as obras, no

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entanto, os autores diferenciam claramente a linguagem literária e linguagem não-literária

em termos de seus aspectos não-utilitários ou utilitários, respectivamente, o que exclui da

classificação de “literário” qualquer obra escrita que tenha uma finalidade além do gozo

estético.

A definição das funções da literatura, pelos autores, é colocada de diferentes modos.

Para Faraco e Moura (1998), a literatura tem como objetivo tanto a catarse quanto a evasão.

Já Cereja e Magalhães (1998) vêem na literatura um instrumento de compreensão da

essência humana e de comunicação e de transmissão de conhecimentos. Nicola (1999)

percebe na literatura uma função de responsabilidade social. Gonzaga, por fim, acredita que

a literatura deve “distrair, comover, promover algum conhecimento” (p. 11).

Sabemos que a definição tanto da literatura quanto de suas funções, sejam

individuais, sejam sociais, é bastante problemática. Há tantas definições para o que é

literatura quanto há correntes nos estudos literários, mas acredito que podemos nos apoiar

na obra fundante de Marisa Lajolo, O que é Literatura (1981) para definir a obra de arte

literária como aquela em que – acima de seu propósito utilitário ou não – a linguagem e suas

relações com o contexto e com o leitor tem papel determinante. Segundo a autora, a

natureza literária de um texto se dá na relação que as palavras estabelecem com o contexto

e com a situação de produção da leitura.

A linguagem parece tornar-se literária quando seu uso instaura um universo, um espaço de interação de subjetividade (autor e leitor) que escapa ao imediatismo, à predictibilidade e ao estereótipo das situações e usos da linguagem que configuram a vida cotidiana. (LAJOLO, 1981:38).

A passagem acima apóia a definição oferecida pelos autores estudados que, cada

um em seus termos, definem a literatura como a arte do uso das palavras.

A respeito das funções da literatura, podemos nos apoiar em Antonio Candido. O

autor de A Literatura e a Formação do Homem (1972) uma grande função para a literatura –

a função humanizadora – que pode ser desmembrada em três funções integradas: a função

psicológica, a função formadora e a função social.

A primeira dessas funções, e a mais rica e enriquecedora, segundo o autor, se deve

à capacidade e à necessidade que todo ser humano tem de fantasiar. Mas, lembra o autor,

as fantasias expressas pela literatura sempre têm base na realidade. E é através de sua

conexão reconhecida pelo leitor com o mundo real que a literatura exerce sua segunda

função, que é a formadora. Embora esse não seja seu objetivo principal, a literatura acaba

atuando como um instrumento educativo, uma vez que “prega” valores e ideologias de uma

realidade imaginada. Já a terceira e última função colocada por Candido se refere à

identificação do leitor e de seu universo experiencial com o que é representado na obra

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literária. Esta função, por ele denominada função social, possibilita ao indivíduo o

reconhecimento da realidade que o cerca quando transposta para o mundo ficcional.

Podemos perceber, com a leitura das obras adotadas pelas professoras, que

nenhum dos autores considera a função humanizadora da literatura por inteiro. Ora a ênfase

recai sobre a função formadora, ora sobre a função social. A função psicológica – talvez

dado o caráter preparatório das obras, é o que recebe a menor ênfase.

Nos textos estudados, a abordagem para o estudo e a descrição da História da

Literatura é isolacionista. Segundo os autores, a literatura faz parte do universo cultural de

um povo, mas estabelece com outras manifestações culturais relações que são apenas

eventuais. Nenhum dos textos apresenta ou sugere a noção de literatura como um

polissistema integrado de manifestações culturais (OLINTO, 2003), em que os diferentes

sistemas se influenciam mutuamente. A exceção a essa forma de abordar a literatura talvez

seja, e apenas em parte, o manual de Cereja e Magalhães (1998), em que o autor afirma

que a literatura participa das transformações da sociedade em contato com outras

manifestações culturais.

A estrutura dos quatro textos eleitos pelas professoras se assemelha. Há, em todos

eles uma breve apresentação do livro seguido de um sumário dos capítulos. Há, a seguir,

um ou dois capítulos introdutórios que apresentam os conceitos-chave de literatura, de estilo

e de período literários, as definições e os critérios utilizados para delimitar os períodos

literários. Os demais capítulos são dedicados a uma exploração mais detalhada de cada um

dos períodos literários. Uma das obras (FARACO, 1998) complementa sua história da

literatura brasileira com um apêndice sobre a História da Literatura Portuguesa em períodos.

O foco de todas as narrativas são os períodos literários. Esses períodos são

apresentados linearmente, em ordem cronológica, do mais distante ao mais recente. É ao

redor dos períodos literários que os demais elementos das narrativas historiográficas são

organizados: os estilos da época e os recursos expressivos de cada estilo (FARACO;

MOURA, 1998), as relações entre a literatura e outras manifestações culturais (CEREJA;

MAGALHÃES, 1998), os principais autores e obras de cada período e o contexto em que

essas obras surgiram (NICOLA, 1999).

Como a abordagem da narrativa está centrada nos períodos literários, as obras e os

autores são sempre localizados temporalmente, mas nem sempre espacialmente. Nessas

obras, o contexto histórico, social, religioso, econômico, político e artístico estão ali

colocados como uma espécie de “pano de fundo”, um fundamento explicativo para o estilo

de cada um dos períodos literários. Por outro lado, as obras e os autores mencionados

também estão ali para ilustrar as características de cada período. É como se os períodos

literários fossem o herói de uma narrativa linear, com início, desenvolvimento e finalização,

como coloca Perkins (1999). Apenas Nicola (1999) foge a essa estrutura, e seu texto utiliza

uma abordagem quase hipertextual em uma tentativa de quebrar a linearidade da narrativa.

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Outro aspecto relevante dessas narrativas é que elas se apresentam, via de regra,

como conclusivas e fechadas. O texto de Faraco e Moura (1999) se estrutura em sub-títulos,

cada um finalizado por uma conclusão. A narrativa de Gonzaga (2004) é permeado por

quadros-síntese, e cada capítulo é finalizado por um resumo. Há muitas verdades

assumidas ao longo de todos os textos, e em nenhum momento os autores se colocam

como tendo as assumido. Tudo ocorre como se essas fossem verdades universais, totais,

perenes. Os autores parecem não estar cientes – ou não querer que os leitores o estejam

de que todo dado apresentado em uma história da literatura é sempre uma interpretação de

recortes feitos na realidade, uma interpretação necessariamente realizada à luz de um

referencial teórico explícito ou implícito que apóiam as escolhas e os arranjos de cada

historiador (SCHMIDT, 1996).

Apenas dois livros – o de Cereja e Magalhães (1998) e o de Gonzaga (2004) –

apresentam indicações de leituras e pesquisas adicionais que os leitores podem realizar

para se aprofundar no período abordado, sugerindo, mesmo que indiretamente, que seus

textos não são completos em si mesmos, e que há abertura para investigações mais

profundas. Os demais procedem como se a leitura daquele material esgotasse o que pode

ser conhecido sobre a literatura daquele período.

A interpretação historiográfica dos textos, seja ela feita vertical ou horizontalmente,

pode nos levar a uma reflexão mais ampla a respeito da concepção de história portada por

cada um dos autores e das repercussões dessa concepção no tipo de narrativa da História

da Literatura Brasileira produzido, referendado pelas professoras e, por conseguinte,

percebido pelos alunos.

Os materiais estudados, e o modo seus conteúdos são organizados, refletem uma

concepção evolucionista da História da Literatura, em que cada momento da história parece

preparar o próximo e se esgotar assim que o anterior lhe abriu espaço. Os autores narram a

história como se o velho devesse deixar de existir para dar lugar ao novo, e como se

diferentes estilos e formas literárias não pudessem coexistir. A única exceção é Faraco e

Moura (1999), que apresentam no final de cada capítulo uma seção denominada

“Permanência”, que traz textos contemporâneos que usam o estilo da época estudada, o

que rompe com a periodização linear e estanque.

O tom dos textos é, acima de tudo, didático. A linguagem de cada um dos autores é

técnica, quase seca, uma linguagem que busca a neutralidade e a universalidade. Nenhum

dos autores assume posições ou emite juízos abertamente. Gonzaga (2004) faz uso de

adjetivos para qualificar certas obras e certos autores, mas não chega a assumir suas

opiniões como pessoais. Não há uma perspectiva subjetivista na construção dessas

narrativas.

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Surpreendentemente, dada essa não-subjetividade, apenas dois dos autores, Nicola

(1999) e Gonzaga (2004), permeiam seu texto com referências a outros autores e teóricos

da Literatura Brasileira. Os demais narram a história como se fossem seus autores.

A literatura, nessas obras, é abordada como uma disciplina – com um conjunto de

conteúdos, uma linguagem e uma metodologia próprios – que deve ser dominada pelos

alunos como um campo de conhecimentos de uma área científica. A literatura é algo que se

aprende e ensina. Acima de tudo, a literatura é passível de avaliação e de classificação.

Minha trajetória até a sala de aula, no papel de professora de literatura começou pela

paixão pelos textos. E textos de qualquer tipo, de contos de fada a enciclopédias, de

fotonovelas a compêndios de física. É como leitora apaixonada, e educadora que se tornou

professora de Literatura que me questiono: É mesmo necessário contar essa História da

Literatura para nossos estudantes? Ou é possível pensarmos o ensino de literatura no

ensino médio de uma maneira alternativa? Será que o ensino da literatura apoiado em

manuais e cursos de Literatura como os estudados neste trabalho forma os leitores

previstos no Parâmetros Curriculares Nacionais? Ou devemos com urgência iniciar um

trabalho de desconstrução e reconstrução da metodologia do ensino da literatura? Como um

ensino não-tradicional de literatura poderia se estruturar, e que tipos de materiais poderiam

ser desenvolvidos para ele?

O presente trabalho descreve os resultados da primeira etapa de uma pesquisa que

deverá se tornar uma investigação mais ampla a respeito das práticas de ensino da

literatura nas instituições de ensino médio, seguida de uma proposta alternativa tanto para o

ensino de literatura quanto para a formação de professores para essa prática. Uma

investigação deste tipo – a construção de uma metodologia de ensino da literatura com base

nas nova teorias da historiografia – pode tornar possível conhecer os resultados dessa

prática não-tradicional e compará-los com os resultados das práticas tradicionais, tanto na

formação de leitores quanto no sucesso dos estudantes nos exames de literatura nos

concursos vestibulares.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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