Historias Que os camponeses contam

36
HISTÓRIAS QUE OS CAMPONESES CONTAM: O SIGNIFICADO DE MAMÃE GANSO Robert Darnton (Do livro: "O Grande Massacre de Gatos", Ed. Graal,1996, págs. 21-101) (Observação: há a indicação das notas através de números entre parênteses mas por dificuldades técnicas somente futuramente serão anexadas a este texto) O universo mental dos não iluminados, durante o Iluminismo, parece estar irrecuperável mente perdido. É tão difícil, se não impossível, situar o homem comum do século XVIII, que parece uma tolice pesquisar sua cosmologia. Mas, antes de desistir da tentativa, talvez fosse útil esquecer a nossa descrença e lembrar uma história - uma história que todos conhecem, embora em versão diferente da que reproduzimos a seguir, que é a do conto mais ou menos como era narrado em torno às lareiras, nas cabanas dos camponeses, durante as longas noites de inverno, na França do século XVIII. (1) Certo dia, a mãe de uma menina mandou que ela levasse um pouco de pão e de leite para sua avó. Quando a menina ia caminhando pela floresta, um lobo aproximou-se e perguntou-lhe para onde se dirigia. - Para a casa de vovó - ela respondeu. - Por que caminho você vai, o dos alfinetes ou o das agulhas? - O das agulhas. Então o lobo seguiu pelo caminho dos alfinetes e chegou primeiro à casa. Matou a avó, despejou seu sangue numa garrafa e cortou sua carne em fatias, colocando tudo numa travessa. Depois, vestiu sua roupa de dormir e ficou deitado na cama, à espera. Pam, pam. - Entre, querida. - Olá, vovó. Trouxe para a senhora um pouco de pão e de leite. - Sirva-se também de alguma coisa, minha querida. Há carne o vinho na copa. A menina comeu o que lhe era oferecido e, enquanto o fazia, um gatinho disse: "menina perdida! Comer a carne e beber o sangue de sua avó!" Então, o lobo disse: - Tire a roupa e deite-se na cama comigo. - Onde ponho meu avental? - Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dele. Para cada peça de roupa - corpete, saia, anágua e meias a menina fazia a mesma pergunta. E, a cada vez, o lobo respondia: - Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dela. Quando a menina se deitou na cama, disse:

description

Histórias que os camponeses contam

Transcript of Historias Que os camponeses contam

  • HISTRIAS QUE OS CAMPONESES CONTAM: O SIGNIFICADO DE MAME GANSO

    Robert Darnton

    (Do livro: "O Grande Massacre de Gatos", Ed. Graal,1996, pgs. 21-101)

    (Observao: h a indicao das notas atravs de nmeros entre parnteses mas por dificuldades

    tcnicas somente futuramente sero anexadas a este texto)

    O universo mental dos no iluminados, durante o Iluminismo, parece estar irrecupervel mente

    perdido. to difcil, se no impossvel, situar o homem comum do sculo XVIII, que parece uma

    tolice pesquisar sua cosmologia. Mas, antes de desistir da tentativa, talvez fosse til esquecer a nossa

    descrena e lembrar uma histria - uma histria que todos conhecem, embora em verso diferente da

    que reproduzimos a seguir, que a do conto mais ou menos como era narrado em torno s lareiras, nas

    cabanas dos camponeses, durante as longas noites de inverno, na Frana do sculo XVIII. (1)

    Certo dia, a me de uma menina mandou que ela levasse um pouco de po e de leite para sua av.

    Quando a menina ia caminhando pela floresta, um lobo aproximou-se e perguntou-lhe para onde se

    dirigia.

    - Para a casa de vov - ela respondeu.

    - Por que caminho voc vai, o dos alfinetes ou o das agulhas?

    - O das agulhas.

    Ento o lobo seguiu pelo caminho dos alfinetes e chegou primeiro casa. Matou a av, despejou seu

    sangue numa garrafa e cortou sua carne em fatias, colocando tudo numa travessa. Depois, vestiu sua

    roupa de dormir e ficou deitado na cama, espera.

    Pam, pam.

    - Entre, querida.

    - Ol, vov. Trouxe para a senhora um pouco de po e de leite.

    - Sirva-se tambm de alguma coisa, minha querida. H carne o vinho na copa.

    A menina comeu o que lhe era oferecido e, enquanto o fazia, um gatinho disse: "menina perdida!

    Comer a carne e beber o sangue de sua av!"

    Ento, o lobo disse:

    - Tire a roupa e deite-se na cama comigo.

    - Onde ponho meu avental?

    - Jogue no fogo. Voc no vai precisar mais dele.

    Para cada pea de roupa - corpete, saia, angua e meias a menina fazia a mesma pergunta. E, a cada

    vez, o lobo respondia:

    - Jogue no fogo. Voc no vai precisar mais dela.

    Quando a menina se deitou na cama, disse:

  • - Ah, vov! Como voc peluda!

    - para me manter mais aquecida, querida.

    - Ah, vov! Que ombros largos voc tem!

    - para carregar melhor a lenha, querida.

    - Ah, vov! Como so compridas as suas unhas!

    - para me coar melhor, querida.

    - Ah, vov! Que dentes grandes voc tem! - para comer melhor voc, querida.

    E ele a devorou.

    Qual a moral dessa histria? Para as meninas, clara: afastem-se dos lobos. Para os historiadores,

    parece dizer algo sobre o universo mental dos camponeses, no incio dos Tempos Modernos. Mas o

    qu? Como pode algum partir para a interpretao de um texto desses? Um dos caminhos passa pela

    psicanlise. Os analistas examinaram minuciosamente os contos populares, identificando smbolos

    escondidos, motivos inconscientes e mecanismos psquicos. Consideremos, por exemplo, a exegese de

    "Chapeuzinho Vermelho" feita por dois dos melhores psicanalistas, Erich Fromm e Bruno Bettelheim.

    Fromm interpretou o conto como um enigma referente ao inconsciente coletivo na sociedade primitiva

    e decifrou-o "sem dificuldade", decodificando sua linguagem simblica". A histria diz respeito

    confrontao de uma adolescente com a sexualidade adulta, explicou ele. Seu significado oculto

    aparece atravs de seu simbolismo - mas os smbolos que ele viu, em sua verso do texto, baseavam-se

    em aspectos que no existiam nas verses conhecidas dos camponeses, nos sculos XVII e XVIII.

    Assim, ele enfatiza o (inexistente) chapeuzinho vermelho como um smbolo da menstruao e a

    (inexistente) garrafa que levava a menina como smbolo de virgindade: da a (inexistente) advertncia

    da me, para que ela no se desviasse do caminho, entrando em regies ermas, onde poderia quebr-la.

    O lobo o macho estuprador. E as duas (inexistentes) pedras colocadas na barriga do lobo, depois que

    o (Inexistente) caador retira a menina e sua av, representam a esterilidade, a punio por infringir

    um tabu sexual. Assim, com uma misteriosa sensibilidade para detalhes que no apareciam no conto

    original, o psicanalista nos conduz para um universo mental que nunca existiu ou, pelo menos, que no

    existia antes do advento da psicanlise. (2)

    Como poderia algum entender um texto de maneira to equivocada? A dificuldade no decorre do

    dogmatismo profissional - porque os psicanalistas no precisam ser mais rgidos que os poetas, em sua

    manipulao de smbolos - mas, principalmente, da cegueira diante da dimenso histrica dos contos

    populares.

    Fromm no se preocupou em mencionar sua fonte mas, aparentemente, tirou seu texto dos irmos

    Grimm.

    Os Grimm o conseguiram, juntamente com "O gato de botas", "Barba Azul" e algumas poucas outras

    histrias, com Jeannette Hassenpflug, vizinha e amiga ntima deles, em Cassel; e ela ouviu as histrias

    de sua me, que descendia de uma famlia francesa huguenote. Os huguenotes trouxeram seu prprio

    repertrio de contos para a Alemanha, quando fugiram da perseguio de Lus XIV. Mas no os

    recolheram diretamente da tradio popular oral. Leram-nos em livros escritos por Charles Perrault,

    Marie Cathrine d'Aulnoy e outros, durante a voga dos contos de fadas nos crculos elegantes de Paris,

    no fim do sculo XVII. Perrault, mestre do gnero, realmente recolheu seu material da tradio oral do

    povo (sua principal fonte, provavelmente, era a bab de seu filho). Mas ele retocou tudo, para atender

    ao gosto dos sofisticados freqentadores dos sales, prcieuses e cortesos aos quais ele endereou a

    primeira verso publicada de Mame Ganso, seu Contes de ma mre 1'oye, de 1697, Assim, os contos

    que chegaram aos Grimm atravs dos Hassenpflug no eram nem muito alemes nem muito

    representativos da tradio popular, Na verdade, os Grimm reconheceram sua natureza literria e

    afrancesada e, por isso, eliminaram-na da segunda edio do Kinderund Hausmrchen - com exceo

  • de "Chapeuzinho Vermelho". Este permaneceu na coletnea, evidentemente, porque Jeannette

    Hassenpflug lhe enxertara um final feliz, tirado de "O lobo e as crianas" (conto do tipo 123, de acordo

    com o esquema de classificao padro elaborado por Antti Aarne e Stith Thompson), um dos mais

    populares na Alemanha. Assim, "Chapeuzinho Vermelho" inseriu-se na tradio literria alem e, mais

    tarde, na inglesa, com suas origens francesas no detectadas. Ela mudou consideravelmente suas

    caractersticas, ao passar da classe camponesa francesa para o quarto do filho de Perrault e da partir

    para a publicao, atravessando depois o Reno e voltando para uma tradio oral, mas, desta vez, como

    parte da dispora huguenote, dentro da qual retornou sob a forma de livro mas, agora, como produto da

    floresta teutnica, em lugar das lareiras das aldeias do tempo do Antigo Regime, na Frana. (3)

    Fromm e vrios outros exegetas psicanalticos no se preocuparam com a transformao do texto - na

    verdade, nada sabiam a respeito - porque tinham o conto que desejavam. Comea com o sexo na

    puberdade (o chapeuzinho vermelho que no existe na tradio oral francesa) e termina com o triunfo

    do ego (a menina resgatada - que, em geral, devorada, nos contos franceses) sobre o id (o lobo, que

    jamais morto, nas verses tradicionais). Tudo est bem, quando termina bem.

    O final particularmente importante para Bruno Bettelheim, o ltimo da srie de psicanalistas que

    tentaram a sorte com "Chapeuzinho Vermelho". Para ele, a chave da histria, e de todas as histrias

    desse tipo, a mensagem afirmativa de seu desenlace. Tendo um final feliz, declara, os contos

    populares permitem s crianas enfrentarem seus desejos e medos inconscientes e emergirem

    inclumes, o id subjugado e o ego triunfante. O id o vilo do "Chapeuzinho Vermelho", na verso de

    Bettelheim. o princpio do prazer que faz a menina se extraviar, quando j est crescida demais para

    a fixao oral (o estgio representado por "Joo e Maria") ainda muito nova para o sexo adulto.

    O id tambm o lobo, que tambm o pai, que tambm o caador, que tambm o ego e, de alguma

    forma, igualmente o superego. Encaminhando o lobo para sua av, Chapeuzinho Vermelho consegue,

    de maneira edipiana, liquidar sua me, porque as mes tambm podem ser avs, na organizao moral

    da alma, e as casas dos dois lados dos bosques so, na verdade, a mesma casa, como em "Joo e

    Maria" no qual so, tambm, o corpo da me. Essa desembaraada mistura de smbolos proporciona a

    Chapeuzinho Vermelho uma oportunidade de ir para a cama com seu pai, o lobo, dando vazo, assim,

    s suas fantasias edipianas. Ela sobrevive, no fim, porque renasce num nvel mais elevado de

    existncia, quando seu pai reaparece como ego-superego-caador e corta a barriga do seu pai como

    lobo-id, para tir-la de l, e todos vivem felizes para sempre. (4)

    A generosa viso do simbolismo que tem Bettelheim fornece uma interpretao menos mecanicista do

    conto do que a resultante do conceito de cdigo secreto que tem Fromm, mas tambm decorre de

    algumas crenas no questionadas quanto ao texto. Embora cite comentaristas de Grimm e Perrault em

    nmero suficiente para indicar alguma conscincia do folclore como disciplina universitria,

    Bettelheim l "Chapeuzinho Vermelho" e os outros contos como se no tivessem histria alguma.

    Aborda-os, por assim dizer, horizontalizados, como pacientes num div, numa contemporaneidade

    atemporal. No questiona suas origens nem se preocupa com outros significados que possam ter tido

    em outros contextos, porque sabe como a alma funciona c como sempre funcionou. Na verdade, no

    entanto, os contos populares so documentos histricos. Surgiram ao longo de muitos sculos e

    sofreram diferentes transformaes, em diferentes tradies culturais. Longe de expressarem as

    imutveis operaes do ser interno do homem, sugerem que as prprias mentalidades mudaram.

    Podemos avaliar a distncia entre nosso universo mental e o dos nossos ancestrais se nos imaginarmos

    pondo para dormir um filho nosso contando-lhe a primitiva verso camponesa do "Chapeuzinho

    Vermelho". Talvez, ento, a moral da histria devesse ser: cuidado com os psicanalistas - e cuidado

    com o uso das fontes. Parece que voltamos ao historicismo. (5)

  • No inteiramente, no entanto, porque "Chapeuzinho Vermelho" tem uma aterrorizante irracionalidade,

    que parece deslocada na Idade da Razo. Na verdade, a verso dos camponeses ultrapassa a dos

    psicanalistas, em violncia e sexo. (Seguindo os Grimm e Perrault, Fromm e Bettelheim no

    mencionam o ato de canibalismo com a av e o strip-tease antes de a menina ser devorada.)

    Evidentemente, os camponeses no precisavam de um cdigo secreto para falar sobre tabus.

    As outras histrias da Mame Ganso dos camponeses franceses tm as mesmas caractersticas de

    pesadelo. Numa verso primitiva da "Bela Adormecida" (conto tipo 410), por exemplo, o Prncipe

    Encantado, que j casado, viola a princesa e ela tem vrios filhos com ele, sem acordar. As crianas,

    finalmente, quebram o encantamento, mordendo-a durante a amamentao, e o conto ento aborda seu

    segundo tema: as tentativas da sogra do prncipe, uma ogra, de comer sua prole ilcita. O "Barba Azul"

    original (conto tipo 312) a histria de uma noiva que no consegue resistir tentao de abrir uma

    porta proibida na casa de seu marido, um homem estranho, que j teve seis mulheres. Ela entra num

    quarto escuro e descobre os cadveres das esposas anteriores, pendurados na parede. Horrorizada,

    deixa a chave proibida cair de sua mo numa poa de sangue, no cho. No consegue limp-la; ento,

    Barba Azul descobre sua desobedincia, ao examinar as chaves. Enquanto ele amola sua faca,

    preparando-se para transform-la na stima vtima, ela se recolhe em seu quarto e veste seu traje de

    casamento. Mas demora a se vestir, o tempo suficiente para ser salva por seus irmos, que galopam em

    seu socorro depois de receberem um aviso de seu pombo de estimao. Num dos primeiros contos do

    ciclo de Cinderela (conto tipo 51OB), a herona torna-se empregada domstica, a fim de impedir o pai

    de for-la a se casar com ele. Em outro, a madrasta ruim tenta empurr-la para dentro de um fogo,

    mas incinera, por engano, uma das mesquinhas irms postias. Em "Joo e Maria" ("Hansel e Gretel",

    conto tipo 327), na verso dos camponeses franceses, o heri engana um ogre fazendo-o cortar as

    gargantas de seus prprios filhos. Um marido devora uma sucesso de recm-casadas, no leito

    conjugal, em "La Belle et le monstre" ("A bela e a fera") (conto tipo 433), uma das centenas de contos

    que jamais chegaram a ser includos nas verses publicadas de Mame Ganso. Num conto mais

    desagradvel, "Les trois chiens" ("Os trs ces") (conto tipo 315), uma irm mata seu irmo

    escondendo grandes pregos no colcho de seu leito conjugal. No conto mais maligno de todos, "Ma

    mre m'a tu, mon pre m'a mang" ("Minha me me matou, meu pai me devorou") (conto tipo 720),

    uma me faz do filho picadinho e o cozinha, preparando uma caarola lionesa, que sua filha serve ao

    pai. E por a vai, do estupro e da sodomia ao incesto e ao canibalismo. Longe de ocultar sua mensagem

    com smbolos, os contadores de histrias do sculo XVIII, na Frana, retratavam um mundo de

    brutalidade nua e crua.

    Como podem os historiadores entender esse mundo? Uma maneira de ele no perder o p, em meio s

    ondas do psiquismo expresso nas primeiras verses de Mame Ganso, segurar-se firme em duas

    disciplinas: a antropologia e o folclore. Quando discutem teoria, os antroplogos discordam quanto aos

    fundamentos de sua cincia. Mas, quando saem em campo, usam, para a compreenso das tradies

    orais, tcnicas que podem, com discernimento, ser aplicadas ao folclore ocidental. Com exceo de

    alguns estruturalistas, eles relacionam os contos com a arte de narrar histrias e com o contexto no

    qual isso ocorre. Examinam a maneira como o narrador adapta o tema herdado a sua audincia, de

    modo que a especificidade do tempo e do lugar aparea, atravs da universalidade do motivo. No

    esperam encontrar comentrios sociais diretos, ou alegorias metafsicas, porm mais um tom de

    discurso ou um estilo cultural - capaz de comunicar um ethos e uma viso de mundo particulares. (6)

    Folclore "cientfico", como o chamam os franceses (os especialistas americanos, com freqncia,

    distinguem entre folclore de "fakelore" (falsificao da tradio. - N. T.), implica a compilao e

    comparao de contos de acordo com o esquema padronizado de tipos elaborado por Antti Aarne e

    Stith Thompson. No exclui, necessariamente, anlises formalistas como as de Vladimir Propp, mas

    enfatiza a rigorosa documentao - a ocasio em que foi feita a narrativa, os antecedentes do narrador e

    o grau de contaminao pelas fontes escritas. (7)

    Os folcloristas franceses registraram cerca de dez mil contos, em muitos dialetos diferentes, em todos

    os recantos da Frana e dos territrios de idioma francs. Por exemplo, durante. uma viagem ao Berry,

  • para visitar o Muse des arts et traditions populaires, em 1945, Ariane de Flice registrou uma verso

    de "Le Petit Poucet" ("Pequeno Polegar") (conto tipo 327), contada por uma camponesa, Euphrase

    Pichon, que nascera em 1862, na vila de Eguzon (Indre). Em 1879, Jean Drouillet escreveu outra

    verso, tal como a escutou de sua me, Eugnie, que a aprendera, por sua vez, com a me dela, Octavie

    Riffet, na aldeia de Teillay (Cher). As duas verses so quase idnticas e nada devem primeira

    narrativa impressa do conto, que Charles Perrault publicou em 1697. Estes e mais oitenta "Petits

    Poucets" que os folcloristas compilaram e compararam, detalhe por detalhe, pertencem a uma tradio

    oral que sobreviveu, com uma contaminao pela cultura impressa notavelmente pequena, at o final

    do sculo XIX. A maioria dos contos do repertrio francs foi recolhida por escrito entre 1870 e 1914,

    durante "a Idade de Ouro da pesquisa dos contos populares na Frana" e quem narrou as histrias

    foram camponeses que as haviam aprendido na infncia, muito antes de a alfabetizao se disseminar

    no campo. Assim, em 1874, Nannette Levesque, uma camponesa analfabeta, nascida em 1794, ditou

    uma verso do "Chapeuzinho Vermelho" que remonta ao sculo XVIII; e, em 1865, Louis Grolleau,

    criado' domstico nascido em 1803, ditou uma verso de "Le Pou" (conto tipo 621) que ouvira pela

    primeira vez nos tempos do Imprio. Como todos os contadores de histrias, os narradores camponeses

    adaptavam o cenrio de seus relatos ao seu prprio meio; mas mantinham intatos os principais

    elementos, usando repeties, rimas e outros dispositivos mnemnicos. Embora o elemento do

    "desempenho", que central no estudo do folclore contemporneo, no transparea nos antigos textos,

    os folcloristas argumentam que os registros da Terceira Repblica fornecem evidncias suficientes

    para que possam reconstituir, em linhas gerais, uma tradio oral existente h dois sculos. (8)

    Essa afirmao pode parecer extravagante, mas estudos comparativos revelaram surpreendentes

    semelhanas em diferentes anotaes do mesmo conto, mesmo tendo sido feitas em aldeias remotas,

    muito afastadas umas das outras e da circulao de livros. Num estudo do "Chapeuzinho Vermelho",

    por exemplo, Paul Delarue comparou trinta e cinco verses, registradas em toda uma vasta rea da

    langue d'ol. Vinte verses correspondiam exatamente ao primitivo "Conte de la mre grand" citado

    acima, com exceo de alguns poucos detalhes (algumas vezes, a menina devorada, em outras, ela

    escapa atravs de um artifcio). Duas verses acompanham o conto de Perrault (o primeiro a

    mencionar o capuz vermelho). E o resto contm uma mistura dos relatos orais e escritos, cujos

    elementos se distinguem to nitidamente quanto o alho e a mostarda num molho de salada francs. (9)

    Evidncias escritas provam que os contos existiam antes de ser concebido o "folclore", neologismo do

    sculo XIX." Os pregadores medievais utilizavam elementos da tradio oral para ilustrar argumentos

    morais. Seus sermes, transcritos em colees de "Exempla" dos sculos X11 ao XV, referem-se s

    mesmas histrias que foram recolhidas, nas cabanas dos camponeses, pelos folcloristas do sculo XIX.

    Apesar da obscuridade que cerca as origens dos romances de cavalaria, as canes de gesta e os

    fabliaux, parece que boa parte da literatura medieval bebeu da tradio oral popular, e no o contrrio.

    A "Bela Adormecida" apareceu num romance arturiano do sculo XIV e "Cinderela" veio tona em

    Propos rustiques, de Noel du Fail, de 1547, livro que situou as origens dos contos nas tradies cam-

    ponesas e mostrou como eles eram transmitidos; porque du Fail fez a primeira descrio por escrito de

    uma importante instituio francesa, a veilIe, reunio junto lareira, noitinha, quando os homens

    consertavam suas ferramentas e as mulheres costuravam, escutando as histrias que seriam registradas

    pelos folcloristas trezentos anos depois e que j duravam sculos. (11) Pretendessem elas divertir os

    adultos ou assustar as crianas, como no caso de contos de advertncia, como "Chapeuzinho

    Vermelho", as histrias pertenciam sempre a um fundo de cultura popular, que os camponeses foram

    acumulando atravs dos sculos, com perdas notavelmente pequenas.

    As grandes coletneas de contos populares, organizadas no fim do sculo XIX e incio do XX,

    oferecem portanto uma rara oportunidade de se tomar contato com as massas analfabetas que

    desapareceram no passado, sem deixar vestgios. Rejeitar os contos populares porque no podem ser

    datados nem situados com preciso, como outros documentos histricos, virar as costas a um dos

    poucos pontos de entrada no universo mental dos camponeses, nos tempos do Antigo Regime. Mas

    tentar penetrar esse mundo enfrentar uma srie de obstculos to assustadores como aqueles com que

  • se deparou "Jean de l'Ours" (conto tipo 301) ao tentar resgatar da regio dos mortos as trs princesas

    espanholas, ou o pequeno Parle (conto tipo 328), quando planejou apoderar-se do tesouro do ogre.

    O maior obstculo a impossibilidade de escutar as narrativas, como eram feitas pelos contadores de

    histrias. Por mais exatas que sejam, as verses escritas dos contos no podem transmitir os efeitos que

    devem ter dado vida s histrias no sculo XVIII: as pausas dramticas, as miradas maliciosas, o uso

    dos gestos para criar cenas - uma Branca de Neve com uma roda de fiar, uma Cinderela catando os

    piolhos de uma irm postia - e o emprego de sons para pontuar as aes - uma batida porta (muitas

    vezes obtida com pancadas na testa de um ouvinte) ou uma cacetada, ou um peido. Todos esses

    dispositivos configuravam o significado dos contos e todos eles escapam ao historiador.

    Ele no pode ter certeza de que o texto inerte e sem vida que ele segura, entre as capas de um livro,

    fornece um relato exato da interpretao que ocorreu no sculo XVIII. No pode sequer ter certeza de

    que o texto corresponde s verses no escritas que existiam um sculo antes, Embora possa encontrar

    muitas evidncias provando que o conto em si existiu, no pode acalmar suas suspeitas de que talvez

    tenha sofrido grandes transformaes, antes de chegar aos folcloristas da Terceira Repblica.

    Diante dessas incertezas, parece desaconselhvel elaborar uma interpretao com base numa nica

    verso de um nico conto, e mais arriscado ainda basear anlises simblicas em detalhes - capuzes

    vermelhos e caadores -que podem no ter aparecido nas verses dos camponeses. Mas h registros

    dessas verses em nmero suficiente - 35 "Chapeuzinhos Vermelhos", 90 "Pequenos Polegares", 105

    "Cinderelas" - para se poder perceber as linhas gerais de um conto, como ele existiu na tradio oral.

    possvel estud-lo ao nvel da estrutura, observando a maneira como a narrativa organizada e como

    os temas se combinam, em vez de nos concentrarmos em pequenos detalhes. Assim, possvel

    comparar o conto com outras histrias. E, finalmente, trabalhando com todo o conjunto dos contos

    populares franceses, poderemos distinguir caractersticas gerais, temas centrais e elementos difusos de

    estilo e tom. (12)

    Tambm se pode procurar ajuda e conforto da parte de especialistas no estudo da literatura oral.

    Milman Parry e Albert Lord mostraram como epopias populares to longas quanto a Ilada passaram

    fielmente de bardo para bardo, entre os camponeses analfabetos da Iugoslvia. Esses "cantores de

    contos" no tm os poderes fabulosos de memorizao algumas vezes atribudos aos povos

    "primitivos" No memorizam muito, absolutamente, Em vez disso, com binam frases estereotipadas,

    frmulas e segmentos de narrativa, em ordens improvisadas de acordo com a reao de sua audincia.

    Anotaes da mesma epopia, narrada pelo mesmo cantor, demonstram que cada interpretao nica

    No entanto, anotaes feitas em 1950 no diferem, nas coisas essenciais, das que foram feitas em

    1934. Em cada caso, o cantor procede como se caminhasse por uma estrada bem conhecida. Pode

    desviar-se aqui, para fazer uma pausa, ou ali, para apreciar uma vista, mas sempre permanece em

    terreno familiar - to familiar, na verdade, que seria capaz de dizer que repetiu exatamente os mesmos

    passos dados antes. No concebe a repetio da mesma maneira que a pessoa alfabetizada, porque no

    tem noo de palavras, linhas e versos. Os textos, para ele, no so rigidamente fixos, como so para

    os leitores da pgina impressa. Cria seu texto ao narr-lo, escolhendo novos caminhos atravs dos

    velhos temas. At pode trabalhar com material tirado de fontes impressas, porque a epopia, no todo,

    to maior que a soma de suas partes a ponto de as modificaes de detalhes mal perturbarem sua

    configurao geral." (13)

    As pesquisas de Lord confirmam as concluses a que chegou Vladimir Propp, atravs de um mtodo

    de anlise diferente, demonstrando como as variaes de detalhes, nos contos populares russos,

    permanecem subordinadas a estruturas estveis." Pesquisadores de campo, atuando entre povos

    analfabetos na Polinsia, frica e Amrica do Norte e do Sul, tambm descobriram que as tradies

    orais. tm um enorme poder de resistncia. As opinies se dividem quanto questo separada de saber

    se as fontes orais podem ou no fornecer relatos confiveis de acontecimentos passados. Robert Lowie,

    que recolheu narrativas dos ndios Crow, no incio do sculo XIX, adotou uma posio de extremo

  • ceticismo: "No posso atribuir s tradies orais o mnimo valor histrico, sob quaisquer condies".""

    Por valor histrico, no entanto, Lowie entendia exatido factual. (Em 1910, ele anotou o relato feito

    por um Crow, de um combate contra os Dakota; em 1931, o mesmo informante descreveu-lhe a

    batalha, mas declarou que fora contra os Cheyenne.) Lowie admitiu que as histrias, consideradas

    como tal, permaneciam bastante consistentes; ampliavam-se e se desdobravam dentro dos padres

    habituais da narrativa Crow. Ento, suas descobertas, na verdade, confirmam o ponto de vista de que,

    na narrativa tradicional de histrias, as continuidades de forma e de estilo tm mais peso que as

    variaes de detalhes, seja entre os ndios norte. americanos ou entre os camponeses iugoslavos. (16)

    Frank Hamilton Cushing observou um exemplo marcante dessa tendncia entre os Zuni, h quase um

    sculo. Em 1886, ele serviu como intrprete de uma delegao Zuni, no Leste dos Estados Unidos.

    Durante uma rodada de histrias, certa noite, ele contou, como sua contribuio, o conto "O galo e o

    camundongo", que tirara de um livro de contos populares italianos. Cerca de um ano depois, ficou

    pasmado ao escutar um dos ndios contar a mesma histria, j entre os Zuni. Os temas italianos

    permaneciam suficientemente identificveis para permitir uma classificao do conto no esquema de

    Aarne-Thompson ( conto do tipo 2032). Mas todo o resto, na histria - sua estrutura, figuras de

    linguagem, aluses, estilo e a atmosfera geral -, se havia tornado intensamente Zuni. Em vez de

    italianizar as tradies nativas, a histria fora zunificada. (17)

    Sem dvida, o processo de transmisso afeta as histrias de maneiras diferentes, em culturas

    diferentes. Alguns conjuntos de tradies folclricas podem resistir "contaminao", embora

    absorvendo novo material de maneira mais efetiva que outros. Mas as tradies orais parecem ser tena-

    zes e altamente durveis quase em toda parte, entre os povos sem escrita. Tambm no se desmantelam

    com sua primeira exposio palavra impressa. Apesar da afirmao de Jack Goody, de que uma linha

    de alfabetizao corta -toda a Histria, dividindo as culturas orais das "escritas", ou "impressas",

    parece que a narrativa tradicional de contos pode florescer muito tempo depois do comeo da alfa-

    betizao. Para os antroplogos e folcloristas que saram em campo atrs dos contos, no h nada

    extravagante na idia de que os narradores camponeses no fim do sculo XIX, na Frana, contavam

    histrias um ao outro de maneira bastante parecida dos seus ancestrais, de um sculo antes, ou mais.

    (18)

    Por mais confortador que possa ser esse testemunho dos peritos, no esclarece todas as dificuldades

    para a interpretao dos contos franceses. Os textos so bastante acessveis, porque permanecem

    inexplorados, em casas que abrigam tesouros, como o Muse des arts et traditions populaires, em

    Paris, e em coletneas universitrias como Le Conte populaire franais, de Paul Delarue e

    Marie-Louise Tenze. Mas no se pode tir-los dessas fontes e ergu-los para o exame, como se

    fossem outras tantas fotografias do Antigo Regime, tiradas pelo olho inocente de uma classe

    camponesa extinta. So histrias.

    Como na maioria dos tipos de narrativa, desenvolvem tramas padronizados, a partir de temas

    convencionais, recolhidos aqui, ali e em toda parte. Apresentam uma aflitiva falta de especificidade

    para qualquer pessoa que deseje situ-los em pontos precisos do tempo e do espao. Raymond

    Jameson estudou o caso de uma Cinderela chinesa do sculo IX. Ela recebe suas chinelas de um peixe

    mgico, em vez de uma fada madrinha, e perde uma delas numa festa de aldeia, em vez de um baile

    real, mas tem uma semelhana inconfundvel com a herona de Perrault. (19) Os folcloristas

    reconheceram seus contos em Herdoto e Homero, em antigos papiros egpcios e em plaquetas de

    pedra caldias; e reproduziram-nos por escrito no mundo inteiro, na Escandinvia e na frica, entre

    indianos s margens do Bengala e ndios ao longo do Missouri. A disperso to notvel que alguns

    chegaram a acreditar em "histrias primordiais" e num repertrio bsico, indo-europeu, de mitos,

    lendas e contos. Esta tendncia se alimenta das teorias csmicas de Frazer, Jung e Lvi-Strauss, mas

    no ajuda ningum a tentar penetrar na mentalidade dos camponeses, nos primrdios da Frana

    moderna.

  • Felizmente, uma tendncia mais terra-a-terra do folclore possibilita que sejam isoladas as

    caractersticas peculiares dos contos franceses tradicionais. Le Conte populaire franais ordena-os de

    acordo com o esquema classificatrio Aarne-Thompson, que abrange todas as variedades de contos

    populares indo-europeus. Assim, fornece a base para o estudo comparativo e as comparaes sugerem

    a maneira como os temas gerais se enraizaram e cresceram em solo francs. "Pequeno polegar" ("Le

    Petit Poucet", conto tipo 327), por exemplo, tem um forte sabor francs, tanto em Perrault como nas

    verses camponesas, quando o comparamos com seu primo germnico, "Joo e Maria". O conto de

    Grimm enfatiza a floresta misteriosa e a ingenuidade das crianas diante do mal inescrutvel, e tem

    toques mais fantasiosos e poticos, como nos detalhes sobre a casa de po-e-bolo e nos pssaros

    mgicos. As crianas francesas enfrentam um ogre, mas numa casa muito real, Monsieur e Madame

    Ogre discutem seus planos de dar um jantar, como se fossem qualquer casal de marido e mulher, e

    censuram um ao outro exatamente como faziam os pais de Pequeno Polegar. Na verdade, difcil

    distinguir um casal do outro. Ambas as esposas simplrias jogam fora a fortuna de sua famlia; e seus

    maridos ralham com elas da mesma maneira ' sendo que o ogre diz a sua mulher que ela merece ser

    devorada e que ele prprio faria o servio, se ela no fosse uma vieille bte (vaca velha) to pouco

    apetitosa." Ao contrrio de seus parentes alemes, os ogres franceses aparecem no papel de le

    bourgeois de Ia maison (burgus chefe de famlia), (21) como se fossem ricos proprietrios de terras

    locais. Tocam violino, visitam amigos, roncam satisfeitos na cama, ao lado de gordas esposas ogras;(")

    e, por mais grosseiros que sejam, jamais deixam de ser bons pais de famlia e provedores generosos.

    Da a alegria do ogre em "Pitchin-Pitchot", quando ele pula para dentro de casa, com um saco s

    costas: "Catherine, ponha a panela grande no fogo. Peguei Pitchin-Pitchot." (23)

    Enquanto os contos germnicos mantm um tom de terror e fantasia, os franceses enfatizam o humor e

    a domesticidade. Pssaros de fogo acomodam-se nos galinheiros. Elfos, demnios, espritos da

    floresta, toda a panplia indoeuropia de seres mgicos reduz-se, na Frana, a duas espcies, os ogres e

    as fadas. E essas criaturas restantes adquirem fraquezas humanas e, em geral, deixam os seres humanos

    resolverem seus problemas com seus prprios recursos, ou seja, esperteza e "cartesianismo" -

    expresso que os franceses aplicam, vulgarmente, a sua tendncia para a astcia e a intriga. O toque

    gauls evidente em muitos dos contos que Perrault no retrabalhou, para a sua galicizada Mame

    Ganso, de 1697: o panache do jovem ferreiro em "Le Petit Forgeron" (conto tipo 317), por exemplo,

    que mata gigantes num clssico tour de France; ou o provincianismo do campons breto, em "Jean

    Bte" (conto tipo 675), a quem oferecida qualquer coisa que desejar, e ele pede un bon pch de

    piquette et une cuelle de patates au Iait ("'vinho cru e uma tigela de batatas ao leite"); ou o cime

    profissional do mestre jardineiro que no consegue podar as vinhas to bem quanto seu aprendiz, em

    "Jean le Teigneux" (conto tipo 31); ou a inteligncia da filha do diabo, em "La Belle Eulalie" (conto

    tipo 313), que foge com seu amante, deixando dois pts falantes em suas camas. Da mesma maneira

    como so no se pode relacionar os contos franceses a eventos especficos, no se deve dilu-los numa

    mitologia universal atemporal. Pertencem, na verdade, a um terreno intermedirio: Ia France moderne,

    ou a Frana que existiu entre os sculos XV e XVIII.

    Esse espao de tempo pode parecer desagradavelmente vago a qualquer pessoa que exija que a Histria

    seja precisa. Mas a preciso pode ser inadequada, ou mesmo impossvel, na Histria das mentalidades,

    um gnero que requer mtodos diferentes dos empregados nos gneros convencionais, como a Histria

    poltica. Vises de mundo no podem ser descritas da mesma maneira que acontecimentos polticos,

    mas no so menos "reais". A poltica no poderia ocorrer sem que existisse uma disposio mental

    prvia, implcita na noo que o senso comum tem do mundo real. O prprio senso comum uma

    elaborao social da realidade, que varia de cultura para cultura. Longe de ser a inveno arbitrria de

    uma imaginao coletiva, expressa a base comum de uma determinada ordem social. Portanto, para

    reconstituir a maneira como os camponeses viam o mundo, nos tempos do Antigo Regime, preciso

    comear perguntando o que tinham em comum, que experincia partilhavam, na vida cotidiana de suas

    aldeias.

  • Graas a pesquisas feitas por vrias geraes de historiadores sociais, essa pergunta pode ser

    respondida. A resposta deve ser cercada de limitaes, e deve permanecer restrita a um alto nvel de

    generalizao, porque as condies variavam muitssimo no reino, tendo este continuado como uma

    colcha de retalhos de regies, em vez de uma nao unificada, isto at a Revoluo ou mesmo, talvez,

    at bem avanado o sculo XIX. Pierre Goubert, Emmanuel Le Roy Ladurie, Pierre Saint-Jacob, Paul

    Bois e muitos outros revelaram as particularidades da vida dos camponeses, regio por regio,

    expondo-as em sucessivas monografias. A densidade das monografias pode fazer a histria social

    francesa parecer uma conspirao de excees que tentam desmentir as regras. No entanto, tambm

    neste caso existe o perigo do profissionalismo equivocado; porque, quando nos colocamos a uma

    distncia dos detalhes suficientemente segura, um quadro geral comea a se compor. Na verdade, j

    comeou a alcanar a etapa da assimilao, em compndios como Histoire conomique et sociale de Ia

    France (Paris, 1970) e snteses como Histoire de Ia France rurale (Paris, 1975/76). O quadro, em

    linhas gerais, o descrito a seguir . (24)

    Apesar da guerra, das epidemias e da fome, a ordem social que existia ao nvel das aldeias permaneceu

    notavelmente estvel, durante o incio do perodo moderno na Frana. Os camponeses eram

    relativamente livres - menos que os pequenos proprietrios rurais, que se transformavam em

    trabalhadores sem terras, na Inglaterra, e mais que os servos, que mergulhavam numa espcie de

    escravido, a leste do Elba. Mas no podiam escapar a um sistema senhorial que lhes negava terras

    suficientes para alcanarem a independncia econmica, e que lhes sugava qualquer excedente por eles

    produzido. Os homens trabalhavam do amanhecer ao anoitecer, arranhando o solo em faixas dispersas

    de terra, com arados semelhantes aos empregados pelos romanos, e cortando seu cereal com pequenas

    foices primitivas, a fim de deixar restolho suficiente para a pastagem comunitria. As mulheres se

    casavam tarde - entre vinte e cinco e vinte e sete anos - e davam luz apenas cinco ou seis filhos, dos

    quais apenas dois ou trs sobreviviam at a idade adulta. Grandes massas humanas viviam num estado

    de subnutrio crnica, subsistindo sobretudo com uma papa feita de po e gua, eventualmente tendo

    misturadas algumas verduras de cultivo domstico. Comiam carne apenas umas poucas vezes por ano,

    em dias de festa ou depois do abate do outono, que s ocorria quando no tinham silagem suficiente

    para alimentar o gado durante o inverno. Muitas vezes, no conseguiam o quilo dirio de po (2.000

    calorias) de que necessitavam para se manterem com sade e ento tinham pouca proteo contra os

    efeitos conjugados da escassez de cereais e da doena. A populao flutuava entre quinze e vinte

    milhes de pessoas e se expandia at o limite de sua capacidade produtiva (densidade mdia de

    quarenta almas por quilmetro quadrado e ndice mdio anual de quarenta nascimentos por mil

    habitantes), apenas para ser devastada por crises demogrficas. Durante quatro sculos - dos primeiros

    estragos da Peste Negra, em 1347, at o primeiro grande salto de populao e produtividade, por volta

    de 1730 - a sociedade francesa permaneceu aprisionada em instituies rgidas e condies

    maltusianas. Atravessou um perodo de estagnao que Fernand Braudel e Emmanuel Le Roy Ladurie

    descreveram como l'histoire immobile (a histria imvel). (25)

    Essa expresso, agora, parece exagerada, pois no chega a fazer justia ao conflito religioso, aos

    motins por cereais e s rebelies contra a extenso do poder estatal, que perturbaram o padro habitual

    da vida nas aldeias. Mas, quando foi empregada pela primeira vez, nos anos 50, a noo de histria

    imvel - uma histria de continuidade estrutural durante um longo perodo de tempo, la Iongue dure

    ("a larga durao") - serviu como corretivo para a tendncia a ver a histria como uma sucesso de

    acontecimentos polticos. A histria dos eventos, histoire vnementielle, em geral ocorria por sobre as

    cabeas dos camponeses, no universo remoto de Paris e Versalhes. Enquanto os ministros iam e

    vinham e as batalhas se encarniavam, a vida nas aldeias continuava imperturbvel, bem semelhante

    ao que sempre fora, desde tempos imemoriais.

    A histria parecia "imvel,, ao nvel da aldeia porque o senhorialismo e a economia de subsistncia

    mantinham os aldees curvados sobre o solo, e as tcnicas agrcolas primitivas no lhes davam

    qualquer oportunidade de se desencurvarem. A produo de cereais permanecia numa proporo de

    cerca de 5 por 1, um rendimento primitivo, em contraste com a lavoura moderna, que produz quinze ou

  • mesmo trinta gros para cada semente plantada. Os agricultores no podiam obter cereais em

    quantidade suficiente para alimentar grande nmero de animais e no tinham gado bastante para

    produzir o adubo capaz de fertilizar os campos e aumentar a colheita. Este crculo vicioso os mantinha

    fechados num sistema de rotao de colheitas trienal ou bienal, que deixava alqueivada grande

    proporo de suas terras. No podiam converter o alqueive no cultivo de plantas como o trevo, que

    proporciona nitrognio ao solo, porque viviam muito prximos da penria para se arriscarem expe-

    rincia, alm do fato de que ningum tinha a menor idia do que fosse nitrognio. Os mtodos

    coletivos de cultivo tambm reduziam a margem de experimentao. Com exceo de algumas poucas

    regies que tinham cercados, como o distrito do bocage, a oeste, os camponeses cultivavam faixas

    esparsas de terra, em campos abertos. Semeavam e colhiam coletivamente, para que pudessem

    realizar-se a respiga e a pastagem comuns. Dependiam de terras e florestas comuns, para alm dos

    campos cultivados, para pastagem, lenha e castanhas ou morangos. A nica rea onde podiam tentar

    progredir atravs da iniciativa individual era o galinheiro ou o quintal unido aos lotes de suas casas, ou

    manses. Ali, eles se esforavam para levantar montes de adubo, cultivar o linho para fiar e produzir

    verduras e frangos para o consumo domstico e mercados locais.

    A horta do quintal, muitas vezes, proporcionava a margem de sobrevivncia para famlias que no

    tinham os vinte, trinta ou quarenta acres necessrios para a independncia econmica. Tinham extrema

    necessidade de terra porque grande parte de sua colheita lhes era tirada por seus tributos senhoriais,

    dzimos, arrendamentos de terrenos e impostos. Na maior parte da Frana central e do norte, os

    camponeses mais prsperos influam fraudulentamente na forma de cobrana do principal imposto

    real, a talha, de acordo com um antigo princpio francs: escorchar os pobres. Ento, a cobrana de

    impostos abria fissuras dentro da aldeia e o endividamento cobria os prejuzos. Os camponeses mais

    pobres freqentemente tomavam emprestado dos ricos - ou seja, dos relativamente prsperos coqs du

    village (os mais influentes do grupo), que possuam terras suficientes para vender excedentes de

    cereais no mercado, formar rebanhos e contratar os pobres para seu servio. A servido por dvidas

    pode ter atrado tanto dio para os camponeses mais prsperos quanto o que cercava o seigneur e o

    dcimateur (cobrador de dzimos) eclesistico. dio, inveja e conflitos de interesses ferviam na

    sociedade camponesa. A aldeia no era uma Gemeinschaft (comunidade) feliz e harmoniosa.

    Para a maioria dos camponeses, a vida na aldeia era uma luta pela sobrevivncia, e sobrevivncia

    significava manter-se acima da linha que separava os pobres dos indigentes. A linha de pobreza

    variava de lugar para lugar, de acordo com a extenso de terras necessria para pagar impostos,

    dzimos e tributos senhoriais; separar gros suficientes para plantar no prximo ano; e alimentar a

    famlia. Em tempos de escassez, as famlias pobres tinham de comprar sua comida. Sofriam como

    consumidores, enquanto os preos disparavam e os camponeses mais prsperos tinham grandes lucros.

    Assim, uma sucesso de ms colheitas podia polarizar a aldeia, levando as famlias marginais

    indigncia, enquanto os ricos ficavam mais ricos. Diante destas dificuldades, os "pequenos" (petites

    gens) sobreviviam com a esperteza. Conseguiam trabalho como lavradores, teciam e fiavam panos em

    suas cabanas, faziam trabalhos avulsos e saam pela estrada, pegando servios onde pudessem en-

    contr-los.

    Muitos no resistiam. Neste caso, saam pela estrada para sempre, seguindo deriva com os destroos

    da population flottante ("populao flutuante") da Frana, que inclua vrios milhes de criaturas

    desesperadas, por volta de 1780. Com exceo dos privilegiados que faziam um tour de France como

    artesos, e as ocasionais troupes de atores e saltimbancos, a vida na estrada significava passar o tempo

    recolhendo restos de comida. Os itinerantes invadiam galinheiros, ordenhavam vacas s soltas,

    roubavam roupa lavada secando sobre as cercas, cortavam a tesouradas as caudas de cavalos (que eram

    vendidas a estofadores) e dilaceravam e disfaravam seus corpos, a fim de passarem por invlidos, em

    locais onde estavam sendo distribudas esmolas. Ingressavam e desertavam de um regimento aps

    outro e serviam como falsos recrutas. Tornavam-se contrabandistas, salteadores de estradas,

    punguistas, prostitutas. E, no final, entregavam-se aos hpitaux, imundas casas para os pobres, ou

  • rastejavam para debaixo de um arbusto ou de um palheiro e morriam - croquants que "esticavam as

    canelas". (Aqui h um trocadilho intraduzvel: "croquants who had 'croaked'" - Nota do Tradutor) (25)

    A morte vinha da mesma maneira implacvel para as famlias que permaneciam em suas aldeias e se

    mantinham acima da linha de pobreza. Como mostraram Pierre Goubert, Louis Henry, Jacques

    Dupquier e outros demgrafos histricos, a vida era uma luta inexorvel contra a morte, em toda

    parte, na Frana do incio dos Tempos Modernos. Em Crulai, Normandia, 236 de cada 1.000 bebs

    morriam antes de seu primeiro aniversrio, durante o sculo XVII, enquanto hoje morrem vinte. Cerca

    de 45 por cento dos franceses nascidos no sculo XVIII morriam antes da idade de dez anos, Poucos

    dos sobreviventes chegavam idade adulta antes da morte de, pelo menos, um de seus pais. E poucos

    pais chegavam ao fim de seus anos frteis, porque a morte os interrompia. Terminados com a morte, e

    no com o divrcio, os casamentos duravam uma mdia de quinze anos, metade da durao que tm na

    Frana de hoje. Em Crulai, um em cinco maridos perdia a esposa, e ento tornava a casar-se. As

    madrastas proliferavam por toda parte - muito mais que os padrastos, porque o ndice de novos

    casamentos entre as vivas era de um em dez. Os filhos postios podem no ter sido tratados como

    Cinderela, mas as relaes entre os irmos, provavelmente, eram difceis. Um novo filho, muitas

    vezes, significava a diferena entre pobreza e indigncia. Mesmo quando no sobrecarregava a

    despensa da famlia, podia trazer a penria para a prxima gerao, aumentando o nmero de

    pretendentes, quando a terra dos pais fosse dividida entre seus herdeiros. (27)

    Sempre que a populao aumentava, a propriedade da terra se fragmentava e estabelecia-se o

    empobrecimento. Os morgadios retardaram o processo, em algumas reas, mas a melhor defesa, em

    toda parte, era o casamento tardio, uma tendncia que deve ter tido seu peso negativo na vida emo-

    cional da famlia. Os camponeses do Antigo Regime, ao contrrio do que acontece com os da ndia

    contempornea, geralmente no se casavam at poderem ocupar uma cabana e raramente tinham filhos

    fora do casamento, ou depois de atingirem os quarenta. Em Port-en-Bessin, por exemplo, as mulheres

    se casavam aos vinte e sete e paravam de ter filhos aos quarenta, em mdia. Os demgrafos no

    encontraram nenhuma prova de controle da natalidade, ou de ilegitimidade disseminada, antes do fim

    do sculo XVIII. O homem do incio da era moderna no entendia a vida de uma maneira que o

    capacitasse a control-la. A mulher do mesmo perodo no conseguia conceber o domnio sobre a

    natureza, e ento dava luz quando Deus queria - como fez a me do Pequeno Polegar em "Le Petit

    Poucet". Mas o casamento tardio, um curto perodo de fertilidade e os longos espaos de amamentao

    ao seio, que reduzem a probabilidade de concepo, limitavam o tamanho de sua famlia, O limite mais

    duro e mais eficaz era imposto pela morte, a sua prpria e a de seus bebs, durante o parto ou na

    infncia. Os filhos natimortos, chamados chrissons, eram algumas vezes enterrados informalmente, em

    tmulos coletivos annimos. Os bebs eram, algumas vezes, sufocados por seus pais na cama - um

    acidente bastante comum, a julgar pelos editos episcopais proibindo os pais de dormirem com filhos

    que no tivessem ainda chegado ao primeiro aniversrio. Famlias inteiras se apinhavam em uma ou

    duas camas e se cercavam de animais domsticos, para se manterem aquecidos, Assim, as crianas se

    tornavam observadoras participantes das atividades sexuais de seus pais. Ningum pensava nelas como

    criaturas inocentes, nem na prpria infncia como uma fase diferente da vida, claramente distinta da

    adolescncia, da juventude e da fase adulta por estilos especiais de vestir e de se comportar. As

    crianas trabalhavam junto com os pais quase imediatamente aps comearem a caminhar, e

    ingressavam na fora de trabalho adulta como lavra. dores, criados e aprendizes, logo que chegavam

    adolescncia.

    Os camponeses, no incio da Frana moderna, habitavam um mundo de madrastas e rfos, de labuta

    inexorvel e interminvel, e de emoes brutais, tanto aparentes como reprimidas. A condio humana

    mudou tanto, desde ento, que mal podemos imaginar como era, para pessoas com vidas realmente

    desagradveis, grosseiras e curtas. por isso que precisamos reler Mame Ganso.

  • Consideremos quatro das histrias mais conhecidas da Mame Ganso de Perrault - "Gato de Botas",

    "Pequeno Polegar", "Cinderela" e "Os desejos ridculos" ('The ridiculous wishes") - comparando-as

    com alguns dos contos camponeses que tratam dos mesmos temas.

    No "Gato de Botas", um moleiro pobre morre, deixando o moinho para seu filho mais velho, um asno

    para o segundo e apenas um gato para o terceiro. "Nem um tabelio nem um advogado foram

    chamados", observa Perrault. "Eles teriam devorado o pobre patrimnio". Estamos, obviamente, na

    Frana, embora outras verses desse tema existam na sia, frica e Amrica do Sul. Os costumes

    referentes herana dos camponeses franceses, e tambm da nobreza, muitas vezes impediam a

    fragmentao do patrimnio, com o favorecimento do filho mais velho. O filho mais novo do imoleiro,

    contudo, herda um gato que um gnio para a intriga domstica. Em toda parte, em torno dele, esse

    gato cartesiano v vaidade, estupidez e apetite insatisfeito; e ele explora tudo com uma srie de truques

    que resultam num casamento rico para seu dono e uma bela propriedade para si mesmo - embora, nas

    verses pr-Perrault, o dono, no fim, logre o gato - que, na verdade, uma raposa e no usa botas

    Um conto da tradio oral, "La Renarde" (conto tipo 460), comea de maneira parecida: "Era uma vez

    dois ir mos que receberam as heranas que o pai deixara para eles. O mais velho, Joseph, ficou com a

    fazenda. O mais novo, Baptiste, recebeu apenas um punhado de moedas; e, como tinha cinco filhos e

    muito pouco com que aliment-los, caiu na indigncia". (28) Desesperado, Baptiste implora trigo a seu

    irmo. Joseph lhe diz para despir seus farrapos, tomar chuva nu e rolar no celeiro. Ele pode ficar com

    todo o trigo que se grudar a seu corpo. Baptiste submete-se a esse exerccio de amor fraterno, mas no

    consegue pegar alimento suficiente para manter sua famlia viva e ento sai pela estrada. Finalmente,

    encontra-se com uma fada bondosa, La Renarde, que o ajuda a decifrar uma srie de enigmas que

    conduzem a um pote de ouro enterrado e realizao do sonho de um campons - uma casa, campos,

    pastagens, bosques: "E seus filhos comiam um pedao de bolo todos os dias". (29)

    "Pequeno Polegar" ("Le Petit Poucet", conto tipo 327) uma verso francesa de "Joo e Maria",

    embora Perrault tirasse seu ttulo de um conto do tipo 700. Proporciona uma viso do universo

    maltusiano, mesmo na verso atenuada de Perrault: "Era uma vez um lenhador e sua mulher, que

    tinham sete filhos, todos meninos ... Eram muito pobres e seus sete filhos se tornaram um pesado

    fardo, porque nenhum tinha idade suficiente para se sustentar... Chegou um ano muito difcil e a fome

    era to grande que essa pobre gente decidiu livrar-se dos filhos". O tom casual sugere como se tornara

    comum a morte de crianas, no incio da Frana moderna. Perrault escreveu seu conto em meados de

    1690, no auge da pior crise demogrfica do sculo XVII - perodo em que a peste e a fome dizimavam

    a populao do norte da Frana, quando os pobres comiam carnia atirada nas ruas por curtidores,

    quando eram encontrados cadveres com capim na boca e as mes "expunham" os bebs que no

    podiam alimentar, para eles adoecerem e morrerem. Abandonando seus filhos na floresta, os pais do

    Pequeno Polegar tentavam enfrentar um problema que acabrunhou os camponeses muitas vezes, nos

    sculos XVII e XVIII - o problema da sobrevivncia durante um perodo de desastre demogrfico.

    O mesmo tema existe nas verses camponesas do conto e em outros contos, juntamente com outras

    formas de infanticdio e maus-tratos infligidos a crianas. Algumas vezes, os pais lanam seus filhos

    estrada, para que se tornem mendigos e ladres. Outras vezes, fogem eles prprios, deixando as

    crianas mendigarem em casa. E, ainda outras, vendem os filhos ao diabo. Na verso francesa do

    "Aprendiz de feiticeiro" ("La pomme d'orange", conto tipo 325), um pai oprimido por "tantos filhos

    quantos buracos h numa peneira", (30) frase que aparece em muitos contos e deve ser tomada como

    uma hiprbole sobre a presso maltusiana, em vez de um dado efetivo sobre o tamanho da famlia.

    Quando chega um novo beb, o pai o vende ao diabo (um feiticeiro, em algumas verses), recebendo

    em troca uma despensa cheia, capaz de durar doze anos. No fim desse perodo, ele recebe o menino de

    volta, graas a um artificio que o menino concebe, porque o pequeno patife aprendeu um repertrio de

    truques durante seu aprendizado, inclusive o poder de se transformar em animais. Antes de muito

    tempo, o armrio est vazio e a famlia enfrenta outra vez a inanio. O menino, ento. transforma-se

    num co de caa, de modo que seu pai pode vend-lo mais uma vez ao demnio, que reaparece como

  • caador. Depois que o pai recebe o dinheiro, o cachorro foge e volta para casa, sob a forma de um

    menino. Tentam o mesmo truque de novo com o menino transformado em cavalo. Desta vez, o dem-

    nio consegue uma coleira mgica que impede o cavalo de tornar a se transformar em menino. Mas um

    trabalhador rural leva o cavalo para beber num lago, dando-lhe, assim uma oportunidade de fugir sob a

    forma de uma r. O demnio se transforma num peixe e est prestes a devor-lo quando a r se

    transforma num pssaro. Ento, o demnio se transforma em guia e persegue o pssaro, que voa para

    o quarto de um rei agonizante e toma a forma de uma laranja Ento, o demnio aparece como um

    mdico e pede a laranja prometendo, em troca, curar o rei. A laranja derrama-se no cho, transformada

    em gros de milho, O demnio se transforma num frango e comea a engolir os gros. Mas o ltimo

    gro se transforma numa raposa que, finalmente, ganha o concurso de transformaes devorando o

    frango. O conto no apenas proporciona divertimento. Dramatiza a luta pelos recursos escassos, que

    opunha os pobres aos ricos, o "pequenos" (menu peuple, petites gens) aos "grandes" (les gros, les

    grands). Algumas verses tornam o comentrio social explcito, colocando o demnio no papel de um

    seigneur. e concluindo, no final: "E assim o servo comeu o patro ". (31)

    Comer ou no comer, eis a questo com que os camponeses se defrontavam, em seu folclore, bem

    como em seu cotidiano. Aparece em inmeros contos, muitas vezes em relao com o tema da

    madrasta m, que deve ter tido especial ressonncia em torno s lareiras do Antigo Regime, porque a

    demografia do Antigo Regime tornava as madrastas figuras extremamente importantes na sociedade

    das aldeias. Perrault fez justia ao assunto, em "Cinderela", mas negligenciou o tema correlato da

    subnutrio, que se destaca nas verses camponesas do conto. Numa verso comum ("La Petite

    Annette", conto tipo 511), a madrasta m d pobre Annette apenas um pedao de po por dia e faz

    com que ela cuide das ovelhas, enquanto suas gordas e indolentes irms postias vagueiam pela casa e

    jantam carneiro, deixando os pratos para Annette lavar, ao voltar dos campos. Annette est a ponto de

    morrer de inanio, quando a Virgem Maria aparece e lhe d uma varinha mgica, que produz um

    magnfico banquete, todas as vezes em que Annette toca com ela uma ovelha negra. No demora muito

    e a menina est mais gorducha que suas irms postias. Mas sua beleza recm-adquirida - e a gordura

    corresponde beleza, no Antigo Regime, como em muitas sociedades primitivas -desperta as suspeitas

    da madrasta. Atravs de um artificio, a madrasta descobre a ovelha mgica, mata-a e serve seu fgado a

    Annette. Annette consegue, secretamente, enterrar o fgado e ele se transforma numa rvore, to alta

    que ningum consegue colher suas frutas, a no ser Annette; porque baixa seus ramos para ela, sempre

    que se aproxima. Um prncipe de passagem (que to guloso como todos os demais no pas) descia

    tanto as frutas que promete casar-se com a donzela que conseguir colher algumas para ele. Esperando

    casar uma de suas filhas, a madrasta constri uma grande escada. Mas, quando vai experiment-la, cai

    e quebra o pescoo. Annette, ento, colhe as frutas, casa-se com o prncipe e vive feliz para sempre.

    A subnutrio e o abandono pelos pais esto juntos em vrios contos, marcadamente em "La Sirne et

    1'pervier" (conto tipo 316) e "Brigitte, la maman qui m'a pas fait, mais m'a nourri" (conto tipo 713). A

    procura de comida pode ser encontrada em quase todos eles, mesmo em Perrault, na qual aparece sob

    forma burlesca, em "Os desejos ridculos". Um pobre lenhador tem a promessa de ver satisfeitos trs

    desejos, quaisquer que sejam, como recompensa por uma boa ao. Enquanto ele rumina, seu apetite o

    domina; e deseja uma salsicha. Depois que ela aparece em seu prato, sua mulher, uma rabugenta

    insuportvel, repreende-o com tanta violncia pelo desperdcio do desejo que ele deseja que a salsicha

    cresa no nariz dela. Depois diante de uma esposa desfigurada, deseja que ela volte ao seu estado

    normal; e eles retornam sua miservel existncia anterior.

    O desejo habitualmente por comida, nos contos dos camponeses, e jamais ridculo. La Rame,

    soldado que teve baixa, arruinado, um personagem estereotipado como a enteada maltratada,

    reduzido mendicncia em "Le Diable et le marchal ferrant" (conto tipo 330). Ele divide seus ltimos

    tostes com outros mendigos, um dos quais, na verdade, So Pedro disfarado; como recompensa,

    -lhe concedido formular o desejo que quiser, e ser cumprido, Em vez de querer o paraso, pede "uma

    refeio substancial" - ou, em outras verses, "po branco e um frango". "um coelho, uma salsicha e

    tanto vinho quanto puder beber", "fumo e a comida que ele viu na estalagem", ou "ter sempre um

  • pedao de po". (32) Quando recebe varinhas de condo, anis mgicos ou auxiliares sobrenaturais, o

    primeiro pensamento do heri campons sempre para a comida. Jamais demonstra qualquer

    imaginao, em seu pedido. Simplesmente, fica com o plat du jour, que sempre o mesmo: e slido

    passadio campons, que pode variar com a regio. como no caso dos "bolos, po frito e pedaos de

    queijo" (canistrelli e fritelli, pezzi de broccio) servidos num banquete corso. (33) Em geral, o narrador

    campons no descreve a comida com detalhes. Destitudo de qualquer noo de gastronomia,

    simplesmente enche bem o prato de seu heri; e se quer dar um toque extravagante, acrescenta: "Havia

    at guardanapos". (34)

    Uma extravagncia se destaca, nitidamente: a carne. Numa sociedade de vegetarianos de facto, o luxo

    suprem, era cravar os dentes numa costeleta de carneiro, em carne de porco ou de boi. O banquete de

    casamento, em "Royaume des Valdars" (conto tipo 400), inclui porcos assados que circulam com

    garfos enfiados nos flancos, de modo que os convidados podem servir-se de bocados j trinchados. A

    verso francesa de uma histria de fantasmas comum, "La Goulue" (conto tipo 366), fala de uma moa

    camponesa que insiste em comer carne todo dia. Incapazes de satisfazer esse extraordinrio anseio,

    seus pais lhe servem uma perna que cortaram de um cadver recm-enterrado. No dia seguinte, o

    cadver aparece diante da moa, na cozinha. Ordena-lhe que lave sua perna direita, depois a esquerda.

    Quando ela v que a perna esquerda est faltando, ele grita: "Voc a comeu". Depois, carrega-a

    consigo para o tmulo e a devora. As verses inglesas posteriores do conto, especialmente "The golden

    arm" ("O brao de ouro"), que Mark Twain tornou famosa, tm a mesma trama, sem o aspecto

    carnvoro - o elemento essencial que parece ter garantido o fascnio da histria para os camponeses do

    Antigo Regime. Mas, empanturrem-se eles de carne ou de papa, a barriga cheia vem em primeiro

    lugar, entre os desejos dos heris camponeses da Frana. Era tudo a que aspirava a Cinderela

    camponesa, embora tivesse conseguido um prncipe. "Ela tocou a ovelha negra com a varinha de

    condo. Imediatamente, uma mesa' inteiramente coberta apareceu diante dela. Podia comer o que

    quisesse e encheu a barriga".'"' Comer at se encher, comer at a exausto do apetite (manger sa

    faim) (36), era o principal prazer que tentava a imaginao dos camponeses e que eles raramente

    realizavam em suas vidas.

    Tambm imaginavam que outros sonhos se tornavam realidade, inclusive a habitual sucesso de

    castelos e princesas. Mas seus desejos, usualmente, permaneciam fixados em objetos comuns do

    mundo cotidiano. Um heri consegue "uma vaca e algumas galinhas"; outro, um armrio cheio de

    panos de linho. Um terceiro contenta-se com trabalho leve, refeies regulares e um cachimbo cheio de

    fumo. E, quando chove ouro na lareira de um quarto, usa-o para comprar "alimentos, roupas, um

    cavalo, terras". (37) Na maioria dos contos, a satisfao dos desejos se torna um programa para a

    sobrevivncia, no uma fantasia ou uma fuga.

    Apesar de ocasionais toques de fantasia, portanto, c: contos permanecem enraizados no mundo real.

    Quase seu pre acontecem dentro de dois contextos bsicos, que correspondem ao cenrio dual da vida

    dos camponeses nos tempos do Antigo Regime: por um lado, a casa e a aldeia; por outro, a estrada

    aberta. A oposio entre a aldeia e a estrada percorre os contos, exatamente como se fazia sentir na:

    vidas dos camponeses, em toda parte, na Frana do sculo XVIII. (38)

    As famlias dos camponeses no podiam sobreviver, no Antigo Regime, a menos que todos

    trabalhassem, e trabalhassem juntos, como uma unidade econmica. Os contos populares mostram,

    constantemente, pais trabalhando nos campos, enquanto os filhos recolhem madeira, guardam as

    ovelhas, pegam gua, tecem a l, ou mendigam. Longe de condenarem a explorao do trabalho

    infantil, ficam indignados quando no ocorre. Em "Les Trois Fileuses" (conto tipo 501), um pai decide

    livrar-se de sua filha porque "ela comia mas no trabalhava". (39) Convence o rei de que ela pode tecer

    sete fuses (100,8 metros) de linho por noite - quando, na verdade, ela come sete crpes (estamos em

    Angoumois). O rei ordena moa que realize feitos prodigiosos na fiao, prometendo casar-se com

    ela, se conseguir. Trs fiandeiras mgicas, cada uma mais deformada que a outra, realizam as tarefas

    para ela e, em troca, pedem apenas para serem convidadas para o casamento. Quando aparecem, o rei

  • pergunta qual a causa de suas deformidades. Excesso de trabalho, respondem; e advertem-no de que

    sua esposa ficar igualmente horrenda, se ele permitir que continue tecendo. Assim, a moa escapa da

    escravido, o pai livra-se de uma glutona e os pobres levam a melhor sobre os ricos (em algumas

    verses, o seigneur local toma o lugar do rei).

    As verses francesas de "Rumpelstilzchen" (conto tipo 500 e algumas verses correlatas de conto tipo

    425) seguem a mesma sinopse. Uma me bate na filha, porque esta no trabalha. Quando um rei ou

    um seigneur local, que passava por ali, pergunta o que aconteceu, a me imagina um artifcio para se

    livrar do membro improdutivo da famlia. Alega que a moa trabalha em excesso, to obsessivamente,

    na verdade, que seria capaz de fiar at a palha de seus colches. Achando isso uma boa coisa, o rei

    leva consigo a moa e lhe ordena fazer trabalhos sobre-humanos: ela tem de fiar montes inteiros de

    feno, transformando-os em quartos cheios de linho; de carregar e descarregar cinqenta carroas de

    adubo por dia; de separar montanhas de trigo da palha. Embora as tarefas acabem sempre sendo

    cumpridas, graas a uma interveno sobrenatural, expressam um fato bsico da vida dos camponeses,

    de forma hiperblica. Todos enfrentavam um trabalho interminvel, sem limites, da mais tenra

    infncia at o dia da morte.

    O casamento no oferecia nenhuma fuga; ao contrrio, impunha uma carga adicional, porque submetia

    as mulheres ao trabalho no sistema de manufatura a domiclio, ("putting-out system"), alm do

    trabalho para a famlia e a fazenda. Os contos, inevitavelmente, colocam esposas de camponeses junto

    roda de fiar, depois de um dia cuidando do gado, carregando lenha ou ceifando feno. Algumas hist-

    rias apresentam quadros hiperblicos de seu trabalho, mostrando-as jungidas ao arado ou puxando

    gua de um poo com o cabelo ou, ainda, limpando foges com seus seios nus. (40) E, mesmo o

    casamento representando a aceitao de uma nova carga de trabalho e o novo perigo do parto, a moa

    pobre precisava de um dote para casar-se - a no ser que ficasse com um sapo, um corvo ou alguma

    besta horrenda. Os animais nem sempre se transformam em prncipes, embora essa fosse uma forma

    comum de escapismo. Numa verso burlesca da estratgia matrimonial camponesa ("Les Filles

    maries des animaux", conto tipo 552), os pais casam suas filhas com um lobo, uma raposa, uma

    lebre, e um porco. De acordo com as verses irlandesa e norteeuropia do conto, os casais metem-se

    numa srie de aventuras, necessrias para metamorfosear outra vez os animais em seres humanos. As

    verses francesas simplesmente contam o que os jovens casais servem, quando a me vem em visita -

    carneiro caado pelo lobo, peru que a raposa pegou, repolho surripiado pela lebre e sujeira do porco.

    Tende encontrado bons provedores, cada qual sua maneira, as filhas precisam aceitar sua sorte na

    vida; e cada qual prossegue com a atividade bsica de pilhar para sobreviver.

    Os filhos tm maior rea de ao, nos contos. Exploram a segunda dimenso da experincia

    camponesa, a vida na estrada. Os rapazes partem em busca da fortuna e, muitas vezes, a obtm, graas

    ajuda de velhas horrorosas, que pedem um pedao de po e, na verdade, so fadas bondosas

    disfaradas. Apesar da interveno sobrenatural, os heris partem para um mundo real, em geral a fim

    de fugir pobreza em casa e encontrar emprego em pastagens mais ver des. Nem sempre conquistam

    princesas. Em "La Langages des btes" (conto tipo 670), um rapaz pobre, que encontrou trabalho como

    pastor, vai socorrer uma serpente mgica. Em troca, descobre algum ouro enterrado: "Encheu , bolsos

    com ele e, na manh seguinte, conduziu seu rebanho de volta fazenda e pediu em casamento a filha

    do patro Ela era a moa mais bonita da aldeia e h muito ele a amava. Vendo que o pastor estava rico,

    o pai deu-lhe a mo da moa. Oito dias depois, estavam casados; e, como o fazendeiro e sua esposa

    eram velhos, fizeram do genro o nico patro da fazenda. (41) Esse era o teor dos sonhos, nos contos

    dos camponeses.

    Outros rapazes partem porque no h terra, trabalho nem comida onde vivem. (42) Tornam-se

    trabalhadores rurais, criados domsticos ou, na melhor das hipteses, aprendizes - de ferreiros,

    alfaiates, carpinteiros, feiticeiros, e do demnio. O heri de "Jean de l'Ours" (conto tipo 301 B) serve

    cinco anos a um ferreiro, depois vai embora com um basto de ferro, que recebe como pagamento de

    seu trabalho. Na estrada, seguido por estranhos companheiros de viagem (Torce-Carvalho e

  • Corta-Montanha), enfrenta casas assombradas, derruba gigantes, mata monstros e se casa com uma

    princesa espanhola. Aventuras corriqueiras, mas se encaixam na estrutura de um tpico tour de France.

    "Jean-sans-Peur" (conto tipo 326) e muitos dos outros heris favoritos dos contos franceses seguem o

    mesmo roteiro. (43) Suas proezas ocorrem num cenrio com o qual estaria familiarizada uma audincia

    de artesos que tivessem passado a juventude na estrada, ou de camponeses que regularmente se

    afastassem de suas famlias, depois da colheita de vero, para percorrer centenas de quilmetros como

    pastores, mascates e trabalhadores migrantes.

    Enfrentavam o perigo em toda parte, em suas viagens, porque a Frana no tinha fora policial eficaz e

    os bandidos e lobos ainda vagueavam pelas terras ermas que separavam as aldeias, em vastas

    extenses do Macio Central, do Jura, dos Vosges, das Landes e do bocage. Os homens tinham de

    abrir caminho a p atravs desse territrio traioeiro, dormindo, noite, sob montes de feno e arbustos,

    quando no podiam implorar hospitalidade em fazendas, ou pagar por uma cama numa estalagem - na

    qual ainda havia uma boa chance de terem suas bolsas roubadas, ou as gargantas cortadas. Quando as

    verses francesas do Pequeno Polegar, e de Joo e Maria, batem s portas de casas misteriosas, no

    meio da floresta, os lobos ladrando s suas costas do um toque de realismo, no de fantasia. bem

    verdade que as portas so abertas por ogres e feiticeiras. Mas, em muitos contos ("Le Garon de chez

    la bcheronne", conto tipo 461 por exemplo), as casas abrigam quadrilhas de bandidos, como as de

    Mandrin e Cartouche, que realmente tornavam as viagens arriscadas, no sculo XVIII. Viajar em grupo

    dava proteo, mas no se podia jamais confiar nos companheiros de estrada. Poderiam salvar a pessoa

    do desastre, como em "Moiti Poulet" (conto tipo 563) e "Le Navire sans pareil" (conto tipo 283); ou

    poderiam ata, quando farejavam algo para roubar, como em "Jean l'Ours" (conto tipo 302). O pai de

    Petit Louis tinha razo quando aconselhou o menino a jamais viajar com um corcunda, um aleijado ou

    um cacous (um cordoeiro, semelhante a um pria) (conto tipo 531). Qualquer coisa fora normal

    representava uma ameaa. Mas nenhuma frmula era adequada para perceber o perigo, na estrada.

    Para a maioria da populao que entulhava as estrada Frana, a busca de fortuna era um eufemismo

    para mendicncia. Os mendigos se apinham, nos contos; verdadeiros mendigos, no simplesmente

    fadas disfaradas. Quando a pobreza esmaga uma viva e seu filho, em "Le Bracelet" (conto tipo 590),

    eles abandonam sua cabana, na periferia da aldeia, e vo para a estrada, carregando todos seus bens

    num nico saco. Sua trajetria leva-os para uma floresta ameaadora, uma quadrilha de assaltantes o

    asilo de indigentes, antes que venha o socorro, finalmente de um bracelete mgico. Em "Les Deux

    Voyageurs" (conto tipo 613), dois soldados que haviam dado baixa jogam dados para ver qual deles

    dever ter os olhos arrancados. Desesperados por comida, no conseguem pensar em nenhuma maneira

    de sobreviver, a no ser atuando com uma equipe de mendigos, o cego e seu guia. Em "Norous"

    (conto tipo 563), uma simples colheita de linho representa a diferena entre a sobrevivncia e a

    penria, para um famlia de camponeses que vive num pequeno lote de terra. A colheita boa, mas o

    mau vento Norous sopra o linho para longe, enquanto seca no campo. O campons parte com um

    porrete, para espancar Norous at a morte. Mas fica sem provises e logo forado a implorar

    pedaos de po e um cantinho no estbulo, como qualquer mendigo. Finalmente, encontra Norous no

    alto de uma montanha. "Devolva-me meu linho! Devolva-me meu linho!", grita. Apiedando-se dele, o

    vento d-lhe uma toalha de mesa encantada, que produz uma refeio sempre que desdobrada. O

    campons "enche a barriga" e passa a noite seguinte numa estalagem, mas roubado pela estalajadeira.

    Depois de mais duas rodadas com Norous, recebe uma vara mgica, que surra a estalajadeira,

    forando-a a devolver a toalha. O campons vive feliz - ou seja, com a despensa cheia - para sempre,

    mas o conto ilustra o desespero dos que vacilam na linha de separao entre a pobreza na aldeia e a

    penria na estrada. (44)

    Assim, sempre que algum procura, por trs de Perrault, as verses camponesas de Mame Ganso,

    encontra elementos de realismo - no narrativas fotogrficas sobre a vida no ptio da estrebaria (os

    camponeses no tinham, na realidade, tantos filhos quanto os buracos de uma peneira, e no os

    comiam), mas um quadro que corresponde a tudo que os historiadores sociais conseguiram

    reconstituir, a partir do material existente nos arquivos. O quadro cabvel, e essa adequao uma

  • decorrncia lgica. Mostrando como se vivia, terre terre, na aldeia e na estrada, os contos ajudavam

    a orientar os camponeses. Mapeavam os caminhos do mundo e demonstravam a loucura de se esperar

    qualquer coisa, alm de crueldade, de uma ordem social cruel.

    Mostrar que, por trs das fantasias e do divertimento escapista dos contos populares, existe um

    substrato de realismo social, no significa, no entanto, que se deva levar muito longe a demonstrao.

    (45) Os camponeses poderiam ter descoberto que a vida era cruel sem a ajuda de "Chapeuzinho

    Vermelho". A crueldade pode ser encontrada nos contos populares e na Histria social em toda parte,

    da ndia Irlanda e da frica ao Alasca. Se desejarmos ir alm das generalizaes vagas, ao

    interpretarmos os contos franceses, precisamos saber se alguma coisa os distingue de outras

    variedades. Precisamos fazer pelo menos uma rpida tentativa de anlise comparativa.

    Consideremos, em primeiro lugar, a Mame Ganso, que mais familiar aos que falam o ingls.

    Segundo a opinio geral, a dspar coletnea de canes de ninar, rimas e canes obscenas que

    passaram a se relacionar com o nome de Mame Ganso na Inglaterra, no sculo XVIII, tem pouca

    parecena com a coletnea de contos recolhidos por Perrault para seu Contes de ma mre Voye, na

    Frana, no sculo XVII. Mas a Mame Ganso inglesa to reveladora, sua maneira, quanto a

    francesa; e, felizmente, boa parte do seu material pode ser datada, porque os versos proclamam sua

    natureza de criaes de um determinado perodo. "No cerco da Ilha Bela" ("At the siege of Belle Isle")

    pertence Guerra dos Sete Anos, "Yankee Doodle" Revoluo Americana, e "O nobre e antigo

    Duque de York" ("'The Grand Old Duke of York) s guerras revolucionrias francesas. Seus versos, no

    entanto, na maioria parecem ser relativamente modernos (ps-1700), apesar das persistentes tentativas

    de relacion-los a nomes e eventos de um passado mais remoto. Especialistas como lona e Peter Opie

    encontraram poucas provas das afirmaes de que Humpty Dumpty era Ricardo III; de que Curly Locks

    era Carlos II; Wee Willie Winkie, Guilherme III; e de que a Pequena Senhorita Muffet fosse Maria,

    Rainha da Esccia, ou a aranha John Knox. (46)

    De qualquer maneira, o significado histrico dos versos est mais em seu tom que em suas aluses.

    Tm mais vivacidade e fantasia que os contos franceses e alemes, talvez porque tantos deles

    pertencem ao perodo posterior ao sculo XVII, quando a Inglaterra se libertou do domnio do

    maltusianismo. Mas h um toque de agonia demogrfica em alguns dos versos mais antigos. Corno

    acontece com a equivalente inglesa da me de "Le Petit Poucet" (O Pequeno Polegar):

    Era uma vez uma velha que morava num sapato;

    Tinha tantos filhos que no sabia o que fazer.

    Como os camponeses em toda parte, ela os alimentava com caldo, embora no pudesse oferecer-lhes

    po algum; e dava vazo a seu desespero surrando-os. A dieta das outras crianas em Mame Ganso

    no era l muito melhor:

    Papa de ervilha quente,

    Papa de ervilha fria,

    Papa de ervilha na panela,

    Velha de nove dias.

    E o mesmo acontecia com suas roupas:

    Quando eu era menina,

    A pelos sete anos,

    Eu no tinha angua

    Para me proteger do frio.

    Algumas vezes, eles desapareciam pela estrada, como nestes versos do perodo Tudor-Stuart:

  • Era uma vez uma velha que tinha trs filhos

    Jerry, James e John.

    Jerry foi enforcado e James se afogou.

    John se perdeu e nunca foi encontrado.

    E assim se acabaram seus trs filhos,

    Jerry, James e John.

    A vida era dura no tempo antigo de Mame Ganso. Muitos personagens mergulham na penria:

    Trolol, Margery Daw

    Vendeu sua cama e dorme na palha.

    Outros, verdade, gozavam uma vida de indolncia, como no caso da garonete georgiana Elsie Marly

    (alis, Nancy Dawson):

    Ela no precisa levantar-se, para alimentar os porcos,

    Fica na cama at as oito ou nove horas,

    Curly Locks regalava-se com uma dieta de morangos, acar e creme; mas ela parece ter sido uma

    menina do fim do sculo XVIII. A velha Mame Hubbard, uma personagem elisabetana, tinha de

    enfrentar um armrio vazio, enquanto seu contemporneo, o Pequeno Tommy Tucker, era obrigado a

    cantar para poder jantar. Simo Simples que, provavelmente, pertence ao sculo XVII, no tinha um

    tosto. E ele era um inofensivo idiota da aldeia, ao contrrio dos ameaadores pobres errantes e

    marginais que aparecem nos versinhos mais antigos:

    Escuta, escuta,

    Os ces esto latindo,

    Os mendigos chegam cidade;

    Alguns esfarrapados,

    Outros embriagados.

    E um trajado em veludo.

    A pobreza impelia muitos personagens de Mame Ganso para a mendicncia e o roubo:

    O Natal est chegando;

    Os gansos engordam.

    Faz favor, ponha uma moeda

    No chapu do velho.

    Roubavam crianas indefesas:

    Ento veio um mendigo arrogante

    E disse que ia ficar com ela:

    Levou a minha bonequinha.

    E seus companheiros de misria:

    Era uma vez um homem que nada tinha de seu,

    Mas vieram ladres para roub-lo;

    Ele subiu rastejando at o alto da chamin,

    E eles acharam que o haviam pegado.

  • As antigas rimas contm muito nonsense e fantasia bem-humorada; mas, de vez em quando, ouve-se

    uma nota de desespero, atravs da alegria. Sintetiza vidas que eram brutalmente curtas, como no caso

    de Solomon Grundy, ou que eram acabrunhadas pela misria, como a de outra velha annima:

    Era uma vez uma velha

    Que nada tinha,

    E se dizia que essa velha

    Era louca.

    No tinha nada para comer,

    Nada para usar,

    Nada para perder,

    Nada para temer,

    Nada para perguntar,

    E nada para dar.

    E quando realmente morreu

    No tinha nada para deixar.

    Nem tudo jovialidade em Mame Ganso. Os versos mais antigos pertencem a um universo anterior,

    de pobreza, desespero e morte.

    De modo geral, portanto, os versos da Inglaterra tm alguma afinidade com os contos da Frana. No

    so realmente comparveis, no entanto, porque pertencem a gneros diferentes. Embora os franceses

    cantassem alguns contines (versos ritmados) e canes de ninar para seus filhos, jamais criaram nada

    parecido com os versos infantis ingleses; e os ingleses jamais criaram um repertrio to rico de contos

    populares como os franceses. Apesar disso, o conto popular floresceu na Inglaterra o bastante para que

    nos aventuremos a alguns comentrios comparativos e estendamos, a seguir, as comparaes Itlia e

    Alemanha, onde podem ser feitas de maneira mais sistemtica.

    Os contos populares ingleses tm muito da fantasia, do humor e dos detalhes elaborados que aparecem

    nas histrias infantis em versos. Falam de muitos personagens que so os mesmos: Simo o Simples,

    Dr. Fell, Os Homens Sbios de Gotham, Jack (Joozinho), de "A casa que Joozinho construiu" ('The

    house that Jack built"), e especialmente o Pequeno Polegar, o heri dos contos populares que deu nome

    primeira coleo importante de histrias rimadas para crianas a ser publicada na Inglaterra, Tommy

    Thumb's Pretty Song Book ("O belo livro de canes do Pequeno Polegar") (1744). (47) Mas o

    Pequeno Polegar tem pouca semelhana com seu primo francs, L Petit Poucet. O conto ingls

    detm-se em suas diabruras na excentricidade liliputiana de seu traje: "As fadas puseram-lhe um

    chapu feito com uma folha de carvalho, uma camisa de teia de aranha, palet de lanugem de cardo e

    calas de penas, Suas meias eram feitas de casca de ma e amarradas com um clio de sua me, e seus

    sapatos eram de pele de rato, com os plos na parte interna." (48) Nenhum desses detalhes iluminou a

    vida de Poucet. O conto francs (conto tipo 700) no menciona as roupas do personagem e no lhe

    oferece a ajuda de fadas nem de quaisquer outros seres sobrenaturais. Em vez disso, coloca-o num

    impiedoso universo campons e mostra como ele repele bandidos, lobos e o padre da aldeia, usando

    sua inteligncia, a nica defesa dos "pequenos" contra a ganncia dos grandes.

    Apesar de uma numerosa populao de fantasmas e duendes, o universo dos contos ingleses parece

    muito mais prazenteiro. At a matana de gigantes ocorre numa terra de fantasia; como no incio de

    "Jack the Giant Killer" ("Joozinho, o matador de gigantes"), numa verso oral:

    Houve um tempo - e que tempo bom, aquele - em que os porcos eram glutes, os cachorros

    comiam limas e os macacos mastigavam fumo, em que as casas eram cobertas com panquecas e

    as ruas pavimentadas com pudins de ameixa, e porcos assados corriam de alto a baixo pelas ruas,

    com facas e garfos enfiados nas costas, exclamando: "Venham comer-me!". Aquele era um bom

    tempo para os viajantes. (49)

  • Como um parvo, Joozinho negocia a vaca da famlia por algumas poucas favas e, depois, ascende s

    riquezas, com a ajuda de amparos mgicos - um p de feijo fantstico, uma galinha que pe ovos de

    ouro e uma harpa falante. Ele uma espcie de Simple Simon, como os Jacks e Jocks de tantos contos

    britnicos. Corajoso, mas preguioso, de bom gnio, mas cabea-dura, acaba encontrando um final

    feliz, num mundo despreocupado. Sua pobreza inicial e o agourento coro de fi-fai-fo-funs do alto do

    p de feijo no estragam essa atmosfera. Tendo superado a adversidade, Joozinho ganha sua

    recompensa e aparece, no fim, com um aspecto semelhante ao do Pequeno Jack Horner: "Ah, que

    bom rapaz eu sou!"

    O matador de gigantes francs pertence a outra espcie: Petit Jean, Parle, ou Le Petit Fteux, de

    acordo com diferentes verses da mesma histria (conto tipo 328). Um filho mais novo baixotinho,

    "extraordinariamente esperto... sempre animado e alerta", ele ingressa no exrcito com seus detestveis

    irmos mais velhos, que convencem o rei a mand-lo realizar a misso suicida de roubar o tesouro de

    um gigante. Como a maioria dos gigantes franceses, esse "bonhomme" no vive numa terra imaginria

    em alguma parte acima do p de feijo. um proprietrio de terras local, que toca violino, briga com a

    mulher e convida os vizinhos para banquetes de meninos assados. Petit Jean no apenas foge com o

    tesouro; logra o gigante, atormenta-o durante o sono, salga demais sua sopa e engoda sua mulher e

    filha, fazendo-as cozinharem a si mesmas at morrerem, num forno. Finalmente, o rei d a Petit Jean a

    tarefa aparentemente impossvel de capturar o prprio gigante. O pequeno heri parte disfarado de

    monarca e dirigindo uma carruagem na qual h uma imensa gaiola de ferro.

    "Monsieur le roi, o que est fazendo com essa gaiola de ferro?", pergunta o gigante. "Estou

    tentando pegar Petit Jean, que me pregou todo tipo de peas", responde Petit Jean. "Ele no pode

    ter sido pior para o senhor do que foi para mim. Tambm estou procurando por ele". "Mas,

    gigante, acha que bastante forte para peg-lo sozinho? Segundo dizem, ele terrivelmente

    poderoso. No tenho certeza de que possa mant-lo preso nesta gaiola de ferro. "No se

    preocupe, Monsieur le roi, posso cuidar dele sem uma gaiola; e, se quiser, vou testar a sua."

    Ento o gigante entra na gaiola. Petit Jean a tranca, E, depois que o gigante fica exausto de tentar

    quebrar as barras de ferro, Petit Jean anuncia sua verdadeira identidade e entrega sua vtima, indefesa e

    enraivecida, ao verdadeiro rei, que o recompensa com uma princesa." (50)

    Quando se mistura uma variante italiana s diferentes modalidades do mesmo tipo de conto, pode-se

    observar que o clima muda, da fantasia inglesa para a astcia francesa e o burlesco italiano. No caso do

    conto tipo 301, que trata do resgate da princesa, salva de um encantado mundo subterrneo, o heri

    ingls outro Jack, o francs outro Jean. Jack liberta sua princesa seguindo as instrues de um ano.

    Ele desce por um poo, corre atrs de uma bola mgica e mata uma sucesso de gigantes, em palcios

    de cobre, de ouro e de prata. O francs Jean tem de enfrentar ambientes mais traioeiros. Seus

    companheiros de viagem o abandonam ao demnio, numa casa assombrada, e depois cortam a corda,

    quando ele tenta subir por ela para sair do poo, depois de salvar a princesa. O heri italiano, um

    padeiro do palcio que expulso da cidade por namorar a filha do rei, segue o mesmo caminho,

    enfrentando os mesmos perigos, mas faz isso com um esprito de bufonaria, alm da bravura. O diabo

    desce pela chamin da casa assombrada numa bola mgica e tenta derrub-lo pulando entre seus ps.

    Imperturbvel, o padeiro pe-se de p sobre uma cadeira, depois sobre uma mesa e, finalmente, uma

    cadeira montada sobre a mesa, enquanto depena uma galinha - sem que a bola diablica pare de pular,

    inutilmente, em torno dele, Sem conseguir sair vencedor nesse nmero de circo, o diabo sai da bola e

    se oferece para preparar a refeio. O padeiro pede-lhe para segurar a lenha e, depois, destramente,

    corta-lhe a cabea. Usa truque parecido, no poo subterrneo, para decapitar uma feiticeira que,

    enquanto isso, raptara a princesa, Assim, acumulando truques, finalmente ganha seu verdadeiro amor.

    A trama, idntica das verses inglesa e francesa, parece aproximar-se mais da Commedia deIl' Arte que de qualquer tipo de mundo encantado. (51)

  • O aspecto bufo e maquiavlico dos contos italianos transparece com fora ainda maior quando os

    comparamos com os alemes. A verso italiana de "The youth who wanted to know what fear was"

    ("O rapaz que queria saber o que era o medo") (Grimm 4) narra o procedimento de praxe de um certo

    Alphonse-Gaston, o heri que logra o diabo, fazendo-o cair numa sucesso de armadilhas. (52) A

    Chapeuzinho Vermelho italiana engana o lobo atirando-lhe um bolo cheio de pregos embora,

    posteriormente, ele a engane, fazendo-a comer sua av e depois comendo-a. (53) O Gato de Botas italiano, como o francs, mas ao contrrio do alemo (conto tipo 545, Grimm 106), uma raposa que

    brinca com a vaidade e a credulidade de todos em torno dela, para conseguir um castelo e uma princesa

    para seu dono. E o "Barba Azul" italiano mostra como um conto pode mudar de tom, embora

    continuando com a mesma estrutura.

    Na Itlia, Barba Azul um demnio, que atrai uma sucesso de moas camponesas para o inferno, contratando-as para lavar sua roupa e, depois, tentando-as com o truque habitual da chave da porta

    proibida. A porta conduz ao inferno; ento, quando elas a abrem, irrompem chamas, chamuscando uma

    flor que ele coloca em seus cabelos. Depois que o demnio volta de suas viagens, a flor chamuscada

    mostra-lhe que as moas quebraram o tabu; e ele as atira nas chamas, uma aps a outra - at que

    encontra Lcia. Ela concorda em trabalhar para ele depois que suas irms mais velhas desaparecem. E

    tambm abre a porta proibida, mas s o suficiente para ver, num relance, suas irms nas chamas. Como

    ela teve a prudncia de deixar sua flor n