Histórico dos Estágios Interdisciplinares de Vivência

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HISTÓRICO DOS ESTÁGIOS INTERDISCIPLINARES DE VIVÊNCIA 1 A pretensão desse texto é ser apenas um apanhado geral sobre o histórico dos EIVs, analisando o desenvolvimento deste em relação direta com o contexto histórico. Antes de qualquer coisa é necessário que se diga que esse é um texto escrito com muitas mãos, é fruto de uma compilação de outros textos escritos 2 anteriormente sobre o histórico dos EIVs. Na história recente do Brasil, o último ascenso das lutas de massas remete às décadas de 70 e 80, onde se associam diversos fatores que impulsionam o povo às ruas, dentre elas: a crise do modelo de industrialização dependente, as greves sindicais e as lutas contra a ditadura e pela democracia. As mobilizações neste período envolviam milhões de pessoas, tanto em lutas econômicas (salário; terra; desemprego) quanto em lutas políticas (diretas já; anistia). Foi um momento de rearranjo e consolidação das forças de esquerda no Brasil e da construção de novos instrumentos de luta da classe trabalhadora: neste bojo surge o PT, a CUT, o MST e ressurge a UNE. Será no bojo das ações contra-hegemônicas desenvolvidas por organizações sociais e populares, com críticas severas dirigidas tanto ao modelo educacional brasileiro quanto ao projeto de desenvolvimento implementado no campo, que podemos localizar o germe de construção do EIV. A FEAB desempenhará um importante papel como canalizadora e protagonista dos processos iniciais que resultaram na construção dos primeiros estágios. As reformas sociais e econômicas no campo eram bandeiras defendidas pelos estudantes de agronomia do Brasil já na década de 50. Essas bandeiras e as reivindicações pela Reforma Agrária foram silenciadas no meio estudantil e no campo, pelo golpe de 64. Já na década de 70, os Estudantes organizados na FEAB começaram a discutir e defender abertamente as necessidades na melhoria da qualidade de ensino, questionar e criticar as transformações ocorridas na agricultura. Um marco neste período foi o início das discussões sobre a Agricultura Alternativa (AA), com os Encontros Brasileiros de Agricultura Alternativa (EBAA ´s), como marco das discussões e da crítica ao modelo de agricultura que se estabeleceu no país. O processo de abertura política e a conjuntura da década de 80 foram fundamentais para a definição da proposta política de construção dos Estágios de Vivência, o que era sustentado por três aspectos fundamentais, a saber: 1 Allan Ribeiro – militante da ANECS-Viçosa, 2012. 2 Peço licença ao Da Silva (ex-militante da FEAB-SC), ao Da Ros (Chumbinho, ex- militante da FEAB), ao Dias (Binho, ex-militante da ABEEF), ao Shikasho (Cazu, ex- militante da ABEEF), e ao Samuel (ex-militante da FEAB) por usar parte de seus textos sem me preocupar em utilizar os padrões normativos de citação. Entendam isso não como plágio, mas apenas como um esforço em realizar um texto amplo e sintético sobre o histórico dos EIVs ao qual a contribuição desses camaradas foram muito importantes e valorosas, sendo desnecessário a reescrita de seus textos e argumentações. 1

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HISTÓRICO DOS ESTÁGIOS INTERDISCIPLINARES DE VIVÊNCIA1

A pretensão desse texto é ser apenas um apanhado geral sobre o histórico dos EIVs, analisando o desenvolvimento deste em relação direta com o contexto histórico. Antes de qualquer coisa é necessário que se diga que esse é um texto escrito com muitas mãos, é fruto de uma compilação de outros textos escritos 2 anteriormente sobre o histórico dos EIVs.

Na história recente do Brasil, o último ascenso das lutas de massas remete às décadas de 70 e 80, onde se associam diversos fatores que impulsionam o povo às ruas, dentre elas: a crise do modelo de industrialização dependente, as greves sindicais e as lutas contra a ditadura e pela democracia. As mobilizações neste período envolviam milhões de pessoas, tanto em lutas econômicas (salário; terra; desemprego) quanto em lutas políticas (diretas já; anistia). Foi um momento de rearranjo e consolidação das forças de esquerda no Brasil e da construção de novos instrumentos de luta da classe trabalhadora: neste bojo surge o PT, a CUT, o MST e ressurge a UNE.

Será no bojo das ações contra-hegemônicas desenvolvidas por organizações sociais e populares, com críticas severas dirigidas tanto ao modelo educacional brasileiro quanto ao projeto de desenvolvimento implementado no campo, que podemos localizar o germe de construção do EIV. A FEAB desempenhará um importante papel como canalizadora e protagonista dos processos iniciais que resultaram na construção dos primeiros estágios.

As reformas sociais e econômicas no campo eram bandeiras defendidas pelos estudantes de agronomia do Brasil já na década de 50. Essas bandeiras e as reivindicações pela Reforma Agrária foram silenciadas no meio estudantil e no campo, pelo golpe de 64. Já na década de 70, os Estudantes organizados na FEAB começaram a discutir e defender abertamente as necessidades na melhoria da qualidade de ensino, questionar e criticar as transformações ocorridas na agricultura.

Um marco neste período foi o início das discussões sobre a Agricultura Alternativa (AA), com os Encontros Brasileiros de Agricultura Alternativa (EBAA´s), como marco das discussões e da crítica ao modelo de agricultura que se estabeleceu no país. O processo de abertura política e a conjuntura da década de 80 foram fundamentais para a definição da proposta política de construção dos Estágios de Vivência, o que era sustentado por três aspectos fundamentais, a saber:

1. A existência de uma forte crítica ao modelo de formação profissional implementado pelas Universidades brasileiras a partir da reforma universitária de 1968, cuja base filosófica estava ancorada no individualismo e no pragmatismo, visando, sobretudo, a preparação de profissionais para uma sociedade competitiva, a partir de uma formação tecnicista e fragmentada. Nesse modelo o sucesso acadêmico do estudante estava relacionado à sua capacidade de aceitar os planos e métodos elaborados pela administração da Universidade, extremamente fracionada e departamentalizada pela já citada reforma universitária. Essa situação era agravada pelo fato das Universidades brasileiras terem estabelecido ainda nos anos 60, uma série de convênios com as Universidades americanas, os quais resultaram na completa reformulação dos currículos em adequação ao modelo tecnológico preconizado pela revolução verde3. Dessa forma, a crítica a esse modelo passou a ser constante, nos fóruns do ME-AGRO, a ponto de a FEAB encaminhar uma longa campanha em favor do currículo mínimo obtendo uma vitória política inédita contra a proposta do

1 Allan Ribeiro – militante da ANECS-Viçosa, 2012.2 Peço licença ao Da Silva (ex-militante da FEAB-SC), ao Da Ros (Chumbinho, ex-militante da FEAB), ao Dias (Binho, ex-militante da ABEEF), ao Shikasho (Cazu, ex-militante da ABEEF), e ao Samuel (ex-militante da FEAB) por usar parte de seus textos sem me preocupar em utilizar os padrões normativos de citação. Entendam isso não como plágio, mas apenas como um esforço em realizar um texto amplo e sintético sobre o histórico dos EIVs ao qual a contribuição desses camaradas foram muito importantes e valorosas, sendo desnecessário a reescrita de seus textos e argumentações.3 Aqui estamos nos referindo ao modelo agrícola adotado após o golpe militar em 1964, cuja inspiração era a matriz norte-americana, com uma ênfase na modernização das médias e grandes propriedades por meio de processos tecnológicos baseados em inovações nas áreas da mecânica (máquinas e implementos), da química (agrotóxicos e fertilizantes químico-sintéticos), da biologia (sementes melhoradas) e das ciências humanas (através das técnicas de extensão rural). Esse processo ficou denominado pela literatura como uma modernização conservadora, pois a modernização tecnológica ocorreu sem uma necessária reforma na estrutura fundiária altamente concentrada no país.

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Conselho Federal de Educação em 1984. Apesar dessa importante vitória política, a implantação prática do novo currículo continuou sendo peça de ficção, sendo que a formação dos profissionais da agronomia continuou nos mesmos moldes, ou seja, extremamente fragmentada, com as suas inúmeras especialidades e distante da realidade do meio rural. Em face desse quadro e diante da ausência de uma política de estágios por parte da maioria das Universidades, surgiu a necessidade de se formular uma proposta diferenciada de estágios em sua concepção e metodologia;

2. Em face do contexto da “abertura democrática”, a luta pela terra tomou um novo impulso a partir da retomada das ocupações no final dos anos 70 e início dos 80, primeiramente nos estados da região Sul do país e, posteriormente, em todo o território nacional. As ocupações de terras foram o pontapé inicial para o processo de rearticulação da demanda pela terra represada durante todo o regime militar, principalmente a partir da fundação em 1984, na cidade de Cascavel no Paraná, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que se converteu no principal agente da luta pela reforma agrária no país. Assim, todos aqueles que concordavam com a necessidade de uma reforma agrária no Brasil passaram a apoiar direta ou indiretamente as ações do MST no país. Além disso, os assentamentos oriundos das pressões do MST passaram a se tornar uma realidade concreta a exigir não apenas do Estado, mas das Universidades e Centros de Pesquisas, um conjunto de alternativas tecnológicas viáveis à reprodução econômica e social dos agricultores assentados em correspondência a realidade por eles vivida. Tais demandas, não poderiam ser supridas pelo modelo tradicional de formação profissional oferecido pela maioria das Universidades brasileiras, pelas razões já comentadas acima;

3. Assim, a necessidade por um novo perfil profissional para trabalhar nos assentamentos vinha ao encontro das criticas que eram formuladas pelo movimento estudantil de agronomia. Colaborava ainda, o fato de haver uma afinidade político-ideológica entre a FEAB, as Executivas de Curso e o MST, quanto à necessidade de transformações profundas na sociedade brasileira, entre as quais a reforma agrária era apontada como uma das medidas urgentes e necessárias. Essa afinidade, em alguns casos se traduzia nas articulações e no contato direto mantido por algumas escolas com o MST. Essa relação política seria fundamental para o sucesso das primeiras experiências do EIV e para a difusão do mesmo como uma experiência de caráter nacional.

Esta afinidade política foi consolidada a partir de 1985, com a relação orgânica entre os estudantes de algumas escolas do Brasil com o movimento, quando este passa a realizar grandes ocupações de terras no Brasil. As escolas de Agronomia do Sul do país tomaram a iniciativa nesse processo, através de estágios, pesquisas e trabalhos de extensão, sendo exemplos: o Projeto Universidade na Roça da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; a criação do Grupo de Apoio ao Movimento Sem Terra – GAMST, em Santa Maria–RS; a criação do NOAR, no Rio de Janeiro - RJ e a criação do Grupo de Estudos em Agricultura Ecológica - GEAE, em Curitiba – PR, bem como tantas outras que poderiam ser mencionadas. Todas estas experiências eram discutidas nos Encontros Nacionais dos Estudantes e instâncias organizativas do ME das agrárias.

Do acúmulo destas discussões surgiu a proposta de realização dos Estágios de Vivência – EV, tendo como primeira experiência a realização do EV no ano de 1989, na Escola de Dourados - MS, já dentro das deliberações do 31º CONEA, realizado em Piracicaba – SP. Inicialmente tinha-se como objetivo colocar os estudantes de Agronomia em contato com a realidade agrária e agrícola do país, a fim de organizar grupos de estudo e projetos de desenvolvimento e extensão; outro objetivo era a formação de monitores para a expansão dos EV´s a nível regional e nacional.

A partir desta experiência pode-se analisar a importância do EV para o público envolvido, pois propiciava aos acadêmicos uma contribuição à formação profissional. A universidade passou a fazer uma reflexão sobre a adequação dos currículos às demandas sociais. Neste sentido, os MSP´s propiciou aos estagiários a formação de profissionais com maior comprometimento com a realidade camponesa.

Portanto, o estágio de vivência não é uma atividade que simplesmente passou a ser praticada no meio estudantil, mas é fruto do amadurecimento das discussões sobre formação profissional, que tem influências desde o

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início do ensino agronômico no Brasil e, principalmente, da conjuntura histórica de ascenso das lutas de massas e o surgimento do MST, importante organização que explicitou várias demandas aos estudantes universitários, dentre elas conhecer a realidade agrária e as dificuldades da luta pela reforma agrária e militar e trabalhar por esta causa.

– FASES HISTÓRICAS DO EIV:A divisão do histórico do EIV em fases históricas é apenas um esforço metodológico para adequar e

compreender os elementos determinantes de um período histórico. O período histórico, para nós, compreende momentos em que certos elementos da conjuntura se tornaram mais evidentes e determinantes e assim influenciaram de maneira direta na concepção, construção e abrangência da ferramenta EIV, ou seja, é um conjunto de fatores conjunturais e históricos que tornam semelhante um determinado período de tempo, sendo uns mais longos e outros mais curtos.

Atualmente consideramos as seguintes fases históricas do EIV:

1ª Fase – Nascimento – 1988 a 1990Foi no contexto de lutas e conquistas da classe trabalhadora (greves, anistia, diretas já, ocupações de terra,

constituição de 88) que surge o EIV. Sua característica principal a início era formar profissionais comprometidos com as lutas no campo e apreensão da realidade agrária in loco. Ele surge com caráter disciplinar (era EV, sem o I de interdisciplinar) e extensão não extensiva (já com o princípio da não-intervenção), com parcerias com movimentos sociais do campo e sindicatos de trabalhadores rurais.

O primeiro EV foi realizado pela escola de Dourados no Mato Grosso do Sul e reuniu estudantes de agronomia da região centro-oeste. A segunda edição do EV, ainda em caráter disciplinar, envolvendo estudantes de agronomia de 12 universidades ocorreu nos assentamentos rurais de Santa Catarina, sendo realizado pelo Núcleo de Trabalho Permanente em Movimentos Sociais da FEAB.

Como se vê, nessa fase o EV além de ser disciplinar, ainda era uma experiência localizada (no sentido que era construído por uma escola), oriunda da iniciativa de grupos de estudantes de agronomia que possuíam algum tipo de relação com o recém criado MST.

2ª Fase – Expansão – 1991 à 1996A década de 90 foi uma década de perdas para a classe trabalhadora, que saiu da ofensiva do final dos anos

80 para a completa defensiva nos anos de neoliberalismo. O ascenso das lutas de massas que haviam sido impulsionadas pelas greves do movimento operário sofreu nesse momento duras derrotas o que teve profundos impactos no PT e na CUT, principalmente.

Alguns elementos principais dessa época:1. Conjuntura internacional: havia uma grande desmoralização e crise ideológica na esquerda com

a queda do muro de Berlim e posterior fim da União Soviética4. Esses fatos políticos deram completa brecha para as teses do fim da história e das justificativas para a implantação do neoliberalismo nos países em desenvolvimento e o sistema capitalista como o mais viável e o único possível;

2. Conjuntura nacional:a. Derrota do Lula em 1989 e instalação imediata e acelerada das políticas neoliberais pelo

governo Collor e posteriormente pelos dois mandatos do FHC;b. Reestruturação produtiva – com o avanço das tecnologias e da necessidade do capital se

proteger do poder dos sindicatos, é que se inicia os processos de terceirização, flexibilização produtiva, precarização dos contratos de trabalho e demissões em massa;

4 Fato muito impactante e doloroso para a esquerda, que seria quase o mesmo que o fim do socialismo cubano para os lutadores e lutadoras de hoje.

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O marco histórico, comumente adotado pelos partidos de esquerda, do descenso das lutas de massas no Brasil é a derrota da greve dos petroleiros em 1995. Esses fatores apontados acima, combinados e entrelaçados entre si provocaram profundos impactos sobre a esquerda brasileira, das quais podemos apontar principalmente:

1. A possibilidade de vitória em 1989 e a influência de teses da social-democracia trazem para o centro da tática e estratégia a disputa eleitoral. Passa-se da crítica do Estado burguês para a disputa de cada vez mais espaço neste para executar as reformas. Esse movimento representa o abandono: (1) das lutas de massas, que se tornam no mais das vezes grandes “showmícios”, (2) da formação política, que se converte em propaganda e discurso eleitorais e (3) da agitação e propaganda que se metamorfoseiam em marketing político;

2. Enfraquecimento das organizações e movimentos dos trabalhadores, pois as frentes de massa são subvalorizadas diante os cargos legislativos e executivos no Estado burguês. Acontece aqui um afastamento das lideranças e quadros dos movimentos e sindicatos, e passam a se tornar cada vez mais burocratas e quadros de sustentação do Estado burguês;

3. Mudança de valores, postura e práticas – a esquerda abandona de vez o seu projeto de transformações sociais e consequente da construção do novo homem e da nova mulher, passando a reproduzir os valores e a ética da política burguesa. A solidariedade de classe se torna caridade e assistencialismo; democracia proletária se converte em democracia representativa; exemplo pedagógico é substituído por discursos e visibilidade; e o socialismo se torna uma palavra vazia e pouco usada;

4. Os espaços na estrutura do Estado burguês não servem de acúmulo de forças, que precisaria ser combinada com outras táticas, e se torna então um agente, usado pela esquerda, para mediar os conflitos de classe.

Apesar de todo esse movimento, é preciso destacar que ele atinge principalmente as lutas e organizações da cidade. No campo prevalece e se expande um movimento de resistência ao descenso das lutas de massas e do próprio horizonte político-ideológico das organizações da classe trabalhadora: o MST.

O MST se torna um pólo dialético da esquerda nesse período devido às seguintes causas:1. Por que a reforma agrária não acontecia (ou aconteceu). O MST já havia tido experiências na

década de 80 com o Estado burguês e sabia dos seus limites e da importância da organização e pressão popular para realizar a Reforma Agrária (“Ocupação é a única solução!”);

2. Os impactos das mudanças da década de 90 ao invés de desmobilizar as lutas camponesas apenas acirravam as contradições do campo que também recebiam uma força extra com o aumento do desemprego;

3. Fatores internos ou fortalezas internas que o próprio movimento forjou durante o seu crescimento como: a autonomia política, a estrutura organizativa, a formação de quadros, a flexibilidade das táticas, a mística entre outros.

É nesse contexto todo então, que o movimento estudantil experimentou a expansão da ferramenta EIV, que se apoio sobremaneiramente sobre os acúmulos políticos e organizativos do MST, que ganhava cada vez mais respeito em toda a esquerda brasileira.

Compreendeu não somente à expansão do EV para outras regiões do Brasil, mas houve também uma mudança significativa no seu caráter, pois a partir de então foi incorporado o princípio da interdisciplinaridade congregando uma série de outros cursos além da Agronomia.

O sucesso das primeiras experiências realizadas foi tão significativo, que em 1992 a UNESCO premiaria o EV organizado pela FEAB como iniciativa de destaque da juventude latino-americana. Além disso, em 1994 a Coordenação Nacional da FEAB (CN-FEAB) apresentou uma proposta para a implementação de um Programa Nacional de Estágio de Vivência (PNEV) a ser realizado nas escolas que faziam parte das sete regionais que compõem a FEAB. Assim, abria-se a possibilidade de se construir a experiência não somente com outros cursos, como também de expandi-la ao nível nacional. O projeto da CN-FEAB tinha outra particularidade interessante, pois indicava a

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realização do EIV não apenas com agricultores assentados, mas também com comunidades de agricultores familiares, pescadores e indígenas.

O primeiro EV com caráter interdisciplinar ocorreu no estado do Paraná no ano de 1991, sendo promovido pelo DCE da UFPR. Posteriormente foram realizados, outros estágios, a saber: em 1992 o NTP/MS-FEAB realizou um EIV em Santa Catarina, contando com a participação de 39 estudantes de 11 cursos diferentes; em 1993 seria realizado pelo e pelo NTP-JC um EIV em Areia no Estado da Paraíba; em 1995 o EIV é realizado pela CR-III-FEAB no Estado do Espírito Santo, pela UEM em Maringá-PR e pela CR-VII-FEAB em Botucatu-SP; em 1996 novas escolas realizaram o EIV, a UFPel em Pelotas-RS e a UFV em Viçosa-MG.

3ª Fase – Determinações políticasEsse período compreende um momento em que ocorre certa “massificação” das experiências do EIV pelo

país, pois as escolas antigas mantiveram a realização dos mesmos, ao mesmo tempo em que outras que nunca haviam realizado passaram a realizar estágios. As discussões sobre o EIV se intensificam no conjunto das executivas de curso e particularmente no interior da FEAB, quando surge a proposta de se desenvolver uma experiência mais avançada, qual seja o Estágio Profissional com as equipes de assistência técnica do projeto Lumiar5.

Convém não esquecer que nessa época houve um processo de intensificação das ocupações de terra pelo país, que auferiram grande visibilidade política ao MST. Foi o período em que ocorreram também os dois trágicos massacres contra os trabalhadores rurais sem terra, um deles em Corumbiara6 no Estado de Rondônia em 1995 e outros em Eldorado dos Carajás7 no Estado do Pará em 1996. Ambos os massacres causaram comoção nacional e o MST passou a receber incontáveis apoios à sua luta. A sua popularidade subiu, da mesma forma que a aprovação da população em favor da reforma agrária.

Nesse momento, iniciou-se um debate no interior da FEAB sobre a necessidade de se fundar Núcleos de Apoio à Luta pela Reforma Agrária (NARAS) com um caráter interdisciplinar nas universidades. O propósito desses núcleos era reunir os estudantes que haviam participados dos EIVs, a fim de manter uma certa continuidade nas discussões, expandindo-as na universidade e na sociedade e ao mesmo tempo servindo de reforço no apoio das ações políticas do MST.

Assim, os núcleos passaram a assumir não apenas a tarefa de realizar os EIV, mas também, na realização de seminários sobre a temática da reforma agrária, realização de mostras de fotos da luta pela terra, além do apoio logístico nas marchas e caminhadas promovidas pelo MST. Nesse período, as seguintes escolas realizaram estágios: em 1997 a CR/III-FEAB realiza o EIV em Lavras-MG, a CR/I-FEAB realiza o II EIV em Pelotas-RS e também o I Estágio Profissional; em 1998 a UFSM realiza o seu primeiro EIV em Santa Maria-RS; em 1999 a UFRRJ realiza o seu primeiro EIV.

Essa notória ampliação das experiências, apesar de aclamada como positiva pelo conjunto do movimento estudantil, trouxe também algumas preocupações. Uma delas está relacionada ao temor de que o aumento no número de EIV pudesse vir acompanhado de uma perda do seu caráter original, quer seja pelo aumento significativo do número de participantes, quer seja pela expansão sem critério, do EIV em escolas sem o devido entendimento político sobre a relação com os movimentos sociais do campo e sobre os objetivos e o caráter do EIV. Essa é sem dúvida uma preocupação que não deve ser menosprezada, haja vista que os estragos provocados por uma experiência mal sucedida nos assentamentos são difíceis de serem apagados de um dia para o outro e podem dificultar sobremaneira as futuras edições do EIV, principalmente no que se refere à relação com os MSP e com os agricultores assentados. Quanto a isso, não há receita pronta e acabada para evitar tais transtornos, a não ser a vigilância e a discussão permanente juntos ao fóruns do ME.

4ª Fase – Planificação (2003 a 2009)

5 Explicar Projeto Lumiar.6 Explicar Massacre de Corumbiara.7 Explicar Massacre de Eldorado dos Carajás.

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É fato que a maior parte da esquerda (partidos políticos e movimentos sociais) depositaram grandes esperanças com a vitória eleitoral do presidente Lula; se cumpria a grande meta-síntese desse ciclo: Lula-lá. As expectativas eram grandes pelas reformas prometidas historicamente pelo PT. Contudo, é fato também que o programa e o arco de alianças que elegeu o PT não eram o mesmo de 89. É necessário lembrar todo o processo e metamorfoses pelo qual passou a esquerda brasileira nesse período e as concessões que o PT teve de fazer para chegar à presidência.

Mesmo assim, no momento em que assume o cargo, o presidente Lula sinaliza a elaboração do II Plano Nacional da Reforma Agrária (II PNRA8). Cria-se assim uma grande expectativa pelo avanço da reforma agrária em nosso país; não é por acaso que, entre o final de 2002 até 2004, cresce enormemente o número de acampamentos e ocupações do MST.

Dentro desse quadro, de que a Reforma Agrária iria avançar, o ME de agrária, mais especificamente, a FEAB, a ENEV e, posteriormente, a ABEEF, se articulam com o INCRA e o MST para a elaboração de uma proposta de formação para os estudantes universitários que atendessem as demandas que seriam geradas pela Reforma Agrária. Havia a compreensão entre esses três atores de que a Reforma Agrária exigiria técnicos compromissados com os movimentos sociais e que não aplicassem simplesmente o mesmo pacote tecnológico que eram ensinados nos bancos universitários.

É assim, portanto, que surge o Plano Nacional de Formação (PNF), o qual a intenção era formar uma geração de intelectuais e profissionais comprometidos com a defesa da universidade pública, gratuita e de qualidade, com a luta pela terra e com a transformação da estrutura fundiária e social brasileira.

O PNF consistia nos seguintes processos, colocados em ordem seqüencial:1. Seminário de Questão Agrária (SQA):

a. É um seminário em que o objetivo é levar os assentados e acampados e principalmente as pautas e demandas desses para a universidade. Envolviam-se nesse processo também estudantes universitários que iniciam ali uma relação com o ME agrário;

b. O objetivo é ocupar a universidade pelos movimentos sociais e aproximar os estudantes da realidade desses;

2. Estágio Interdisciplinar de Vivência (EIV):a. O segundo momento do processo de formação política do PNF consistia na participação

nos Estágios Interdisciplinares de Vivências. O EIV era um espaço em que o estudante começaria a se organizar diferentemente, respaldado principalmente pela forma como os movimentos sociais se organizam e também conhecer as demandas e realidade vivida pelos assentados e acampados da Reforma Agrária;

b. O EIV, então, formava mais pela forma do que pelo conteúdo;3. Curso de Formação em Economia Política e Agricultura (CEPA):

a. Curso de formação política em que o objetivo era aprofundar na compreensão teórica das contradições da sociedade capitalista e, especificamente, a atuação do capital na agricultura;

4. Estágio Profissional:a. O objetivo seria os estudantes realizarem seus estágios curriculares obrigatórios em

associações ou cooperativas vinculadas às áreas do movimento. Seria uma forma de já integrar os estudantes no ambiente produtivo dos assentamentos e que depois de formados logo se inserissem nestes postos de trabalho;

Portanto, o PNF era um processo em que o estudante primeiro participava do SQA, depois iria para o EIV, em seguida o CEPA e por último o estágio profissional. Esse foi o plano ideal planejamento.

Para a realização completa do PNF era imprescindível a participação do INCRA, principalmente no que se refere ao financiamento das atividades. Contudo, após 6 meses de posse o presidente do INCRA Marcelo Resende, que abriria todas as portas e facilidades para os movimentos sociais foi desligado do cargo e junto a isso, os seus

8 Explicar sobre o II PNRA.6

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trabalhos e atividades foram abandonadas e adotadas outras posturas, mais intransigentes e de difícil diálogo. Dessa forma o PNF é abandonado pelo INCRA.

Com isso o movimento estudantil e os movimentos sociais não tiveram condições de financiar as atividades do PNF, além de que o processo de Reforma Agrária entrou em um período de estagnação, o que foi de frente as análises anteriores e que fundamentavam os objetivos do PNF. Assim, a única ferramenta que se consolidou nesse período de adversidades, foi o EIV – que acabou condensando, no final deste período, toda a necessidade de formação do movimento estudantil.

A morosidade da reforma agrária foi casada com o processo de reestruturação produtiva do campo. A partir de agora, a luta não se dava mais contra o latifúndio improdutivo dos “coronéis” e especuladores, mas sim contra o agronegócio9. Portanto, junto ao enfraquecimento dos movimentos sociais, devido ao fato de haver nesse período grande confusão sobre a situação do PT na presidência (se devia apoiar ou ser oposição), temos o avanço do capital sobre as atividades agrícolas.

Em meio a tudo isso, temos o movimento estudantil que constrói o EIV e os objetivos para o qual ele foi planejado se desconectarem da conjuntura histórica. Ao final desse período é recorrente as discussões sobre o inchaço da ferramenta EIV (ou o Super-EIV), que estava sendo demasiado usado pelo movimento estudantil para suprir todas as suas necessidades de formação política, e que não havia uma perspectiva política clara e consensual.

5ª Fase – Centralidade do Movimento Estudantil (2010...)Centralidade do movimento estudantil não significa diminuir a importância dos outros movimentos sociais

ou estabelecer apenas uma parceria utilitarista. A mudança de foco da formação de técnico-militantes para o de quadros do movimento estudantil é acompanhado por vários processos de amadurecimento do movimento estudantil e reflexos da conjuntura.

Alguns reflexos da conjuntura:1. Longo período de descenso das lutas de massas. A nova geração de militantes do ME é fruto de

uma conjuntura adversa para a classe trabalhadora, na sua relação contraditória com o capital e ao mesmo de fragmentação da esquerda;

2. O MST continua sendo um dos poucos movimentos sociais que atacam diretamente o capital, contudo a sua força social e influência diminuiu nesse último período, sendo cada vez mais difícil as conquistas econômicas e políticas;

3. A Reforma Agrária está estacionada e podemos até afirmar que regrediu, segundo o índice de Gini calculado pelo IBGE;

4. O país vive um momento de crescimento econômico, 5. Avanço do capital sobre as rique6. Reformas universitárias que são instituídas nas universidades públicas e privadas sem a

participação política dos estudantes e a falta de consenso no meio estudantil 7. Retomada da luta pela educação, que ganha destaque fruto dessas reformas e expansão do

ensino técnico e tecnológico e que traz a tona as contradições internas do sistema educacional brasileiro, dentre eles, principalmente, o salário dos professores das escolas

Dentro disso tudo, os movimentos sociais do campo que se articulam em torno da Via Campesina, compreende a necessidade da retomada das lutas urbanas para não ficarem no isolamento político e assim conseguirem mais força para também a Reforma Agrária, pois a Reforma. Dentro desse processo, o ME que se articula em torno do EIV também vai compreendendo a importância de se voltar para as especificidades, sem no entanto, perder a identidade de classe que o caracteriza.

9 Durante a década de 1990 o capital ainda não tinha conseguido implantar com profundidade suas mudanças de projeto para o campo brasileiro, ou seja, a chegada destas o neoliberalismo ao campo brasileiro, com o que foi denominado de agronegócio (associação do latifúndio, com os grandes produtores, transnacionais de insumos agrícolas e o capital financeiro bancos), foi atrasada, em quase uma década, se comparada às mudanças no mundo do trabalho fabril. Permanecendo muito presentes no campo brasileiro durante a década de 1990 os latifúndios improdutivos e a especulação imobiliária, dando margem ao grande crescimento do MST.

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Durante todas as 4 fases anteriores, era comum a adjetivação dos estudantes que faziam o EIV, de sem terra; os estudantes sem terra. Essa titulação se devia ao que o foco do EIV está voltado à luta dos movimentos sociais do campo e todos os elementos simbólicos e políticos eram centralizados para estes. Os estudantes saiam com a visão de que a luta verdadeira se dava no MST e que isso não acontecia no ME. Muitos estudantes saiam do EIV com ojeriza ao ME e com minha vontade de militar no MST ou, no mínimo, de que depois de formados iriam trabalhar nos movimentos sociais do campo.

Os estudantes, por exemplo, não conseguiam fazer mística sem utilizar os elementos simbólicos do campo como a terra, as sementes, os instrumentos de trabalho. Ou seja, havia uma quase completa invisibilidade da luta e importância do movimento estudantil. Não se trata aqui de sermos anacrônicos e realizarmos uma crítica pueril a esse fato, mas ao longo dos anos o que se amadureceu no EIV é a necessidade de se forjar a identidade de classe.

Formação de técnico-militantes formação de quadros do movimento estudantil

– RESUMO DAS FASES HISTÓRICAS DO EIV:

1. Nascimento (1988 a 1990): FEAB tinha uma forte crítica ao modelo de formação profissional que era atrelada aos moldes da revolução verde. Luta pela terra ganha novo impulso a partir da retomada das ocupações no final dos anos 70 e início dos anos 80. Afinidade político-ideológica entre a FEAB e o MST, faz surgir trabalhos em conjunto (grupos de estudantes com os assentamentos e acampamentos de reforma agrária), dentre elas o EV surge como uma experiência disciplinar;

2. Expansão (1991 a 1996): esforço da FEAB em nacionalizar a ferramenta com o Programa Nacional de Estágio de Vivência – indicava a realização do EIV não apenas com assentados, mas também com comunidades de agricultores familiares, pescadores e indígenas. Salto de qualidade: interdisciplinaridade. Os EIVs eram focalizados, eram construídos por escolas separadamente. O debate da formação profissional e extensão (formação profissional e modelo agrícola) é muito forte. O principal objetivo do EIV consistia em aproximar os estudantes da realidade agrária do país;

3. Determinações políticas (1997 a 2003): auge das lutas pela terra no Brasil e de destaque e peso político do MST no cenário nacional. Nesse período a tônica dos EIVs é a aproximação dos estudantes na luta pela reforma agrária, a qual este incentivava a formação dos Núcleos de Apoio à Reforma Agrária (NARAs) nas Universidades. Acontecem algumas experiências de estágio profissional. Evidenciam-se problemas com as linhas políticas adotadas pelos diferentes EIVs, como a questão da institucionalização da ferramenta e consequente perca da autonomia do movimento estudantil. Evidenciam-se também dificuldades de avançar no conteúdo político para além da agronomia;

4. Planificação (2004 a 2009): eleição do presidente Lula geram expectativas com relação à reforma agrária que é sinalizada com a elaboração, logo no início, do II Plano Nacional de Reforma Agrária (II PNRA) a qual iria gerar um excedente de profissionais na área agrária, principalmente, para trabalhar nos diversos assentamentos. Essa análise faz com que a FEAB, ENEV e ABEEF, junto ao MST e o INCRA elaborem o Plano Nacional de Formação (PNF), o qual a intenção era formar uma geração de intelectuais e profissionais comprometidos com a defesa da universidade pública, gratuita e de qualidade, com a luta pela terra e com a transformação da estrutura fundiária e social brasileira. Acontece nesse momento a estadualização da ferramenta em alguns estados, como Minas Gerais. Com o PNF a tônica do EIV era a formação de técnico-militantes para a reforma agrária;

5. Centralidade do ME: morosidade da reforma agrária nos anos do governo PT que gera como conseqüência o descenso das lutas campesinas e neste último período ressurge, timidamente, as lutas urbanas (greves unificadas). Retomada das pautas gerais da educação pelo movimento estudantil em função das várias reformas e políticas educacionais e precarização da mesma, seja pelo movimento estudantil seja, principalmente, pelos trabalhadores (professores e servidores) da educação. Acontece a estadualização e retomada da construção dos EIVs em diversos estados. O foco do EIV passa a ser a formação político-

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Page 9: Histórico dos Estágios Interdisciplinares de Vivência

militante dos quadros do movimento estudantil com estreito relacionamento com os demais movimentos sociais populares;

– FONTES BIBLIOGRÁFICAS:

CN-FEAB, NTP-MS. Estágios Interdisciplinares de Vivência. Santa Maria-RS, junho de 2005. (Cartilha azul da FEAB)DA SILVA, Claudinei Chalito. O movimento e a trajetória estudantil da agronomia. Florianópolis-SC, setembro de 1996.DA ROS, Alexandre Lima. In: Seminário Nacional dos Estágios Interdisciplinares de Vivência. Escola Nacional Florestan Fernandes – Guararema-SP, maio de 2010. DIAS, Pablo Andrade. A história recente brasileira e o MST – um breve ensaio sobre o ascenso e o descenso. Lavras-MG, 2011.SHIKASHO, Luís Henrique. Estágio Interdisciplinar de Vivência do Estado de Minas Gerais: registro de algumas experiências. Lavras-MG, 2009.Samuel.

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