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INTRODUÇÃO O conceito de transtorno de ansiedade so- cial tem sua origem em outro mais amplo e ancestral: o conceito de neurose. Dele se deve partir. A importância de entender o histó- rico dos termos médicos talvez não en- contre um exemplo melhor do que o for- necido pela história do termo “neurose”. 1 Surge no fim do século XVIII, e seu con- ceito vai sendo apurado nas décadas se- guintes, atingindo o apogeu sob a égide da psicanálise, até quase o fim do século XX, quando o bolo unitário é subdividido, fragmentado, levando ao desaparecimen- to do conceito e ao surgimento de outros diagnósticos, entre eles o de fobia social, hoje transtorno de ansiedade social. Nas mãos do influente médico esco- cês William Cullen (1710-1790), 2 expoen- te do Iluminismo, a neurose significava qualquer crença que se caracterizasse pe- la alteração da função nervosa ou mental, claramente de delimitação física. Em sua principal obra, First Lines of the Practice of Physic, de 1977, 3 Cullen compila suas mais importantes conferên- cias e considera que todas as enfermida- des provêm de uma exaltação ou de uma depressão do tônus do sistema nervoso: [...] o estado normal do corpo é de- terminado pela “energia nervosa” de- rivada do sistema nervoso... Assim, quase todas as enfermidades, em cer- to sentido, podem ser chamadas de nervosas [...]. 4 O grande médico escocês dividiu as doenças em quatro categorias principais: febres, caquexias, transtornos locais e neu- roses. As neuroses eram um conjunto as- saz heterogêneo de doenças “sem febre, inflamação ou outras lesões tópicas”. Es- se aspecto negativo, ou seja, a ausência de uma alteração morfológica, marcará a definição de neurose nas próximas dé- cadas, de modo que, uma vez havendo a comprovação de uma base biológica pa- ra qualquer transtorno, este seria retirado do amplo conceito. 2 A definição inicial incluiria, hoje, quase 700 entidades diferentes, de dis- túrbios cardíacos a gota, de hipocondria a epilepsia e mal de Parkinson. Autores, como Michel Neve, 5 enten- dem nessa concepção de Cullen, colocan- do a mente como produto do cérebro, o início da moderna psiquiatria. No século XIX, o termo “neurose” vai ganhando contornos mais precisos em 1 Histórico Táki Athanássios Cordás

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INTRODUÇÃO

O conceito de transtorno de ansiedade so-cial tem sua origem em outro mais amplo e ancestral: o conceito de neurose. Dele se deve partir.

A importância de entender o histó-rico dos termos médicos talvez não en-contre um exemplo melhor do que o for-necido pela história do termo “neurose”.1 Surge no fim do século XVIII, e seu con-ceito vai sendo apurado nas décadas se-guintes, atingindo o apogeu sob a égide da psicanálise, até quase o fim do século XX, quando o bolo unitário é subdividido, fragmentado, levando ao desaparecimen-to do conceito e ao surgimento de outros diagnósticos, entre eles o de fobia social, hoje transtorno de ansiedade social.

Nas mãos do influente médico esco-cês William Cullen (1710-1790),2 expoen-te do Iluminismo, a neurose significava qualquer crença que se caracterizasse pe-la alteração da função nervosa ou mental, claramente de delimitação física.

Em sua principal obra, First Lines of the Practice of Physic, de 1977,3 Cullen compila suas mais importantes conferên-cias e considera que todas as enfermida-des provêm de uma exaltação ou de uma depressão do tônus do sistema nervoso:

[...] o estado normal do corpo é de-terminado pela “energia nervosa” de-rivada do sistema nervoso... Assim, quase todas as enfermidades, em cer-to sentido, podem ser chamadas de nervosas [...].4

O grande médico escocês dividiu as doenças em quatro categorias principais: febres, caquexias, transtornos locais e neu-roses.

As neuroses eram um conjunto as-saz heterogêneo de doenças “sem febre, inflamação ou outras lesões tópicas”. Es-se aspecto negativo, ou seja, a ausência de uma alteração morfológica, marcará a definição de neurose nas próximas dé-cadas, de modo que, uma vez havendo a comprovação de uma base biológica pa-ra qualquer transtorno, este seria retirado do amplo conceito.2

A definição inicial incluiria, hoje, quase 700 entidades diferentes, de dis-túrbios cardíacos a gota, de hipocondria a epilepsia e mal de Parkinson.

Autores, como Michel Neve,5 enten-dem nessa concepção de Cullen, colocan-do a mente como produto do cérebro, o início da moderna psiquiatria.

No século XIX, o termo “neurose” vai ganhando contornos mais precisos em

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HistóricoTáki Athanássios Cordás

Nardi, Quevedo & Silva (orgs.)16

razão dos trabalhos com hipnose de Jean--Martin Charcot e Hippolyte Bernheim, na França, passando a representar uma forma menor de desequilíbrio psíquico. Ao contrário da psicose, na neurose não haveria perda de contato com a realida-de nem a presença de delírios e alucina-ções.

Da mesma maneira, ao contrário das psicoses, as neuroses não teriam origem orgânica – em oposição, portanto, à defi-nição original – e seriam intimamente li-gadas às questões da história pessoal dos indivíduos e a sua forma de lidar com os problemas relacionais.

Os trabalhos de Janet e, sobretudo, os de Freud acentuaram a necessidade de diferenciar uma psiquiatria dos asilos e hospitais de uma psiquiatria menos médi-ca, mais psicológica, no estudo e no trata-mento das neuroses.

Embora as neuroses e a angústia, ou a ansiedade, seu principal componen-te definidor, tenham permanecido até re-centemente como principal, e quase úni-co, rito da liturgia psicanalítica antes dos atuais trabalhos biológicos, algumas vo-zes discordantes devem ser destacadas.

As ideias de psiquiatras clínicos, co-nhecidas como constitucionalistas, propu-nham que a etiopatogenia das neuroses seria um fator “vital”, “fásico”, na estrutu-ra do indivíduo.

Kretschmer (1949) considerava que o problema central das neuroses seria uma crise do desenvolvimento biológico (Biologische Reifungskrise), uma oscilação do funcionamento endócrino.4,6

Os homens suscetíveis a “neurotiza-rem-se” teriam uma predisposição consti-tucional; diríamos: “é neurótico quem po-de, não quem quer”.

Kretschmer e Schneider, com suas concepções constitucionalistas, são dois dos pioneiros da psiquiatria alemã a con-ferir um caráter, ao menos parcialmente, biológico aos quadros neuróticos.4,6

MESMER E FLIESS

Em 1778, Mesmer,7 obrigado a deixar Vie-na, chega a Paris, centro cultural da Euro-pa desde o século XIII, curiosamente qua-se ao mesmo tempo que o jovem Philippe Pinel, então com 33 anos.

Homem de personalidade agressiva e sedutora, encontra uma cidade em ebu-lição sociocultural, uma tensão que explo-diria quase 10 anos depois com a Revolu-ção Francesa.

Mesmer, nascido e criado na Alema-nha, graduou-se em medicina em Viena, no ano de 1766, com a tese De Planeta­rum Influxu in Corpus Humanum,7 na qual ressuscita a antiga doutrina da influência dos astros, particularmente do Sol e da Lua, na saúde e na doença humanas.

Ele baseou seu texto em uma leitu-ra livre da obra de Richard Mead, De Im­perio Solis ac Lunae in Corpora Humana et Morbis Inde Oriundis, para explicar as epidemias e as doenças periódicas.8 Pri-meiro chamou essa influência cósmica de “magnetismo gravitacional” para, por fim, entronizar o termo “magnetismo animal”, propondo que um fluido magnético circu-lava pelo corpo humano e que sua distri-buição irregular era a causa das doenças em geral.

Com base nessas ideias ainda hoje insepultas (pirâmides, cristais e outras), Mesmer desenvolveu sua terapia buscan-do corrigir o equilíbrio magnético do in-divíduo posicionando-o sentado em seu famoso baquet. O baquet era um móvel construído com cordas e fios de metal no qual circulava o “fluido magnético”. Pa-ra potencializar o efeito do tratamento, o ambiente era de penumbra, com música suave de fundo, facilitando o desejado es-tado de transe ou sonambúlico.

Aparentemente, Mesmer não era um charlatão, ao contrário de uma longa fi-la de seguidores, e passou o resto de sua atribulada vida tentando provar que sua

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teoria baseada na física nada tinha de mística.

O mesmerismo, produto do entusias-mo do Iluminismo pela física, diferente-mente do que ocorreu na França, adqui-riu e manteve muitos defensores renoma-dos em países de língua germânica, nos quais se criaram até mesmo cadeiras nas universidades de Berlim e Bonn.9

As ideias de Mesmer deixaram dois subprodutos interessantes: primeiro, des-cortinaram uma grande massa de pacien-tes não contemplados nas descrições de mania, idiotia ou melancolia, ou seja, não eram flagrantemente psicóticos nem apre-sentavam depressão grave, mas tinham queixas leves de ansiedade e precisavam de ajuda; segundo, ele evidenciou a pos-sibilidade de que recursos psicológicos de sugestão e hipnotismo fossem úteis de al-guma maneira, precedendo os trabalhos de Charcot e Freud sobre neuroses e his-teria.10

Wilhelm Fliess (1858-1928) ocupou um papel de valor na pré-história da psi-canálise, sendo provável que sua impor-tância influenciando as ideias de Freud sobre as neuroses tenha sido muito negli-genciada pelos historiadores.

O próprio Freud, em 1896, em uma carta a ele endereçada, declara: “Foi você que me chamou a atenção de que há men-tiras algo verdadeiras atrás de cada fanta-sia popular.”

Otorrinolaringologista em Berlim, Fliess aproximou-se de Freud em 1887 por sugestão de Breuer, estabelecendo-se rapi-damente uma forte amizade entre ambos.

Fliess tornou-se constante confes-sor e interlocutor teórico de Freud, o que pode ser comprovado pelo conteú-do da profusa correspondência que troca-ram (1887-1902), em que não apenas se apoiam afetivamente como discutem am-biciosas ideias científicas.

Fliess é o autor da teoria da neuro-se nasal reflexa, da ideia da bissexualida-

de em todos os homens e mulheres e da teoria da periodicidade vital. Esta última, curiosíssima – um tipo de biorritmo –, su-geria que todos os processos vitais – pa-tológicos ou não – ocorriam com periodi-cidade de 28 dias em mulheres e 23 dias em homens. Ele acreditava que a primei-ra metade do ciclo (11,5 dias para os ho-mens e 14 dias para as mulheres) se ca-racterizava por maior imunidade a doen-ças, menor sensibilidade a dor e uma grande energia corporal. Na outra meta-de, as forças físicas esvairiam-se, favore-cendo o cansaço e o aparecimento ou a in-tensificação das doenças.

Essas ideias bizarras de Wilhelm Fliess foram adotadas e acrescidas das ideias do psicólogo austríaco Herman Swoboda (1873-1963), servindo de arca-bouço teórico para a teoria do biorritmo.

Em tempo, Fliess e Freud comparti-lhavam a ideia de que problemas sexuais eram a principal ou uma das principais causas da neurose.

O otorrinolaringologista de Berlim acreditava haver estreita conexão, até mes-mo anatômica, entre o nariz e os órgãos genitais.11

Todas as cartas foram destruídas por Freud, mas Fliess preservou sua correspon-dência; ao todo, surpreendentes 284 cartas.

TEORIA DAS NEUROSES DE JANET

As quatro principais neuroses da primeira metade do século XX – a neurose de angús-tia, a neurose fóbica, a histeria e a neurose obsessiva – compartilhariam de um mesmo mecanismo básico, que Janet e, posterior-mente, Henri Ey12 chamaram de “organo-gênese dinâmica”, ou “organodinâmica”.

Com base nas ideias do neurologista Huglins Jackson e do filósofo Herbert,13 o grande autor francês propunha que:

1. O organismo e a organização psíqui-ca que dele emerge se superpõem em

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um edifício dinâmico e hierarquiza-do, resultado da evolução, matura-ção e integração das estruturas es-tratificadas das funções nervosas, da consciência e da pessoa.

2. A doença é o produto da dissolução, desestruturação ou anomalia de de-senvolvimento desse edifício estrutu-ral.

3. O processo orgânico é o agente des-se acidente evolutivo: sua ação é des-trutiva ou negativa.

4. A regressão ou a imaturidade a um determinado nível atribui à doença mental suas características clínicas, o que corresponde a uma organização positiva (que ocorre como resposta à destruição orgânica).

Pierre Janet, desde seus primeiros estudos sobre o “automatismo psicoló-gico” e a “psicopatologia das neuroses” até seus últimos trabalhos sobre “a força e a debilidade psicológicas” nas doenças mentais, foi, sem dúvida, o maior defen-sor da ideia da queda da “tensão psicoló-gica” (algo como o “elã vital”, de Bergson) das estruturas superiores sobre as inferio-res como a origem das neuroses.

Assim, a fadiga e, levando à psicaste-nia, a puberdade, o casamento, a morte dos pais ou de entes queridos, grandes mudanças profissionais ou qualquer mo-mento de transição pessoal poderiam pro-vocar o aparecimento ou o agravamento da neurose.12

Embora essa formulação fosse apli-cada a todos os quadros ditos neuróticos, foi na neurose obsessiva – hoje transtor-no obsessivo-compulsivo – que recebeu maior notoriedade e divulgação.

PIERRE JANET

Pierre Janet (1859-1947) iniciou sua car-reira como aluno e depois suplente de

Théodule-Armand Ribot (1839-1916), ti-tular da cadeira de Psicologia Experimen-tal e Comparada no Collège de France, considerado o introdutor da psicologia científica e do método de exploração psi-cológica na França.

Antes de se formar em Medicina, Ja-net foi aluno da Escola Normal Superior de Paris (onde foi colega de Henri Berg-son e Emile Durkheim) e professor-subs-tituto de Filosofia, no que foi fortemen-te influenciado por seu tio Paul Janet, en-tão laureado filósofo. Durante o período em que lecionou Filosofia em Châtearoux e Le Havre, frequentou os círculos médi-cos e, a partir de um grande interesse pela hipnose (que usou durante toda a sua car-reira médica), passou a estudar o procedi-mento e suas relações com a consciência.

As sessões e as aulas de hipnose fo-ram inesquecíveis tanto para Janet quan-to para o jovem Sigmund Freud, separa-dos por poucos anos na mesma audiên-cia. A cena do mestre de ambos, Charcot, foi imortalizada em um quadro célebre, em que o professor olha impassível para o desfalecimento de uma mulher de corpete aberto e cabeça pendida.

Já em sua tese em Filosofia, no ano de 1889, intitulada L’automatisme Psycho­logique: Essai de Psychologie Expérimentale sur les Formes Inférieures De L’activité Hu­maine, Janet exibe suas primeiras ideias sobre a estratificação psíquica.

Durante seus estudos médicos, fre-quentou o serviço de Charcot, formando--se em 1893, e defendeu sua tese em Me-dicina: Contribution à L’étude des Accidents Mentaux chez les Hystériques.15

Após a morte de Charcot, seus suces-sores, Raymond, Babinski e Dejerine, não se interessaram pelo laboratório de psico-logia experimental que coordenava, e Ja-net, então, abandonou a atividade hospi-talar.16

Por não manter uma atividade médi-ca acadêmica, Janet não formou um gru-

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po de discípulos, mas suas obras, desde L’automatisme Psychologique, de 1889,14 até La Psychasthénie, de 1901, e Les Obses­sions et la Psychasthénie, de 1903,17 eram citadas com devoção em todos os círculos e congressos internacionais, sendo o au-tor sempre tratado com reverência.

Suas experiências hipnóticas su-geriram-lhe, desde o início, a existência de fenômenos inconscientes que ele preferiu denominar subconscientes e que seriam fundamentais na etiologia das neuroses.

A descrição das ideias de subcons-ciente de Janet precede às de Freud, e é improvável que Freud as desconhecesse, dado o prestígio de que o francês goza-va. Suas obras sobre a histeria (sem dúvi-da a parte mais importante de seus 20 li-vros), como L’état mental des Hystériques; les stigmates mentaux, de 1892,18 Névroses et Idées Fixes, de 1898,19 e Les Névroses, de 1909,20 foram também muito influentes para além dos círculos psiquiátricos fran-ceses, sendo citadas até na América; em-bora isso tenha acontecido em momento posterior, nos Estados Unidos, a partir do sucesso das ideias de Adolph Meyer. Os sintomas histéricos seriam criados pelas ideias fixas do subconsciente desenvolvi-das a partir de eventos vividos, em parti-cular os traumáticos, dispostos em cama-das. Em algumas situações de diminuição do controle consciente, essas camadas es-capariam e “aflorariam à consciência” de maneira desordenada.16

As teorias de Janet publicadas em suas diferentes obras são todas resultan-tes das observações em sua clínica priva-da, uma das maiores de Paris em todos os tempos.

Outro aspecto importante da biogra-fia de Pierre Janet é sua postura crítica em relação a Freud e à psicanálise, aliás, mais do que crítica, profundamente irônica.

Para Janet, o “falatório” analítico le-vava sempre ao “dogma da pansexualida-de” e a “nada mais do que isso”.21

A teoria organodinâmica de Hen-ri Ey, as concepções de personalidade de Henrik Sjöbring, os trabalhos neurofisio-lógicos de Delay e Deniker são retratos dessa forte inspiração.16

TRANSTORNO DE ANSIEDADE SOCIAL

O termo “fobia” deriva da palavra grega phobos, que significa terror e medo extre-mo.

O deus Phobos tinha como caracte-rística principal causar medo em seus ini-migos e, assim, ajudar seu pai, Ares (Mar-te para os romanos), o deus da guerra.

Phobos e seu irmão, Deimos, filhos de Ares com Afrodite, são os nomes das duas luas do planeta Marte, dados pelo astrônomo Asaph Hall, em 1877.

Enquanto a história dos conceitos de neurose, revista anteriormente, histeria, hipocondria e transtorno obsessivo-com-pulsivo recebeu maior atenção, os trans-tornos de ansiedade generalizada, de pâ-nico e de ansiedade social, em especial es-te último, tiveram pouca iluminação.

O transtorno de ansiedade social mantém-se um construto não totalmen-te claro, com limites pouco precisos, com formas mais circunscritas de transtornos de ansiedade e de personalidade.

Hipócrates, segundo a descrição de Burton em seu Anatomy of Melancholy,22 foi o primeiro a relatar o transtorno de an-siedade social, citando o caso de um indi-víduo que, devido a seu comportamento muito recolhido e isolado, não era visto ou reconhecido por suas qualidades filo-sóficas, que por sinal eram grandes. Esse indivíduo acreditava que todas as pessoas o observavam e não caminhava ou con-vivia com elas por medo de ser mal-in-terpretado ou julgado erroneamente pe-los cidadãos de Atenas. Embora os medos patológicos tenham sido referidos desde Hipócrates, o termo “fobia” só começou a

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ser utilizado na literatura médica no sécu-lo XIX, ganhando maior notoriedade com a classificação de Janet, já citada. Passou a ter, então, a concepção de medo extre-mo, fora de qualquer proporção em rela-ção ao estímulo desencadeador, que não pode ser explicado e resultando sempre na esquiva da situação ou do objeto te-mido.23

Freud tentou diferenciar as fobias específicas relacionadas a movimentos e locomoções, como a agorafobia de Wes-tphal, das fobias comuns (hoje ditas “sim-ples” ou “específicas”), como medo de tempestade, do escuro e de animais. A fo-bia era interpretada como um mecanismo de defesa contra a ansiedade e uma forma de contê-la, havendo, assim, pouco pro-pósito em focalizar a forma ou o tipo de fobia.24

As fobias aparecem como um diag-nóstico específico na classificação norte--americana (Manual diagnóstico e estatís­tico de transtornos mentais – DSM) em 1952 e então na sexta edição da Classifi­cação internacional de doenças, da Orga-nização Mundial da Saúde, em 1955. A prática, até há pouco tempo utilizada, era classificar cada fobia com base na situa-ção temida e catalogá-las por meio da adi-ção do sufixo phobia à palavra latina ou grega denotando o objeto temido.

Esse método classificatório, sugere Nardi,24 retardou o reconhecimento feno-menológico e clínico de características co-muns aos transtornos fóbicos, priorizando o conteúdo e não exagerando a forma. Foi o desenvolvimento da terapia comporta-mental que levou ao progresso diagnósti-co e ao estudo das fobias. Maks e Gelder,25 definiram o transtorno de ansiedade so-cial como o “[...] medo de comer, beber, tremer, enrubescer, falar, escrever ou vo-mitar na presença de outras pessoas”.

Foi apenas a partir dos anos de 1970 que, nos Estados Unidos, a preocupa-ção com a excessiva timidez de crianças

e adolescentes e as pesquisas de psicólo-gos do desenvolvimento mudaram seu fo-co para a timidez exagerada em adultos.26

A primeira classificação médico-clí-nica a apresentar o transtorno de ansieda-de social como uma entidade separada, à época denominada “fobia social”, foi a da American Psychiatric Association de 1980 – DSM-III.27

Conforme salientam Berrios e Link,28

entre Hipócrates e Burton, em uma ponta, e o trabalho de Marks e Gelder, em outra, pouca coisa pode ser encontrada sobre a história da ansiedade social.

Duas obras, no entanto, ambas sobre a “timidez” no fim do século XIX e início do século XX, mereceram destaque por Berrios.15

A primeira, Timidité; étude psycho­logique et morale,29 foi escrita, em 1898, por Janet, abordando a despersonalização e o déjà vu. Trata-se de um livro intimis-ta, na melhor expressão da psicologia in-trospectiva.

A segunda, uma pequena obra de maior valor psicopatológico, Les Timides et la Timidité,30 foi publicada por Paul Har-tenberg, em 1901, e reeditada em 1904 e 1910, incluindo descrições de casos clíni-cos e uma discussão sobre modelos etioló-gicos. O autor, interessado no estudo dos medos e das fobias, publica, no mesmo ano, seu outro livro, La Névrose d’angoisse. Discípulo de Ribot, ele acredita no estu-do do comportamento, e não em especu-lações sobre a “alma”. Hartenberg define a timidez como uma combinação de me-do, vergonha e embaraço em situações so-ciais que afeta o comportamento de inte-ração social, acometido por ataques (ac­cès) de medo.31

Berrios e Link,28 em indisfarçável ad-miração por Janet, enumeram os capítulos de seu livro surpreendentemente atual:

n Capítulo 2: o autor descreve os sinto-mas psicológicos e objetivos, incluindo

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tremor, instabilidade, tontura, rubori-zação.

n Capítulo 3: discute a chamada “perso-nalidade tímida” e suas características de isolamento, misoginia, tristeza, de-pressão, irritabilidade e raiva represa-da.

n Capítulo 4: dedica-se a descrever os possíveis mecanismos etiológicos, divi-dindo-os em predisponentes (vulnera-bilidade inata) e ocasionais (situação aprendida).

n Capítulo 5: descreve situações em que a timidez é patológica, e não uma me-ra timidité.

n Capítulo 6: discute o tratamento pro-pondo reasseguramento e técnicas com-portamentais semelhantes a atuais téc-nicas de exposição encoberta e ao vivo.

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