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História. Uma História - História e Historiografia. Um inventário do Brasil: 1958- 2008 – uma perspectiva- Introdução Escrevo para os interessados em História. Para esses eu os convido a acompanhar-me nessas reflexões. Aqui evitarei as citações senão as que forem absolutamente necessárias, porque o objetivo dessas linhas é discorrer sobre a História e seu significado, sem o peso da erudição, – até porque o autor não seria a melhor fonte para esse intento – e o formalismo dos trabalhos acadêmicos. A essas linhas acrescento alguns comentários de leituras que influíram em minha formação e na de outros de minha geração, além de fatos e situações vividas aqui evocadas para que o leitor se situe ao tempo dessa trajetória. E ainda incluo como apêndice trabalhos redigidos ao longo de minhas atividades docentes, mais como registro de reflexões decorrentes de uma atividade intelectual formadora de minhas convicções filosóficas, teóricas e historiográficas. Os mais de quarenta anos de magistério me possibilitaram compreender o quanto é tortuoso desenvolver idéias sobre um fenômeno que nos é tão intensamente experimentado. Minha primeira convicção de que o estudo da História me era não

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História. Uma História

- História e Historiografia. Um inventário do Brasil: 1958-2008 – uma perspectiva-

Introdução

Escrevo para os interessados em História. Para esses eu os convido a

acompanhar-me nessas reflexões. Aqui evitarei as citações senão as que forem

absolutamente necessárias, porque o objetivo dessas linhas é discorrer sobre a História e

seu significado, sem o peso da erudição, – até porque o autor não seria a melhor fonte

para esse intento – e o formalismo dos trabalhos acadêmicos. A essas linhas acrescento

alguns comentários de leituras que influíram em minha formação e na de outros de

minha geração, além de fatos e situações vividas aqui evocadas para que o leitor se situe

ao tempo dessa trajetória. E ainda incluo como apêndice trabalhos redigidos ao longo de

minhas atividades docentes, mais como registro de reflexões decorrentes de uma

atividade intelectual formadora de minhas convicções filosóficas, teóricas e

historiográficas.

Os mais de quarenta anos de magistério me possibilitaram compreender o quanto é

tortuoso desenvolver idéias sobre um fenômeno que nos é tão intensamente

experimentado. Minha primeira convicção de que o estudo da História me era não

apenas interessante mas necessário ocorreu quando estudante. Foi quando participei do

Programa Nacional de Alfabetização, antes Plano, desenvolvido que fora pelo educador

Paulo Freire sob os auspícios da administração municipal de Natal (RGN) do prefeitro

Djama Maranhão, e que contou com o concurso do também educador Moacir de Góes.

Naquela capital nordestina foi implantado o projeto bem sucedido intitulado “De pé no

chão se aprende a ler”, alfabetizando em poucas horas centenas e centenas de

analfabetos e pondo-os em condições de votar e, com isso, influir nos destinos políticos

da região e depois do país, quando o presidente João Goulart nomeou ministro Paulo de

Tarso, a quem coube transformar aquela experiência num plano de âmbito nacional.

Com Paulo Freire aprendi que o conhecimento da realidade auscultando os seus

membros é muito mais importante do que toda e qualquer erudição. O povo produz sua

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história e qualquer intervenção visando elevar a sua condição de vida passa

necessariamente pela apreensão de sua vida, seus anseios e necessidades, vocabulário e

tudo quanto possa fornecer dados substantivos para a ação social e política. Nascia

naquele momento a perspectiva da História que tanto acalentava mas não sabia exprimir.

Em anexo se encontra um breve relato dessa experiência ilustrada por depoimentos de

contemporâneos, alguns mencionados e outros anônimos.

A História é vida, já dizia o historiador José Honório Rodrigues. Foi, aliás,

através de seus textos que intensifiquei meus estudos sobre essa matéria prima do

conhecimento. Antes de deparar-me com esse historiador brasileiro enveredei por

leituras dos considerados clássicos da historiografia ocidental, a começar,

evidentemente, por Marc Bloch. Lia-o, confesso hoje, mais por ter sido um combatente

da resistência francesa do que por seus méritos de historiador. Foi de seu singelo texto

sobre O Que é História, lido em duas oportunidades, que me dei conta da interferência

do momento no processo de apreensão de uma obra. No primeiro momento eu o li como

um texto introdutório ao conhecimento histórico. No segundo eu o li na cadeia. Na

realidade li um outro livro que me chamara atenção na primeira leitura desaparecera

nesta segunda, cuja dimensão do texto enveredou para outros aspectos não percebidos na

leitura anterior. Posso dizer que na primeira li o texto, na segunda o autor e personagem

daquele trabalho1.

Sem o saber estava naquele momento convidativo à reflexão, não obstante as

circunstâncias adversas, tomando ciência do significado mesmo da História em nossas

vidas, pois a leitura se encontrava condicionada a situação de vida de quem se submete à

interação com o outro, não importa se essa interação aconteça mediada por uma escrita

redigida por alguém que não mais exista senão através de suas idéias. Assim, no instante

em que terminei a segunda leitura do pequeno livro de Bloch pude me aperceber que não

estava apenas tomando contato com uma disciplina a ensinar-me o que era a História,

mas com a própria História. Era ao mesmo tempo um leitor e um protagonista de um

determinado momento histórico a determinar-me o modo de recepcionar aquele escrito

em face das condições em que se dera o seu contato com ele.

1 Como se sabe, Bloch escreveu aquele livro na prisão para atender a uma solicitação de seu filho.

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Talvez por isso, a História como aprendizado de vida sempre me fascinou mais

do que a História como inventário de feitos e fatos. O acontecer despertava mais do que

o acontecido, o que me inclinaria mais tarde a me voltar para os estudos e pesquisas na

área da História Política. Por outro lado, a sentença segundo a qual toda História é

Política, da mesma forma que toda ação política se integra a um circuito necessariamente

político, fez-me crer tratar-se de uma escolha talhada para combinar minha inserção

como cidadão e minha inclusão no rol dos aprendizes de historiador, pretensão esta que

alimentei pela primeira vez ainda nas salas de aula do ensino secundário. Nelas só me

interessavam as aulas de História, nem sempre bem desenvolvidas pelos meus

professores, segundo minhas avaliações super rigorosas, se comparadas as de seus

colegas.

Com o tempo passei a ter uma noção do que é ser um historiador, ou mais

propriamente, um profissional de História, dado que a pergunta recorrente, que sempre

me fizeram os alunos me deixava aflito para dar de pronto uma resposta que fosse ao

mesmo tempo satisfatória a mim e aos meus interlocutores. Penso que três faculdades

são necessárias para que se forme um historiador. São elas: a erudição, no sentido de um

conjunto de informações sistematizadas e bem organizadas; a pesquisa e sobretudo o

gosto de compulsar documentos; e, finalmente, a capacidade interpretativa, sem a qual

pouco valem as duas primeiras condições. Pude desenvolver essa assertiva em aulas de

Introdução à História e de Metodologia Histórica nos cursos ministrados na PUC/RJ, na

USU e na UGF, em cujos departamentos atuei como professor dessas disciplinas. Assim,

não basta ter uma teoria ou uma visão de mundo se a elas não estiverem reunidas esses

elementos que chamo de faculdades. Todos dependem exclusivamente do exercício

profissional na incessante busca de um aprendizado contínuo.

A História como ciência do movimento, numa feliz definição de Pierre Vilar, eis

o sentido que me pareceu mais próximo da visão que me arrebatara para os estudos

históricos. Não só porque o movimento traduz a sucessão de eventos a marcarem o

processo histórico, como também se aplicam as igualmente sucessivas avaliações e

reavaliações produzidas pela Historiografia. Nada, portanto, é estático, sobretudo em

razão de o passado não comportar a idéia de alguma coisa sem vida, amorfa. Dessa

maneira, aquele conceito muito difundido acriticamente segundo o qual a História é a

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ciência do passado (sic) constante em alguns manuais tradicionais de História não resista

a mais sóbria das argumentações. A própria relação entre ciência e passado não

explicava convenientemente o significado deste e tampouco acrescentava alguma coisa

para a noção de ciência, cujo emprego parecia ter o papel de argumento de autoridade.

Era ciência e portanto era autoexplicativa e pronto.

O encontro com uma dimensão científica no trato da História surgiu em minha

vida intelectual através de duas leituras de divulgação das leituras clássicas do

marxismo, as de Leo Huberman2 e a de Adam Schaff3, que mobilizaram o meu interesse

pela relação da História com a Ciência, na lógica argumentativa de Marx e Engels, de

modo a fornecer subsídios preciosos, embora genéricos, para que pudéssemos usar em

nossos debates e polêmicas com eventuais adversários ideológicos. Eram tempos de

leituras ainda superficiais, de divulgadores, alguns bem fundamentados e outros não

tanto, mas que nos faziam interessar pela História. Tínhamos alguma dificuldade em

estabelecer a conexão dos clássicos do marxismo com os objetos de estudos mais

específicos, o que acarretava generalizações sempre perigosas quanto não absolutamente

impróprias.

Antes de enveredarmos pelos caminhos dessa conversa cabem alguns

esclarecimentos. Podemos tratar o vocábulo História como substantivo, verbo e adjetivo.

Assim, quando invoco o primeiro estou a atender um sentido mais geral, aquele que

expressa o que o vocábulo contém para quem a evoca ou dele se ocupa. É o sentido de

representação de uma situação vivida, de algo significativo para a apreensão de seu

conteúdo, seja esse algo um episódio, um personagem ou uma dada situação a envolver

coletividades. Substantivamente a História está presente na nossa própria existência. Ela

é necessariamente histórica. Desse modo não somos nós que estamos na História como

se fosse alguma coisa a parte de nosso ser. Nós somos História.

Há o sentido verbal do termo. Historiar ou Historicizar representam maneiras de

se referir a maneira de examinar uma questão que pressuponha uma recorrência ao

conhecimento histórico. Não se pode conjugar o verbo se não formos capazes de detectar

os problemas apresentados ao desafio de nossos conhecimentos. É claro que a simples

2 O livro é o História da Riqueza dos Homens, traduzido e editado no Brasil pela Zahar Editores, em sucessivas edições;3 O livro se intitula História e Verdade e foi editado no Brasil pela Editora Vozes;

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conjugação do verbo não diz rigorosamente nada, pois é possível, por exemplo historiar

um filme a partir da seqüência de imagens, sem que se perceba a mensagem do cineasta.

Da mesma forma é possível analisar o mesmo filme dispensando-se as imagens

cronológicas e se centrando nos momentos em que o seu conteúdo propõe reflexões,

cujo enredo proposto pelo cineasta é apenas uma dos encaminhamentos para os

problemas apresentados.

Mas, História também possui um outro sentido, o da adjetivação, não desprezível

para ser aqui ignorada. Quando se exclama, é histórico esse seu discurso!, está-se dando

um colorido e uma ênfase a atos e pronunciamentos considerados de grande relevância.

Outros usos no mesmo sentido dotam o vocábulo de elementos dignificantes de modo a

fazer da História alguma coisa tão profundamente sentida e apreciada por quem a aplica

e a interpreta. Esse é uma das polissemias existentes para a palavra História.

No entanto, a polissemia mais conhecida e portanto comum é a que compreende

os significados de rerum gestarum e res gestae, isto é, a História contada, narrada e que

se integra à corrente da Historiografia, por ser exatamente uma espécie de escrita dos

fatos históricos; e, a História evento, que se processa enquanto acontecimentos sujeitos à

apreciação futuro ou imediata dos historiadores. Logo, a História que se faz no sentido

de sua interpretação, ou a História que se faz no sentido de atos e fatos que se registram

no tempo, são ambas produzidas pelo ser humano em suas inquietudes e ações

decorrentes de impulsos que os levam a dar sentido a espécie humana.

O gosto pela História data da origem dessa espécie. Desde o primeiro ato de

nossas vidas, tanto na acepção da vida histórica quanto na da vida individual, o caráter

histórico está presente. Na mais remota de nossas lembranças como espécie distinta

daquelas a nos ligar aos símios, de modo a se criar à idéia de um elo perdido, ponto no

qual teria sido gestada a espécie hominídea, há indícios e vestígios de uma manifestação

histórica. A Pré-história deriva exatamente desse interesse em pesquisar o transcurso

desse período antecedente ao que a documentação comprova as ações de formas

comunais e societárias da humanidade, com suas crenças e toda uma produção cultural a

distinguir-se da dos que o antecederam nessa longa caminhada em direção à reafirmação

da espécie no planeta.

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Hábito ou necessidade de se cultivar o passado, eis a característica mais

diferenciada da espécie humana em relação as demais. Na verdade, o ser humano não se

distingue tão-somente por atributos de natureza material, como o de transformar o

ambiente em que vive. Este atributo é também comum a outras espécies. O que

efetivamente as distingue dos seres humanos é que esses animais não modificam os

meios através dos quais se opera a transformação do ambiente. Eis o fator diferencial

mais destacável de nossa espécie. E para realizá-lo não bastam apenas a existência de

uma poderosa consciência das suas necessidades, se não tiver presente na percepção

dessas necessidades um inventário de domínios que se acumularam ao longo de

gerações. Dessa maneira, os antepassados são o que poderíamos chamar da ferramenta

cognitiva mais pretérita e indispensável com vistas à obtenção de uma consciência das

condições reais de sua vida.

A esse repertório de conhecimentos que foi sendo reproduzido de tempos em

tempos poderemos chamar de Historicidade. Ela pode ter outras definições, mas a que

me parece mais consistente e mais costumeiramente usual é a que a vincula ao passado

como referência para o presente. E é o seu sentido etimológico, pois se trata de fato da

idade da História, ou seja, o ajuntamento de realizações cujo contato com ele não se

pode deixar escapar, justamente para que se possa dar continuidade à epopéia da

humanidade em direção ao seu destino de plenitude insaciável. Agrega-se a esse sentido,

a idéia de uma cultura política, se a esta se entender como um conjunto de práticas

sedimentadas ao longo do tempo e do espaço, e cujo significado diz respeito a um campo

de observação da realidade, não importa se representada localmente ou universalmente.

Ciência da alteridade, assim como a Antropologia, a História incorporou uma

dimensão senão nova pelo menos mais renovada, no que se refere ao uso de métodos até

então ausentes. Trata-se do que se convencionou chamar de História do Presente. Uma

História Imediata ou que transcorra enquanto objeto de análise do Historiador em seu

próprio tempo. Os pruridos que a fizeram observar com vistas ao que se propunha ser

uma interpretação isenta de subjetividade, como se isso fosse possível em matéria de

ciência cujo sujeito e objeto são, ambos, de carne e osso, foram removidos pela

convicção de que o caráter verdadeiramente científico se encontra na construção daquilo

que resulta do trabalho inteligente do Historiador. É precisamente por intermédio deste

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trabalho que uma obra se torna não só exeqüível como capaz de ser inteligível aos que a

leiam e testemunho de época para o patrimônio cultural e científico da humanidade.

Com base nesses pressupostos penso que é o momento de avançarmos em

direção à idéia de História, seja como conceito operacional a ser trabalhado por quem a

utiliza, ou como portadora de uma identidade, de modo a situá-la no rol das ciências e,

portanto, incluindo-a na longa relação de matérias indispensáveis ao saber. Desde já

essas idéias de ciência e saber atribuídas ao conhecimento histórico impõem alguns

comentários. A exemplo do que prometi ao leitor acima, não os aborrecerei com pesadas

citações. Deixarei de lado os argumentos de autoridade, porquanto o propósito aqui é o

de manter-me no tom coloquial de uma conversa e, como tal, adicionar eventualmente

um ou outro comentário mais caudaloso quando se fizer necessário.

Quando Marx propunha ser a História uma espécie de matriz geradora de outras

ciências, ele estava considerando um elemento fundamental de sua concepção filosófica,

segunda a qual é inadmissível dispensar o dado histórico nas tarefas de elaboração do

conhecimento científico. A premissa da contextualização como condição necessária para

o cientista, não importa de que campo da ciência, é de fundamental importância e

indispensável fator para a abordagem dos fenômenos. E aí se põe a questão estrutural

mais primária da História, tal qual o dilema do ovo e da galinha. Quem nasceu primeiro?

É possível falar do indivíduo desvinculado de sua História ou desta como uma entidade

sem corpo e idéias? Sem dúvida, o problema que se coloca é de natureza epistemológica

e nos conduz a questão da atitude gregária, que sugere a impossibilidade de se examinar

o ser humano fora de seu ambiente, necessariamente coletivo, e em conseqüência,

histórico. Essa ambivalência a conjugar o particular com o geral, a individualidade e

subjetividade com a coletividade e objetividade, produz até hoje variadas leituras.

Cabe aqui uma breve incursão sobre o momento em que me tornei um historiador

assumidamente marxista. Bem depois de ter me situado no espectro da esquerda, com os

compromissos que tal definição acabam por acarretar, pus-me a ler os chamados

clássicos do marxismo, a começar, como sempre me sugeriram amigos e companheiros,

com O Capital. O apoio em leituras paralelas de marxistas igualmente credenciados para

quem deseja acrescentar a indispensável massa crítica a respeito da filosofia marxista

enveredei pela obra de Lênin. Foi dele que tive o impulso de conhecer uma das fontes do

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marxismo, o filósofo Hegel e, especialmente, a sua dialética. Recordo que após a leitura

da Lógica hegeliana e o seu estudo sobre a dialética do senhor e do escravo pude, com

convicção fundamentada, entender a importância desse filósofo para Marx, como

sentenciara Lênin, ao dizer que não se poderia compreender Marx sem que se lesse

Hegel, e em especial a sua Fenomenologia do Espírito

Acompanhei um momento dos mais fecundos das reflexões acerca da função da

História e do papel do Historiador. Esse momento ocorreu nos anos sessenta do século

passado, embora tenha suas origens no segundo pós-guerra. O debate em torno dessa

questão e das questões paralelas a essa, consistia em dar um sentido universalista para a

História, a partir da constatação de que em toda cultura a referência da História está

presente. E sua presença é visceral, inteiramente indispensável para a compreensão do

mundo e das coisas. Além disso, o responsável pelo fabrico dessa coisa visceral, o

Historiador, deveria ter um papel altamente relevante, porquanto era de sua competência

a operação de dar sentido às realidades examinadas. Em decorrência desse debate

acadêmico e intelectual, filosoficamente falando, surgira em seguida a polêmica sobre o

herói na História. Em outras palavras a indagação: quem faz a História? Os grandes

líderes ou as massas?

Indivíduos e massas, heróis e vilões, líderes carismáticos e lideranças populares,

esse leque de referências ressurgiria com certa freqüência nos tempos da Guerra Fria, e o

curioso é que não se confinava apenas no espectro da direita, mas ganhara adeptos entre

os estudiosos da esquerda no campo das ciências sociais. Se tais discussões acaloradas se

faziam quase exclusivamente impulsionadas pelas paixões ideológicas a atravessar as

mentes mais ou menos brilhantes dos seus contendores, era indiscutível a presença de

um elemento que pouco a pouco foi desaparecendo, a atitude de instigar à reflexão e a

inspirar formulações para os mais diferentes problemas da humanidade. No Brasil da

geração de meados do século vinte figuras como Alberto Guerreiro Ramos, Álvaro

Vieira Pinto e Darcy Ribeiro, este principalmente nos anos sessenta, foram dos mais

entusiastas defensores de projetos para um país que começava a se descobrir como parte

integrante de um cenário mundial do qual deveria participar como força transformadora.

Ao freqüentar os cursos do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB)

decidi-me pelo Curso de História. Antes me dividira entre esta e o Curso de Ciências

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Sociais, divisão esta que tentei ainda levar por algum tempo até que as múltiplas tarefas

me levaram a optar definitivamente pelos estudos históricos. Mas, os tempos do ISEB

me marcaram e entre essas marcas se encontra um debate surdo, nunca manifesto por

completo, entre Vieira Pinto e Anísio Teixeira. O primeiro a defender a revolução das

massas, e o educador baiano, a renovação das elites. Estava sendo praticada a querela a

envolver os protagonistas da História, fossem eles representados por coletividades

vinculadas aos segmentos sociais marginalizados ou as individualidades detentoras de

uma função específica, a de conduzir os anseios das maiorias, e para tanto serem

portadoras de certos atributos sem os quais esses objetivos não se concretizariam.

Naquela época, a História era ensinada a partir de uma sucessão interminável de

fatos, de onda destacavam-se figuras de expressão institucional, sem que se argüisse em

que condições e circunstâncias esses fatos e essas personagens se projetavam, ou que

motivações os levavam a adotar determinadas atitudes. Cultivava-se uma erudição do

quantitativo da informação, pouco importando o significado de tantos eventos para

serem memorizados pelos educandos. E esse método de transmitir volumes incalculáveis

de dados era praticado em todos os níveis de ensino, do primário ao superior. Dessa

maneira o gosto pela História era escasso, só interessando aos que nutriam uma

curiosidade quase mórbida pelas coisas do passado.

O Projeto da História Nova, uma coleção que se propunha a apresentar a História

do Brasil de uma maneira a pôr em relevo o povo brasileiro e as forças políticas

dominantes, numa clara filiação à perspectiva marxista, obteve receptividade imediata

entre os estudiosos da História fossem ou não identificados com essa perspectiva. Os

eventuais reparos críticos eram ignorados ou deixados de lado em razão de uma

novidade, cujo mérito era o de substituir aquelas visões dominantes, elaboradas em torno

de construções factuais, conservadoras e amorfas dos relatos históricos, sempre

centrados no poder instituído e limitados à esfera das instituições. E em paralelo a essas

visões vivia-se um momento de intensa agitação cultural e política, o que tornavam

ainda mais anacrônicas as narrativas derivadas dessa tendência historiográfica.

A renovação historiográfica produzida pela Escola dos Annales, de Marc Bloch e

Lucien Febvre ainda não havia sido assimilada por completo em muitas partes do

mundo, inclusive no Brasil. Em parte porque a projeção dessa Escola no mundo

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ocidental ocorre, não por acaso, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial (1945), e em

parte também pela letargia intelectual de nossos acadêmicos pouco afeitos a curiosidades

intelectuais. Até porque o fator a revolucionar o pensamento histórico trazido pela

Escola de Bloch, Febvre e o principal de seus continuadores, Fernand Braudel, era a

introdução da história-problema, isto é, a primazia no questionamento e não na

arrumação dos fatos cronologicamente, como era praxa se fazer pelo método tradicional,

o popularmente conhecido factual.

Os trabalhos desses historiadores franceses já circulavam pelas estantes de nossos

conterrâneos mais ligados às coisas que se passavam na Europa, mas a aplicação de seus

conceitos e campos novos de estudos carecia de estudos entre nós. De modo que

iniciativas como o que fora executada por Nelson Werneck Sodré e seus seguidores no

âmbito do ISEB se encontravam mais afetas à influência do marxismo do que dos

Annales. A propósito, a relação entre essa Escola a sugerir uma nova abordagem para a

investigação histórica e o marxismo seria objeto de muito interesse dos estudiosos.

Afinal, a estreita vinculação dos fatores econômicos e sociais, de modo a se entender a

indissolúvel integração dessas duas esferas, de certo modo só reforçava a análise

empreendida por Marx e seus seguidores. E isso sem que se esqueça que Marc Bloch

jamais escondeu seu apreço pelo método do Materialismo Histórico.

As muitas afinidades entre os Annales e o Marxismo não foram prontamente

identificadas pelos historiadores. Para os historiadores não marxistas o legado produzido

pelos fundadores da Nova Escola Francesa consistira tão-somente no alargamento do

campo de pesquisa dos historiadores e, sobretudo, na maior aproximação da História em

relação às Ciências Humanas. Ignoravam qualquer semelhança ou parentesco com a obra

do filósofo alemão. Essa ênfase aos novos horizontes proporcionados pela proposta dos

Annales, era uma maneira de considerar a Concepção Materialista da História como uma

corrente histórica superada, em face da incorporação de métodos e técnicas de

investigação mais eficazes no trato dos novos problemas e objetos da História. Ressaltar

o papel revisionista dos autores da primeira geração dessa Escola dos Annales era

também uma forma de promover a atualização do conhecimento histórico.

Os historiadores marxistas não reagiram com muito entusiasmo diante da

presença dos ventos novos trazidos pelo movimento renovador da Historiografia

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francesa. De um modo geral, foram pouco receptivos e poucos creditaram aos estudos

empreendidos por Bloch e Febvre um valor histórico capaz de abrir perspectivas

inovadoras para a Concepção Materialista da História. Na França essa resistência durou

pouco tempo, mas mesmo assim a incorporação de categorias e conceitos produzidos

pelos intérpretes mais destacados dos Annales não contaria com uma acolhida

plenamente favorável. E ao contrário do ideário de Marx profundamente centrado numa

leitura quase canônica, o dos Annales diversificara de tal maneira que muitas vertentes

foram concebidas e ganharam vôo próprio à revelia de seus mentores.

Até o Golpe de 1964, a presença dos Annales nas universidades brasileiras era

quase inexistente, salvo um ou outro docente mais atualizado – e eram poucos – ou

algum discente mais inquieto intelectualmente e bem informado do movimento editorial

europeu. Os grandes debates nos meios acadêmicos eram de natureza política e se

resumiam aos problemas referentes à Reforma Universitária ou então se restringiam ao

exame da voracidade do imperialismo. Vivia-se intensamente as expectativas de

mudanças de modo que as questões acadêmicas, para boa parte de uma geração

universitária, se encontravam relegadas a um plano secundário, até porque não se tinha a

pressa de uma conclusão de nossos cursos, como se observa hoje em dia desde os

primeiros anos de graduação.

Num instante em que a pesquisa na área de Ciências Sociais ainda se

circunscrevia a levantamentos de pequeno fôlego acerca de fenômenos atinentes a essas

áreas, ou a estudos eruditos cuja característica mais marcante era exatamente a dispensa

de apoio na documentação, os procedimentos metodológicos não se alteraram e, entre

outras razões, o interesse em se inteirar sobre as novidades provocadas pela introdução

de abordagens mais interdisciplinares como a dos Annales eram pouco atrativas. E nesse

vácuo entre a teimosa tradição com base na erudição e as ferramentas a integrar campos

próximos dos estudos sociais, despontariam entre nós os brasilianistas. Esses

pesquisadores de Brasil, de diferentes procedências nacionais ocupariam a cena nos anos

setenta do século próximo passado, em especial. E trouxeram senão exclusivamente o

recurso da mensuração também já presente na historiografia francesa, a da História

Serial, que no Brasil passaria a ser conhecida pelo termo de História Quantitativa. Dessa

leva predominavam os norte-americanos. Segundo relato de um deles houve um

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direcionamento de estudos para a América Latina, especialmente após a Revolução

Cubana de 1959, o que despertou a curiosidade naqueles que não tinham ainda um

objeto de estudo definido.4

É interessante a curiosa relação entre o que se passava no país, no terreno da

economia, com o que se observava na Historiografia. Vivia-se nesses anos 70 a

intensidade do crescimento econômico, habilmente transformado em desenvolvimento

para dar um sentido global de mudanças estruturais no que de fato acontecia tão-somente

nas atividades econômicas e financeiras, em função da expansão da fronteira capitalista.

Com o PIB brasileiro dando saltos consideráveis, em paralelo assistia-se na produção

histórica o domínio da História Econômica a trazer consigo também o reforço de outras

especialidades, tais como a Demografia Histórica surgida como uma componente

adicional de complementaridade e de abertura de novos horizontes naquele instante.

Foi em Nanterre, no início de 1971 que conheci um dos nomes representativos da

tendência quantitativista em História, o professor Frédéric Mauro, indicado por meu

orientador de mestrado, o professor Jacques Godechot, doyen de Toulouse, onde Mauro

tinha lecionado. Figura simpática e de bem com a vida, quando eu o conheci, era muito

querido pelos brasileiros, seus orientandos, e os estimava também. Quando esteve no

Brasil através de um convite que formalizei, mas que já contava com outras iniciativas,

como a da professora Maria Yedda Linhares, encantou-se com a idéia de estar no Brasil

e procurou saber das coisas do país, especialmente do milagre brasileiro em pleno auge

no ano de 1972, quando aqui esteve no Rio de Janeiro, se não me engano pela primeira

vez, já que depois fez mais algumas viagens sempre à convite de universidades

brasileiras. Dele traduzi o seu História Econômica Mundial, pela Zahar Editores, e por

sua indicação realizei um curso introdutório ao dele na pós-graduação de História

Econômica da UFPR, no mesmo ano de 1972.

Esse momento coincide com a expansão dos programas de pós-graduação, e as

primeiras dissertações de mestrado e teses de doutorado refletem exatamente o

predomínio da História Econômica. O profundo sentido revisionista decorrente desses

trabalhos acadêmicos não só ensejaram pistas novas para a Historiografia, como

4 Em uma entrevista, o historiador norte-americano Thomas Skidmore disse que ele mesmo se interessara pelo aprendizado do português, e portanto pelos estudos de nossa História, por uma questão de horário das aulas, mais tarde do que a de espanhol, que seguramente depois também a ele passou a interessar.

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subscreveram, na prática, uma nova tendência conceitual para os estudos históricos, cujo

elemento basilar foi a convicção de que a produção do conhecimento principia

necessariamente com a busca das fontes documentais, a análise das mesmas e sua

interpretação à luz de perspectivas centradas em problemas suscitados pelo reexame do

conhecimento sistematizado, mas ainda não totalmente satisfatório para o esclarecimento

de fatos e situações pendentes em nossa História do Brasil.

Essa hegemonia da História Econômica não se prolongou muito, porque a partir

dos anos 80 começaria o progressivo domínio da História Cultural no âmbito desses

programas de pós-graduação. A onda pós-modernista crescentemente influente aquela

ocasião iria, em paralelo, aproximar as áreas afins das Ciências Sociais, todas tendo

como pano de fundo a questão da cultura objeto dos mais trabalhados pela tendência que

se impunha lentamente. O princípio da relatividade, perfeitamente compreensível na

Antropologia, produziria na História alguns sérios problemas, uma vez que reduziria a

realidade concreta a uma mera abstração determinada pela invenção ou criação

intelectual.

Nos anos setenta, Michel de Certeau introduziu uma reflexão que se tornou

bastante discutida nos meios acadêmicos ocidentais e sob influência ainda francofônica.

Foi a questão das condições de produção do conhecimento histórico. Mais precisamente

dos meios e ferramentas de que valem os historiadores para fazerem a História. Esta

questão tem presentemente uma atualidade indiscutível, porque as normas sugeridas e

até impostas por órgãos de fomento à pesquisa e responsáveis pelas avaliações nas

universidades, dado que a produção científica é monitorada e acompanhada segundo

padrões ditados não pelos pesquisadores, mas por quem os avalia de acordo com regras

que propõem.

Entre os anos de 1950 e 1960 crescera a influência da Psicanálise no âmbito das

ciências sociais. As leituras de Freud ou sobre ele e sua obras, de Jung e seus discípulos,

bem como de Lacan, tornaram-se objetos de muitas interpolações, convergências e

divergências tanto entre os historiadores em geral como no centro do debate dos

marxistas de todos os matizes políticos e partidários. A idéia forte de libertação a

orientar as manifestações emancipacionistas dos jovens, das mulheres e das chamadas

minorias até então confinadas aos guetos pela intolerância e o preconceito que a elas se

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dirigiam criavam um ambiente favorável senão ao endosso dessas demandas pelo menos

a reflexão, de modo a estimular temas e objetos novos no campo da investigação

histórica, antropológica e sociológica, para nos limitarmos apenas às áreas das ciências

sociais e aos seus domínios mais conhecidos. Um desses subprodutos foi a Psico-história

ou psicologia histórica, no terreno dos psicólogos e psicanalistas, ou a História das

mentalidades, que trouxe consigo outras estranhas denominações tais como Metablética,

a ciência das mudanças, e derivados. Todos esses ensaios se explicam olhando-os à

distância como experimentos provocados pela forte presença dos estudos psicanalíticos e

dos próprios tratamentos psicanalíticos entre os historiadores.

Mas esse tempo libertário e de experimentos de toda ordem não permaneceria por

muito tempo. O furor empreendedor dos anos de 1970 a incrementar o consumismo

desenfreado combinara-se com a política de Reagan nos EUA dirigida contra a URSS e

os países socialistas a motivá-la a convicção de que era possível pela exaustão de

recursos desviados para operações bélicas consumir os orçamentos planificados do

sistema socialista, e com isso, previa-se a sua implosão num espaço de tempo razoável.

A previsão foi otimista demais, porque ainda dentro do período de governo Reagan a

URSS já dava sinais de esgotamento. Estava, assim, aberto o caminho para a

implantação de um novo modelo a ser implantado. Surgiam as bases econômicas,

sociais, políticas e ideológicas do neoliberalismo.

No plano mais geral ganhava força a política neoliberal, aquela cuja máxima era

de decretar o fim do Estado e a prevalência do Mercado. Antes, um até então obscuro

funcionário do Departamento de Estado dos EUA, Francis Fukuyama, escrevera sobre o

Fim da História, após constatar o lento e progressivo desaparecimento das tensões

internacionais a envolver os mundos capitalistas e socialistas. Com isso, também estaria

se concluindo o período da Guerra Fria e, portanto, em não havendo embates de

conteúdo ideológicos sustentados por sistemas políticos e institucionais, as relações

internacionais seria marcadas pelo pensamento único em matéria de ideologia. Aliás, pra

que existiriam as ideologias? A sua presença num mundo integrado e único a tornaria

inteiramente dispensável. E com o seu término também a História.

As reações foram, em geral, muito tímidas diante da escalada de uma tendência a

proclamar-se universal. Em paralelo a essa manifestação no campo do conhecimento,

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operava-se um estratagema com vistas a integrar o mundo em torno de uma espécie de

plataforma política comum. Era o Consenso de Washington, cujas lideranças sediadas na

capital norte-americana e em Londres, nas figuras do presidente Ronald Reagan e da

primeira-ministra britânica Margareth Tatcher, passaram a representá-lo e, em

conseqüência, a subscrever seus fundamentos. Estes consistiam na idéia segunda a qual

caberia ao Mercado ordenar-se à revelia de qualquer interferência dos Estados.

Proclamava-se, na verdade, a máxima do Estado mínimo. Contra isso o que se via era o

silêncio dos intelectuais, particularmente dos cientistas políticos e dos historiadores,

salvo, como sempre, as sempre honrosas exceções.

Das exceções cabe ressaltar dois nomes, dentre alguns das mais expressivas

vozes dissonantes. São eles Noam Chomsky e Eric Hobsbawm. Cada qual mereceria um

tratamento mais densamente fundamentado, não só porque são intelectuais de grande

envergadura, como suas manifestações não se limitaram a gestos isolados ou papers

meramente simbólicos, destes que os acadêmicos escrevem mais para deleite próprio do

que para interagirem, de fato, com uma comunidade de interesse maior do que a que se

constitui no âmbito das universidades. Contudo, para os limites modestos dessa reflexão

o que vale realmente é a lembrança de resistências que ambos exercitaram com a

inteligência e elegância que os caracterizam como homens de idéias. Tanto o escritor

norte-americano quanto o historiador inglês procuram examinar essa conjuntura

anestesiante com elementos de racionalidade e denúncia dos valores vigentes, de modo a

permitir aos seus interlocutores subsídios bastante estimulantes para que se possa

empreender a resistência a onda conservadora que se espraia mundo afora.

A carência de um debate qualificado e engajado remete à questão das utopias.

Como diz Immanuel Wallerstein, o conceito de utopia evoca imediatamente as obras de

Thomas More, Friedrich Engels e Karl Manheim, referências obrigatórias para quem

deseja imiscuir-se na questão. Mais do que os conteúdos que tais trabalhos possuem,

essas leituras conduzem o leitor interessado nos processos históricos, vale dizer, nos

mecanismos de decisão sobre suas próprias vidas. E aí a questão da História associada a

um interesse prático porque inerente a pessoa que se coloca diante de escolhas está

absolutamente quando se trata de considerações acerca das utopias. Assim, utopia e

desejo sempre caminharam juntas, seja na direção de um projeto político e ideológico ou

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de um propósito pessoal e amoroso. Não importa a dimensão, o que importa é a presença

de uma motivação vital sem a qual qualquer projeto fracassa.

Utópicos foram os grandes líderes da História, não exatamente os que foram

alçados por intermédio de sistemas de poder a projetá-los como tal, mas os que se

bateram com base em projetos libertários e libertadores em defesa de povos ou

comunidades submetidas a dominação interna ou externa. Utopia mais do que um

sentimento é uma atitude diante de obstáculos que impedem a realização de desejos. E

quando esta atitude se conjuga com postulados e ideários de princípios doutrinários, ela

se converte numa força difícil de ser batida, mesmo que contra ela se organizem forças

ainda mais poderosas. Para mim o exemplo mais edificante dessa atitude foi a dos

vietcongs. Estive com um desses combatentes em 1968 num encontro internacional da

juventude e revelei a minha admiração pela coragem daqueles combatentes em face dos

marines dos EUA. E respondeu-me o jovem de pequena estatura: fazemos o que é

necessário fazer.

Também nessa mesma direção se situa a sentença proferida por uma das Mães da

Praça de Mayo, da Argentina, ao dizer que o único combate que se perde em definitivo é

aquele combate do qual se desiste. A determinação é um ingrediente fundamental numa

convicção. Tê-la sem acreditar que se possa conquistar algo do qual se deseja é um mero

capricho, porque objetivamente a crença por si só de pouca valia importa. A história dos

cristãos ao longo do Império Romano atesta a necessidade de se unir convicção com

determinação. De uma das muitas utopias existentes naqueles tempos, de tantos messias,

converter-se-ia na religião oficial do mesmo Império com Diocleciano. Ou seja, de

utopia virou uma ideologia, tal como sentencia Manheim. Foi, como muitos outros

pequenos ou grandes acontecimentos, um vir-a-ser que se materializou. De resto, as lutas

sociais ou individuais contra adversidades podem também se converter em vitórias.

Não é por acaso que a décima primeira tese sobre Feuerbach, de Marx, quando o

filósofo alemão diz que até então os filósofos se limitaram a interpretar o mundo, mas

que chegara a hora de transformá-lo, tem sido uma convocação a todos quanto almejam

intervir na História em nome de um credo ou projeto de vida. Se esse projeto se destina a

todos, numa transformação que parta de uma atitude altruísta e plena de generosidade

para com os seus semelhantes, mais bem sucedida poderá se tornar essa contenda.

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Talvez tenha sido através dessa tese apresentada com tanta simplicidade, mas carregada

de sinceridade, que muitos tenham tomado partido em defesa do sentido da História

como realidade social passível de ser permanentemente modificada ao sabor das

necessidades que o tempo assim determinar, ao lado da capacidade de apreensão das

forças sociais e da acuidade em saber executar as tarefas indispensáveis a sua realização.

O interessante é que o marxismo resistiu à Guerra Fria e a onda neoliberal do

último quarto do século vinte. E não apenas como filosofia política, como tantas que se

registram ao longo da História, mas como instrumental analítico capaz de servir aos

objetivos dos que se propõem a analisar os processos sociais e políticos. Considerado

pelas vozes mais conservadoras e reacionárias como uma filosofia superada, sobretudo

após a desestruturação dos países do chamado Socialismo Real, parecia fadada a sofrer

as conseqüências dessa derrota política e ideológica. No entanto, não só sobreviveu

como tem sido uma fonte de consulta dos cientistas sociais diante das demonstrações

freqüentes das crises capitalistas e seus efeitos devastadores na economia mundial.

Com a crise de crédito provocada pelos financiamentos bancários sem lastro

correspondente para bancar a sucessão de inadimplentes do setor imobiliário, o que

resultou em uma mais recente crise do capitalismo na virada dos anos de 2008 e 2009,

quando escrevemos essas linhas, de novo a referência à obra de Marx tem vindo à tona.

De fato, a “bolha” que se criou com a enorme preponderância do capital virtual, aquele

que se encontra no circuito financeiro, sobre o capital real, sugere a todo o momento as

análises desenvolvidas pelo autor de O Capital. Até mesmo os economistas não

marxistas reconhecem a pertinência daquelas análises desenvolvidas a cerca de um

século e meio, cujo sentido se aplica convenientemente à realidade desses fatos

correntes.

No tempo dos generalistas

Até meados do século vinte, a Historiografia ainda gravitava em torno das

chamadas obras gerais. Eram publicações produzidas por autores cuja erudição no

campo da História permitia que seu conteúdo sobrevoasse panorâmica e

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sistematicamente os fatos, personagens e situações necessários para cobrir longos

períodos de tempo. A esses historiadores de ofício ou de ocasião deu-se o nome de

generalistas, em oposição aos especialistas, de presença mais dominante a partir do

incremento da pesquisa no Brasil. E de uma maneira geral, também essa situação

marcou a evolução historiográfica em outros países, sobretudo naqueles de forte tradição

iluminista, aonde a tradição de um domínio global do saber em prol de uma visão macro

das sociedades se impuseram.

Pode-se dizer que o século dezenove, ao qual se costuma creditar o momento de

nascimento da História como ciência, fez proliferar os grandes generalistas, como

propósitos os mais diversos. Havia os que se propunham a esquadrinhar os tempos das

civilizações através de sínteses mirabolantes, os que se centravam no trabalho de dar

vida e sentido as formações nacionais, num tempo em que essa questão e a do

nacionalismo proliferavam, e os que buscavam uma chave explicativa para que se

pudesse compreender o conjunto das transformações por que passava o mundo ocidental.

Para todos esses autores generalistas, dotados de uma cultura histórica que não requeria

fontes documentais comprobatórias, o que valia era a capacidade de dar racionalidade a

trama narrativa de modo a torná-la factível e com ela justificar-se a existência dos povos

e das instituições. Mais direcionado os relatos de tais obras, por vezes, a estas do que

aqueles.

Assim, a querela decorrente dos frutos da Revolução Francesa centrada em dois

pólos antagônicos, ordem e movimento. Tal querela influiu igualmente na elaboração

das histórias redigidas durante esse Século da História. De um lado, a visão restauradora

e napoleônica, ambas, apesar de diferenças entre si, fundadas na idéia de uma visão de

cima para baixo; ao passo que a outra, inspirada na obra de um Michelet centrada na

concepção de que a História faz sentido na medida em que registra a ação, o movimento,

bafejado pela busca incessante da realização dos povos, das massas, enfim de quem

efetivamente faz a História. E essa dualidade de enfoque histórico, a representar os dois

lados ideológicos do fermento provocado pelos revolucionários franceses acendeu a

imaginação de gerações sucessivas com vistas a por em prática essas visões de mundo.

Quando defendi o meu Mestrado na Universidade de Toulouse, em 1970, perante

Banca Examinadora presidida pelo meu Orientador, o então doyan da referida

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Universidade, professor Jacques Godechot, cujo único propósito era mostrar que aquele

brasileiro a quem ele tinha orientado tinha aprendido a lição segundo a qual foi Michelet

que estabelecera a matriz interpretativa para os estudos dos movimentos sociais

contemporâneos, ao incorporar as massas na História. Ao declinar nome e tese do pai da

historiografia revolucionária francesa, Godechot revelou uma faceta pouco usual em seu

comportamento: sorriu levemente de satisfação. Sim o seu aluno brasileiro aprendera a

mais importante lição relativa ao pensamento político da França pós-revolucionária, ele

que era um estudioso da Contra-revolução na França.

Ao retornar ao Brasil percebi que mesmo os historiadores marxistas não

compreendiam bem a importância de temas relacionados com as multidões ou a ação

espontânea das massas. Lembrava Vieira Pinto e sua tese da revolução das massas, mas

agora em um outro contexto, o da irrupção de movimentos representativos de categorias

e micro regiões nem sempre contempladas pelos pesquisadores vinculados à vertente

inaugurada por Marx. Claro estava mais do que revelada a falta de uma tradição em

pesquisa regular e seriada, capaz de produzir conhecimentos novos que, sem afrontar a

perspectiva macro histórica, pudesse complementá-la com estudos de casos a respeito de

objetos e métodos até então não empregados, ou territórios ainda não devidamente

explorados pela investigação dos historiadores.

Não se encontrava decretado o fim dos estudos generalistas, como se poderia

supor, mas a inclusão nesses trabalhos de sistematização das novas pesquisas e dos

novos conhecimentos delas derivadas. Se isso ocorreu de fato, é o caso de uma avaliação

a ser feita. O fato é que de alguma forma o incremento da pesquisa revelou-se profícua

nas obras dos generalistas das gerações bafejadas pela massificação da pesquisa

científica, em grande parte proveniente dos programas de pós-graduação a surgirem com

vigor, sobretudo a partir da década de 1970. Mesmo sob óticas nem sempre compatíveis

com o trabalho de síntese indispensável para a confecção dos manuais e dos livros para-

didáticos nas diferentes áreas de ensino, não há dúvida de que houve um significativo

progresso na narrativa e na ordenação dos fatos e das respectivas conjunturas

representativas dos períodos históricos. E isso graças à profusão crescente de projetos de

pesquisas bem conduzidos.

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O problema dos novos generalistas é que os trabalhos de maior fôlego aparecidos

a partir do incremento de métodos e abordagens novas, ao contrário dos velhos

generalistas, passaram a ser dominantemente monotemático, isto é, centrados em torno

de pesquisas seriais, principalmente no domínio da História Econômica e áreas a ela

afins, ou desenvolvidos dentro de arcabouços fundamentalmente ligados as questões

mais específicas da História Social ou Cultural. Assim, enquanto os velhos procuravam

dar uma visão integrada das diversas dimensões da realidade histórica apreendida, os

novos passaram a integrar a realidade a luz de um vetor claramente determinado. Saia de

cena o erudito em condições de transitar, ainda que superficialmente, em todos os

setores do conhecimento histórico, e entrava o especialista, que ao invés de estudos

generalistas introduziu as visões macro históricas derivadas de seu campo de

investigação.

Um exemplo disso se encontra nos estudos de biografias. Como se trata de uma

temática tão presente não importa em que período histórico e, portanto existente ao

longo da Historiografia, é possível através dela traçar o paralelo mencionado no

parágrafo anterior entre a velha e a nova obra dos generalistas. Na perspectiva daqueles,

o personagem biografado era exaustivamente detalhado através de uma história de vida,

normalmente concebido cronologicamente de maneira a permitir ao leitor uma

informação minuciosa da trajetória biografada. No que se refere à nova obra generalista

o biografado é situado em meio a um tempo no qual normalmente se enfatiza o ambiente

de trabalho ou de realização do personagem objeto do interesse do biógrafo. Além disso,

reapareceu com força a idéia das biografias coletivas dando conta dos lugares e fazeres,

ou ainda das comunidades ou confrarias, com base num método que Lawrence Stone

preferiu denominar de Prosopografia, termo que não chegou a empolgar os autores de

biografias coletivas.

Pessoalmente pensei em adotar esse termo por ocasião da elaboração da biografia

de Geraldo Rodrigues dos Santos, o Geraldão, que a rigor foi um trabalho de ghost

writter, pois fora escrito como se fora o personagem depondo para a posteridade de seus

amigos e companheiros de PCB, do qual foi militante e dirigente. Deixei de lado o termo

por achar que se tratava de um exagero para ser aplicado no caso desse trabalho

realizado conjuntamente com o personagem, mas também porque a idéia de aplicar o

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termo só tinha algum sentido se desenvolvesse em paralelo a outras biografias de

quadros do partido, de modo a proporcionar ao leitor um apanhado do ser comunista no

Brasil, a luz de alguns de seus militantes mais ou menos significativos, pois o que

interessava seria uma espécie de moldura da ação dessa comunidade de interesse

formada em torno de um partido político com dedicação a uma causa comum, a

revolução.

Ainda assim redigi pequenos ensaios biográficos de quadros da militância

comunista no Brasil, como os de Roberto Morena, Salomão Malina e Luís Carlos

Prestes, nos quais busquei situá-los no contexto político e partidário, bem como na

conjuntura nacional e internacional de épocas muito próximas, uma vez que foram

contemporâneos do PCB. Ainda acalento o projeto de ampliar essa relação incluindo

pelo menos mais dois comunistas cuja presença na história do partido foi

destacadíssima. Refiro-me a Carlos Marighela e a Gregório Bezerra. Ambos, a exemplo

também dos outros, têm trabalhos biográficos conhecidos, porém a incorporação desses

nomes tem o objetivo de se elaborar uma prosopografia do PCB, mais precisamente dos

dirigentes comunistas para uma eventual e posterior análise.

Os estudos de biografia desenvolvidos por historiadores cresceram

consideravelmente a partir dos anos 80 do século vinte. Há razões para esse surto

historiográfico, a começar pela maior desenvoltura dos programas de pós-graduação,

assim como o da evocação de lideranças expressivas transformadas em objeto de estudo

distantes – pelo menos na intenção – das hagiografias de tempos atrás. Também a

melancólica saída de cena de líderes de grande força, os quais não tiveram substitutos à

altura, tais como Mao Tse Tung (Maosedung), De Gaulle, e mais recentemente Fidel

Castro, devem ter despertado o interesse pelos estudos de maior densidade desses

personagens, isso sem mencionar Hitler, Stálin, Roosevelt e Churchill, entre outros, que

representaram não só atores de forte influência no cenário internacional como símbolos

de sistemas de poder e atitudes políticas de decisivas interferências nos rumos da

sociedade contemporânea.

Em função dessa proliferação de estudos produzidos no âmbito da academia e

tendo como tema biografias, autobiografias e memórias intelectuais e existenciais, que

resolvi sistematizar uma série de anotações feitas em diversos momentos a respeito

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desses temas, e que denominei de Autohistória. A intervenção no social. O objetivo

dessa publicação era a de fornecer algumas pistas para a elaboração de pesquisas sobre

individualidades comprometidas com o seu tempo, daí ter cunhado a expressão que

acabou se tornando título do livro, com o subtítulo cuja finalidade era tão-somente de

reforçar esse intento. Derivado de umas notas visando um curso de metodologia da

História foi, pouco a pouco, ganhando corpo e resultado num volume posteriormente

acrescido de algumas páginas memorialísitcas, uma vez que essa proximidade de uma

História centrada na experiência pessoas passa, quase obrigatoriamente, por um

exercício de memórias.

O desejo de reunir num conjunto de notas dados acerca de procedimentos

metodológicos, bem como algumas pequenas incursões no domínio da Teoria da

História, levou-me, ainda nos anos setenta, a editar um pequeno livro bem sumariado

fruto dessas anotações, cuja publicação me foi incentivada pela direção da, na época,

Faculdades Estácio de Sá, numa coletânea da Editora Rio. Assim, em 1975 produzi meu

primeiro livro sem que tivesse idealizado sequer o seu conteúdo final. Nesses anos o

surgimento dessas novidades teórico-metodológicas acontecia em meio a um ambiente

fortemente repressor do ponto de vista político e ideológico, contaminando as

publicações que viam à tona e inibindo outras tantas que não puderam ser veiculadas. O

refúgio no emaranhado das discussões metodológicas acabou se transformando num

porto seguro, sobretudo para quem combinava com razoável destreza a condição de

intelectual engajado nas tarefas destinadas à luta pelo retorno ao Estado de Direito e às

liberdades democráticas.

A sobrevivência da visão generalista é um fato talvez pouco perceptível para

quem, à época, vivia as voltas com as perspectivas aparentemente inovadoras da Micro

História e da História Oral, ambas muito cultivadas por historiadores a buscarem novos

caminhos para seus estudos e pesquisas. Se a tradição da Micro História foi, num

primeiro momento, uma espécie de contraponto aos estudos macros, muito embora tenha

peculiaridades que afastam-na dessa leitura um tanto ou quanto esquemática demais; o

mesmo não aconteceu com a História Oral. Nesta, a questão não era propriamente de se

opor à visão global, mas a de enfatizar a relevância das fontes orais, cuja importância

tinha sido relegada a um patamar secundário pelos cultores da metodologia tradicional.

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Durante breve tempo houve uma quase polêmica em torno da denominação

História Oral. Para uns um certo exagero, pois transformaram as fontes orais num

exclusivismo tal que seria o caso de se cultuar igualmente uma História Documental, por

que não? Outros, porém, ponderavam que a expressão possuía alguma propriedade

porque se tratava de uma abordagem centrada em depoimentos a direcionar o texto por

fim elaborado com base nesses depoimentos. Seja como for, o fato é que os meios

acadêmicos acabaram por incorporar a denominação. Há que acrescentar que a adesão

dos demais cientistas sociais, especialmente os antropólogos, a essa altura mais

próximos dos historiadores, que por seu turno também passaram a se servir de conceitos,

tais como os de cultura política, por exemplo, a gosto daqueles. Por fim, a aparição de

centros de documentação voltados para a captura dessas fontes e a produção de trabalhos

de elaboração convincentes sobre a História Oral, gerou a convicção de que essa linha de

produção histórica ganhara definitivamente a sua alforria e se tornaria adulta para a

Historiografia.

Também a questão do gênero ganharia alguma freqüência nos estudos que

vieram à tona a partir dos anos 80 do século vinte, ainda que não se constituísse

propriamente de um campo novo, o crescimento considerável do interesse na História da

Mulher e de temas a ela correlatos, como o da sexualidade na História, assim como o

Homossexualismo, a Homofobia e os problemas enfrentados por determinadas estruturas

de poder a respeito desses assuntos, alcançaram visível presença na Historiografia. Claro

está que o ingresso dessa problemática, até então um tanto ou quanto marginal, na esfera

política, de modo a propiciar a inclusão de dispositivos constitucionais para abrigarem

os casos tidos outrora como desviantes, criaram uma atração não desprezível por parte

de Historiadores e demais Cientistas Sociais, todos, é evidente, integrados a essas lutas

pela ampliação de direitos e de maior amplitude também da cidadania.

A desenvoltura dos estudos regionais agregou não só elementos importantes para

a compreensão de uma visão macro, até então refém de uma perspectiva superficial da

sociedade nacional. O foco demasiadamente centrado no eixo centro-sul estendia a

outras áreas do território nacional características nem sempre presentes nessas regiões.

Grande contribuição proporcionou a pesquisa científica a desvendar aspectos e

peculiaridades ignoradas ou desprezadas pelos autores de nossas histórias gerais. Ainda

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assim, pela escassa divulgação de parte dessas investigações, os compêndios generalistas

ainda não incorporaram essas contribuições. Trata-se, pois, de um desafio colocado para

esses e outros autores que se propuserem a produzir essa linha de produção relativa à

História Geral do Brasil, seja para fins pedagógicos e educativos ou para propiciar dados

aos interessados no estudo de nossa História.

De uns tempos para cá, pelo menos desde os anos 80 do século próximo passado,

tem havido grande número de publicações coletivas a respeito de temas específicos ou

variados. Em geral encomendados por organizadores dessas obras com vistas a dar um

apanhado das temáticas recorrentes na área acadêmica. Esses estudos costumam

congregar pesquisadores de áreas complementares e se destinam a um público carentes

de informações precisas e ao mesmo tempo atualizadas sobre conteúdos nem sempre de

fácil acesso no movimento editorial existente. Alguns exploram questões tidas

anteriormente como definidas pelas narrativas tradicionais das obras gerais. Outras

incorporam objetos pouco presentes nesses trabalhos voltados para o grande público.

Tem sido, assim, uma forma também de agregar esforços e articular instituições,

laboratórios e núcleos de investigação, num empreendimento meritório.

Todavia, a apreensão global dos tempos e dos processos sociais por parte dos

novos historiadores parece presentemente ausentes dos trabalhos que se pretendem mais

abrangentes. Dos tempos dos generalistas tradicionais ou renovadores a organização dos

dados factuais se encontravam coordenados a visões de dimensões e situações diversas,

o que não ocorre isoladamente por parte dos novos historiadores. As obras gerais

coletivas mesmo quando abarcam tempos e processos sociais diferenciados quase

sempre não incluem nas participações individuais matérias alusivas a aspectos que

extrapolam suas especialidades, como se o conteúdo delas por si só fossem suficientes,

junto as demais, para darem conta desse universo. Neste caso, e se fundamento possui

essa observação, caberia ao leitor estabelecer as conexões e articulações com o todo.

A expectativa de que a integração de pesquisadores em torno de projetos de

longo prazo, de maneira a abranger tempos e perspectivas mais amplos do que os

estudos pontuais, possam ser desenvolvidos com vistas a retomada das obras de

referência de natureza generalista. Só assim o caráter generalista da História pode

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prosperar em meio a um conjunto enorme de pesquisas mais voltadas para pequenos

universos temáticos ou regionais. A antiga prática generalista centrada numa única

autoria parece definitivamente superada. Contudo, não se deve confundir o fim desses

esforços individuais num cenário cognitivo mais complexo, com o término em definitivo

das contribuições de autores dedicados ao sempre oportuno trabalho de sistematizar o

conhecimento produzido, com vistas ao interesse de um público necessitado desse tipo

de trabalho. A rigor pode se dizer que a maneira de se realizar o trabalho generalista no

campo da História assume novos elementos, cada vez mais relacionados com a expansão

da pesquisa histórica. Neste sentido, o generalista de hoje deve se inteirar, senão se

investir, de preocupações com o andamento das novas investigações decorrentes dessa

expansão. Vejamos a seguir as novas tarefas dos generalistas.

O novo enfoque generalista

A abordagem generalista não pode ser considerada superada do ponto de vista

historiográfico pelo simples motivo de que é necessário incorporar as pesquisas pontuais

ao acervo do conhecimento histórico. Para tanto é imprescindível a sistematização desse

novo conhecimento gerado pelas pesquisas. O que muda no enfoque desse novo

generalista é a maneira de enfrentar a tarefa da síntese histórica. E essa nova maneira se

encontra na capacidade de integrar as conquistas derivadas das investigações juntamente

com a perspectiva sempre instigante e crítica em face dos produtos que são produzidos

pela pesquisa científica, mesmo para questões aparentemente resolvidas no campo da

História, e o melhor exemplo é a própria História do Brasil.

Assim, podemos tratar do Descobrimento do Brasil numa abordagem plural.

Neste caso poderemos tratar dos descobrimentos relativos a formação histórica

brasileira, que principiam com a Descoberta em 1500 aos inúmeros momentos sujeitos a

questionamentos como, por exemplo, a Independência em 1822, o Império do Brasil

(1822-1889), a República e as questões envolvendo as diferenças ou diversidades

regionais, bem como as desigualdades sociais, e estaremos ao mesmo tempo

reconstituindo a História do Brasil com base na inclusão de novos dados provenientes da

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pesquisa documental e acadêmica, como se estará indagando acerca das conclusões e das

sentenças que têm povoado o conjunto das informações referentes ao conhecimento

dessa História de âmbito nacional, de modo a conjugar a atualidade do que se tem de

novo com o que se tem de sedimentado em termos de informações e explicações

históricas e historiográficas.

Nessa perspectiva de análise as questões colocadas a título de exemplificações

oferecem possibilidades de interpretações absolutamente indissociáveis aos estudos

generalistas, pois não se poderia compreender a coexistência desses estudos em paralelo

aos produzidos com apoio em projetos de pesquisas específicas sem a preocupação com

as avaliações de ordem macro histórica. Seria conveniente até dizer-se que o trabalho

historiográfico é fundamentalmente um permanente trabalho visando descobrimentos

aonde sejam possíveis serem eles encontrados. O sentido de desvelamento talvez seja

mais apropriado para definir-se esse trabalho de percepção não esgotado por iniciativas

anteriores. Um apanhado desse tipo de exercício é o que se propõem as linhas que

seguem essas considerações iniciais, apresentadas aqui tão-somente a título de

experimento de ordem especulativa. sem, naturalmente, a necessária base documental

imprescindível em exercícios que visem resultados consistentes.

O marco histórico de 1500 suscitou longas controvérsias historiográficas.

Algumas centradas na questão de se precisar data e lugar corretos correta daquilo que se

denominou de Descobrimento do Brasil pela frota comandada por Pedro Álvares Cabral.

Outras a considerarem as motivações da vinda dessa frota. Em outras palavras, a

polêmica que se fundava nas hipóteses dessa chegada ao território que finalmente se

chamaria de Brasil. Se se tratou de uma vinda deliberadamente definida desde a sua

origem ou se o destino era mesmo as Índias e as naus acabaram sendo projetadas para o

sul do continente Atlântico, o que resultou, então, numa inusitada descoberta de terras

aonde até então apenas se suspeitava de sua existência. Evidentemente que a partir de

uma dessas hipóteses outras questões poderiam como foram, de certo modo, apreciadas

ou simplesmente registradas pelos historiadores que se debruçaram em torno dessa

querela.

Mas o que é significativo é que a existência da terra ainda não integrada ao

sistema de exploração européia tenha sido a única das preocupações de uma

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historiografia mais do que secular. É certo que muitos analistas trataram dos povos que

se entrecruzaram na empresa que tornou possível a convivência dessas culturas tão

díspares com suas normas civilizatórias igualmente tão diferenciadas. Mas outras

descobertas ou descobrimentos só viriam à tona depois que a maior parceria dos

cientistas sociais se fez presente nos debates acadêmicos ou por iniciativas intelectuais

desprovidas de sentido científico senão secundariamente. Assim é que questões como

em que momento é possível falar-se numa formação social brasileira com todas as suas

contradições e sentido inconcluso a ponto de ser factível historiá-la como objeto

facilmente cognoscível não foram, tais questões, devidamente tratadas senão muito

esporadicamente.

A verdadeira descoberta do Brasil viria com o tempo e, sobretudo, com os

registros produzidos pelos cronistas, viajantes e todos quanto passaram a deixar

depoimentos acerca do espaço sobre o qual se erguia a maior colônia do império colonial

português. Junto com as lendas nativas recolhidas aos poucos pelos pesquisadores foi

sendo construída e desvelada a realidade da conjugação da imensidão da terra e de sua

gente desde os primórdios de uma história escrita dominantemente, é claro, pelos que se

apossaram de suas riquezas e de seus recursos naquele processo de exploração predatória

cujas seqüelas se estenderam por longos anos e muitas décadas. Assim, a menção sobre

o significado da descoberta ou do descobrimento deve levar em conta desde o instante da

chegada dos dominadores sobre os povos nativos até a inclusão das formas de apreensão

dos elementos constitutivos de uma sociedade formada por uma empresa colonial, mas

que se desenvolve também à revelia desse intento inicial e se fez independente desses

objetivos, que para cá trouxeram os colonos portugueses e de outras nacionalidades da

Europa.

O enfoque do que aqui se denomina de novo generalista a sugerir uma

diferenciação do estilo de abordagem dos generalistas tradicionais deve principiar, como

se está a propor, por um questionamento preliminar com base, é claro, nos trabalhos de

sistematização considerados clássicos ou de referência. Estes embora de importância

permanente pelo simples fato de terem sido precursores, não costumavam enumerar

problemas com vistas ao desenvolvimento de uma reflexão acerca do objeto histórico

geral, tal como o estudo de uma formação histórica nacional. Lembro que uma de

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minhas primeiras leituras sobre os descobrimentos foi o livro do historiador português

Malheiros Dias, cujos volumes monumentais principiara com indagações a respeito das

hipóteses dos rumos das navegações que aportaram no Brasil e deram início à

colonização. Dessa leitura até a do historiador e jurista Raimundo Faoro, Os Donos do

Poder, dista uns bons anos de distância, mas apesar disto é possível encontrar um elo

comum: a preocupação de definir uma estratégia de abordagem de uma história nacional.

Os novos enfoques generalistas passaram a cultivar o que as obras acima

mencionadas já apresentavam. Refiro-me a elegância do texto e o valor que os autores

emprestaram a construção de suas narrativas. Assim, a incorporação de um estilo

literário ao discurso histórico aliado às preocupações com o que se poderia chamar de

alteridade historiográfica, no sentido de se apresentar diversas interpretações para certos

fatos, tem feito dos trabalhos de sistematização um ponto alto nesse emaranhado de

títulos editoriais consagrados a estudos temáticos e, portanto, pontuais. Para tanto muito

tem contribuído a fornalha de autores provenientes do jornalismo. Com a facilidade de

elaboração que o ofício exige desses profissionais, esses novos generalistas ocupam

presentemente um lugar de destaque na historiografia generalista. Apesar de serem

objetos de sistemática crítica dos cultores de uma História feita ao estilo dos

historiadores, como se tal História existisse, conseguiram impor-se ao leitor.

Os especialistas

O termo não me parece bom. Mas a contraposição de quem domina um

determinado ramo do conhecimento histórico com os generalistas parece não admitir

senão o seu emprego no campo das leituras historiográficas. Especialista, portanto, é

alguém que se ocupa de um tema, um certo espaço de tempo ou um método específico,

dentre as mais comuns formas de identificação desses pesquisadores. Em outras

disciplinas do saber o uso dessa expressão está plenamente aplicado, por não restar outra

que melhor a defina, no caso dos historiadores há, por certo, alguma controvérsia. E esta

é proveniente de uma premissa, a de que todo Historiador é necessariamente alguém que

domina a História como campo global do conhecimento, mesmo que não tenha um

domínio específico sobre algumas das áreas desse campo, pois não é possível ser um

especialista em História se desconhecer o seu processo global.

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Com o incremento regular das pesquisas acadêmicas, favorecidas pela crescente

implantação dos programas de pós-graduação, é que a especialização ganhou força e

identidade historiográfica. Até então os trabalhos específicos ligados a um campo

determinado eram não apenas raros como independentes de instituições e fontes de

financiamento. Geralmente produzido por interesse exclusivamente pessoal de algum

estudioso e nada mais. Dessa maneira, a produção historiográfica no que concerne à

especialização é algo relativamente recente, uma vez que a expansão dessas pesquisas se

deu fundamentalmente a partir dos anos de 1960/1970, numa primeira grande leva de

obras, algumas das quais, que se constituíram em pontos de partida para estudos que

foram sendo gradativamente acrescidos de novas investigações.

A cobrança crescente de um maior rigor na elaboração dos trabalhos históricos e

a insegurança de uma geração saída do sistema de créditos implantado no Brasil à

revelia de qualquer estudo mais adequado para o seu funcionamento, conjuntamente

produziram esses dois extremos. De um lado a eficiência do sistema de monitoramento

dos cursos de pós-graduação pela Capes, mais tarde introduzida também ao nível da

graduação, propiciou um maior cuidado na realização dos resultados acadêmicos.

Todavia, a geração saída dos cursos universitários no afogadilho dos créditos a

comprimir conteúdos para multiplicar somatórios necessários ao complemento dos

mesmos resultou, e tem resultado ainda, em produzir diplomados com visíveis

deficiências no que diz respeito a capacidade de mobilizar conhecimentos globais da

História. Inicia-se em programas de IC a introduzi-los em seus campos de especialização

sem que tenham uma boa formação básica dos conteúdos gerais da matéria.

O crescimento dos quadros docentes tidos como especialistas de algum ramo ou

campo da História está intimamente relacionado ao hábito da atividade de pesquisa.

Mais do que a essa atividade, a dedicação que leva o profissional a aprofundar-se nos

assuntos referentes aos problemas desse período ou dessa questão temática. O melhor

exemplo comparativo que vem a lembrança são as andanças de um bibliófilo, aquele

indivíduo voltado exclusivamente para cultivar títulos e edições de livros raros. O caso

do empresário José Mindlin, ex-proprietário da empresa Metal Leve, é bem significativo.

Viajou um sem número de vezes para ir ao encontro de algum exemplar ainda não

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constante em sua vastíssima biblioteca. Da mesma forma que percorria o Brasil inteiro a

cata de autógrafos de autores que julgavam importantes dos livros que adquiria.

Assim, além da busca ao documento impõe-se ao especialista o permanente

acompanhamento da produção historiográfica sobre o campo sobre o qual se dedica.

Mais ainda. É de grande valia estar igualmente escrevendo sobre o que consultou, leu,

anotou ou elaborou como eventual projeto a ser desenvolvido. Torna-se, por vezes, até

uma obsessão o trato das questões temáticas na vida intelectual de um especialista, mas

essa é uma componente indispensável do seu trabalho. O uso de um diário de pesquisa

tem sua utilidade, pois nele se podem registrar todos os passos, todas as etapas e todas as

indagações provenientes de uma reflexão trazida pela atividade de investigação. Há

quem considere que essa prática pode sugerir um certo preciosismo dispensável num

mundo de Internet capaz de substituir com folga procedimentos desnecessários. Mas a

abertura de arquivos ou pastas aonde se possam digitalizar dados, elucubrações

resultante de leituras ou ainda informações supletivas para aplicações futuras é sempre

válido. Mas a principal lição que se aprende na vida é que cada qual tem o seu jeito de

fazer as coisas. A metodologia não se encontra pronta. Ela é produzida por quem faz.

A minha geração não foi orientada para a escolha de campos de pesquisa, pela

razão mesma, como já foi assinalado, de uma ausência de políticas acadêmicas voltadas

para a pesquisa. Nos tempos de estudante ainda se vivia sob o sistema de cátedra, e aos

catedráticos cabia definir desde a escolha de seus auxiliares e assistentes, como a linha

de trabalho que esses deveriam trilhar. Assim, dependendo da filosofia e também da

personalidade desses antigos titulares das disciplinas, que eram denominadas de

cadeiras, podia-se desenvolver alguma atividade de criação do conhecimento, de tipo

grupo de estudos orientados, ou não. Os que não eram contemplados com os métodos de

cooptação para o exercício do magistério superior restavam buscar alternativas no ensino

médio ou, quiçá, tentar uma oportunidade nas poucas instituições de ensino particular.

Muitos descobriam eventuais aptidões ou interesses por determinados temas ou

épocas após a graduação, algo impensável hoje em dia. E quase sempre essas escolhas

acabavam acontecendo fora do âmbito dos cursos, através de influências derivadas de

oportunidades nem sempre usuais durante a licenciatura e o bacharelado. Lembro-me de

meu caso, cujo registro aqui vale como testemunho para ilustrar o que se está a dizer

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sobre a questão de nossas inserções nos estudos de especialização. Trata-se de um

primeiro momento em que essa idéia de seguir um determinado caminho de estudos

surgiu. Foi por ocasião de uma palestra de Nelson Werneck Sodré no ISEB, quando o

historiador discorria sobre o florianismo. Chegara a tomar contato com o tema em razão

de meu parentesco com Floriano Peixoto, mas tinha uma visão extremamente crítica

pelo fato de ser de familiares as coisas que chegavam aos meus ouvidos. Com Sodré

descortinei um outro personagem. E mais: pude perceber tratar-se de uma figura bem

representativa dos militares e de uma percepção de República, que mais tarde

compreenderia melhor. Daí derivou meu interesse pelos estudos republicanos.

Registros como esse certamente podem ser dados aos montes pelos coetâneos de

uma época ainda primária no que diz respeito aos estudos sistemáticos e acadêmicos.

Não deixam de ser elementos de história cujos recortes aqui e ali são capazes de

demonstrar o quanto foi demorado, se comparado com outros países e também com

outras áreas de estudos, o grau de envolvimento dos profissionais de História entre nós.

Provavelmente em outros estados as coisas evoluíram ou muito mais lentamente ou,

como no caso de São Paulo, com o impulso proporcionado pela verdadeira missão

francesa no campo da História, a vinda de um contingente de cientistas sociais durante o

período da Segunda Guerra, que dentre eles se destacaram alguns nomes como Levi

Strauss e Fernand Braudel, para citar os mais destacados e conhecidos na historiografia.

.O Ensino da História

Para um profissional da História é comum perguntas sobre o que é História?

Como se faz História? Ou se a História afinal é ou não é uma ciência? Mas a pergunta

que mais me deixava embaraçado era a de como se ensina a História? Talvez esta

mobilizasse menos elementos explicativos do que aquelas outras, mas provavelmente

por ser a mais simples, pelo menos aparentemente, era a que me angustiava mais,

exatamente porque indagava sobre a prática da qual se emprega sem que se tenha como

explicitá-la de modo a satisfazer o curioso com a pergunta. Depois de muitos anos

driblando a questão tenciono em breves linhas dar, afinal, uma resposta a ela.

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A História se ensina como vida, isto é, para que se transmita a alguém o que é

História é preciso que se entenda o que consiste a existência e as razões que nos

motivam, como seres humanos, a viver. Assim, o impulso vital é um elemento essencial

para que aprendamos o sentido da História. Feito isso é necessário que cada um se veja

como portador desse sentido de vida, de existência, e possa rever o seu itinerário, a sua

trajetória de vida, compartilhada evidentemente com a de seus familiares, amigos e

demais indivíduos que integram o seu universo de vida. A partir daí é só perceber que

essas existências caminham juntas com inúmeras outras em seus respectivos tempos e

lugares, criando situações e inteirando-se de desejos e impulsos que são comuns a todas

as pessoas, igualmente portadoras desses mesmos impulsos.

Mas essas questões e as preocupações delas decorrentes só se tornaram

efetivamente presentes nas salas de aula do nível superior à partir dos anos de 1960,

porque antes disso era absolutamente esporádico tocar-se nesses temas, que deveriam, na

verdade, conduzir primariamente o processo de aquisição do conhecimento. A

inexistência de disciplinas metodológicas e teóricas atesta o pouco caso dado a essas

questões, indiferentes, portanto, ao ambiente nacional e internacional a suscitar reflexões

eminentemente históricas, para se entender os caminhos da sociedade contemporânea.

Havia um divórcio entre o que se passava nas ruas e no mundo em geral e o que se

discutia nos fechados e formais recintos universitários. Mas as tentativas de se rever

radicalmente com tais práticas acadêmicas não tardariam a acontecer. Neste sentido, os

anos 60 foram realmente revolucionários, mesmo que por vezes ingênuos.

Data daí a relação mais ou menos constante entre o mundo acadêmico e o

mundano, a refletir necessariamente naquele o que neste se passava. E isto não se

aplicava doravante apenas aos aspectos intelectuais, cujas idéias ganharam influência

como nunca depois dos acontecimentos de Maio de 68, mas também aos problemas do

cotidiano até então circunstancialmente presentes nas preocupações do mundo do saber.

É claro que no Brasil, em especial, a universidade não figurara entre as prioridades das

elites dominantes. Seus filhos educados em Coimbra ou eventualmente em outras

cidades universitárias européias retornavam sem proverem o povo de seus

conhecimentos, privativos de uma restrita confraria dos bens nascidos. E o surgimento

tardio das primeiras universidades em nada mudou esse sentimento de descaso para com

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o povo, no comportamento dominante daqueles que as freqüentaram em seus

primórdios.

Mas a identificação com os problemas sociais, e o conseqüente engajamento em

lutas e ou projetos a visarem combater os obstáculos causadores desses problemas, em

nada deve confundir-se com o métier de um profissional de História. Isso posto, o que se

deseja nestas linhas é deixar claro a existência de um diferencial entre o cidadão e o

profissional, não importa de que atividade ou área de atuação. Tem sido comum, e

minha geração está repleta de exemplos, a mistura dessas duas coisas, de modo a

comprometer a condução das atividades do ensino e da aprendizagem. A idéia de se

“fazer a cabeça” dos alunos eu sempre a tive como um equívoco muito grande, pois a

melhor maneira de instigar a crítica dos costumes e das situações históricas é

precisamente a de ensinar a pensar e a desenvolver reflexões a todo instante. Neste

sentido cada vez mais me curvo ao ensinamento de Paulo Freire: o mais importante nem

sempre é a resposta, mas a pergunta, pois por vezes se está a abrir sendas novas ao

conhecimento.

Meu pai, também educador, costuma contar uma anedota a propósito da

indiferença do mestre diante das perguntas de um aluno, que em todas as aulas indagava

a mesma coisa. Depois de uma dezena de vezes, o mestre parou e respondeu ao aluno

que o interrompia seguidamente. Agora compreendi o que você está me perguntando. Na

verdade, depois de algum tempo o professor tinha, finalmente, entendido o alcance

daquela que a primeira vista era tão-somente uma pergunta corriqueira. Essa pequena

demonstração é reveladora porque os professores não estão acostumados a

transformarem suas aulas em ambientes favoráveis à reflexão, ao experimento de

aspectos por vezes não observado pelo saber constituído. Costumam ter suas aulas

fechadas a essas incursões do pensamento, sobretudo do pensamento que instiga a

norma.

A distinção entre cidadania e função de professor em nada significa uma

alienação da realidade. Florestan Fernandes costumava dizer que ele era um socialista e

imprimia sua ideologia nos processos interpretativos dos fenômenos sociais. Dizia mais,

que a confusão da direita – confusão deliberada, por sinal – entre sociologia e

socialismo, ele, Florestan, assumia plenamente, pois considerava que só uma perspectiva

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socialista torna a sociologia um instrumento real de intervenção na sociedade. O que

pretendi acima dizer é diferente dessa colocação do sociólogo paulista, porquanto

chamava atenção para um uso deliberado do argumento de autoridade do professor para,

com isso, influir nas escolhas dos seus alunos. E fiz desse princípio uma norma de

conduta ao longo de minhas atividades no magistério.

Penso que hoje o grande desafio do professor é o de formar leitores críticos. A

informação e o acesso ao conhecimento se democratizaram com o advento da

informática. Através da informática, via Internet, é possível acessar inúmeros temas e

levantar dados cujo volume depende da capacidade de pesquisa por intermédio deste

veículo. Mas percebo que não basta se ter um amontoado de dados se não se sabe

trabalhá-los com vistas a um processo de apreensão, identificação de conteúdos, análises

e, finalmente, interpretações conclusivas. Estas implicam em domínio de linguagem,

conceitos, ferramentas que dependem da orientação dos professores, também eles

sujeitos a permanentes reciclagens e atualizações. Dessa maneira, a Educação continuará

sendo um fator diferenciado no processo de emancipação e libertação da humanidade

face a resistência de estruturas obsoletas e que precisam ser removidas.

Historiografia Republicana

Historiografia republicana eis uma expressão que coloca, desde já, a questão de

sua interpretação. Quando a referimos assim pode-se estar a dizer de um panorama de

estudos a cobrir o período da República ou um conjunto de trabalhos inspirados na

perspectiva republicana. O texto que se segue procurou englobar essas duas formas de

interpretação, tendo o cuidado, no entanto, de reunir as obras que serão objeto desse

estudo nessas duas perspectivas, para as quais o autor as distingue em função das

proposições destacadas por seus autores. Na ausência de um tratamento explícito dessa

questão na obra analisada buscou-se uma leitura crítica de seus conteúdos e o

enquadramento numa dessas duas vertentes de possível entendimento.

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Assim, no caso da historiografia sobre a República brasileira pertencente ao

primeiro grupo, isto é, dos trabalhos que registram tão-somente os fatos relevantes desse

período da História do Brasil, destaques maiores ficarão por conta das coletâneas ou

textos que agrupam alguns especialistas de temas republicanos, onde a identificação com

o ideário republicano é entremeada com a de autores que não revelam qualquer empatia

intelectual ou política com esse regime. Há, também, nesse caso, os livros de natureza

para-didáticos. Escritos para um público menos familiarizado com a problemática

republicana limitam-se ao relato de situações mais relevantes da República.

No que se refere ao segundo grupo, o dos trabalhos de cunho eminentemente

republicanos, no qual o autor esposa sua identidade e simpatia para com a República, seu

manancial se encontra mais presente nas obras de intelectuais que produziram obras

históricas, hoje consideradas de referência para a historiografia brasileira. Há que

registrar, por outro lado, a contribuição de cientistas sociais mais explícitos na defesa do

regime, e cujas obras são parte integrantes da historiografia republicana. Igualmente

relevantes têm sido as teses acadêmicas, particularmente as oriundas dos programas de

pós-graduação que se expandiram a partir da consolidação dos mestrados e doutorados

no país acerca de três décadas e cujas consultas públicas das não publicadas, que

constituem a maioria, podem ser realizadas diretamente nos sítios dos referidos

programas de pós-graduação.

Alguns estudos voltados para a sistematização de trabalhos relativos ao período

republicano surgiram desde a década de 1970 e não param de ser acrescidos de

atualizações e adendos nesses últimos anos. Todos têm o propósito de fornecer ao leitor

indicações de modo a facilitar a consulta e a própria pesquisa historiográfica. Neste

sentido, o que se pretende aqui é dar continuidade a esses esforços procurando aduzir

alguns comentários críticos no que diz respeito às contribuições surgidas ao longo desses

muitos momentos de produção e difusão da historiografia republicana.

Pensei, inicialmente, em apresentar esse estudo de modo a acomodar três partes.

Numa primeira, estariam sendo consideradas as contribuições dos generalistas,

nomeadamente as chamadas obras gerais sobre a República brasileira. Uma segunda

parte reuniria os trabalhos acadêmicos, seja dos intérpretes e ensaístas ou renovadores da

historiografia provenientes ou não de teses universitárias, cuja concentração maior, é

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evidente, se encontra a partir de meados do século XX. E uma terceira parte

compreenderia artigos ou textos isolados de especialistas a abordarem aspectos relativos

à problemática republicana e as conclusões originais a que seus autores puderam chegar.

Nas três partes seriam considerados tantos os autores nacionais quanto os de outra

nacionalidade, os ditos brasilianistas.

Em se tratando de uma abordagem panorâmica, vale dizer, sem o propósito de

uma análise mais aprofundada, o autor recorreria ao expediente de um trabalho de

sistematização, no qual os registros se impõem mais do que o exame de seus conteúdos.

Ao término do texto,o leitor teria uma relação de obras e textos publicados e

considerados de referência para o estudo da história republicana brasileira. Com isso,

imaginava poder atingir o objetivo de proporcionar uma síntese da produção e reflexão

historiográfica para o período republicano.

Deixei de lado esse propósito ao perceber que por mais extenso que se pudesse

escrever essas linhas de sistematização com base nos três campos de observação acima

referidos, não seria capaz de dotar esse trabalho de alguma profundidade no que diz

respeito à análise esperada pelo leitor. Assim, evolui para a idéia de realizar um estudo

comparado de duas contribuições historiográficas, de modo a dar consistência à idéia

sugerida por Francisco Falcón, que julguei pertinente e capaz de propiciar um resultado

mais satisfatório, além de revestir-se da autoridade de quem domina a matéria.

Em conseqüência, elegi, como protagonistas desse estudo comparado, as obras de

Nelson Werneck Sodré e de Caio Prado Junior, ícones de uma produção historiográfica

centrada no instrumental marxista Muito embora tenham seus trabalhos sido objeto de

análises acadêmicas ultimamente, as interpolações de suas idéias mais significativas não

foram ainda suficientemente esgotadas, quando comparadas no contexto das ações

políticas e no quadro ideológico dos quais resultaram a especificidade de suas

interpretações. As muitas referências que seus estudiosos fizeram das teses de ambos,

por vezes confrontando-as ou dando-lhes caráter de complementaridade, o fato é que

uma análise comparativa em torno de questões comuns aos dois historiadores e

militantes do PCB não se têm conhecimento.

O foco dessa comparação foi orientado em torno da questão da Revolução

Brasileira, ou mais precisamente, da relação da História do Brasil com o projeto

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transformador inspirado no projeto da Revolução Democrática e burguesa dos

comunistas. Estes tiveram nos dois historiadores os intérpretes mais autorizados

porquanto emprestaram o conhecimento e a função de intelectuais para tornarem essas

teses em instrumentos de persuasão e de orientação para as forças democráticas

alinhadas organicamente ou não ao PCB. Dessa maneira, tomarei como fonte principal

os livros A História da Burguesia e A Revolução Brasileira, de Sodré e de Prado Junior,

respectivamente.

Antes de empreender essa análise comparativa pretendo situar dois aspectos que

me parecem necessários para a consecução desse estudo. O primeiro aspecto é um

pequeno conjunto de considerações a respeito da metodologia comparativa para casos

como o que se pretende desenvolver aqui. Sem a finalidade de embrenhar-me na matéria

relativa ao método comparativo convém deixar claro ao leitor de que modo pus em

prática esse estudo. Trata-se, desse modo, de introduzir uma questão de prática

discursiva no emaranhado de dados com vistas a fornecer informações eventualmente

úteis para quem se interessar no emprego de formas similares de estudos.

O outro aspecto ficará por conta do panorama mais geral da historiografia

republicana, mais no sentido de identificar suas matrizes geradoras do que de dar ao

leitor indicações eruditas a respeito dos produtos historiográficos existentes e à

disposição de quem venha a se debruçar sobre esse assunto. Com isso, penso, poderemos

encontrar o lugar comum dos dois protagonistas desse estudo, independentemente de

suas raízes políticas, doutrinárias e ideológicas. Nesse segundo aspecto, trata-se de situar

no contexto das idéias aquelas que se produziram em torno dos trabalhos de Nelson

Werneck Sodré e Caio Prado Junior. Com isso, teremos de novo três partes. Só que

agora uma parte de natureza metodológica, uma outra de cunho histórico e a parte mais

densa que registrará a análise das contribuições de nossos dois historiadores.

A historiografia dos tempos republicanos refletiu, desde as suas origens, o

embate doutrinário provocado pela mudança de regime. Assim, a avaliação do que fora a

instauração da República no Brasil obedeceu a dois pontos de vista bem opostos, de

modo a inaugurar as perspectivas interpretativas que se sucederam ao longo de várias

décadas, cada qual sublinhando aspectos negativos ou positivos do estabelecimento das

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novas instituições políticas no país. A condenação da República como golpe a

interromper a caminhada democrática e liberal desenvolvida pela monarquia foi de

responsabilidade de Eduardo Prado em seu texto Fastos da Ditadura Militar. Ao passo

que o depoimento de Inocêncio Serzedello Corrêa in titulado Páginas do Passado

instituiu a visão glorificante do advento do regime republicano, como um avanço

doutrinário e popular. Com esses dois intérpretes se iniciaria, a nosso ver, os pilares da

historiografia republicana no Brasil.

O ponto de vista de Serzedello ou nele inspirado funda-se no primado da

legitimidade da República. Foi essa primazia que fez Floriano Peixoto, ícone

serzedelliano, enfrentar seus oponentes, convencido de que sua missão era o de salvar a

República, pouco ou nada valendo se as suas normas constitucionais tenham sido mal

interpretadas ou contrariasse a estabilidade e, principalmente, a sobrevivência do regime.

Para Serzedello, os militares tiveram o mérito de compreenderem o papel histórico que a

eles foi reservado. Contra tudo e contra todos consolidaram as instituições republicanas

e sua presença na política brasileira transformou-se em instrumento de equilíbrio diante

das crises que se sucederam.

No que se refere a vertente fundada por Eduardo Prado, os valores da legalidade

suplantariam o eventual peso da legitimidade republicana. Crítico contumaz da

intervenção militar foi o principal opositor da tradição florianista, tendência que reuniu o

que de mais radical existira na defesa dos postulados sustentados pela outra versão.

Assim, em vários momentos de crise política ou de impasses a exigirem soluções

legalistas, a presença dos argumentos pradistas se impôs. E essa presença aconteceu

tanto nos meios civis como nos militares. Nestes, a oscilação entre as teses

intervencionistas, do soldado-cidadão, e as não-intervencionistas, do soldado-

profissional, se estenderam, pelo menos, até os anos de 1930, quando o exército passaria

a ter a sua própria política.

Em meio a essas versões apaixonadas, seja contra ou a favor da República, não se

pode deixar de registrar a primeira avaliação sarcástica dos tempos ainda bem iniciais do

regime. Trata-se das anotações intituladas Apontamentos para a História da República,

do jornalista Manoel Ernesto Campos Porto. Impressionado com o fenômeno do

adesismo praticado pelos antigos próceres do Império, o autor passaria a registrar num

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verdadeiro acervo formidável as formas e as adesões provenientes de diferentes setores

de uma sociedade até então muito fiel, pelo menos aparentemente, à monarquia que

vigorava há sete décadas. Passados os primeiros sete anos de República, o escrito é

dedicado ao exército, ao partido republicano e ao “patriotismo daqueles que não

pouparam sacrifícios em prol da causa que regenerou a Pátria”. Mas ainda em 30 de

dezembro de 1889, o autor presta igualmente uma homenagem ao “ilustre cidadão

incumbido de restaurar as finanças desta pátria”, ao escrever como abertura de suas

notas “Duas palavras ao Governo Provisório”. O historiador José Sebastião Witter

selecionou esse acervo memorável em livro por ocasião do primeiro centenário do

regime republicano, cujo prefaciador foi Oliveira Lima, na edição da editora Brasiliense

em co-autoria com o CNPq.

E não poderia ser diferente que dessa forma se iniciasse uma primeira reflexão

sobre os tempos republicanos. Ao lado das contendas houve também os arranjos, que

não puseram de lado a tensão entre os protagonistas daqueles eventos. Afinal, mesmo

sem ter sido uma revolução, longe disso, a mudança de regime e de governo foi

traumática, feriu brios e despertou vaidades, razão pela qual produziu um contencioso

que a rigor se arrasta até os dias atuais, com a diferença de se ter uma cultura do

contraditório responsável pelo amadurecimento de seus protagonistas nas lides

intelectuais. Mas, em todos os momentos em que uma dada crise política se instala na

sociedade brasileira o acirramento das divergências quanto aos rumos do regime de 89

vem à tona, com maior ou menos vigor que no passado mais remoto. E, de novo, os

fundadores das vertentes pró ou contrária à República reaparecem.

Durante algum tempo a idéia dominante nas análises mais impressionistas sobre

o advento da República repousava na oposição entre civis e militares. A partir da

conhecida sentença de Aristides Lobo, segundo a qual a Proclamação tinha sido um fato

essencialmente militar, deitou raízes à convicção de que os oponentes resumiam-se entre

essas duas representações. Era uma forma que agradava os que tinham alguma simpatia

com o antigo regime, pois sugeria que a maioria dos civis era adepta do Império ao

passo que os republicanos tinham sido impulsionados por ressentimentos dos militares.

Mesmo nas perspectivas mais recentes a alusão a essa oposição permaneceu muito viva,

ainda que sem o caráter de uma explicação centrada nessa dicotomia de interesses. Os

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desdobramentos dessa mesma lógica explicativa refletiram-se em trabalhos acadêmicos

de objetos mais específicos, de modo a demonstrar a forte herança dessa querela

cultivada em torno de episódios iniciais do período republicano.

Se, contudo, o processo de implantação da Republica não deve ser reduzido ao

embate entre civis e militares, não se deve tampouco minimizar o papel desempenhado

pelos militares ao longo de mais de um século desse regime. Tanto na instauração

quanto em momentos de crise ou de cruciais mudanças institucionais, o elemento militar

exerceu uma atividade não desprezível. Foi protagonista de ações de maior ou menor

expressão, mas não deixou de ocupar-se de tarefas normalmente desempenhadas por

personagens cuja expectativa não se cumpriu por impotência ou incapacidade. Neste

sentido, referir-se a presença dos militares não só não é demasiado como corresponde ao

relato mais próximo de uma realidade reconstruída dos fatos republicanos no Brasil.

Há, porém, os autores cujas obras se voltaram para a análise do caráter

institucional. É o caso, entre outros, de Medeiros e Albuquerque em seu livro O Regimen

prezidencial no Brazil, título que mantivemos no original, de sua edição de 1914,

“terceiro milheiro”, e lançado pela Livraria Francisco Alves. Defensor do “regimen

parlamentar”, na realidade do sistema de governo baseado no parlamento, portanto,

parlamentarista, esse membro da Academia Brasileira reuniu nos dez capítulos de seu

trabalho uma série de arrazoados para convencer o leitor da ineficácia do

presidencialismo, que para ele “foi uma surpresa e um logro.” Foi, aliás, com essa

expressão contundente que abre a primeira parte do capítulo primeiro, sempre se

referindo ao sistema de governo presidencialista como responsável do malogro da

República, ora qualificando-o como “um aborto”, “representa sempre uma aventura”,

“trouxe uma corrupção moral inominável” e – na defesa de sua tese – que “o (sistema)

parlamentar já provou ser o único que se adapta à índole do povo brasileiro.”

E tanto esse registro é verdadeiro no que se refere aos atores coletivos, quanto no

que tange aos individuais. Mesmo que sobre os dois maiores personagens individuais da

República brasileira do século 20, Vargas e Prestes, haja enormes discordâncias quanto a

importância de cada qual em nossa história contemporânea, não há como negar que

ambos tiveram um projeção bem maior do que qualquer um outro. E o que é mais

significativo: os dois passaram pela vida militar, e sofreram a influência da corporação

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independentemente de terem trilhado caminhos distintos. Só esse dado revelaria o

quanto está impregnado o regime republicano da presença militar. E de ambos também

se pode dizer que a par de suas individualidades, marcadas por forte personalidade,

foram representações personificadas de dois projetos políticos, o do Estado Novo e o do

Partido Comunista Brasileiro (PCB), já que nos dois casos é impossível separá-los das

duas personagens que tanto os encarnou.

Nas democracias modernas há quem considere que o poder político não se

resume tão-somente às instituições parlamentares, com base em partidos fortes,

influentes e representativos de uma sociedade civil com nível de consciência política

igualmente poderosa. A este elemento se tem afirmado a imprensa, instrumento

formador da opinião publica e, mais recentemente, na ação dos grandes conglomerados

da mídia eletrônica, tão fortemente presente na vida cotidiana dos cidadãos. No Brasil,

aonde a imprensa sempre teve desde os primórdios da autonomia política até a

República uma atividade bastante movimentada, a criação de sua entidade maior, a ABI,

em 1908, abriu caminho para a formação de uma instituição tão significativa quanto o

parlamento. E de meados do século vinte em diante, a imprensa passaria a aliar-se de tal

forma aos desideratos dos governantes que sua ação moldou e formou posições

majoritárias sobre temas e questões de grande interesse nacional, para o bem ou para o

mal, de acordo com os pontos de vistas ideológicos que naturalmente se formam sobre

aspectos do país em debate.

Logo, é de se entender que a historiografia baseada na imprensa seja como fonte

histórica ou como objeto da história, tenha adquirido uma relevância apreciável. De

menção episódica, passando por levantamentos exaustivos de suas folhas periódicas, até

o exame de seus conteúdos relativamente às matérias cobertas pelos órgãos da imprensa,

o fato é que cresceu consideravelmente o interesse pelos estudos, sistematização e

análises de jornais, revistas e demais publicações regionais ou temáticas, técnicas ou de

mera divulgação de traços da cultura brasileira. Não há um tema de relevo na história

republicana brasileira que não se disponha de fontes periódicas capazes de analisá-lo, o

que revela o valor desse documento à disposição dos historiadores. Não obstante, a

produção de trabalhos com base nas fontes periódicas ainda se encontra distante do

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papel que os jornais representaram ao longo do período republicano. O inventário dessas

publicações e o uso que a pesquisa tem feito desse acervo está por se fazer.

Ao término dessas considerações preliminares convém chamar atenção para os

estudos biográficos, que alcançaram muito espaço editorial desde o último quarto do

século vinte. Em parte esses estudos derivaram de pesquisas universitárias, mas há de se

registrar o seu crescimento na literatura. Da mesma forma que essas duas áreas têm se

aproximado em muitos aspectos, da escrita mais próxima de escritores e pesquisadores

até temas entrecruzados a circularem com desenvoltura em ambas as áreas, ocorreu

muito recentemente essa redescoberta de personagens a retratarem épocas e

comportamentos dignos do interesse de uns e outros autores. Muito embora essa

tendência historiográfica tenha uma dimensão internacional, no caso específico do Brasil

ela provavelmente ocorra em função da parca representatividade histórica das

instituições.

Se aceitarmos essa explicação, isso nos coloca diante de um problema de

natureza epistemológico complicado, qual seja a de estarmos relacionando muito

estreitamente as circunstâncias da produção historiográfica com as de ordem política e

cultural. Mesmo que tal relação seja, em princípio, pertinente, tal fato não deve ser

considerado de maneira mecânica. A necessária implicação da estrutura econômico e

social de uma época sobre a produção de idéias possui uma lógica irrefutável, desde que

tal implicação não seja tomada como algo que dispense a mediação da inteligência

humana e a elaboração indispensável para que se retire dessa relação um rico repertório

de situações possíveis. E é neste campo que se situa a produção historiográfica.

1. As Obras dos generalistas

O termo generalista é muito pouco adotado pela historiografia, como se viu na parte

que antecede esta, sobretudo se o compararmos ao seu antônimo, o especialista. E tal

fato surpreende se constatarmos que verdadeiramente os especialistas só apareceram

com a introdução das pesquisas acadêmicas, como já se observou também antes. Mas, no

Brasil, esse avanço em direção à especialização de estudos e pontos mais específicos de

nossa História, só se deu a partir de meados do século vinte, quando a historiografia era

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um deserto virgem nesse campo em meio a algumas dezenas de obras gerais espaçadas

pelo tempo e desprovidas em grande parte de referenciais de consulta por parte de seus

autores. A ausência de especialistas explica, é claro, a ausência também da expressão

generalista, até porque esta só se impõe como relação em face do seu vocábulo

antagônico.

Todavia, ainda hoje, há uma certa resistência no uso freqüente do termo generalista,

cuja economia de emprego deve-se mais por preconceito. O ranço de que uma obra

genérica a abarcar um vasto período de tempo cronológico é necessariamente desprovida

de seriedade e de consulta às fontes decorre, muito provavelmente da impressão que

ficou de nossos intelectuais de outrora, de erudição humanística suficientemente densa

para dispensar o trabalho de investigação científica na comprovação dos dados de seus

estudos, normalmente abrangentes e quase sempre superficiais ao gosto dos interessados

no aprofundamento de suas partes constitutivas.

Mesmo que os reparos aos estudos generalistas tenham fundamento a velha dialética

entre o geral e o particular se impõe, e no caso da historiografia é de importância não

desprezível, dado que é preciso uma sistematização contínua e atualizada dos processos

sociais de modo a permitir quadros de referência dos quais se valem os especialistas.

Logo, a convivência desses estudos deve ser vista como complementar, de vez que a

recíproca do argumento que serve para os especialistas também se aplica aos

generalistas, uma vez que estes necessitam de pesquisas pontuais capazes de ampliar o

acervo de conhecimento sobre os fatos que se inserem no longo tempo das obras

generalistas. E neste processo de aproximação entre generalistas e especialistas coube

um papel importante a presença dos brasilianistas, que por necessidade operacional

foram forçados a reverem a história recente do Brasil, e com isso, a estimularem os

estudos generalistas. Ensinaram, outrossim, que as generalizações não podem prescindir

da pesquisa histórica.

Há quem se propôs um tratamento ao mesmo tempo sistemático e analítico do

período republicano, sem enveredar para uma obra geral a respeito da República

brasileira. Foi o caso de João Camillo de Oliveira Torres e o seu O Presidencialismo no

Brasil5. O “filão inexplorado” de que fazia referência o autor no prefácio de seu livro era

5 João Camillo de Oliveira Torres. O Presidencialismo no Brasil. Porto Alegre: Edições O Globo, 1962.

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a história das idéias, pouco usual para os que se arvoravam em escrever sobre a nossa

história. Depois de tratar do Positivismo no Brasil, da Democracia Coroada e da

Formação do Federalismo no Brasil, a questão do presidencialismo ganhara relevo no

instante em que este sistema de governo enfrentava sérias dificuldades de

funcionamento.

Com uma estrutura clássica, uma introdução e três capítulos, o livro tem no último

capítulo intitulado “His Majesty, The President” o seu ponto alto. Inovador em relação

às abordagens que o antecederam e consistente na análise empreendida, Oliveira Torres

atravessa boa parte do período republicano entremeando aspectos teóricos e doutrinários

com a realidade existencial do regime entre nós.. Crítico da guinada moderada

promovida pela Revolução Liberal a conduzir ao poder Getúlio Vargas, “o equívoco de

1930”, o autor identifica no personagem presidencial um fator de desequilíbrio do

regime e de seu sistema presidencialista. Mesmo não se ocupando de uma história linear

da República, esta obra se insere, como não poderia deixar de ser, no rol das referências

historiográficas para o estudo do Brasil republicano.

Três obras generalistas serão objeto dessa primeira parte desse estudo. São elas as

História da República, de José Maria Belo, História Sincera da República, de Leôncio

Basbaum, e, História da República, de Hélio Silva. O curioso é que todas foram

publicadas passados os primeiros cinqüenta anos da instauração da República, o que

significa que o impacto inicial da República não inspirou escritores a se debruçarem

sobre aquela mudança de ordem institucional. É verdade que as chamadas letras no

Brasil eram de escassa proliferação, mesmo nos meios intelectuais onde se lia muito

mais a prosa literária do que a de natureza científica, mormente no que se refere às áreas

humanas. E os que se dedicavam a um apanhado sobre as nossas coisas o faziam sem o

cultivo do ordenamento das fontes, haja vista a incursão do sanitarista Manoel Bonfim e

o seu livro pioneiro América, Males de origem, durante três décadas relegado ao

ostracismo.

A essa relação de três poder-se-ia incluir sem favor algum João Camilo de Oliveira

Torres e o seu O Presidencialismo no Brasil. Afinal, trata-se de uma obra generalista,

muito embora centrada na questão do sistema de governo que acompanha o regime

republicano desde os seus primeiros dias. Em razão de situar-se num campo mais

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específico da problemática do período da República resolveu-se deixar sua análise de

lado, não sem antes relacioná-lo como uma das leituras obrigatórias para quem deseja

reunir informações acerca dos momentos mais relevantes da evolução política e

institucional do Brasil.

José Maria Belo era um homem ligado ao ensino. E em suas andanças pelos

estabelecimentos escolares da então capital do país, percebera a falta de um compêndio

que auxiliasse os mestres e os alunos sobre os fatos mais recentes de nossa história. A

decisão de escrever um livro que se ocupasse essencialmente do período republicano em

meio às incertezas do regime era um desafio que resolvera enfrentar. A receptividade

não poderia ter sido melhor. Sua peregrinação pelos governos da República e o

acompanhamento das crises políticas decorrentes da instabilidade vivida por seus

dirigentes foram duas componentes destacáveis de sua obra. Fiel às normas da

observação cronológica dos acontecimentos e sensível as reviravoltas dos governos,

Belo produziu um livro de referência que faltava efetivamente ao público leitor e aos

estudiosos dos tempos republicanos.

O período coberto por Belo em seu livro se estende do ano da Proclamação da

República (1889), ao ano de 1954, de modo a praticar avant la lettre uma história do

presente, uma vez que escrevera seu texto na década em que se situa o marco conclusivo

de sua história. O subtítulo usado pelo autor, “Síntese de Sessenta e Cinco Anos de Vida

Brasileira”, é revelador do objetivo que o inspirara. Buscou retratar um universo que

extrapolasse os meros registros formais dos fatos, de modo a proporcionar ao leitor “os

principais aspectos da vida brasileira”. Escrito em etapas pode alcançar os anos de

maturidade de Belo, que da primeira edição em 1940 à quarta, prefaciada em 1958, o

livro de Belo tornou-se leitura obrigatória para os interessados em conhecer um Brasil

que despertara para a modernidade em meio à modernização.

A obra é constituída por vinte e cinco capítulos, iniciada com o indefectível “Fim do

Império” e findada com os “Aspectos do Brasil de 1945 a 1954”. Combina a informação

útil sobre os momentos do panorama político e social com alguns ensaios analíticos

curtos, de modo a proporcionar ao leitor comum fácil entendimento a respeito de como

transcorreram as agitações republicanas. Belo já era autor desde a década de 1930.

Moderado adepto da República tinha, como de resto os seus contemporâneos, sérias

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dúvidas sobre as vantagens de um regime que começara mais pelo descrédito da

monarquia do que pela flama de seu ideário. Termina seu último parágrafo do primeiro

capítulo, assim:

A República, que nos propomos estudar, partindo do

seu alvorecer até a grande crise histórica de 1930,

espia, mesmo hoje, além dos erros cometidos por sua

exclusiva conta, os da herança do Império, que é,

afinal, no lado das sombras, a herança da

escravidão e de cinqüenta anos de hesitações, de

timidez, de artifícios e, tantas vezes, de mau

bacharelismo...”

Editado pela Companhia Editora Nacional, a obra de Belo teve várias edições, seja

pela carência de livros sobre ou pela linguagem não rebuscada de seu texto, o fato é que

para os padrões brasileiros à época pode-se dizer tratar-se de um livro bem sucedido. A

rápida passagem do autor pelas lides políticas e partidárias, lembrada pelos editores na

orelha da publicação, não garante obrigatoriamente maior ou menor credibilidade ao seu

conteúdo. Sem dúvida, o conhecimento da prática política brasileira deve tê-lo ajudado a

compreender certos instantes de maior tensão nas atividades de uma sociedade em plena

construção dos experimentos organizacionais de sua vida pública e privada.

Não sendo propriamente um intelectual afeito às reflexões ou projetos de ambições

acadêmicas Belo soube transitar num ambiente ainda muito reticente quanto as

avaliações de um regime em gestação, e cujo momento de inflexão mais madura

acontece com a primeira ruptura de ordem constitucional, que foi a denominada

Revolução de 1930. A abordagem que faz desse episódio tão crucial para os rumos da

República foi sucinta, bastante econômica. E seus comentários limitaram-se a apontar as

novidades empreendidas pelos novos governantes.

A História Sincera da República, foi escrita por um marxista militante. Leôncio

Basbaum era o que se poderia chamar de um “intelectual orgânico”, e impôs-se como

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tarefa política reescrever a trajetória republicana à luz dessa perspectiva. Não cabe aqui

entrar no mérito do uso do instrumental legado por Marx e Engels por parte do autor, até

porque não seria honesto para o pioneirismo de sua obra numa época na qual se

conhecia, no Brasil e em geral, muito pouco dos trabalhos dos fundadores do marxismo,

salvo nos manuais vulgarizadores produzidos com finalidades de divulgação.

Ao qualificar a sua história de sincera, Basbaum pretendia desfazer as versões dos

representantes das elites dominantes no trato das coisas relativas ao processo da

República, e introduzir o referencial proposto por Marx para o exame das formações

sociais submetidas direta ou indiretamente aos ditames dos mecanismos de exploração

numa fase de incremento do modo de produção capitalista no mundo ocidental e

neocolonial. Assim, a chave explicativa para os fatos resultantes das crises e situações de

conflito na sociedade do Brasil contemporâneo se encontrava na identificação de sua

estrutura de classes e das contradições que derivavam de sua organização histórica.

A inovação provocada pela interpretação marxista da História do Brasil já tinha

ocorrido, quando Caio Prado Júnior, em sua Evolução Política do Brasil, editada em

1933, veio à público. Todavia, o primeiro a dar uma perspectiva generalista da

República brasileira foi Basbaum, que evidentemente muito se apoiou na contribuição de

seu companheiro de partido. E, ao contrário de Prado Jr, fora um militante muito mais

enfronhado nas tarefas rotineiras de comunista do que o intelectual paulista, cuja vida de

militância era desenvolvida nos contatos com os amigos e simpatizantes da organização

dos comunistas, mesmo nos momentos de maior luta interna. Essa situação de certa

clausura de Basbaum talvez explique o quase nenhum contato mais freqüente com Prado

Jr, sobretudo se considerarmos o fato de que ambos tinham como interesse comum o

gosto pela pesquisa histórica e pelos temas relativos à formação social brasileira.

Pernambucano, Basbaum formou-se em medicina, mas desde cedo se engajara nas

lutas políticas e, em 1934, com 26 anos de idade lançava o seu primeiro livro A Caminho

da Revolução, sob pseudônimo de Augusto Machado. Na Introdução de seu primeiro

livro sobre a República, que para ele é o período de nossa história “consciente e

sistematicamente deturpada”, o que o levou a propor uma interpretação mais do que uma

constatação de seu itinerário; Basbaum desenvolve suas idéias e concepções de história e

organiza o volume inicial de sua obra em quatro partes. Na primeira trata das Raízes da

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história do Brasil. Na segunda se ocupa do regime que antecede a República, A

Monarquia. Na terceira focaliza as Idéias Republicanas, e na quarta refere-se A queda

da Monarquia.

Se esse primeiro volume aborda os antecedentes históricos que levaram à

Proclamação do regime republicano, o segundo volume é dedicado aos momentos da

instalação da República até o término dos governos militares de Deodoro e Floriano, que

Basbaum denomina de Primeira República, com algum sentido, uma vez que para ele

duas correntes participam da República, a corrente dos profissionais liberais e militares,

de um lado, e a outra constituída por fazendeiros e políticos tradicionais, de outro. O

primeiro grupo, para o autor dominou os cinco primeiros anos do novo regime sendo

sucedido pelo outro grupo a partir a hegemonia dos cafeicultores paulistas. Estes

inaugurariam a Segunda República, cujo marco se esgotaria em 1930.

São quatro volumes que trata de etapas da República consagrando uma periodização

que se tornaria clássica. Assim, os livros se ocupam seqüencialmente, em primeiro lugar,

“Das Origens a 1889”; ma seguir, o segundo “De 1889 a 1930”, depois “De 1930 a

1960”, o terceiro, e por fim, o quarto “De 1961 a 1967”. Neste Basbaum praticou o que

tempos depois se denominaria de história imediata ou do presente, já que terminou esse

volume e logo depois veio a falecer. A exceção do último volume, nos demais o autor

fornece uma pequena, porém, coerente bibliografia. O curioso é tendo sido forjado numa

época de forte cobrança ideológica não deixou de mencionar autores sabidamente de

orientação política e doutrinária distinta da dele.

No que diz respeito ao livro de Hélio Silva, médico de origem e tornado historiador

por devoção, trata-se um trabalho no qual a sua experiência no jornalismo foi de

fundamental importância. De texto correto e direto enxugou o que de mais relevante

factualmente falando se pode reunir em torno do período republicano. Seu trabalho é

mais amplo do que os dos anteriores seus contemporâneos, pois sua volumosa pesquisa

dos fatos levou-o a organizá-lo em volumes distintos, sempre observando a cronologia.

É possível que os anos de atuação do presidente Vargas tenham-no motivado a ingressar

no diminuto circuito de historiadores por escolha e não por formação, como ocorria com

praticamente todos os que à época se dedicaram à produzir textos de história.

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Tanto a coletânea contendo os volumes dedicados aos momentos mais significativos

da República, quanto a série produzida para um público menos familiarizado com os

fatos da história brasileira, primam pela objetividade sem a perda dos detalhes, por vezes

ricos na ilustração desses períodos de nossa história recente. Sem buscar rótulos que

nada acrescentam aos comentários, pode-se dizer que a obra de Hélio Silva é a de um

jornalismo histórico, uma vez que ele consegue fazer da descrição dos fatos reportagens

densamente fundamentadas. Nessa versão mais simplificada e distribuída pelas bancas

de jornal, com encadernação e material gráfico de qualidade, o jornalista, médico e

historiador Hélio Silva logrou êxito em seu empreendimento, pois fez chegar essa

publicação muito além do horizonte limitado até então possível para os divulgadores de

conteúdos para didáticos. Mais. Teve a coragem cívica de incluir no seu último tomo da

série, o de número vinte, o relato das torturas sofridas por Stuart Angel Jones e seus

companheiros de resistência armada contra a ditadura. Retirado das bancas, este e os

demais tomos da obra entraram definitivamente para a historiografia republicana

brasileira.

Há quem garanta que a retirada desse volume da série de 20 editados pela Editora

Três, em 1975, provocou em Hélio Silva um grande desgosto, a ponto de buscar antes do

previsto o isolamento espiritual. A amargura de um espírito liberal não suportou aqueles

tempos persecutórios marcados por uma série de atentados à liberdade que tanto prezava

o pacato e amistoso autor de uma das séries históricas pioneiras em matéria de

divulgação de nossa história recente. O fato é que “Os Governos Militares” da referida

série passou, depois de confiscada nas bancas e livrarias do país, a ser objeto precioso

daqueles que através desse exemplar pretendiam guardar a memória trágica dos anos de

chumbo.

Mas há que se mencione uma tendência que independente da evolução

historiográfica assumir dimensões mais ou menos disciplinares o analista da produção

do conhecimento histórico e da própria história das idéias deve registrar como um

elemento essencial para o aprofundamento dos temas de natureza histórica. Refiro-me a

tendência a incorporar nos estudos que se possam realizar o emprego do recurso

interpretativo. Creio que existem três ferramentas importantes para a elaboração do

conhecimento: a erudição, a pesquisa e a interpretação. Esta não se pode desenvolver

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sem que as duas primeiras estejam totalmente ausentes. A erudição requer leituras e uma

certa ordenação dessas leituras, ao passo que a pesquisa exige um paciente trabalho de

investigação permanente, jamais episódica. Só assim a interpretação desabrocha sem

muito esforço. Mas há, no entanto, os que se esmeraram de tal modo no exercício

interpretativo que acabam por serem situados no restrito e seleto grupo dos intérpretes.

Mas o que são os intérpretes ?

Há três maneiras de se entender o vocábulo: intérprete é aquele que traduz algo para

alguém, é o que analisa situações que implicam níveis de compreensão sobre seus

significados e o que instiga reflexões acerca do conteúdo de um objeto ou problema.

Muito embora todas essas maneiras sejam necessárias para a definição do seu

significado, prefiro ater-me à terceira dessas possibilidades, a que associa o verbo

interpretar ao instigar. A adoção dessa perspectiva nos leva a destacar alguns critérios

para identificar alguém que reúna clareza e competência suficientes para merecer a

consideração de intérprete.

Nesses critérios destaco: a capacidade de inovar; a sagacidade de contestar; e, a

sabedoria de acrescentar um elo original à cadeia do conhecimento. Só a conjugação

dessas três faculdades confere a condição de intérprete. Penso que Euclides da Cunha foi

alguém a quem se pode aplicar essa combinação de critérios que, dentre outros aqui não

considerados, podem figurar no vasto repertório dos que lançam mão de recursos como

tais para identificar os intérpretes de um país. E é com base neles que examinaremos o

tempo e as idéias produzidas pelo autor de Os Sertões.

A incessante busca empreendida por Euclides da Cunha com vista a apreender a

realidade brasileira é inegável, só comparável à determinação de levar adiante a

empreitada por ele concebida. EC quis conhecer com proficiência e agudeza os

problemas e obstáculos ao progresso do país. A literatura sobre a complexa realidade do

Brasil não só era insuficiente para tal pretensão, como padecia de muitos lugares

comuns, e Euclides da Cunha não era positivamente um homem comum. Talvez daí

resulte a insatisfação em face das informações disponíveis e seu desejo de confrontá-las

com os dados da realidade, atitude que proporcionou descobertas responsáveis pela

elaboração criativa de seu trabalho. Estavam, pois, instaladas as condições de produção

do trabalho inovador de EC. Restava apenas a manifestação interpretativa do autor, e

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esta costuma acontecer quando se associa a insatisfação com o desejo de superação

desse estágio incômodo para quem procura respostas às suas dúvidas e indagações.

Toda atitude inovadora principia com um ato de contestação, cuja essência

consiste em negar validade a explicações comumente aceitas sem reparos maiores. A

inovação pode explicitar-se através de uma maneira nova de dizer ou comentar algo por

caminhos até então desconhecidos, ou apresentar novos ângulos de um problema de

modo a permitir percepções desconhecidas até aquele momento. Mas, a contestação

pressupõe uma atitude corajosa, que deriva de uma certa combatividade na equação de

questões inadequadamente sustentadas as quais, portanto, padecem de melhor

esclarecimento.

O resultado da ação que combina inovação e contestação é a adição de novos

conteúdos interpretativos, só possíveis àqueles que detêm uma determinada erudição

acerca de um conhecimento dado. Esta adição sugere uma ruptura ou o surgimento de

uma matriz absolutamente nova a ser integrada ao conhecimento que se encontra na base

da ação investigativa. O detentor dessa faculdade de fazer renovar e avançar os

processos de saber, independente de sua predisposição, são geralmente os intérpretes, e

sobre eles, devem dirigir-se os olhares dos curiosos sedentos de aquisição de horizontes

novos.

O advento da República, através de um golpe de estado, surpreendeu a todos,

inclusive aos que acompanhavam com interesse o desenrolar das sucessivas crises dos

últimos gabinetes parlamentares do regime monárquico. Dentre os surpreendidos se

encontrava EC. A opção pelo ideal republicano muito provavelmente foi resultado de

sua formação. Aluno da Escola Militar recebeu a influência inevitável do positivismo

cuja afinidade com o regime republicano era visceral, pois não podia alguém ser devoto

do ideário filosófico do positivismo sem ser republicano. Era um casamento doutrinário.

A saída de EC do exército não arrefeceu sua crença republicana. Tornou-a,

contudo, passível de olhares críticos que encontrarão nos episódios de Canudos, quando

relata os acontecimentos como repórter jornalístico, o ponto mais agudo dessa

disposição em ver os rumos da República distanciarem-se dos fundamentos que

inspiraram a sua implantação. A relação que passara a ter com seus antigos

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companheiros de farda passara a ser também de relativa independência. Tinha

consciência da importância da corporação para um país inexplorado em suas riquezas e

potencialidades, mas temia o excessivo envolvimento com as esferas do poder político,

vista como sedutoramente capaz de desviar boas intenções, atitude compartilhada

igualmente pelos militares egressos da Escola Militar.

Para Euclides da Cunha, como de resto para os adeptos da solução republicana,

esta alternativa implicava na eliminação dos privilégios de origem e ainda permitia o

desabrochar das capacidades daqueles que conseguissem elevar-se aos níveis supremos

da racionalidade, tal como idealizavam os postulados positivistas. No dizer de um dos

estudiosos de sua obra, é possível resumir “a doutrina da vida e da obra de Euclides da

Cunha: o voluntarismo combatente, o realismo animista e a ética missionária”.2

Se o Brasil era o objeto de seu estudo e reflexões, a República passara a ser o

meio legal e institucional para fazer de seu interesse principal algo grandioso e capaz de

atender plenamente as expectativas de sua gente. Como engenheiro militar formado pela

Escola Politécnica do Largo de São Francisco de Paula, no Rio de Janeiro, inicia suas

atividades em consonância com os primeiros anos da República. O estímulo não poderia

ser maior, preparava-se para abrir estradas pelo país afora, casara-se e assistia ao regime

que acreditara dar seus primeiros passos. Tudo isso quase simultaneamente envolto com

prazerosa paixão. Além disso, iniciava-se também no campo literário, onde iria ter

oportunidade de polemizar acerca dos destinos do Brasil novo que esperava, conduzido

pelos republicanos.

A década de 1890, plena de crises e desvios de rota da jovem República, fez do

engenheiro EC um profissional itinerante a percorrer cidades e mais cidades a impedir o

exercício intelectual de que tanto se ressentia. “De 1897 a 1902 Euclides se dedicará a

escrever Os Sertões, enquanto, em parte desse tempo, trabalha na construção da ponte

sobre o Rio Pardo; durante todo o período, publicará apenas um ou outro fragmento

provisório do futuro livro”.3Terminada esta que seria sua grande obra retorna ao trabalho

no jornalismo e redige o Relatório da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de

Reconhecimento do Alto Purus, como encarregado brasileiro, cuja publicação ocorre em 2 Sevcenko, Nicolau. Literatura como Missão. Tensões Sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 152;3 Galvão, Walnice Nogueira (Introdução) in Feranandes, Florestan (Organizador), Euclides da Cunha, Coleção Grandes Cientistas Sociais n 45, São Paulo: Ática,1984, p. 36;

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1906. No ano seguinte, vem a público o livro de miscelânea Contrastes e Confrontos. E

em 1909, ano de sua morte, sai o livro póstumo À Margem da História, livro que reúne

também um conjunto de ensaios.

Como militar republicano homem que cultivava esperanças de ver ainda em vida

a redenção nacional, a identidade com alguns protagonistas do regime que se instalara

em 1889 era inevitável. De todos Floriano Peixoto foi quem Euclides irá recolher a

melhor impressão. Dos inúmeros epítetos que Floriano recebeu ao longo de sua trajetória

política, tanto de admiradores quanto de detratores e desafetos, o que acabou mais

popularizado foi dado por Euclides, o de Marechal de Ferro, título que dá ao seu

vibrante e afetivo ensaio em torno da figura do Marechal.4

Nesse ensaio, Euclides da Cunha revela toda a admiração que “sobressaía pelo

contraste. Era um impassível, um desconfiado e um cético, entre entusiastas ardentes e

efêmeros”. Por este contraste, diria que caberia ao historiador, mais tarde, explicar o

significado da glória que alcançara. Essa esfinge precisaria ser decifrada, pois não se

tratava de um homem que se coadunasse com os ritos e a pompa das circunstâncias. Ao

contrário, era comum demais para ser o que foi.

Talvez pela naturalidade de quem não se desfigura diante de homenagens do

poder e do poder das homenagens, é que Euclides da Cunha tenha assim sentenciado no

referido ensaio sobre o Marechal de Ferro, sem dúvida o mais completo retrato daquele

personagem que instigara e ao mesmo tempo cativara o escritor:

“Minutos depois, quando diante do ministério vencido o

marechal Deodoro alteava a palavra imperativa da revolução, não era

sobre ele que convergiam os olhares, nem sobre Benjamin Constant,

nem sobre os vencidos – mas sobre alguém que a um lado,

deselegantemente revestido de uma sobrecasaca militar folgada, cingida

de um talim frouxo de onde pendia tristemente uma espada, olhava para

tudo aquilo com uma serenidade imperturbável. E quando, algum tempo

depois, os triunfadores ansiando pelo aplauso de uma platéia que não

4 EC, “Marechal de Ferro” in Contrastes e Confrontos, Porto/Lisboa: Liv. Chadron/Aillaud & Lellos, 1907;

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assistira ao drama, saíram pelas ruas principais da cidade do Rio –

quem quer que se retardasse no quartel general veria sair de um dos

repartimentos, no ângulo esquerdo do velho casarão, o mesmo homem,

vestido à paisana, passo tranqüilo e tardo, apertando entre o médio e

index um charuto Consumido a meio, e seguindo isolado para outros

rumos, impassível, indiferente, esquivo...E foi assim – esquivo,

indiferente e impassível – que ele penetrou na História “5

É interessante a sedução provocada pelo Marechal junto à geração de escritores e

intelectuais, todos críticos e ao mesmo tempo entusiastas da figura que conseguira pela

vez primeira extrapolar a caserna e atingir o mundo civil. Além de EC, Sílvio Romero e

Lima Barreto desenvolveram uma relação ambígua, provavelmente porque Floriano

representara como ninguém a personificação da república que tantos idealizavam e

pretendiam vê-la em funcionamento: forte suficientemente para resistir às oligarquias e

às investidas de fora que pudessem restringir a soberania nacional.

Contudo, os acontecimentos de setembro de 1893, quando irrompeu a Revolta da

Armada,6 arranhou consideravelmente a maré montante dos que cerravam fileiras em

torno de Floriano. As defecções foram muitas, não obstante o crescimento vertiginoso da

popularidade do presidente. Se as adesões foram suficientes para produzir o primeiro

grande movimento espontâneo de caráter cívico e popular, o afastamento de

personalidades que davam apoio ao marechal não deve ser negligenciado. Dentre os que

se afastam encontrava-se EC, que não poupou críticas a violência da repressão

desencadeada pelo governo florianista, não obstante ter tido participação ativa na defesa

militar da cidade nas trincheiras do bairro da Saúde.

EC colaborou no jornal A Província de São Paulo, sob o pseudônimo de

Proudhon, mantendo uma seção intitulada “Questões Sociais”. Aliás, sobre essa

temática produziu um das mais ricas e contemporâneas reflexões acerca da matéria, o

5 EC.”Marechal de Ferro” in Confrontos e Contrastes6

5 A Revolta da Armada transcorreu entre setembro de 1893 e março de 1894, tendo como principal rebelde o Contra-Almirante Custódio José de Melo, que contestava a posse de Floriano na presidência da República, sendo ele próprio, Custódio, um pretendente ao posto.

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ensaio “Um velho problema” publicado em Contrastes e Confrontos, que segundo um de

nossos historiadores “transcende a tudo quanto até aquele momento havia sido escrito no

Brasil, no que diz respeito às relações entre o capital e o trabalho, bem demonstram

como o vigoroso pensador de Os Sertões estava se aprimorando no trato de questões

candentes, dentro de metodologias cada vez mais exatas.” ·6·

A sensibilidade de EC na abordagem da problemática social é um elemento

constitutivo de sua percepção de observador atento das relações sociais. Ao mudar sua

visão sobre Canudos, depois de nutrir uma apaixonante defesa do regime republicano,

chama as populações sertanejas de “nossos rudes patrícios transviados”, numa singela

confissão de compreensão em relação ao movimento, que segundo ele “despontou da

convergência espontânea de todas estas forças desvairadas, perdidas nos sertões”, que

passara a conhecer na mais completa adversidade.

José Pereira de Sampaio (Bruno), autor de O Brasil Mental, e prefaciador de

Contrastes e Confrontos, diz que EC “é erudito argumentador tem a galhofa do cronista

e a eloqüência do tribuno; é um sábio e um mestre prosador”.7 O escritor e crítico

português resume com essas palavras o conjunto da obra de Euclides da Cunha. Passado

quase um século pode-se dizer que esse legado é mais grandioso do que imaginava

Bruno. Certamente uma palavra melhor exprime o legado: Euclides da Cunha foi

fundamentalmente um brasileiro interessado nos destinos do país, e para tanto procurou

fazer sua parte. Atribuiu-se a missão de investigá-lo nos limites de sua competência de

engenheiro e de cidadão, de técnico e de ativo participante das coisas nacionais.

A capacidade de entender a diversidade de populações destituídas de meios e em

face de um cenário adverso, onde a relação raça e condições geográficas passam a

representar um elemento importante em suas observações, tornou Euclides um cientista

social tão denso e agudo em suas análises quanto os que dela faziam sua atividade

profissional. É sabido que quando EC dispôs-se a reportar a revolta de Canudos, pensara

tratar-se – como de resto todos os republicanos – de uma manifestação fomentada pelos

restauradores monarquistas. Passada a perplexidade, procurou apreender as razões 6 Moura, Clóvis. “Euclides da Cunha”. In Grandes Vultos do Brasil, São Paulo: Editora Lúmen, 1970, p. 134;7 EC, Contrastes e Confrontos, op.cit. p. xi;

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daquele episódio. Essa preocupação em não se limitar a descrever mas em compreender

as motivações daqueles sertanejos, tornou possível a obra que o tornou famoso e

respeitado.

A concepção de Os Sertões reforça aquela relação entre raça e condições de vida

e para tanto, organiza sua obra em três partes: a terra, o homem, a luta. Sua paixão pelo

cenário onde esse elemento se integra é arrebatadora. Em momento algum se encontra

distante do teatro em que as cenas mais duras ou mais singelas se cruzam numa

permanente alternância de situações que não escapam ao olhar atento do observador

interessado. Este interesse não se prendia apenas ao cenário dos embates, suscitava nele

a reflexão que invariavelmente resultava em soluções para os problemas da região e seu

povo.

No capítulo sobre a terra, a ausência de chuvas provocava o contínua evasão de

seus habitantes, os retirantes. Ao longo da descrição dessas condições adversas, EC

propunha o represamento das águas e o uso da irrigação, a exemplo de outras partes do

mundo em que tais condições se assemelhavam, como a região do Magreb, no norte da

África, especialmente na Tunísia. Embora essa situação não fosse a determinante para os

problemas por que passavam as populações do nordeste, o descaso de uma elite

neocolonial em equacionar esse panorama transformava-o em resolução insanável, a

provocar com freqüência o apelo a crendices e a salvadores. Estava, pois, criada as

condições para o messianismo prosperar.

No que respeita ao capítulo em que trata do homem, Euclides da Cunha dá vazão

às suas teses, fundada na crença de que os cruzamentos de raças resultaram no homem

brasileiro, esse pardo que até hoje pontifica nas consultas do censo do IBGE. Porém, a

ambígua relação entre raça e nação aparece a todo instante, como observa-se numa

passagem do autor: “A nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social.”8

Os sucessivos cruzamentos dariam como resultado o surgimento de uma raça original, a

integrar peculiaridades e a forjar impulsos vitais renovados mercê de aquisições de

valores ancestrais. A famosa expressão, “o sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem

o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral” é, na perspectiva de EC, a

8 EC, apud, Leite, Dante Moreira. O Caráter Nacional Brasileiro, 2@ edição, São Paulo,: Pioneira, 1969, p. 206;

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melhor síntese que produziu para fundamentar sua tese e, particularmente, para situar a

resistência estóica dos sertanejos em face da opressão dos opressores.

E ao examinar a complexidade do problema etnológico do Brasil, EC aborda a

questão da “gênese dos jagunços”, a quem o autor considera tipos “colaterais prováveis

dos paulistas”. Assim, ao referir-se ao homem que se situava ao longo do trecho que se

estende do leito do rio Vaza-Barris ao do Paraíba, estava mencionando uma

representação de um brasileiro em meio ao extraordinário e rico manancial de tipos

sociais produzidos pela miscigenação responsável por uma integração nacional exitosa.

Provava, com isso, a capacidade do brasileiro de encontrar parcerias de vida, ainda que

vidas submetidas a constantes sobressaltos.

A parte dedicada à luta não só ocupa dois terços de Os Sertões, como alcança um

nível de comprometimento com a narrativa que torna sua leitura algo candente e o leitor

refém de sua tessitura. Ao iniciar seus “Antecedentes”, diz em tom categórico: “O mal

era antigo”. \mais adiante sentencia: “O jagunço, saqueador de cidades, sucedeu ao

garimpeiro, saqueador da terra. O mandão político substituiu o capangueiro decaído”.8

A trama prossegue alternando informações úteis ao leitor desavisado, como de pronto se

encontrava o autor, com as escaramuças que alteraram substancialmente a vida e a

natureza daquelas paragens.

A medida em que EC tece considerações acerca das expedições enviadas a

Canudos para destruir o arraial de Belo Monte, cresce a emoção cujo clímax ocorre no

trecho dedicado aos “Últimos Dias”. Nele, em tom solenemente emocional, EC afirma

no penúltimo item “Canudos não se rendeu”, no qual tornou conhecida a passagem

antológica: “Exemplo único em toda a História, resistiu até o esgotamento completo.

Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer,

quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um

velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco

mil soldados”.9

Até aquele momento não se conhecia narrativa tão impregnada de verdade,

indignação e indisfarçável admiração pela manifestação de um povo como o relato desse

romance-reportagem que veio á público em 1902, portanto há cem anos. Se Graça

8 Cunha, Euclides. Os Sertões, 27@ edição, Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1968, p. 165;79 Id.Ibidem, op.cit. p. 458;

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Aranha com o seu Canaã tem sido apontado como o pioneiro do romance social, EC foi

indiscutivelmente o iniciador da historiografia não oficial, seguido que foi, em 1905, por

outro intérprete do Brasil, Manuel Bonfim e seu América Latina, Males de Origem. Essa

geração fundou, EC à frente, a verdadeira história social brasileira.

O legado de Euclides da Cunha precisa ser transformado em compromisso cívico.

Militar frustrado, engenheiro bem sucedido e escritor consagrado, foi fundamentalmente

um brasileiro absorvido por uma obsessão: a de encontrar rumos certos para a trajetória

do país e a felicidade de sua gente, cuja construção como raça (vocábulo de uso corrente

naquela ocasião) impunha o merecimento de uma pátria tão harmoniosa quanto fora a

fácil e fecunda integração étnica e cultural dos povos que aqui se constituíram ao longo

de nossa história como sociedade mestiça e transcontinental.

Se Euclides da Cunha foi notabilizado pela obra maior, Os Sertões, caberia assinalar

outros momentos de lúcida reflexão sobre o Brasil e suas riquezas e potencialidades,

como, por exemplo, em À Margem da História, livro editado que reúne seus ensaios o

legado mais rico das idéias desse intelectual, engenheiro e empreendedor. Nesses textos

se encontra o também historiador e, sobretudo, o homem de idéias.

Dividido em quatro partes, intituladas de Terra sem História, Vários estudos, Da

independência à republica e Estrelas indecifráveis, sua primeira edição data de 1999 de

iniciativa da Livraria Martins Fontes Editora. A avaliação que faz da implantação da

República entre nós talvez seja a mais singela e verdadeira das explicações. Faz ver ao

leitor que o momento republicano havia chegado em diversas ocasiões e, portanto, a

alternativa republicana estava mais do que madura. Seu ponto de maior inflexão se dá

com a Abolição, marco final de um regime que não soubera conduzir essa transição tão

almejada pela humanidade em sua sabedoria. Não vê méritos especiais nos líderes do

movimento e da propaganda republicana, nos militares mais exaltados e tampouco na

imprensa. Todo o ambiente político se encontrava arrastado para a solução adiada, mas

que se tornava cada vez mais inevitável. E termina essa Terceira parte assim:

Foi o que se viu a 15 de novembro de 1889;

uma parada repentina e uma sublevação; um

movimento refreado de golpe e transformando-se, por

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um princípio universal, em força; e o desfecho feliz de

uma revolta.

Porque a revolução já estava feita.

A República na perspectiva de Francisco José de Oliveira Vianna tem a sua

expressão mais densa em O Ocaso do Império, que é a mais aguda análise dos

acontecimentos que se produziram do ponto de vista de uma historiografia retrospectiva

do processo de constituição da República. Destaca-se, de início, a estrutura do livro, que

sintetiza magistralmente a conjuntura da transição da monarquia à República. Na

primeira parte, a referência às lutas entre as duas soberanias: ao do príncipe e a do povo..

Na segunda, O Movimento abolicionista e a Monarquia, na qual Oliveira Vianna ressalta

o papel político representado pela Abolição no processo de republicanização do país.A

Gênese e evolução do ideal republicano é o tema da terceira parte do livro. Nele, o autor

relaciona a reação liberal de 1868 como marco desse processo político que levaria à

República. Na quarta parte, O.V. trata de O papel militar na questão do Império, e

analisa o contencioso entre os militares e o regime monárquico. E, finalmente, na quinta

parte, examina A Queda do Império. E em dois momentos sintetiza sua avaliação desse

processo.

“O povo-massa, (...) não tinha, realmente, saído da prática da

gestão, (dos interesses comunais). Este foi o grave problema que o

advento revolucionário do Estado-Nação – fundado na soberania do

Povo e não mais na soberania do Rei – impôs à capacidade dos povos

modernos. (...) Uma destas condições indispensáveis a uma execução

eficiente deste novo regime é o sentimento do Estado Nacional, isto é, a

consciência, em cada cidadão do povo-massa, de um destino ou uma

finalidade nacional ao mecanismo do governo e da administração

centrais.” (pp. 160-161, de IPB, v. I);

“O regime republicano – com a pequena periodicidade dos mandatos

e a rápida sucessão dos homens no governo – não favorece, e mesmo

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dificulta, a seleção dos `homens de 1.000`. Os homens, que hoje existem

aqui deste tipo, têm uma carreira precária e curta. Não formam uma

classe – como no Império. São homens isolados, individualidades à parte

no meio político – espécie de “desajustados” superiores, tomados de

misticismo regenerador, eternos descontentes, sujeitos a crises bruscas

da misantropia política e súbitos afastamentos radicais da vida pública..”

(p. 336, de IPB, v.I).

2. Os renovadores

Este item reúne um conjunto mais diversificado de autores, uma vez que se juntou o

grupo que efetivamente propôs uma revisão historiográfica da leitura de nossa história e

os que se preocuparam a introduzir definitivamente o hábito da pesquisa na produção de

estudos de natureza histórica. Assim, foram relacionadas as obras de Caio Prado Jr,

Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, de um lado, a representarem os

renovadores de estilos e perspectivas novas a respeito da história brasileira, juntamente

com os pioneiros de trabalhos alusivos à República saídos da faina acadêmica e

bafejados pela imersão nos arquivos e depósitos de documentos consultados por esses

igualmente renovadores da historiografia, tais como Emília Viotti da Costa e José

Murilo de Carvalho.

É claro que nomes como os de Alice Canabrava e Maria Sylvia Carvalho Franco,

além de dezenas de outros poderiam figurar numa relação maior do que a que se está a

propor nesse ensaio, muito embora a primeira não tenha se ocupado propriamente de

temas republicanos. A explicação está exatamente em ser um texto curto sem a pretensão

de abarcar não só todos os nomes dignos de figurarem num estudo de historiografia

republicana como de, principalmente, aprofundar suas contribuições. Alguns outros,

portanto, poderiam integrar essa relação, mas o critério foi o de priorizar, por outro

lado, as contribuições relativamente ao período republicano. Por outro lado, e

considerando as limitações de espaço, trata-se de uma resenha que não exclui a

referência a trabalhos não menos pioneiros ou relevantes sobre os quais caibam algumas

considerações na esteira das que se fizerem a propósito dos autores mencionados.

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O livro de Viotti da Costa Da monarquia à república tornou-se uma referência para

os estudiosos da transição dos regimes políticos brasileiros. Nele, a autora reafirma um

conjunto de elementos interpretativos consolidados pelas pesquisas acadêmicas e

adiciona uma série de aspectos novos nas considerações acerca do processo histórico

examinado. Texto direto, simples, mas ao mesmo tempo rico e muito bem articulado,

esse livro tem servido de leitura básica para o início do estudo do período republicano

brasileiro. Destaca-se entre outras questões, por exemplo, a definição que a autora dá às

tendências revolucionárias e evolucionistas representadas respectivamente por Silva

Jardim e Quintino Bocaiúva. Em pauta, a questão da oportunidade de se adotar a fórmula

republicana, que para uns passaria por um ação popular, ao passo que para outros a

chegada da República dar-se-ia progressivamente e por meios pacíficos.

Também se destaca no livro as versões a propósito da Proclamação. Haveria a versão

militarista e a civilista. Cada qual reivindicando para uma dessas facções o mérito e a

condução do processo. Ambas se encontram historiograficamente marcadas por visões

preconceituosas a respeito do oponente. Sem minimizar a importância das diferenças e

controvérsias entre civis e militares, o fato é que transformarem-nos em instrumentos

isolados de um movimento que contou, dos dois lados, com integrantes desses dois

grupos que protagonizaram os acontecimentos é, positivamente, reduzir de maneira

injustificável os fatores e os agentes daqueles momentos decisivos, termo no qual a

autora acrescenta ao título de seu livro, cuja primeira edição é de 1977, editado pela

Grijalbo e constituído de dez capítulos.

No que se refere a José Murilo de Carvalho sua obra conjuga os períodos

monárquicos e republicanos. Mas sua inclusão nesse ensaio, como referencia para os

estudos republicanos se deve ao fato de ter proporcionado contribuições altamente

relevantes para a compreensão de uma transição política e institucional sem grandes

custos sociais. Sem dúvida, a leitura de A Construção da Ordem e Teatro de Sombras

traça um panorama do Império, primeiro e segundo reinados, que permite ao leitor

entender os desdobramentos que resultariam na República. O primeiro corresponde à

primeira parte da tese de doutoramento sustentada na Universidade de Stanford. Nela o

autor analisa o comportamento da elite política imperial e foi publicada isoladamente em

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1980. A segunda parte, trata da política desenvolvida no período imperial por essa elite,

cuja saga não se deteve com o advento do regime republicano.

Muito provavelmente o livro que melhor caracterizou a incursão de José Murilo de

Carvalho no mundo dos estudos republicanos foi o seu Os bestializados. O Rio de

Janeiro e a República que não foi de 1987, pela Companhia das Letras. Ao reunir cinco

ensaios, “O Rio de Janeiro e a República”, “República e cidadanias”, “Cidadãos

inativos: a abstenção eleitoral”, “Cidadãos ativos: a Revolta da Vacina” e”Bestializados

ou bilontras?”, amparados por uma Introdução e uma Conclusão de modo a tornar mais

do que complementar o conjunto harmonioso que conferiu o formato mesmo de livro, o

historiador mineiro abriu uma senda das mais robustas e estimulantes para a releitura dos

anos inicias do período republicano, que pareciam definitivamente enterrados na

mesmice das parcas relações entre as pessoas e as instituições.

Ao juntar à bibliografia uma relação de periódicos pouco manipulados pelos

pesquisadores dessa época, José Murilo de Carvalho conjugou o rigor acadêmico com a

informação pedagógica tão necessária ao leitor menos ilustrado, mas não menos

interessado nas coisas do país. Como disse nas suas considerações finais, o livro “girou

em torno de três temas e das relações entre eles: o tema do regime político (a República),

o tema da cidade (Rio de Janeiro) e o tema da prática popular (a cidadania).” Essa

abordagem foi pioneira e detonou uma série de estudos situando ora um desses temas,

ora a interação entre eles, seja com base nos documentos dos depósitos de arquivos

públicos ou de coleções particulares. Mais do que a perspectiva de uma abordagem

original, para os padrões até então em vigor na historiografia, o fato de o autor inserir os

desafios de uma tentativa de republicanizar a cidadania em pleno momento de uma nova

transição, a do legado da ditadura militar para uma “Nova República”, que surgia, tornou

essa publicação num indiscutível ponto de referência para os novos pesquisadores.

Contudo, dois historiadores deixaram um legado dos mais importantes às novas

gerações: Caio Prado Junior e Nelson Werneck Sodré. Se o primeiro, mencionado

anteriormente como um dos renovadores da historiografia juntamente com Sérgio

Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, é reconhecidamente um nome de destaque na

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galeria dos imortais da historiografia brasileira, Sodré não tem tido o merecido

reconhecimento. Muito embora ambos tenham tido a aversão de setores tradicionais e

conservadores em razão de terem sido militantes do PCB, no tocante a Sodré é possível

que a sua condição de oficial da reserva do exército nacional o tenha feito uma

personagem de difícil assimilação nos meios intelectuais, por puro preconceito reforçado

pelo forte anticomunismo que se estabeleceu nas forças armadas, sobretudo depois dos

episódios de 1935.

O que importa, no entanto, é que a obra produzida por esses dois geniais

combatentes da história tornou-se referência obrigatória das listagens bibliográficas dos

cursos de graduação em história e nas demais ciências sociais, quando não freqüentando

a seleta relação de autores dos seminários de pós-graduação nas áreas das ciências

humanas. Só a presença de seus livros na bagagem formadora dos novos profissionais

saídos das universidades brasileiras seria motivo suficiente para uma avaliação mais

pormenorizada da contribuição que proporcionaram ao conhecimento de uma dimensão

macro histórica do Brasil. Mas, além dessa constatação, há que se acrescentar o caráter

teórico e metodológico que ambos difundiram na academia, ao tornar o marxismo não

apenas uma retórica vinculada ao proselitismo praticado pelos ativistas do ideário

socialista, porém uma ferramenta interpretativa da formação e do desenvolvimento

histórico da sociedade brasileira. Neste aspecto, tão somente aqui lembrado, já seria

suficiente para incluí-los como leituras obrigatórias das leituras a respeito do Brasil.

Se Caio Prado Junior com a sua Evolução Política do Brasil, de 1933, abriu o

caminho para que a interpretação marxista de nossa história alcançasse uma

sistematização até então inexistente, foi com Nelson Werneck Sodré que a aplicação

desse método de análise da formação social brasileira foi mais amplamente exercitada.

Não somente pelo volume de estudos desenvolvidos pelo general e historiador mas por

ter desbravado fronteiras do conhecimento na área ampla e difusa das ciências humanas.

Se o historiador paulista deteve-se na apreciação das questões atinentes ao universo dos

historiadores, o historiador carioca fez incursões nos campos da literatura e de temáticas

de natureza cultural, com a desenvoltura que o uso do instrumental teórico lhe facultou.

Além do caráter múltiplo de seus estudos Sodré preocupou-se em ocupar-se de temas

atinentes aos fazeres dos quais se envolvera em suas atividades, seja como intelectual

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engajado nas questões nacionais, na qual o ISEB era uma de suas trincheiras, seja como

militar a refletir acerca de questões que diziam respeito à instituição que pertencera, ou

ainda, ao militante comunista. Nesta última atividade, não obstante a discrição, Sodré

não deixou de contribuir com estudos referentes à organização política da qual fizera

parte, o PCB. Sabia, por outro lado, conviver com os diversos interlocutores que

participavam desse rico mundo de idéias sem quaisquer dificuldades. E em cada uma

dessas frentes produziu obras que foram de grande valia aos seus companheiros.

O intelectual eu o conheci primeiro. Foi no ISEB, quando assisti pela primeira vez à

palestra que proferira se não me falha a memória de abertura do curso de teoria social,

no qual se estudaria a formação histórica brasileira. Deste curso e, sobretudo, de sua

orientação surgiria mais tarde uma coletânea de pequenos ensaios intitulada de História

Nova. A fala mansa e ao mesmo tempo segura e convincente denotava o domínio das

fontes e apresentava um perfeito encadeamento no relato dos fatos com as circunstâncias

que lhes deram origem e dimensão. Nada lhe parecia incomodar aparentemente, mesmo

as perguntas mais inconvenientes ou desprovidas de algum propósito. Respondia com

elegância e pacientemente.Demonstrava um domínio da matéria e eu o considerava o

senhor da História, pela segurança nos argumentos e coerência na análise.

O general eu o conheci no quartel-general situado no Palácio Duque de Caxias, sede

do então comando do 1º Exército e também aonde funcionava o próprio ministério da

Guerra, denominação anterior a do atual ministério do Exército. Servira ao exército

naquele mesmo estabelecimento, e para lá retornava anos depois para resolver um

problema relacionado ao recebimento da pensão de minha mãe, filha de militar. À minha

frente, no saguão para atendimento aos oficiais da reserva se encontrava alguém que era

alvo de seguidos cumprimentos. Por fim, descobri tratar-se de um nome que já me era

familiar: Nelson Werneck Sodré. Tive impulsos de dirigir-me a ele, mas resolvi tão-

somente observá-lo. A oportunidade de conhecê-lo como membro de partido ocorreu

mais tarde.

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AnexosI

O Relato de uma experiência

I

Foi durante as férias de julho de 1963 o contato que tive com o projeto De pé no

chão se aprende a ler, desenvolvido na prefeitura de Natal, Rio Grande do Norte, na

gestão de Djalma Maranhão. Meu pai fora convidado a fazer algumas palestras e contou-

me a respeito dessa experiência. As pessoas mobilizadas percorrendo os mais distantes

distritos e aldeias da acolhedora capital potiguar, certas do futuro promissor que os

aguardava. Viviam-se os tempos de mudança para melhor e eu, embalado pelos ventos

da Revolução Cubana a fazer-me a cabeça, acreditava piamente que o futuro estava

chegando.

À frente do projeto educacional alternativo que assistia entusiasmado se

encontrava Paulo Freire e Moacir de Góes. Tempos mais tarde fui apresentado ao mestre

Paulo Freire e de cara percebi tratar-se de alguém especial. Não demorou muito e já

corria que Jango o queria à frente de um projeto que alfabetizasse todo o país. Era um

Plano, que logo em seguida transformar-se-ia em Programa a ser implantado no MEC.

Como estudante e simpatizante do PCB, (só me filiaria depois do golpe de 64), fui um

dos convocados para a tarefa de dar corpo à idéia de se iniciar no Rio a adoção do

método Paulo Freire de alfabetização e conscientização.

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A prova de seleção dos monitores do método Paulo Freire foi realizada no

estádio do Maracanã. Uma verdadeira multidão de jovens acorreu num dia de sol a pino.

Era a consagração da política de alfabetização dos adultos, e todos demonstravam forte

interesse em participar daquela epopéia de verdadeira salvação nacional. Apesar de a

capital da República já ter sido instalada em Brasília, o Rio continuava a ser uma

referência nacional. E a realização desse processo seletivo tinha também um caráter

emblemático, na medida em que expunha à opinião pública nacional as diretrizes de um

Programa voltado para dotar de cidadania um contingente expressivo de brasileiros.

Mesmo com a transferência da capital para Brasília, a cidade do Rio de Janeiro,

então Distrito Federal, ainda respirava o ar da política nacional. A dimensão cosmopolita

casara-se bem com a fácil veiculação de projetos nacionais de cunho generoso, razão

pela qual a mudança do governo federal para o planalto central não ter motivado ações

de repúdio ou contestação por parte de seus habitantes. Afinal, pensava-se no bem que

tal decisão proporcionaria para milhões de brasileiros e para a própria integração do

vasto território brasileiro. Todas essas questões perpassavam as cabeças dos jovens que

acorreram à prova de seleção, cujo teor consistia de uma espécie de verificação da

cultura geral dos candidatos, de modo a aquilatar o grau de inserção naquele contexto

tão politizado merecedor, portanto, de agentes que pudessem expressar as demandas dos

setores populares mediante a coordenação de um governo vocacionado para dar

prioridade absoluta a esses setores da sociedade.

Sirvo-me de uma mensagem recebida pelo companheiro Airton Queiroz,

economista e professor da UFF, na época monitor dos cursos de alfabetização em

Pernambuco, terra de Paulo Freire, para explicar o que consistia o tão propalado Método

Paulo Freire. Melhor do que essa síntese perfeita não conseguiria produzir.

O Método Paulo Freire, do qual fui monitor e supervisor em Recife e em dois engenhos de açúcar do município de Barreiros/PE ( onde ensinei 90 cortadores de cana jovens e adultos aprender a ler em apenas 80 dias ), nos idos de 1963/64, é considerado sintético-analítico-sintético, parte do discurso, chega à palavra-chave ( pesquisa do universo vocabular da comunidade a ser alfabetizada ), da palavra chave à família dos seus fonemas constituintes. 

A partir dessa família de fonemas se incentiva a descoberta de outras palavras e com elas se promovem novos discursos. 

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É como você diz, é uma epistemologia holística, cuja concepção entende que o adulto, mesmo sendo analfabeto tecnicamente, é um potencial alfabetizado, pois o mundo que lhe cerca, principalmente, se ele for urbano, é inundado pela palavra escrita. 

Cheio desses símbolos que vê sempre e, dos quais, tem um semi-entendimento, nos cartazes, nos letreiros dos ônibus, nas revistas e jornais expostos em bancas, nas placas das ruas, nos títulos dos prédios públicos etc. 

E Paulo Freire ensinava que essa pessoa adulta, mais que as tenras crianças, tem seus pensamentos, em forma de discurso, de narrativa, cuja expressão mínima é uma sentença, mas nunca só uma sentença. 

Ninguém pensa só com uma única frase. Muito menos com uma só palavra. Todo pensamento, mesmo quando confuso, é um discurso, é uma descrição, uma dissertação, uma informação, uma fofoca, uma canção com uma mensagem.  

E, como todo pensamento é desejoso, como diria Hélio Pellegrino, todo ele é uma argumentação em prol de expressar ou satisfazer um desejo, desde a busca de saciar a fome à oferenda do amor. 

O pensamento é algo inteiriço, formado por frases, sentenças, parágrafos, capítulos, causos, piadas, relatos, declarações de amor, romances, estórias, história, etc. 

A alfabetização técnica do Método Paulo Freire, que o analfabeto é levado a descobrir, com arte,  pelo bem treinado monitor-motivador ( e não professor ), dá-lhe imensa alegria, pois sente que foi ele mesmo que se alfabetizou. 

E, com o domínio da palavra lida e escrita por ele, com esses "tijolos do pensamento", desarna-se a construir novos discursos com novas palavras, enriquece sua mente, aumenta sua cidadania, afirma-se como ser político e passa a querer, junto com seus companheiros, a influir nos destinos de seu lugarejo, de sua cidade, e mais adiante, de seu País e do Mundo. 

Daí que Paulo Freire compreendia que não se podia ajudar a alfabetizar de maneira sólida, sem que esse processo fosse acompanhado da conscientização sócio-cultural -política do alfabetizando. 

Alfabetizar é politizar e vice-versa, isso se faz num só processo.  

O desejo de politizar-se passa a ser a motivação básica da alfabetização freiriana. Toda "aula" é iniciada com um tema da vida da comunidade posto em discussão.  A função do monitor habilitado é

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provocar, conduzir e buscar manter o foco discussão no tema que deve girar em torno da palavra-chave.  

As palavras chaves, descobertas em pesquisa prévia junto à comunidade, alvo da alfabetização, devem ser cuidadosamente escolhidas pela sua vitalidade temática e, em número que não chega a trinta, são capazes de gerar quase todos os principais fonemas da nossa língua. 

E o monitor, alma do Método Paulo Freire, se   sairá tão melhor no seu trabalho, quanto menos seja notado, quanto menos seja o centro das discussões, que o grupo de alfabetizando deve travar.  

A coroação do monitor é sua existência-inexistente.  

Se ele foi bem treinado e for exitoso na execução do seu trabalho, verá que a partir da terceira ou quarta palavra chave, o grupo se adianta a ele. E ele não deve atrapalhar essa ansiedade despertada no grupo, mesmo que haja  naturais "atropelamentos", os quais devem ser auxiliados de forma quase invisível por ele. 

A pretensa alfabetização apolítica não cria a fibra da cidadania, não tempera a garra de sentir-se um ser no mundo e para o mundo.   Não constrói a consciência de um ser que é mais do que biológico, é um ser sócio-cultural, é um ser produto e produtor de cultura. De operário construído em operário em construção, diria o poeta. 

O alfabetizado freiriano aumenta o orgulho que sente pelo trabalho, pelo seu trabalho, por mais humilde que pareça ser. Ele passa a entender que o trabalho, qualquer trabalho, produz cultura.  

O trabalho é o primeiro e principal poder, o poder que forma todos os outros poderes, inclusive todas as riquezas. 

Ele aumenta sua auto-estima, deixa de ser uma pessoa tímida ante os poderosos. Vai compreendendo que o poder dos ricos provém de parte do produto do seu trabalho individual que lhe é expropriado.

  Apesar de já ter recebido dezenas de vezes, homenagens universitárias, como paraninfo e patrono de muitas turmas, em várias faculdades daqui e dalhures, a alfabetização desses homens e mulheres, desses camponeses de Barreiros, é a maior honra pedagógica que carrego com muito orgulho no meu peito.  

Basta a simples lembrança desse feito, para me levar às lágrimas de felicidade.  

Estou justificado perante o mundo.

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Apesar de já ter recebido dezenas de vezes, homenagens universitárias, como paraninfo e patrono de muitas turmas, em várias faculdades daqui e dalhures, a alfabetização desses homens e mulheres, desses camponeses de Barreiros, é a maior honra pedagógica que carrego com muito orgulho no meu peito.  

Basta a simples lembrança desse feito, para me levar às lágrimas de felicidade.  

Estou justificado perante o mundo.

Na região Sudeste, a estratégia consistia em iniciar a implementação do

Programa na Baixada Fluminense e junto aos filiados dos sindicatos operários existentes

no Rio e comprometidos com o objetivo do referido Programa. Era preciso além dos

mobilizadores formar equipes de alfabetizadores mediante cursos de curtíssima duração,

de modo a multiplicar em ritmo veloz o contingente dos executores do método em

questão. Os resultados eram fantásticos, pois ao aliarem-se as palavras-chaves do

linguajar cotidiano das comunidades com a abertura de consciência a respeito de suas

condições de vida produzia-se algo extraordinário, uma espécie de insight, e a

descoberta das condições de exploração a que eram submetidos os assalariados. O

sucesso inicial dessa experiência contagiava a todos os que se empenhavam em levar

adiante o projeto de dar, no fundo, cidadania a milhares de simples e humildes pessoas

até então aprisionadas pela ignorância.

O impacto dessa experiência chegou à Brasília, mais precisamente ao governo do

presidente João Goulart, o Jango. Num primeiro momento alguma resistência ocorreu,

mas quando o MEC foi assumido porm Paulo de Tarso, o professor Paulo Freire foi

convocado a estender aquela experiência ao nível nacional, tendo Brasília como uma

espécie de plano piloto desse processo. A idéia do ministro era atingir 2 milhões de

analfabetos, com o que os tornaria imediatamente eleitores capazes, portanto, de

promover pacificamente por via eleitoral uma verdadeira revolução no país. Como

lembraria maiôs tarde Paulo Freire num governo que oscilava em face das pressões de

esquerda e de direita não era lícito deixar de lado oportunidades como essas. Apesar

disso, Freire perguntou ao ministro se era pra valer o convite e, em conseqüência, a

execução desse plano.

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A seguir sirvo-me do relato de Ana Maria Araújo Freire, que em seu livro “Paulo

Freire, Uma História de Vida”. Mas, antes cabe acrescentar alguns dados sobre o PNA,

cuja Portaria de criação do MEC foi a de número 182, datada de 28 de junho de 1963,

muito embora a sua implementação acontecesse no mês de setembro daquele ano. Na

realidade, essa Portaria dava início aos trabalhos da Comissão de Cultura Popular. Foi,

no entanto, a Portaria nº 234, de 24 de julho do mesmo ano, que publicada no Diário

Oficial da União, o DOU, faria deslanchar a política popular de educação do governo

Goulart. Finalmente, o Decreto nº 465, de 21 de janeiro de 1964, ficou decretado e

instituído o PNA. Como diria Freire, em entrevista a O Pasquim, “(F)oi pouco, mas deu

para implantar a coisa em todo o país. O negócio era tão extraordinário que não poderia

continuar. Num estado como Pernambuco, que tinha naquela época, um número que

pode não ser exato, de 800 mil eleitores, era possível em um ano passar para 1 milhão e

300 mil.”

Segundo a ex-discípula e mulher de Paulo Freire, a educadora Ana Maria,

realmente os interesses da “direita brasileira, indignada com os movimentos populares e

o povo que emergia na cena política” acabariam se impondo pelo argumento da força, a

força dos argumentos do `sistema Paulo Freire`. Sendo assim, os novos governantes

baixaram o Decreto nº 53.886, de 14 de abril de 1964, que “Revoga o Decreto nº 53.465,

de 21 de janeiro de 1964, que instituiu o Programa Nacional de Alfabetização do

Ministério da Educação e Cultura”. E assim diz Ana Maria:

“Assim, o PNA foi extinto e Paulo, sentindo-se muito cansado pelo ritmo dos

trabalhos que vinha realizando e exaurido pelo golpe de Estado, submeteu-se a exames

médicos na Fundação Hospitalar do Distrito Federal, tendo o médico, cujo nome no

documento é ilegível, atestado que ele estava `necessitando de 30 dias de repouso, a

partir de 02/04/64`, tendo sido referendada a prescrição médica até 3.5.1964 pela

Universidade do Recife, em despacho assinado pelo reitor, João Alfredo da Costa Lima.

Nova licença médica de trinta dias foi concedida a Paulo, de 27.5.1964 a 25.6.1964.” E

conclui o capítulo dedicado ao PNA: “perseguido, Paulo precisou, para preservar a sua

vida, partir para um exílio de mais de quinze anos.”

Quando, no Rio de Janeiro, o MEC convocou para uma seleção os futuros

alfabetizadores foi preciso que a prova de seleção dos monitores se realizasse no Estádio

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do Maracanã, tal o número de interessados em participar desse processo. A maioria não

foi atraída por dinheiro, mas havia, de verdade, um desejo de participação que

ultrapassou a todas as expectativas. O Plano Nacional de Alfabetização, o PNA,

começava vitorioso. Estudantes universitários, a maioria constituída de calouros, tinham

dessa maneira uma iniciação diferente, pois teriam uma prática pedagógica popular

como elemento adicional à formação curricular convencional.

Essa mobilização foi espontânea. É bem verdade que a União Nacional dos

Estudantes (UNE) tinha assumido o compromisso de levar a alfabetização para todo o

território nacional secundando os esforços do MEC ou antecipando a esta ação. Não Foi

somente pela sensibilidade de seus dirigentes que a idéia de alfabetizar em grande escala

surgira no seio da entidade. A UNE aproximara-se do governo e se colocava como

interlocutor muito presente e em todas as horas. À época, a nova diretoria presidida por

José Serra, freqüentava as salas do executivo federal, pois se apostava na boa influência

que poderia exercer tendo em vista as supostas hesitações de Jango. Esta referência ao

comportamento do presidente provinha dos setores mais radicais, que San Tiago Dantas

chamaria de esquerda negativa, em oposição à esquerda positiva. Ambas compunham

uma base aliada administrada com habilidade pelo presidente, mais inclinado, contudo,

para dar apoio aquela esquerda identificada como positiva, já que Jango era um

reformista e um moderado no que concerne à maneira de fazer política.

II

O que mais me atraiu na fundamentação da metodologia trazida por Paulo Freire

era o princípio segundo o qual antes de se alfabetizar era preciso saber ler o mundo. Essa

idéia de que o alfabeto era tão-somente um instrumento a serviço da ação inteligente do

ser humano continha o que ele gostava de dizer, um desvelamento de consciências. Não

se pode saber ler e escrever se não se entende o mundo e, portanto, o processo de ensino-

aprendizagem para Freire era algo indissociável com a formação plena da cidadania.

Cabia aos monitores despertarem a capacidade de leitura do mundo, tarefa a ser

empreendida pelos próprios alfabetizandos através de suas próprias experiências de vida.

A configuração de seu universo de relações os levaria a descobrirem-se como parte

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operante da produção e reprodução desse próprio universo. Tudo muito bem concebido e

executado, que doravante passaria por um desafio, o de tornar aquela experiência de

Anjicos numa política a ser implantada em nível nacional.

Quando em setembro o PNA foi finalmente deslanchado tivemos, eu e os

companheiros que iniciávamos essa experiência, uma sensação de que estávamos

finalmente dando passos largos rumo à revolução brasileira tão sonhada. Aliás, a década

de 1950 tinha consagrado o vocábulo revolução. Lembro-me que um liberal como

Anísio Teixeira, não se cansava de falar em “revolução da educação”, ou um filósofo de

formação hegeliana e catedrático da FNFi da então Universidade do Brasil, Álvaro

Vieira Pinto, também insistia no termo para designar a sua “revolução das

massas”.Assim, não era de todo sem sentido o que experimentávamos naqueles tempos

nervosos.

A primeira vez que pus os pés no prédio arquitetado por Corbisier, Lúcio Costa e

Niemeyer, sede do MEC no Rio, eu mesmo já não me recordo. Devia ser,

provavelmente, lá pelos fins de setembro ou início de outubro de 63. As reuniões

preparatórias para as caravanas a percorrerem os núcleos pioneiros do Programa eram

excitantes. Líamos muito mas a vontade de pôr em prática o método e recolher de

imediato os resultados falavam mais do que a concentração necessária para o bom

desempenho das tarefas que os dirigentes nos confiavam.

A direção do Programa era política, pois reunia quadros da Ação Popular (AP),

organização de esquerda católica e os do PCB, muito embora orientados por decisões

que se originavam do corpo diretor do Programa diretamente supervisionado por Freire.

E apesar das divergências políticas e ideológicas existentes nessas duas organizações, as

atividades do programa floresciam e em nada atrapalhavam a implementação do

organograma a prever desdobramentos futuros para outras regiões do país. Em paralelo,

dava-se o estreitamento da base de apoio às Reformas de Base de Jango e o

fortalecimento nos bastidores dos golpistas de plantão.

Alheios a tudo isso que se passava ao largo da política transparente

comentávamos os avanços alcançados pelos núcleos pioneiros, de maneira a contabilizar

êxitos sucessivos, o que na ocasião representava pragmaticamente a inclusão de novos

eleitores, uma vez que analfabeto não tinha direito ao voto. Mais do que tudo aí residia o

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ódio dos que temiam mudanças estruturais na sociedade. Para a reação a elevação do

contingente eleitoral punha em risco seus privilégios.

Recordo-me como reagiam violentamente os representantes da direita quando se

colocava em discussão o voto do analfabeto. Não argumentavam simplesmente

rosnavam contra os projetos que tramitavam na Câmara Federal e que repercutiam na

imprensa. Parecia realmente que o direito de voto a quem não sabia ler provocaria uma

grande hecatombe na sociedade e isso ao mesmo tempo em que me surpreendia deixava-

me convencido do acerto da bandeira a ser empunhada. A par do aspecto humanista a

decisão que assumíamos com a tarefa que nos propúnhamos a realizar passara a ter

também um cunho político e ideológico. Não podíamos aceitar essa demonstração de

resistência à elevação sócio-cultural de um número expressivo de brasileiros.

Num depoimento prestado, tempos depois, pelo então ministro da Educação de

Jango, Paulo de Tarso, ele dizia que o objetivo era realmente de alfabetizar esse enorme

contingente de brasileiros, não apenas por uma questão de dar-lhes cidadania plena, mas

também de torná-los eleitores conscientes de seu voto. Daí o método Paulo Freire cair

como uma luva, pois proporcionava o acesso à leitura e a escrita além de conscientizá-

los. De modo, que se tratava de uma estratégia governamental que vinha ao encontro das

aspirações das massas e de um governo compromissado com a elevação do nível de vida

material e espiritual de grande parte do povo brasileiro.

III

Lembro-me bem de um grupo de mobilizadores que ajudei a montar e que

funcionava na ABI. Ele fora constituído por professores vinculados ao Sindicato dos

Professores do Rio e por estudantes universitários. Às sextas-feiras, não sei de todas as

semanas, mas seguramente às sextas Prestes fazia costumeiramente uma “análise de

conjuntura”. Numa dessas análises é que disse que a situação era irreversível em relação

às reformas e que a reação “estava de dentes quebrados”, numa alusão a impotência da

direita em face do crescente processo de mobilização dos sindicatos e dos movimentos

sociais. Nesse grupo assisti envolvimentos não só políticos como afetivos, alguns que se

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estenderam por muitos e muitos tempos. Eram tempos felizes, sem violência, numa

cidade aberta ao lazer e ao prazer dos que sabiam conviver com idéias generosas.

As reuniões de balanço do PNA davam conta do progresso da experiência no

Rio. Os inúmeros alfabetizados se vinculavam imediatamente às entidades sindicais ou

comunitárias, o que atestava o acerto da química que combinava a prática educativa com

a social e cultural. Os estudos, a essa época, ficavam absolutamente em segundo plano.

Vivíamos a cidadania militante e os deveres escolares eram deixados para as horas

excepcionalmente livres, situação pouco comum para quem se engajava como os

participantes do PNA. Mas, ao contrário de Natal, a presença de Paulo Freire escasseava

por razões compreensíveis. Ele era muito absorvido pela burocracia de Brasília e,

segundo soubemos, se amargurava por não estar mais presente fisicamente nos vários

grupos pioneiros como gostava de fazer quando coordenava no RGN o programa da

prefeitura da capital daquele estado.

A própria situação de acirramento político atingiria em cheio a aliança tácita

entre as forças envolvidas no PNA. Afinal, enquanto os comunistas cobravam de Jango

mais atitude frente aos desafios do momento, entendia o PCB que era de fundamental

importância o apoio crítico ao seu governo. Os membros da AP já eram mais cáusticos.

Muito embora contassem com o ministro da Educação, Paulo de Tarso, assumiam o

risco de cobrar mais decisão e combatividade do governo diante das pressões dos

congressistas e do empresariado, a famosa burguesia nacional. Tidos como mais

radicais, logo após o golpe iriam se dividir e uma dessas frações formariam a APML, ou

seja, a Ação Popular Marxista Leninista, voltada para a opção exclusiva da luta armada.

Com esse cenário já se delineando, a experiência ruidosa e alegre de início tornava-se

aos poucos mais tensa.

É claro que havia um núcleo, o do Movimento de Educação de Base (MEB),

dando suporte técnico e político ao PNA e, conseqüentemente, à política ministerial.

Mas não tinham militantes capazes de reproduzir consignas como faziam os das

organizações apontadas anteriormente. Além disso os educadores e intelectuais não

vinculados organicamente a essas correntes políticas e partidárias, que tinham em Lauro

de Oliveira Lima um de seus nomes mais destacados, apoiavam as iniciativas da

orientação imprimida pelo MEC de Paulo de Tarso. Eram, todavia, individualidades e

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não forças políticas tão necessárias em momentos como os que se passavam. Outros,

como Darcy Ribeiro, então na Casa Civil de Jango, e Anísio Teixeira, embora recrutados

para darem sustentação à política de alfabetização não chegaram a se integrar como

deveriam, uma vez que desenvolviam atividades outras, convergentes ou não com a que

se propunha o MEC com a alfabetização de adultos.

IV

Pessoas generosas, imbuídas de consciência social, eram todos altruístas, e

conviviam nesse ambiente vivido com intensidade. Todos nós acreditávamos no projeto

de emancipação nacional e popular, embora à época nem soubéssemos com alguma

profundidade o que isso significava. Um exemplo dessa gente que se dispunha a elevar a

condição de vida dos excluídos sociais, numa época em que esse termo nem era usual,

chamava-se José Barreto. Era professor e militante sindical devotado. Filho de usineiros

em Alagoas abriu mão de uma herança por razões ideológicas!

Foi idéia do Barreto e da direção do sindicato dos professores cariocas a criação

desse grupo de mobilização e alfabetização. Era um tipo solidário como poucos. Se

algum companheiro perdesse um emprego lá estava o Barreto buscando incessantemente

algum lugar para recolocar o colega desempregado. Com essa tenacidade conheci muita

gente, e isso explica a sensação que desfrutávamos de que não era possível nada

acontecer de bom para que pudéssemos construir uma nação digna desse nome.

O comportamento da imprensa nos preocupava. A maioria dos grandes jornais

fazia oposição à política de Jango, alguns com discrição outros, no entanto, com

estardalhaço. Não se encontrava o reduto, salvo no Rio o jornal Última Hora do

jornalista Samuel Wainer, da resistência ao que de bom o governo produzia em termos

de políticas públicas, e o PNA era, por certo, uma delas. Ao contrário dos projetos

titubeantes das reformas de base, o programa posto em prática pelo método Paulo Freire

não só surtia efeito concreto, como possuía uma fundamentação que o tornaria

reconhecido mundialmente. E essa certeza de que estávamos no rumo certo nos

embalava em que pese à quase nenhuma experiência dos que participavam dessa

aventura diante da gigantesca tarefa que nos fora atribuída. Corações e mentes

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engajados, continuávamos a sorver encantados aqueles dias que não mais voltaram, mas

que continuam vivos em nossa memória.

No que diz respeito aos aspectos práticos do processo de alfabetização o maior

desafio era encontrar uma linguagem comum na relação das partes envolvidas. Não

bastava produzir o vocabulário das palavras geradoras próprias aos integrantes da

comunidade assistida. Era preciso que a interlocução entre os que se encarregavam da

alfabetização (evitávamos o termo professores) e os assistidos fosse compreensível.

Evitar vícios de linguagem e termos excessivamente politizados, comuns aos que, como

nós, iniciávamos na militância política, era sempre uma preocupação dos mais

experientes educadores que nos assessoravam. Além disso, as distâncias vocabulares

entre os meios urbano e rural eram grandes, bastante considerável até se comparados

com os nossos dias atuais em que a informação praticamente universalizou-se em razão

da cobertura da mídia eletrônica. Assim, os núcleos situados nas áreas rurais

apresentavam um vocabulário padrão muito distinto dos existentes nos redutos urbanos.

Isso me lembra Paulo Freire quando nos falava sobre a mudança da família de

Recife para Jaboatão. Apesar da distância não ser tão longa assim havia, contudo uma

enorme diferença que o ainda muito jovem Paulo conheceria. Em sua casa da capital

permanecia praticamente confinado ao longo quintal da residência confortável em que

morava. Com a crise de 29 a afetar a economia brasileira, seus pais foram forçados a

rumarem para o interior e lá o pequeno Paulo passou a alargar o seu mundo. Do quintal

às redondezas de Jaboatão foi a abertura de um universo. Conviveria com “meninos que

comiam e meninos que não comiam”. Aprendeu que havia que distinguir diferenças de

desigualdades. O que passara a constatar era a existência de desigualdades sociais

produzidas pela estrutura agrária injusta e perversa.

Essa geografia da palavra era para mim – e acredito que para todos nós – uma

descoberta a mostrar o quanto nos encontrávamos alheios à realidade da qual falávamos

muitas vezes sem conhecimento de sua diversidade. Na verdade, essa descoberta era tão-

somente a ponta de um iceberg que se tornaria mais visível a medida em que passamos,

principalmente depois do golpe, a nos aprofundar no estudo concreto da realidade

brasileira. Alguém teria dito mais tarde que tocávamos de ouvido a toada da revolução,

mas era preciso agora examinar as partituras para entoá-la com exatidão. Comparação à

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parte, a experiência com o método Paulo Freire nos ajudaria até em nossa recomposição

futura.

V

O método criado por Paulo Freire principiava na própria concepção de mundo

construída pelo seu idealizador. Freire era um cristão aberto às concepções humanistas, o

que o levaria a Marx e ao sentido da história proposta pelo filósofo alemão. Esse diálogo

entre cristãos e marxistas era absolutamente novo no Brasil e quiçá no mundo. Só

mesmo a ação política foi capaz de provocar esse encontro, uma vez que doutrinária e

ideologicamente era difícil uma aproximação entre um pensamento calcado em dogmas

e fundamentalmente idealista com um outro baseado na ciência e totalmente materialista.

Apesar disso, esse diálogo foi possível e Freire contribuiu decisivamente para que ele

prosperasse entre nós.

Quando alguém mais ousado indagava a Freire se ele se apropriara do

materialismo histórico de Marx, respondia sempre: não posso me considerar um

marxista em respeito ao próprio Marx. E todos os marxistas o respeitavam por essa

reverência que fazia questão de marcar em meio aos grupos jovens desejosos de fazer

avançar ainda mais o processo de conscientização elo comum entre os que operavam

o seu método. Aliás, a questão da conscientização dividia mais do que unia, pois Freire

tinha reticências severas, e com razão, a respeito do caráter mecânico da “tomada de

consciência” que muitos apregoavam. Havia uma espécie de convicção segundo a qual o

operário ao adquirir informações básicas sobre a realidade superaria a barreira da

alienação e num só movimento tornar-se-ia consciente de seu papel histórico. Freire era

mais cauteloso e considerava que essa mudança obedecia a um processo mais complexo.

Ele estava certo.

A aceitação do Plano e depois do Programa de Alfabetização não foi, todavia, tão

simples assim. Os partidos políticos de esquerda, a rigor o PCB ainda ilegal mas tolerado

na prática e o PTB, admitindo-o como uma legenda de esquerda limitada porque não

revolucionária, eram reticentes às idéias de Freire. Os comunistas o achavam um tanto

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ou quanto idealista, ao passo que os trabalhistas o desprezavam até por ignorância.

Também os sindicatos mais interessados em suas lutas corporativas não davam muita

importância ao projeto, salvo a direção do já mencionado Sindicato dos Professores do

Rio de Janeiro, os demais entendiam a questão da educação popular por um viés ainda

muito técnico. E o próprio governo federal só o adotou por causa de uma crise

ministerial que levou ao MEC alguém, como Paulo de Tarso, comprometido com essa

questão de transformar a educação num instrumento de ação política de verdade.

Três décadas após os dois meses em que passou à frente do MEC, Paulo de Tarso

diria que todos nós fomos muito ingênuos. Primeiro, ao dizer com todas as letras o que

realmente pretendíamos com o PNA, para susto dos setores conservadores mais

reacionários, que naturalmente se mexeram para impedir o processo de transformação

pacífica que ações como a da alfabetização naquela altura produzia. Segundo, porque,

dizia ainda Paulo de Tarso, achávamos que por defender os interesses populares

tínhamos automaticamente o povo conosco. Era um ledo engano, porquanto o grau de

organização e mobilização eram muito baixos e nós falávamos de uma realidade que a

rigor se encontrava mais nos discursos do que na realidade.

E essa ansiedade em fazer acelerar o processo contaminaria o próprio ministro.

Integrante da Frente de Mobilização Nacional, aquela altura já uma Frente única mais

estreita do que a que lhe dera origem no Parlamento, quando se organizara como Frente

Parlamentar Nacionalista, Tarso sairia do MEC para se dedicar ao enfrentamento com a

reação. Sua saída deixaria o PNA não necessariamente acéfalo, pois Freire continuava à

testa do Programa, mas ele perderia o suporte político ministerial, já que o sucessor de

Tarso, o ministro Sambaqui não era um homem compromissado com o projeto de dar

voz e voto às camadas populares. Se não chegou a impedir o seu prosseguimento

tampouco demonstrara o mesmo entusiasmo de seu antecessor.

Assim, no momento em que o PNA se desenvolvia a conjuntura se radicalizava e

o apoio de educadores e pessoas de bom senso que poderiam ampará-lo resultou em

quase nenhuma adesão. Não havia propriamente quem, na área educacional, contestasse

a validade do emprego do método de Paulo Freire, e os que o faziam tinham razões não

técnicas mas eminentemente ideológicas. Mas ao invés de se contar com um suporte que

viabilizasse novas e mais criativas experiências, o PNA passaria a ser abatido como um

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subproduto de um governo disposto a implantar uma nova ordem. A velha ameaça da

chamada “república sindicalista” era de novo acenada com o intuito de amesquinhar o

alcance de uma ação redentora para milhões de brasileiros.

VI

Casa e barraco representando ricos e pobres lado a lado era uma imagem muito

comum nas aulas de alfabetização. Não havia quem não entendesse tratar-se de uma

brutal desigualdade convivendo no espaço urbano de uma cidade como o Rio de Janeiro

daqueles tempos. O recurso do retro projetor ajudava em muito não só a fixação dos

vocábulos que compunham a linguagem do aprendizado como tornava mais do que

transparente aquela situação de injustiça social. Afinal, todos trabalhavam e por que

poucos tinham moradias espaçosas enquanto outros se comprimiam em casebres tão

precários para tanta gente? A questão social sobrepunha-se na discussão e as palavras

geradoras eram incorporadas ao vocabulário do alfabetizando.

Lembro-me que a primeira vez em que tive de ensaiar a condução de um debate

tendo essa imagem como motivação e ilustração de aula tive de me conter. Mesmo

conhecendo aquela realidade a imagem me chocara, tal a sua recorrência em diversos

pontos da cidade cercada de favelas próximas a bairros de classe média. O perigo que

tínhamos de evitar era o de apresentar essa realidade como natural e não provocada pelas

relações de produção. Mas não podíamos, de outro lado, lançar mão de palavras-de-

ordem prontas para simplesmente caracterizar essa excrescência. Era preciso o uso de

uma metodologia que fosse adequada para a abordagem, e ela passava por uma conversa

que pudesse ser a mais informal possível. Nenhum tom professoral deveria prevalecer.

Necessário se tornava que cada um pudesse tirar suas conclusões e elas seriam

indiscutivelmente interpretativas, ou seja, chegariam a identificar as razões da

desigualdade e com o mesmo sentimento de justiça social que expressávamos

intimamente.

É curioso como a conscientização nos faz perceber coisas que parecia natural.

Quando de minha infância e adolescência percorria os morros do Borel e da Formiga.

No primeiro subia para empinar pipa, e na Formiga atraído por garotas daquela

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comunidade. Saindo do asfalto e entrando nessas favelas não percebia a desigualdade.

Ou melhor: como não fazia distinção entre os amigos do bairro e os amigos que fazia

nessas comunidades. Para mim todos eram iguais no meu sentimento de amizade. A

questão das moradias eu a desprezava, porque não estava presente no meu restrito

universo humano qualquer coisa que lembrasse opulência, exuberância ou, ao contrário,

precisão. Foi preciso me embrenhar mais nesses ambientes para intuir o dado da

desigualdade.

O que à época não conseguia entender era a alegria dessa gente sofrida, a

conviver com as dificuldades de orçamentos apertados, ao passo que os nossos pais de

classe média invariavelmente exibiam semblantes fechados e pouca ou nenhum prazer

no trato com as pessoas não pertencentes aos seus círculos mais estreitos.

Sociologicamente a primeira resposta que tive para essa situação que me parecia

incompreensível foi a dos que explicam a classe média como um extrato social sem

definição concreta nas relações de produção. Não detém o capital, mas tampouco vende

necessariamente sua força de trabalho. No fundo aspira como pequena burguesia

alcançar o lugar de burguês. Daí ser oscilante e temer as mudanças, uma vez que esses

processos podem acarretar problemas que dificultem sua ascensão social. Conservadores

os membros desse segmento social seria pouco tempo depois de capital importância para

o desfecho do golpe de 64.

VII

O que me chamara atenção no pequeno mas intenso convívio com os

trabalhadores era a sensibilidade e o conhecimento adquirido pelas experiências de vida.

Nestes dois aspectos eram todos melhores do que os companheiros engajados no PNA,

oriundos quase todos da classe média. Tempos mais tarde, quando fui detido pelo

CENIMAR com um companheiro também do PCB, um sapateiro igualmente analfabeto,

experimentei a sensação de ter voltado àquela época em que dava meus primeiros passos

na militância e nas atividades da relação ensino e aprendizagem. O meu parceiro de

prisão lamentava o tempo absoluto dedicado às tarefas do partido e o sempre adiamento

dos estudos. Conhecera o projeto Paulo Freire, mas não fora alcançado a tempo.

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As conversas que mantive com essas pessoas legitimamente do povo me

deixaram positivamente convencido de que a ignorância nada tem a ver com a

inteligência. Esta independe do grau de informação e da aquisição de conteúdos

culturais. Essas pessoas eram perspicazes na apreensão dos dados de realidade e tinham

entendido, por exemplo, a lógica da política. Alguns, como o nosso sapateiro, faziam

análises de conjuntura de fazer inveja aos mais lúcidos quadros partidários. Tolerantes

com as divergências sabiam como poucos ouvir o contraditório.

Lembro-me do companheiro de cela a comentar a importância da aglutinação,

vocábulo que aprendera dentre outros nas reuniões de partido. Dizia-me da mesma

forma que não se pode colar as solas de sapato com suficiente consistência, pois caso

contrário ela não resistiria por muito tempo. E arrematava: também na luta política,

quando não se tem os mecanismos da força ou os instrumentos de poder, é

imprescindível a formação de uma forte corrente, bem organizada e unida, para obter-se

ganhos que possam fazer recuar a ação daqueles que nos reprimem.

Assim, mais do que a leitura de manuais a conversa com o companheiro de cela

deixara para aquele jovem a certeza de que a opção de vida adotada estava certa, a partir

dos valores que me foram incutidos por meus pais. De meu pai, lembro-me da referência

que fez a respeito de seu pai, numa ocasião em que meu avô fora a um leilão de imóveis

e arrematou uma das casas. Logo em seguida uma outra em melhores condições

estava sendo disputada por meu avô e um outro cidadão. Eis que de repente ele

desistiu para fúria de meu pai que lhe perguntou porque desistira. E meu avô lhe disse:

aquele homem é um trabalhador e esperou um momento propício para ver se consegue

adquirir sua casa própria. Minha consciência me impede de agir de outra forma.

Minha mãe me dera também demonstrações de profundo apego as coisas que

dizem respeito ao povo. Criada num ambiente repressivo, o que lhe trouxe problemas de

ordem existencial e traumas dos quais não se livraria facilmente, era uma pessoa

estimada pelos humildes. Suas amizades começavam pelas domésticas que trabalharam

em sua casa e por todos que a cercavam não como madame mas como gente como

qualquer um, sem apego a tradições e a etiquetas comuns numa época em que a classe

média procurava mais até do que hoje se aproximar dos costumes das classes

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dominantes. Generosa tanto quanto meu pai, embora de estilos distintos não poderia

deixar de nutrir um pouco tais valores.

Essas breves reminiscências também podem ser relatadas por todos quanto

participaram desses momentos de entrega para um país menos injusto e mais solidário

com os mais necessitados. Geração que imaginávamos ser da transição para uma

sociedade socialista esbarrou nessa dupla e impertinente situação de enfrentar, de um

lado, a ingenuidade desprovida de um sentido autocrítico e, de outro, de uma certa

ignorância no que se refere às forças que nos combatiam e até nos superestimavam.

Talvez Paulo Freire subscrevesse essas considerações, muito embora elas jamais devem

servir de arrependimento. Na realidade, seria preferível repetir os erros do que nada

fazer.

Erros, disse eu, que sem dúvida aconteceram, tanto na condução da política das

reformas de base, carro chefe do período governamental de Jango, como na aplicação

por parte das forças sociais e políticas que o apoiavam. E é claro que o PCB teve um

lugar nesse rosário de equívocos, cuja avaliação nunca foi realmente aprofundada como

deveria ter sido. Afinal, era a sorte de uma multidão que foi pelo ralo da história,

independentemente dos esforços individuais e coletivos feitos por todos no sentido de

acertar. Mas, como se sabe, nem sempre as boas intenções resolvem os impasses ou

equacionam corretamente os problemas. O que se segue é, portanto, uma pequena

contribuição para uma avaliação de nossa derrota, sem a pretensão de esgotá-la e muito

menos de considerá-la inteiramente acertada.

Começaria essa análise com um dado que me parece precioso do ponto de vista

da comunicação do governo com a sociedade. Hoje em dia não se discute a importância

das comunicações, razão pela qual governos e empresas lançam mão sistematicamente

da mídia, que à época se limitava praticamente à radiodifusão. A televisão estava ainda

em seus primeiros anos e com alcance muito restrito a envolver parcialmente e de forma

precária os dois principais centros metropolitanos do país, São Paulo e Rio. Desse modo,

cabia ao rádio, com raio de ação muito maior e audiência consolidada em grande parte

do país, o papel de veículo de informação. E seu uso era muito limitado por parte do

governo, que não só não mobilizava seu poder de concedente e controlador do sistema,

como permitia que a rede de rádios sob controle de empresas privadas acabasse por

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orientar-se a favor das teses de uma oposição não apenas às reformas de base mas a todo

e qualquer programa de maior profundidade popular e social. Era, portanto, uma derrota

anunciada por quem reconhecia a força dos meios de comunicação numa sociedade de

massa.

.

IIHistória, Historiografia e Ideologia

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Por Uma História das Práticas Sociais

1. Historiografia: História e Conhecimento

Produzir conhecimento é uma necessidade social. A atividade humana é

essencialmente produtora. A capacidade de criação do homem é inesgotável da mesma

forma que suas potencialidades se desenvolvem na medida em que estas são

permanentemente solicitadas.

As primeiras formações sociais puderam-se reproduzir historicamente porque

souberam produzir e reproduzir os meios com os quais foram satisfeitas suas

necessidades primárias. Assim, determinadas práticas sociais ao serem desenvolvidas

incorporaram-se ao conhecer humano. Sua difusão assegurava a base necessária para o

advento de novas conquistas, exigência do processo social do qual se ocupa a história. É

preciso, no entanto, salientar que todo conhecer novo é uma decorrência do emprego de

novas forças produtivas, no interior das quais os homens não podem ser descartados. O

conhecimento ao se transformar constitui, pois, um ato histórico de grande alcance para

a humanidade, mas essa transformação pressupõe a existência de condições materiais

que permitam sua manifestação.

Com a desagregação da comunidade primitiva provocada pela divisão social do

trabalho, as formações sociais dela decorrentes passaram a ser caracterizadas pela

obediência a um centro de decisões. O que até então resultava de imperiosas

necessidades coletivas, passou a ser subordinado às necessidades daquelas que doravante

manipulam esses centros de decisão. O conhecimento em toda sua dimensão não deixou

de ser social, porém sua produção é reorientada de modo a atender ao interesse de forças

que se apropriaram dos meios de produção existentes. Entre esses meios de produção

encontra-se o conhecimento enquanto tal.6

A institucionalização do conhecimento é uma conseqüência do aparecimento das

sociedades marcadas pelas desigualdades sociais. Nas formações sociais de caráter ainda

6 Ver Amaral Lapa, J.R., A História em Questão-Historiografia brasileira (em questão), Vozes, Petrópolis, 1976, 204 pp.Mota, C.G., Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974), Col. Ensaios 30, S. Paulo, 1977, 303 pp.

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tribal e comunitário, o conhecimento é compartilhado por todos, pois o modo desses

sistemas primitivos não excluía ninguém dos benefícios obtidos por todos em igualdade

de condições. Entretanto, a dissolução dessas formações sociais comunitárias ensejou o

aparecimento de sociedades que privatizaram aos meios de produção. As técnicas de

conhecimento alcançaram níveis de sistematização mais elevados, naquelas sociedades

cujas estruturas sociais eram mais estratificadas, como é o caso das sociedades que

desenvolveram a escrita.7 Nesse caso, a leitura e a escrita eram privilégios de uma

minoria de iniciados nessa verdadeira arte. Aliás, a própria arte que outrora constituía

uma manifestação comum e necessária a todo homem, elitizou-se de tal forma que só a

alguns era creditado valor no que realizavam.8

Ora, a história enquanto conhecimento do passado social dos homens não

escapou a esse processo de apropriação. A memória social passara a reter aquelas

ocorrências que interessavam aos setores que exerciam controle das instituições de

saber. E esses fatos que passaram a condição de fatos históricos, ganham explicações de

modo a legitimarem a organização social que os inspirou.

Desse modo, tem início uma historiografia que se caracteriza por uma produção

ideológica sistemática. Esta historiografia é a expressão mais geral de um pensamento

histórico que corresponde a essas sociedades da maneira pela qual elas se estruturam.

Desde as primeiras crônicas até as histórias universais, são os valores institucionais que

são veiculados. O passado é usado para legitimar o presente. A análise crítica reduz-se às

preocupações técnicas e pouco ou nada diz respeito ao conteúdo. A forma é privilegiada

em detrimento da essência.

O estudo da historiografia é, assim, o estudo das condições de produção das

idéias. Contudo, é preciso ressaltar que não se deve absolutizar essas considerações,

reduzindo a historiografia a reflexos das expressões institucionais. É necessário atentar

para a dinâmica social, resultado da complexa rede das relações sociais de produção,

elemento vital do processo histórico responsável pelas transformações sociais. Se a

memória social sofre a interferência e a manipulação do poder, ele não desaparece da

memória do conjunto das forças sociais. Determinadas representações e práticas sociais

7 Cohen, M., Resumo da história escrita, in Ver. De História, vol. XL, nº 81, S. Paulo, 1970, 137/151 pp.8 Hauser, A. História Social de la literatura y el Arte, Gudarrama, Madrid, 1969, 3 vols.

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não codificadas institucionalmente, embora não figurem nas historiografias oficiais,

coexistem com as formulações advindas do pensamento dominante.

O Poder ao se arrogar o direito de veicular a história que lhe agrada, o faz de

maneira mais eficaz porque é Poder. Detendo os mecanismos de reprodução do

conhecimento, o ensino, instrumentaliza agentes que se encarreguem de ministrar uma

história cujos valores dizem respeito a Ordem. Reúne um acervo documentário,

classifica-o, desenvolve técnicas e orienta o modo pelo qual esse conhecimento deve ser

produzido. Logo, o que se deve entender, em primeiro lugar, por produção de um

conhecimento histórico é a reprodução de um modo de produção.

O sistema que cada sociedade constrói para preservar a memória social conduz a

pesquisa a considerar a existência dessas condições de conhecimento do passado, pois

este já se encontra classificado, ordenado de tal forma que induz o pesquisador a

privilegiar dados que o sistema consideram relevantes. Em conseqüência, as fontes

históricas, da maneira em que se encontram codificadas, embora permitam um

tratamento rigoroso por parte do historiador, levam-no a manipular documentos,

situações e personagens que interessam a sociedade, enquanto expressão de uma

estrutura de poder – difundir.

À época da consolidação das burguesias no poder, na Europa ocidental, surgiram

correntes cientificistas que passaram a negar valor histórico a toda referência histórica

que não estivesse fundamentada em documentos. Mas, a noção de documento era restrita

porquanto, só contavam aqueles que merecessem essa distinção. O documento encerrava

a idéia que indicava a materialização da historicidade do poder. Continha uma conotação

jurídica. Emanado do Estado sua verdade era inquestionável, o que conseqüentemente

tornava marginal toda fonte documentária oriunda do acervo popular. Nestas condições

o historiador encarregava-se de sistematizá-lo já que seu emprego conferia a seu trabalho

o “valor” de uma obra histórica. Quer dizer, ao historiador não restava senão a tarefa de

por em ordem o que a Ordem institucional assim determinava. Por conseguinte, toda e

qualquer fonte para o conhecimento rela da sociedade que não se encontrasse catalogada

nos depósitos oficiais, carecia do indefectível “valor histórico”. É o tempo da

consagração da historiografia evolutiva, linear e factual.

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O historiador que se forma à luz dessa orientação, recebe um conjunto de

apetrechos necessários, segundo as diferentes organizações de saber, à sua função

historiadora. Seu poder de discernimento esbarra, por vezes, com imposições que seu

ofício demanda, tal como este é concebido pelas academias de saber. As possibilidades

de um trabalho que prime por uma análise mais profunda das relações sociais são

reduzidas em face de certo dispositivos que o orientam para o atendimento daquilo que

se institui como verdade histórica, nos marcos dessa tradição historiográfica. O

julgamento histórico adquire um caráter definitivo.

O historiador que se propuser a rever a história social de modo a reinterpretar o

passado sob ângulos que incluam os aspectos essenciais desse passado, precisará fazê-lo

na crença de que sua revisão é, na verdade, uma retomada do processo histórico real.

Pois, pensar historicamente certo é agir politicamente certo. Cumpre ao historiador ao

produzir um conhecimento novo, acrescentar um elo na cadeia do processo permanente

das mudanças sociais. A análise historiográfica demonstra que os grandes avanços do

conhecimento histórico se realizaram como conseqüência de mudanças sociais

significativas que impuseram essas correções ou reinterpretações. Basta exemplificar a

validade desse raciocínio citando a década de 1930 no Brasil. A Revolução de 1930

imprimiu mudanças que embora tímidas algumas e abortadas outras trouxeram uma

renovação bastante importante na história da historiografia brasileira. As obras de Caio

Prado Júnior9, Sérgio Buarque de Holanda10, Gilberto Freyre11 e Roberto Simonsen12,

para citarmos os mais inovadores na época, introduziram questões até então ausentes nos

textos dos nossos autores mais representativos. Ainda que se possa louvar a capacidade

de cada um deles, a despeito das linhas originais de abordagem, o fato é que o momento

histórico exigia a colocação de uma nova problemática para nossa história. E os grandes

historiadores foram aqueles que souberam traduzir esses momentos que não mais se

contentam com as versões que não mais lhe dizem respeito.

A característica dominante de todas as ciências sociais do século XIX era sua

evasão da realidade. Considerava-se mais científico o historiador que menos se

preocupava em explicar por que ocorriam os fenômenos sociais. Exigia-se a elucidação 9 Evolução Política do Brasil, cuja 1ª edição data de 1933.10 Raízes do Brasil que aparece em 1936.11 Casa Grande e Senzala, de 1933.12 História Econômica do Brasil, datando de 1937 sua primeira edição.

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da verdade histórica e essa se encontrava adormecida nos arquivos oficiais. Cumpria ao

historiador consultá-la e sua missão se encerrava aí. Forjaram-se rígidos princípios

metodológicos, estabelecidos com vistas a preservar a “objetividade” da análise

histórica, de maneira a assegurar total isenção no trato descritivo de acontecimentos

estudados. A neutralidade passara a constituir um princípio que concorria para a

legitimação da prática historiadora à qual se devotavam como sacerdócio.13

Essa perspectiva consagra também um outro princípio: o do elitismo acadêmico,

segundo o qual o conhecimento histórico não era tarefa a ser empreendida por leigos.

Invocava-se um adestramento técnico aliado a uma erudição comprovada de sorte que se

cercava o ofício de historiar os fatos consagrados pela historiografia burguesa de

requintes que o imunizasse de qualquer atitude questionadora. Esta época viu desfilar no

campo filosófico, os preceitos do agnosticismo, do criticismo e do positivismo.

Numa sociedade competitiva estimulada pela expansão do sistema capitalista, a

individualização era o seu pressuposto básico. Na historiografia, essa tendência

expressa-se pela personificação do agente histórico. Os grandes personagens da história

respondem pela ocorrência dos fatos que mais marcaram a história dos povos, a despeito

do século XIX ter conhecido intensas e grandiosas manifestações de massa que atestam

o vigor com que emergem os novos contingentes sociais, oriundos do processo industrial

por que passara a Europa capitalista.

Mas, precisamente em função desses fenômenos a historiografia burguesa

demonstra suas limitações. O espírito crítico que lhe servira de poderosa arma contra as

concepções medievo-teológicas, mostra-se incapaz face ao advento de uma problemática

nova. O exercício de uma crítica social já não lhe serve, pois sua aplicação mais

conseqüente conduz a negação de sua própria história. A exaltação da nova ordem social

responsável pela liquidação dos resquícios feudais torna-se inócua em virtude de um

processo social extremamente veloz que fez com que a burguesia visse deslocado seu

papel histórico, de força revolucionária para a de uma força anti-revolucionária.14

E meio a essas contradições que se desenvolvem a medida em que se expande o

sistema burguês liberal que engendra a crise proveniente de sua própria natureza, 13 Sobre a questão da objetividade e subjetividade na história, ver especialmente Shaff, A., História e Verdade, Estampa, col. Teoria nº 19, Lisboa, 1974, 306 pp.14 Sobre esta questão ver Hobsbawn, E., em seus dois magníficos trabalhos: A Era das Revoluções e a Era do Capital, ambos já traduzidos pela Vozes.

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desponta uma nova concepção histórica, a do materialismo histórico, cujos

representantes cresceram alimentados pelo processo contundente de crítica das

tendências idealistas e do materialismo vulgar, ambos fortemente disseminados nos

meios acadêmicos. Marx e Engels fundam as bases do método de investigação profundo

das relações sociais15, e isso para a história adquire valor inestimável.

Ao rejeitarem as concepções que consideravam tão somente os móveis da

atividade histórica dos homens sem investigar as leis objetivas que regem o

desenvolvimento do sistema de relações sociais, Marx e Engels põem fim a

historiografia especulativa responsável pelas filosofias da história. Introduzem os

contingentes sociais, tornando-os verdadeiros condutores da história, bem como

ampliam os horizontes do conhecimento histórico de modo a permitir que se

compreenda a dialética dessa totalidade orgânica que é a vida social em toda sua

dimensão.

Marx soube, por outro lado, entender que sua contribuição não estava no fato de

descobrir a existência de classes sociais, pois antes dele outros cientistas e historiadores

já o haviam feito, mas em possibilitar que o estudo de suas relações permitisse conhecer

toda a dinâmica do processo social. Neste particular, Marx nada mais fez do que ajustar

a história das idéias à história da produção material.

2. História das Práticas Sociais como uma História Alternativa

Conhecer a produção social eis o desafio imposto ao historiador. Isto significa,

antes de mais nada, enfocar a história a partir de uma perspectiva na qual as forças

sociais vivas constituem o objeto mesmo da história.

A história como bem assinalou Pierre Vilar é a ciência do movimento16, logo sua

finalidade é compreender os fenômenos sociais. “Compreender (conceber) um fenômeno

significa aclarar seu lugar e seu papel no interior do sistema concreto de fenômenos em

interação no qual se realiza necessariamente, e se aclarar justamente as particularidades

graças as quais este fenômeno não pode desempenhar mais que este papel no interior de

um todo. Compreender um fenômeno significa aclarar se modo de aparição, a “regra”

15 Marx e Engels, Manifesto Comunista, de 1947.16 Vilar, P., El Método histórico, in Althusser, Método histórico e historicismo, Anagrama, Barcelona.

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segundo a qual esta aparição se realiza como uma necessidade oculta por um conjunto

concreto de condições; significa analisar as condições mesmas da aparição do

fenômeno.17 É a história que postula o conhecimento da totalidade social, não enquanto

estrutura social harmônica. Mas, como complexo social à luz do qual afloram as

contradições que lhe são inerentes. Dessa forma, sociedade para o historiador deve ser

entendida como palco sobre o qual se processa a história das práticas sociais, da ação

dos homens em busca da realização de seus objetivos.

Segundo Hegel se está havendo mudança é porque alguma coisa tem de ser

mudada. Ao historiador compete indagar as razões das transformações que impelem

essas mudanças. E a história estará, dessa maneira, assumindo um compromisso como os

procedimentos reclamados pela ciência, sendo ela como é a verdadeira ciência da

sociedade, “afirmou-se freqüentemente que a ciência moderna quando a atenção

deslocou-se da busca do ‘que’ para a investigação do ‘como’. Essa mudança de ênfase é

algo quase óbvio que se pressupõe que o homem somente pode conhecer aquilo que ele

mesmo fez, na medida em que essa hipótese implica, por sua vez, que eu ‘conheça’ uma

coisa sempre que compreenda como ela veio a existir. Ao mesmo tempo, e pelas mesmas

razões, a ênfase deslocou-se do interesse nas coisas para o interesse em processos, dois

quais as coisas iriam em breve se tornar sub-produtos quase que acidentais”.18

Essa história que procura compreender a totalidade social em que toda a sua

dinâmica interna não pode perder-se em setorialismos que absolutizam as partes em

detrimento do todo, praga tão disseminada pela historiografia clássica. “Não é o

predomínio dos motivos econômicos na explicação da história o que distingue de uma

maneira decisiva o marxismo da ciência burguesa, é o ponto de vista da totalidade. A

categoria da totalidade, é o predomínio universal do todo sobre as partes que constitui a

essência mesma do método que Marx recebeu de Hegel e o transformou para fazer dele

o fundamento original de uma ciência completamente nova (...) o predomínio da

categoria da totalidade é o suporte do princípio revolucionário na ciência”.19 O

econômico, o social, o político, entre outros níveis, se articulam de modo que é para a

17 Ilienkov, E., La dialéctica de lo Abstracto y lo concreto en El Capital de Marx, in problemas Actuales de la dialectica, Communicación 9, Alberto Corazón Editor, 1971, p. 79.18 Arendt, H, Entre o Passado e o Futuro¸ Perspectiva, S. Paulo, 1972. p. 88.19 Luchács, G., citado por Goldmann in Marxismo, Dialéctica y Estructuralismo, Galden, B. Aires, 1968, p. 34.

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história muito mais importante conhecer o modo de articulação desses diferentes níveis

em um determinado momento do processo histórico do que procurar destacar e, com

isso, isolar cada um deles a partir da falsa idéia de que assim se estará objetivando o

saber histórico. A alusão a um desses níveis de maneira a privilegiá-lo, em determinadas

circunstâncias, só é válido quando a análise das articulações desse todo apontar para sua

necessidade. Em Marx, por exemplo, a expressão material não indica uma determinação

do econômico, ela é empregada para designar as condições primárias e fundamentais da

existência humana. O Capital é, basicamente, uma análise crítica das relações sociais do

Modo de Produção Capitalista que, por sua vez, não se resume no estudo de sua

engrenagem econômica. É a compreensão da totalidade do sistema que está em causa.

O caráter pretensamente didático dessa compartimentação é profundamente

questionável. Uma história econômica do Brasil, por exemplo, só é compreensível se os

fenômenos econômicos e financeiros estiverem articulados com o conjunto dos fatos que

propiciaram a formação da sociedade brasileira. Não existe uma história econômica que

se explique economicamente. Sua explicação para ser compreensiva e global tem de ser

histórica. O conhecimento da produção econômica implica no conhecimento da

problemática da produção social, em seu sentido elástico. Sugere, por assim dizer, o

conhecimento das manifestações globais que incidem, por seu turno, no desempenho

original de cada um desses níveis convencionais. “Se Marx pode fundar a ciência da

história, é precisamente por que renunciou em definir um modelo desse gênero. É

porque, ao invés de abordar a sociedade enquanto objeto dado e na forma na qual este

objeto se dá, analisou os processos de produção e reprodução da vida social, criando

assim o ‘terreno’ necessário para abordar cientificamente a ‘lógica’ especial do objeto

especial’, isto é a lógica concreta das contradições e do desenvolvimento de uma

formação social determinada”.20

Conhecer a produção social, portanto, é se dar conta da historicidade real, aquela

que resulta do processo histórico real. É evidente que essa tarefa não é simples,

sobretudo para aqueles cuja formação está impregnada de atitudes que o levam, na

prática intelectual, a construir discursos que em última instância atendem as expectativas

das instâncias de saber dominantes e para as quais seu trabalho se dirige.

20 Pelletier, ª E Goblot, J.J., Matérialisme historique et Histoire des Civilisations, Ed. Sociales, 1969, pp. 157/158.

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A sagacidade do historiador que se pretende crítico não o livra facilmente desse

condicionamento, que, de resto, opera em todos os ramos da atividade intelectual. Não

basta deslocar o objeto de estudo para captar determinados fenômenos não

convencionais da pesquisa social, se esta atitude não for acompanhada de um

posicionamento do cientista face ao mundo que o rodeia. Uma reorientação para um

novo campo de pesquisa imposta, às vezes, por uma atitude questionadora é ilusória se

seu exame não estiver conectado à uma vivência, a uma prática social que determine a

necessidade desse questionamento. O pensamento não pode desligar-se da ação, da

mesma forma que o historiador não pode desvincular-se de sua condição de indivíduo.

É absolutamente indispensável ao historiador ser um homem de seu tempo e para

o seu tempo. É insuficiente munir-se de belos preceitos teóricos se sua prática teórica

não estiver respaldada numa prática social. A atrofia desta última limita profundamente

qualquer análise que faça sobre a vida social. O bom historiador será sempre o homem

que viva sua história, a de seu tempo, para que possa melhor entender a significação de

seu objeto de estudo. A história como ciência social deve ser a ciência da realidade de

sorte que o conhecer deve evoluir junto com o conhecido.

Essas considerações ganham uma relevância ainda maior se aplicada as

sociedades que conheceram um passado colonial que lhes é ainda contemporâneo,

através de inúmeros resquícios que coexistem com os aspectos de modernidade, fruto

dos mecanismos de dependência, a função social do historiador nessas circunstâncias

reveste-se de uma enorme importância, na medida em que o passado sobre o qual ele

debruça em suas investigações é aquele que precisa ser destruído presentemente. Não há

o que ocultar neste passado, mas o que denunciar. Sendo assim, é preciso melhor

conhecê-lo para dele se desfazer. Explica-se, por aí, em grande parte, o desprezo que as

elites culturais desses países, cujo passado ainda é presente, revelam pela história. Quer

dizer, pela história que se propõe a apreender a historicidade do processo histórico. Os

autênticos historiadores dessas sociedades são aqueles que assumem uma atitude

questionadora, fazendo dela sua razão de ser, de ser social e histórico.

Conhecer a produção social é pormenorizadamente, procurar saber como os

homens viviam, agiam, e se relacionavam entre si. É entender de que modo produziam,

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de que forma e através de que meios transmitiam suas tradições, hábitos e costumes.

Como criaram e vivenciaram sua maneira de ser.

Os historiadores que se dispuseram a penetrar no universo que congrega esses

valores que explicam mais do qualquer credibilidade documental os fundamentos de seu

estudo, têm de envolverem-se na dinâmica do processo histórico, ser um de seus agentes.

A história como ciência da sociedade precisa de historiadores que tenham ciência do

social. Mas, para que seu trabalho se complete com garantia e a honestidade que se

espera, torna-se imprescindível uma atitude atenta a todas as conquistas do

conhecimento em geral. Estar sempre inteirado de tudo que diga respeito a vida dos

homens, mesmo que isso exija um extraordinário esforço de pesquisa e uma sacrificada

devoção ao seu métier. Por outro lado, deve o historiador evitar as extrapolações quanto

tem por objeto de estudo sociedades cujo passado remoto não deve conter certas

referências que, por serem muito usuais hoje em dia, eram absolutamente impertinentes

se aplicadas a essas épocas pregressas. Conhecer as limitações de cada época é estar

imerso no processo social da construção da vida material.

Da história, enquanto conhecimento, espera-se o trabalho de sistematização das

conquistas científicas que, por seu turno, criam as condições para o aparecimento de

novos fatores de impulso do desenvolvimento social que deságuam ao curso do processo

histórico, da história enquanto registro das ações dos homens. Neste caso, a história na

sua acepção maior é “... para as ciências humanas o que as matemáticas são para as

ciências experimentais: uma garantia de exatidão. A reflexão sobre a história contribui

para a formação do espírito crítico. Melhor o homem conhece seu passado, menos ele é

escravo.”21 A história desponta, então, como teoria das práticas sociais e como prática

das teorias sociais, abrindo os caminhos que conduzam a formação das bases sólidas de

uma nova consciência social.

Não importa que o historiador ao produzir seu discurso o faça tendo como objeto

outra sociedade que não é a dele. O que importa é que ele assim procedendo o faça na

perspectiva de que seu esforço de reinterpretação inscreve-se tendo como determinante

as exigências sociais de conhecimento de seu momento histórico. “Organizar o passado

em função do presente, esta é a finalidade social da história.”22

21 Halkin, L., Initiation a la Critique historique, A. Colin, Paris, 1973, p.49.22 Febvre, L. Combates por la Historia, Ariel, Barcelona, 1970.

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A produção de idéias, em qualquer tempo, é a expressão da realidade material,

não sendo fruto de elaborações aleatórias movidas por uma curiosidade inquietante do

cientista. É o mundo real que ao condicionar o pensamento, o direciona. “Historiar o

acontecimento ou (...) historiar as práticas, consiste em reatualizar o acontecimento

passado (...) o problema metodológico fundamental é o da significação presente do

acontecimento passado ...”23 Em suma, o historiador deve corresponder as expectativas

do seu presente, até porque seu trabalho a ele se dirige. É um ato político como tantos

outros que desempenhamos no decurso de nossas vidas como seres sociais.

As fontes existentes para um trabalho dessa natureza apresentam dificuldades de

ordem material. Existem poucas fontes sistematizadas e prontas para que sobre elas se

debruce o historiador. Todavia, a dificuldade maior não está na localização desse acervo,

mas na identificação de seu conteúdo popular. Assim, o problema não é somente de

acesso mas de caracterização desses fenômenos. A seleção institucional encarregou-se,

contudo, de violentá-los o que acarretou, em muitos casos, um processo de

despersonalização. Que formas de resistência a essa opressão institucional conhecemos

se delas os raros vestígios foram devidamente liquidados? Que representações

ideológicas podem ser apreciadas, se em sua essência sofreram a intervenção de uma

Ordem ciosa da preservação absoluta de seus valores?

Em conseqüência, torna-se extremamente árdua a tarefa de recuperação dessa

memória verdadeiramente popular. Árdua, dissemos, porém jamais desgastante. Trata-

se, portanto, de um esforço que abrirá certamente as portas para um horizonte novo de

nossa produção historiográfica, no qual o social em sua rela dimensão de ser retratado

para retratar-se, ocupando o espaço que dele tem sido retirado e escamoteado.

Dificuldade mas não impossibilidade. O desafio que se abre aos historiadores

conscientes de seu papel social longe de desanimá-los deve estimulá-los. A busca das

fontes deve ser precedida pelo conhecimento do meio social e mental. Identificar os

valores, costumes e atitudes dos contingentes representativos dessas camadas populares

é, por assim dizer, um passo preliminar. Num país como o nosso a diversidade das

formações culturais e sobretudo a desigualdade de nossa evolução econômico-social não

pode dispensar esse recurso preliminar. Em cada um desses meios sociais erigem-se

23 Ver sobretudo, História, 3 volumes, Fco. Alves, Rio, 1977.

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normas de vida social que reproduzem os valores dominantes. Sobre estes opõem-se

princípios alternativos que convivem com aquelas. A historiografia oficial relata as

normas institucionais e delas faz seu referencial histórico, pois sal concepção de história

não admite a mutabilidade das instituições, ao passo que a história das práticas sociais

como autêntica história social registra e interpreta o desdobramento e os infindáveis

meios de resistência e sobrevivência das atitudes marginais. Só a análise destas permite a

compreensão dos movimentos sociais e das transformações sociais que lhe são inerentes.

O historiador das práticas sociais deve dirigir-se para a coleta de resíduos que

possibilitem captar a dinâmica social. Os arquivos sindicais ainda que limitados face a

estrutura sindical que lhe deram origem podem revelar detalhes significativos para o

estudo do movimento operário, da mesma forma que a imprensa operária e de opinião,

são fontes potencialmente importantes de que pode dispor o pesquisador. Os contos e

cantigas populares, como fontes orais, também se incluem como elementos informativos

das nossas tradições populares. Catalogar esse material representa um trabalho de

recomposição inestimável para que recuperemos a face oculta de nossa história social. A

pesquisa convencional não lhe dá crédito, pois ela está voltada para objetivos que não

incluem um projeto efetivamente nacional.

Nesse quadro, a história as práticas sociais como uma história alternativa situa-se

no interior de uma verdadeira história da totalidade social, incorporando um universo de

valores disseminados nos campos de pesquisa os mais variados, permitindo que se

trabalhe com os discursos dominantes e dominados. Com isso, nos vemos forçados a

redefinir o conceito mesmo de fato histórico, uma vez que dentro dessa dimensão seu

sentido extrapola as limitações que a história historicizante lhe confere. Vale dizer, de

uma concepção que mantém a história numa linha de total independência em relação as

sus parceiras, as ciências sociais. Nessa perspectiva todo fato social é necessariamente

um fato histórico.

A história das práticas sociais é, desse modo, a história das lutas sociais. Sua

finalidade consiste na recuperação da historicidade das classes oprimidas, articulando-a

com a historicidade do poder. Isto nos conduz a uma revisão crítica das práticas

acadêmicas, inclusive de obras dos nossos mais importantes cientistas sociais que

mesmo assumindo uma perspectiva de denúncia de nosso passado social, incorrem no

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erro de trabalharem questões cujo significado pouco ajuda o entendimento de nosso

processo. É oportuna a observação, neste caso, de Caio Prado Júnior quando alude em

sua tese História e Desenvolvimento a distorção que o estudo do desenvolvimento

acarretou para a compreensão de nossa formação histórica. Quer dizer, o

desenvolvimento tem sido estudado dentro de uma linha de pesquisa que privilegia os

seus aspectos de força propulsora dos grupos elitistas, pouco se enfatizando os seus

aspectos anti-sociais. O economicismo passou a impregnar-se de tal forma na abordagem

do desenvolvimento que o quantitativo acabou por se impor sobre o qualitativo, vale

dizer, sobre a análise histórica.

Conhecer a vida social no que ela tem de mais rico é inventariar o cotidiano, pois

dessa forma ganha em consistência o significado das ações dos seres sociais. O estudo

de sua linguagem, do seu vocabulário, nos dá a real dimensão do universo que os cercam

e no qual constroem suas crenças e a imagem que fazem do mundo. Hoje o avanço da

lingüística, da lexicologia e das técnicas de análise de conteúdo nos propiciam um

instrumental cuja eficácia e valor são indiscutíveis.

3. História: Práticas Sociais, Mentalidade e Ideologia

Das tendências mais recentes da historiografia contemporânea, aquela que tem

procurado desenvolver uma temática mais próxima da que concebemos por história das

práticas sociais é, sem dúvida, a história das mentalidades. Se assim a considerarmos é

porque seu objeto de estudo dirige-se para a compreensão da vida social. Não se trata de

um novo setor da história, mas o reencontro da história consigo mesmo.

A análise a que se propõem os historiadores das mentalidades não se resume ao

enfoque dos aspectos puramente mentais, psíquicos e culturais, embora se perceba em

alguns trabalhos essa preocupação.24 Na verdade, a história das mentalidades busca

compor esses fenômenos articulando-os com a variedade dos fenômenos sociais.25 A

rigor, ela tem se manifestado mais como uma proposta do que como uma realidade nova

na historiografia. Salvo alguns trabalhos isolados, essa perspectiva histórica ainda não

alcançou toda a plenitude que dela se espera. Para que essa expectativa possa

24 Concebemos a história das mentalidades como uma história alternativa.25 Lefevre, H., O Fim da História, Dom Quixote, Lisboa, 1971, p. 57/78.

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concretizar-se é necessário incluir-se entre as fontes indispensáveis à apreensão da vida

social, aquelas que poderíamos designar como “marginais”. Ou seja, todo tipo de

registro que dê conta da realidade social. Só dessa maneira o conhecimento histórico

pode ser concebido como o ato inteligente de registro e compreensão da realidade

histórica.

É bem verdade que o estudo das mentalidades históricas já proporcionou a

incorporação de objetos de estudo tradicionalmente relegados a esferas até então

impenetráveis à história, como o das emoções o da personalidade e, sobretudo, o das

ideologias. A ampliação dos campos de pesquisa histórica, o alto nível teórico alcançado

pelas ciências sociais, e a indiscutível importância dos movimentos de massa, aliados a

presença de técnicas de pesquisa mais modernas, são alguns dos fatores que

impulsionam o desenvolvimento da historiografia na atualidade.

A história integra-se cada vez mais às conquistas científicas, fato que independe

da vontade dos velhos cultores da história como erudição. O próprio processo das

transformações sociais opera profundas mudanças no conhecimento histórico. “Que quer

Marx dizer quando declara, em 1845 (Ideologia Alemã), que só conhece uma ciência, a

da história? (...) Nesta obra, ele caracteriza a história tanto pela ação humana origientada

para um fim (finalidade), como simplesmente pela sucessão das gerações humanas (...)

Quer dizer que há uma realidade, a história, obra de uma prática política, a revolução;

esta realidade produzida pela ação produz por sua vez um conhecimento. Não há história

sem historicidade. (...) A história assim concebida é activa. Substitui a filosofia”26 A

Historicidade não determina o processo histórico, mas condiciona toda criação do

conhecimento histórico. O homem ao evocar o estudo da história tendo em vista

conhecer suas origens o faz na expectativa de conhecer seu passado que embora ele o

desconheça reconhece seu significado, isto é, a importância de seu conhecimento. É esta

dialética do conhecer/desconhecido que faz da história um ensinamento extraordinário

que não deve ser privilégio daqueles que fazem dela seu ofício e meio de vida, mas de

todos os homens, independente de sua função ocupacional, de sua crença e de seus

valores culturais.

26 Labrousse, E., citado por le-Goff, p. cit. p. 69.

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O tempo histórico se conjuga em ritmos diferenciados de acordo com o fator

cultural produzido por cada universo mental. Mas, independentemente disso as mutações

no interior dos conjuntos sociais também obedecem a variações temporais. “O social –

diz Larousse -, é mais lento que o econômico e o mental mais ainda que o social.27 É o

tempo em sua tessitura desigual cujas manifestações que abriga desfilam em compassos

alternados, em conjunturas próprias, porém presas a um universo mental. E só as

transformações em profundidade no panorama social provocam modificações neste

último, ou seja na mentalidade. Daí ser ela mais duradoura porque é mais resistente às

mudanças.

Entender a maneira como se processa o entrelaçar desses níveis, que respondem

pelas continuidades e descontinuidades do processo histórico, eis a preocupação central

dessa história das mentalidades. Nada pode ser abandonado sob pena de se comprometer

o exame da totalidade social. É o não-factual que ingressa definitivamente no terreno das

preocupações do historiador, alimentando e dimensionando os fatos históricos.

“A história – diz Paul Veyne -, é feita da mesma substância que a vida de cada

um de nós”.28 A mentalidade não seria, então, um mero reflexo de uma problemática

cultural, mas o organismo vivo que move a vida social, a partir de suas contradições. É

na observação das diferenças de toda espécie que se diagnostica um organismo social.

Diferentemente do organismo humano, o mal de uma sociedade não está nas mutações

intestinas mas num equilíbrio estabilizador que compromete o progresso em nome de

interesses anti-sociais.

O estudo das mentalidades longe de impedir esse propósito orienta-o, pois só

podemos discernir os fatores de mudança de um determinado contexto social se

conhecermos suficientemente bem seus pontos de equilíbrio que não são outra coisa

senão os pontos que articulam a mentalidade. Uma revolução social muda o sentido da

história, transforma radicalmente os princípios políticos jurídicos, mas encontra sempre

forte resistência quando se propõe a alterar certas atitudes que são peculiares a esse

povo. É por esta razão que as grandes revoluções conhecidas pela história só alcançaram

êxito, quando seu curso seguiu a originalidade ditada pelas condições históricas de seu

meio. Quer dizer, fez da tradição, das práticas sociais, de seus valores historicamente

27 Veyne, P., Como se Escribe la Historia-Ensayo de Epistemologia, Fragua, Madrid, 1972, p. 48.28 Le Goff, J., op. cit. p. 77.

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herdados, instrumentos de renovação conseqüente. Os grandes líderes revolucionários,

da mesma forma, são os que fundamentam seus princípios políticos no conhecimento do

processo histórico social.

É lícito afirmar que a história das mentalidades procura desvendar o que o

historiador sempre perseguiu: a trajetória do homem na dimensão mais ampla de suas

realizações. Contudo, o conjunto de valores, símbolos, linguagem, costumes, atitudes,

elementos que constituem uma mentalidade, não é facilmente e (ou) uniformemente

percebido. O elemento ideológico é o responsável por essas construções diferenciadas. A

memória de uma sociedade é apropriada da maneira que melhor convenha ao grupo que

exerce o poder. “As mentalidades mantém com as estruturas sociais relações complexas,

porém não desligadas delas. Existe, para cada sociedade, para cada época que a história

distingue na sua evolução, uma mentalidade dominante ou várias mentalidades? (...) A

coexistência de várias mentalidades em uma mesma época e num mesmo espírito é um

dos dados delicados, porém essenciais da história das mentalidades”.29 Este problema

nos remete sem rodeios a questão da ideologia.

O estudo sistemático das ideologias tem seu marco inicial na Idade Moderna.30 A

teoria do engano do clero assim como a doutrina dos ídolos de Bacon, representam

somente um primeiro passo na solução do problema da ideologia. Em Freud a teoria da

racionalização permite que seja observada uma relação estreita com o problema da

ideologia.

Mas, é com Marx que o conceito e o emprego da ideologia adquire enorme

significado. O conceito de ideologia de Marx possui três raízes: a crítica à filosofia do

estado de Hegel, à antropologia de Feuerbach e à economia clássica de Ricardo e Smith.

Os elementos conceituais, objetos dessa crítica são: o ensaio empreendido por Hegel no

esforço de superar a antítese entre razão e realidade no elemento do conceito filosófico,

a redução feuerbachiana do mundo das representações religiosas a essência do homem, a

qual para Marx não existe como algo abstrato, isolado dos processos sociais, e, a teoria

do valor-trabalho dos economistas clássicos, que concebia as formas econômicas do

capitalismo como formas naturais da produção humana.

29 Lenk, k., El Concepto de Ideologia, Amorrortu, B. Aires, 1971.30 Manheim, K., Ideologia e Utopia, Introdução à Sociologia do Conhecimento, Globo, RJ/Porto Alegre/S.P., 1954.

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Somente na década de 1920 a problemática das ideologias converte-se no

substrato de uma disciplina acadêmica. Trata-se da sociologia do conhecimento. Max

Sheler foi seu inspirador, propondo criar uma doutrina de fundamentos metafísicos

acerca das condições sociais que presidem o nascimento e a difusão de cosmovisões e

teorias.

Em Manheim31 as categorias, ideologia e utopia possuem, segundo o emprego

que delas faz o autor, nítida necessidade de um referencial histórico, isto é, só adquirem

alguma significação se situados à luz de circunstâncias sócio-políticas determinadas.

Manheim destaca duas atitudes ideológicas. A primeira, a ideologia enquanto ocultação

parcial se refere a uma atitude mais ou menos consciente da natureza real da situação,

cujo verdadeiro reconhecimento não estaria de acordo com os próprios interesses. A

segunda atitude, a concepção total de ideologia, diz respeito a weltanschauung de uma

classe ou uma época, ou às idéias ou categorias de pensamento que estão relacionadas

com as condições existenciais desta classe ou época. As mentiras exemplificariam as

primeiras, ao passo que a ideologia liberal-burguesa ilustraria as segundas.

A utopia em Manheim não assume a conotação de algo irrealizável ou impossível

de ser na prática social concretizada. Ao contrário, assumiria um caráter prospectivo, um

vir-a-ser que estaria por assim dizer calcado na história. Dessa forma, o pensamento

cristão primitivo, por exemplo, era utópico enquanto expressava o ressentimento dos

oprimidos. Sua atitude passiva face aos opressores, a resignação que manifesta aos

seguidores expressava uma perspectiva de realização. Utópicas seriam as classes

despojadas do poder mas que guardam o futuro de sua afirmação. Logo, a hipótese

trazida por Manheim, no que se refere a utopia, está fundada na famosa idéia de Marx

segundo a qual são as condições da existência social dos homens que determinam sua

consciência social.

Para Manheim o conhecimento está socialmente condicionado, não existindo

conseqüentemente um saber absoluto. Ao negar, contudo as verdades relativas, nega a

existência de verdades objetivas. Ora, uma verdade pode ser objetiva sem que assuma

um caráter absoluto, porquanto está revelando um real que é objetivo no interior de um

momento que possibilita a apreensão desse real. E este obviamente não se eterniza, daí

31 Gramsci, A., A formação dos Intelectuais, M. Rodrigues Xavier, Venda Nova Amadora, 1972.

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sua objetividade corresponder a uma realidade sobre a qual se tornou possível conhecê-

lo. Ele é, pois relativo porque o processo de sua existência se modifica. Da mesma forma

que os homens agindo sobre o mundo exterior o modificam e modificam sua própria

natureza e os meios com os quais operam o processo de conhecimento.

Ao insistir na impossibilidade de uma verdade objetiva, Manheim pretende

encontrar uma síntese, já que tanto as classes dominantes como as dominadas possuem

perspectivas ideológicas, ou mais precisamente ideologias e utopias. Ambas são

determinadas pelos seus condicionamentos sociais. Em conseqüência, não caberia a

nenhuma delas apreender a realidade, pois essa seria necessariamente a revelação de

suas visões de mundo. O pensamento válido corresponderia aquele que fosse produzido

por uma concepção à margem das classes, a dos “intelectuais socialmente

marginalizados”. Dessa maneira, só os intelectuais assim concebidos estariam em

condições de retratar o real em sua verdadeira essência, posto que não seriam eles

representantes das classes, nem formariam, enquanto intelectuais, nenhuma classe

específica, antes “um agregado sem classes”.

A própria formação da intelectualidade se deu, ainda segundo Manheim, forma

das instituições oficiais. Os “salões” e os cafés, deram a esses membros originais dessa

camada social que é a intelectualidade um aspecto de certa marginalidade. Neles

mesclam-se elementos oriundos de diversas classes e segmentos sociais. Os cafés

constituiriam, assim, os primeiros centros de opinião “de uma sociedade em parte

democratizada”, em virtude da ausência de discriminações de toda sorte.

A despeito desses argumentos, Manheim admitia que cada intelectual não se

desprendia totalmente de meio social. Mas, atribuía-se à atividade intelectual condições

para que tais resíduos fossem dissipados, dotando-os de condições para se conduzirem

isentos em seu labor científico. Os contatos entre os integrantes dessa comunidade

propiciava uma postura onde a rigidez dos julgamentos não tinha vez. Embora não

afirmasse que os intelectuais formavam uma classe acima das outras, a prática a eles

atribuída por Manheim fazia-o crer que os intelectuais situavam-se numa posição que os

tornava capazes de sobrepujarem a ideologia.

Marx, contudo já havia destruído essa concepção ao afirmar que a classe

dominante não precisava ocupar-se em desenvolver ou difundir seu ideário. A divisão

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social do trabalho criara um grupo especial de ideólogos cuja tarefa principal e fonte de

vida consistia em desenvolver e aperfeiçoar as ilusões da classe acerca de si mesma e

veicular ideologicamente seus interesses.

Gramsci32 retoma a análise do papel do intelectual, dotando-o de uma nova

dimensão. Segundo Gramsci, qualquer grupo social que surge como base original de

uma função essencial no mundo da produção econômica cria seus intelectuais com a

função de reprodução dos valores inerentes à sua ocupação e o que dela sugere no

interior de uma organização social. É o conceito de intelectual orgânico, aquele que

emerge “no terreno das exigências de uma função necessária no campo da produção

econômica”.33 Na verdade, em Gramsci todo trabalho contém um caráter intelectual,

mesmo que se trate de uma atividade mecânica e desqualificada. Assim, “todos os

homens, à margem da sua profissão, manifestam alguma atividade intelectual e, embora

seja como filósofo, artista ou homem de gosto apurado, ele participa de uma concepção

do mundo, observa uma conseqüente linha de conduta moral e, portanto, contribui para

manter ou modificar um conceito universal e para suscitar novas idéias”.34

Gramsci rechaça a concepção vulgar de “intelectual”. A expressão função

empregada por Gramsci e seus seguidores recoloca, por assim dizer, toda a problemática

em torno da definição de intelectual. Não existiria um tipo de intelectual, muito menos

poder-se-ia falar em camada formada por intelectuais. Para Gramsci tal colocação é

resultante da “utopia social que levou os intelectuais a julgarem-se independentes e

autônomos, revestidos de uma própria representação”35 E, esta definição, estando

alicerçada numa concepção idealista segundo a qual é a idéia que cria a realidade,

produziu uma ilusão que arrastaria até hoje a um raciocínio dessa espécie. Na verdade,

Gramsci considera que é o caráter orgânico ou não da atividade do intelectual que se

determina a partir da análise da função que exerce no interior da superestrutura, o que

direciona toda e qualquer abordagem.

Numa sociedade de classes a luta pelos interesses de classe estende-se ao nível

das idéias. E, a classe mais bem preparada para empreender conseqüentemente a luta de

classes nesse nível será aquela que dispuser de um grupo de intelectuais em condições de 32 Id. Ibid., op. cit. p. 20.33 Id. Ibid., op. cit. p. 25.34 Id. Ibid., op. cit., pp. 22/23.35 Lênin, W., Duas Táticas da Social Democracia.

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impor sua filosofia de vida e, conseqüência, seus interesses de classe. Dessa forma, as

classes dominadas precisam constituir sua própria intelectualidade com vistas a

condução de seu papel histórico de maneira conseqüente. Uma classe subalterna que não

cria seus instrumentos de defesa, ou que se serve de um ideário que não lhe é próprio,

não estará capacitada para exercer sua hegemonia.

Na verdade, Lênin já havia desenvolvido teses nessa direção.36 A luta ideológica

travada pelo líder da Revolução bolchevique o levou a encetar rigorosas campanhas

contra os “arrivistas” e os “oportunistas” de todos os matizes. Mas, os problemas

internos eram, na ocasião, uma conseqüência do agravamento das tensões internacionais.

A crise provocada pelo aguçamento das contradições inter-imperialistas que resultaram

no primeiro grande conflito em escala mundial, obrigou Lênin a um esforço intelectual

pouco comum. As novas formas assumidas pelo desenvolvimento do capitalismo,

exigiam prontas respostas dos teóricos marxistas. Por isso, toda teoria leninista sobre a

questão ideológica foi desenvolvida tendo como centro de sua problemática a questão do

imperialismo, sobre o qual Lênin legou aos estudiosos extraordinários trabalhos que

constituem até hoje referência obrigatória dos cientistas sociais.

Para Lênin os militantes bolcheviques deveriam transformarem-se em

verdadeiros ideólogos do Partido bolchevique que desempenha o papel de Estado-Maior

do proletariado. A originalidade dos bolcheviques em relação aos outros agrupamentos

políticos está, assim, na disciplina partidária e no estudo sistemático do marxismo. Este,

de acordo com Lênin, não deveria constituir-se em dogma, mas em guia para a ação

revolucionária.

Mais recentemente é com Louis Althusser37 que o estudo da ideologia ganha de

novo uma dimensão que parecia não mais adquirir. A ideologia em Althusser38 é um

elemento indispensável a toda sociedade. Esta, no entanto, deve ser considerada como

Modo de Produção específica, já que a expressão sociedade simplesmente, é desabonada

pelos autores que seguem a tradição marxista e, sobretudo pelos marxistas tout court.

A ideologia constituiria na ética althusseriana uma instância necessária de toda

formação social, qualquer que seja seu estágio de desenvolvimento, Logo, a ideologia

36 Id. Ibid., Imperialismo, Última etapa do Capitalismo.37 Althusser, L. - Pour Marx, Maspero, Paris, 1965.38 Karsz, S. – Théorie et Politique: Louis Althusser, Fayard, Paris, 1974.

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não se desfaz nunca, até porque ela é uma representação do mundo. É indispensável

historicamente, pois os homens entendem o mundo da maneira como o mundo lhe

parece.

Althusser considera a existência numa sociedade determinada de duas tendências

ideológicas: a dominante e a(s) dominada(s). “Numa sociedade concreta, a medida em

que diferentes ideologias se desenvolvem, não é ao nível epistemológico que se pode

opor umas em relação a outras, como se fosse a verdade da outra. Não se trata de

pretender por exemplo, que uma ideologia dominante – ‘falsa’ – se defende contra uma

ideologia dominada - ‘verdadeira’-, (...). Com efeito, cada uma destas ideologias se

funda, sobre, e representa, posições econômicas e políticas que, (...) interditam em

última instância toda ‘discussão’ e toda ‘comunicação’ entre duas tendências ideológicas

antagônicas (...) a análise científica, aqui, não pode fazer senão uma coisa: não pretender

enunciar a ‘terceira’ via que ultrapassaria o antagonismo da ideologias mas a analisar

para mostrar o envolvimento econômico e político.”39

Althusser fala também em regiões ideológicas: as ideologias práticas e as

ideologias teóricas. Estas últimas comportariam duas subdivisões, as ideologias teóricas

vulgares e as científicas. Nesta última o exemplo mais marcante seria o de Marx.

As ideologias práticas são aquelas que se traduzem politicamente ou através de

manifestações que não escondem certas determinações político-sociais, como as

religiões, por exemplo. Esta região ideológica envolve todos os homens no interior do

processo das relações de produção. As ideologias teóricas são aquelas que envolvem um

setor da sociedade circunscrita, em geral, no meio intelectual. Não deixam, no entanto,

de traduzir uma região do embate ideológico, na medida em que ela se desenrola em

torno das idéias dominantes que são sempre os da ideologia dominante: a informação, o

ensino, as artes, que constituem domínios da classe dominante. São os aparelhos

ideológicos do Estado (A.I.E.) “Para avançar a teoria do Estado é indispensável

entender, não somente a distinção entre poder de Estado e aparelho de Estado¸ mas

também de uma outra realidade que está manifestamente do lado do aparelho

(repressivo) de Estado, mas que não se confunde com ele. Chamaremos esta realidade

por seu conceito:os aparelhos ideológicos de Estado.”40

39 Althusser, L. – Ideologie et Appareils idéologiques d’Êtat, La Pensée, Juin 1970, nº 151, pp. 3/38.40 Id. Ibid. – pp. 38 e segs.

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O A.I.E. é ao mesmo tempo teórico e prático e constitui o instrumento de

irradiação e perpetuação dos princípios dominantes da ideologia dominante.

Entretanto, quando Althusser formula seu conceito de A.I.E. e o teoriza não faz

senão enfatizar as funções que, a rigor, nada mais constituem do que instrumentos que

são inerentes a todo o aparelho de Estado. A perda da visão de totalidade que está

implícita no conceito de Modo de Produção e, particularmente do A.E. leva-o a perder

de vista a necessária compreensão orgânica da totalidade social e suas contradições.

Quando Marx afirma que no nível das superestruturas se formam os princípios político,

jurídicos e ideológicos, ele não reduz a este nível as manifestações ideológicas. Apenas

acentua que é em sua institucionalidade, a do poder, que é organizada a ideologia. A

crítica a ideologia, em suas diferentes manifestações, constituiu a principal arma

empregada por Marx para investigar a relação entre sociedade e conhecimento. E, para

apreciar a verdade histórica de qualquer pensamento social, reveste-se de importância

decisiva a investigação das conseqüências que traz sua realização na práxis.

Aliás, Althusser em sua autocrítica admite ter incorrido num “desvio teoricista”.

Reconhece que a redução aliada à interpretação “desta cena racionalista-especulativa, a

luta de classes estava praticamente ausente” Conclui seu autojulgamento assim: “Sem

teoria revolucionária, dizia Lênin, não há movimento revolucionário. Podemos escrever

sem posição teórica (filosófica) proletária, não há desenvolvimento da teoria marxista, e

não há uma justa união do movimento operário e da teoria marxista”.41

O “flerte” de Althusser como o estruturalismo o fez perder de vista o que

diferencia o marxismo do estruturalismo: o primado do processo sobre a estrutura. E

para a história isso é fundamental, sem o que não se pode realmente conhecer a

produção social.

Na realidade, se admitirmos que toda ideologia é uma representação do real, a

mentalidade é o conduto através do qual essas ideologias operam, consagram e veiculam

esse real. Neste caso, o estudo da mentalidade é o pré-requisito para que se possa

entender as manifestações ideológicas, até porque possuindo as ideologias o poder de

legitimar essas imagens da realidade, cumpre que se investigue o meio social sobre o

qual essas ideologias se organizam.

41 Althusser, L. – Élements d’auto-critique, Hachette Littérature, Paris, 1974, p. 126.

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Desse modo, que função social está reservada ao historiador diante desse

desafio? De que forma interpretar um objeto cada vez mais complexo e difuso se ele na

sua condição de historiador está, enquanto indivíduo que é, envolvido pelo fator

ideológico que independe dele e de sua formação profissional?

Submetido ao seu universo do qual não pode se desvincular, sua obra é o

resultado desse impasse. É um exercício de superação do qual nem sempre se dá conta.

Admitindo a mentalidade como a própria essência do social, responsável como tal pelos

elementos de permanência que personificam as sociedades, pode-se dizer que ao

historiador das mentalidades cumpre; buscar nas tradições sociais de uma comunidade

constituída historicamente as condições e os mecanismos de sua reprodução social, ou

seja, como suas crenças, costumes e conhecimentos adquiridos são perpetuados, e que

uso as ideologias dominantes fazem deles. Este último aspecto adquire fundamental

importância por sabermos que a tradição de cada sociedade propõe uma explicação do

mundo à seus membros. O papel cumprido pela moral, por exemplo, é de extrema valia,

pois ela torna inquestionável, como sua própria razão de ser, as práticas legitimadas

institucionalmente.

O que é, então, desprezível para a historiografia oficial merece um tratamento

prioritário da história das mentalidades. É preciso sublinhar, no entanto, que entendemos

a história das mentalidades como o estudo sistemático das práticas sociais, e não como

um setor “novo” do conhecimento histórico. Setorizar a mentalidade é não entender que

ela é um produto do social, e conhecer o conjunto da produção social é fundar as bases

do objeto histórico real.

II

Os comunistas e a questão nacional.

Na realidade, vinha sendo discutida no âmbito das esquerdas a

possibilidade de um conjunto de mudanças capaz de tirar o Brasil da inércia e da

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dependência do capital estrangeiro. Para tanto, era preciso um processo

revolucionário, se possível sem derramamento de sangue, mas realizado sob o

signo da conscientização, palavra que figurou em quase todas as bocas e em

quase todos os documentos produzidos à época. O governo tolerante de JK,

especialmente em relação aos comunistas, que embora na ilegalidade

participavam ativamente das confabulações e dos encontros em torno de medidas

a serem adotadas num país que caminhava célere para um arranco econômico

cujas conseqüências dependeriam, portanto, de diretrizes a serem tomadas. Os

próprios comunistas, em 1958, lançaram um documento intitulado Declaração

de Março42, no qual passariam a apostar na via democrática e essencialmente

política.

A questão nacional retorna com força ao cenário brasileiro em fins dos

anos cinqüenta. Nesses anos os grandes debates se situavam em torno dos termos

nacional e nacionalismo como fronteira cognitiva e ideológica para uma geração

que buscou construir um projeto para o Brasil. Para tanto, podem-se situar três

tipos de fontes para sistematizar o problema proposto dentro desse universo, o do

partido dos comunistas, o PCB: o material da imprensa comunista, os

documentos de orientação política e ideológica divulgados pelos panfletos da

mesma inspiração, e os textos de intelectuais orgânicos pecebistas. Mais do que o

inventário de uma questão relacionada com um partido de época, expressão

usada para designar a presença de uma organização cuja influência não era

desprezível naqueles tempos não obstante sua pequena representação

institucional trata-se de examinar o problema proposto a partir de um olhar muito

particularmente expressivo sobre o tema que inspirou esse trabalho.

A freqüência com que se usava os termos nacional e suas derivações

decorre das condições políticas da época, eivada de pressupostos, tanto à direita

quanto à esquerda, segundo os quais a natureza de princípios puros e destituídos

de componentes indesejáveis encontrava-se no apego aos valores nacionais. Foi

assim com o comunismo soviético e com o nazifascismo, ambos interpretando o

nacional como eficiente instrumento de promoção do bem estar social, de acordo

42 Ver PCB: Vinte Anos de Política: 1959-1979, documentos. São Paulo: LECH-Livraria Editora Cioências Humanas, 1980;

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com as respectivas concepções. Não fora a guerra fria a estimular um

anticomunismo virulento e as correntes que, no Brasil, haviam se colocado em

campos opostos nos anos trinta, estariam reunidos nos 50 em torno das bandeiras

caras ao nacionalismo. Mesmo assim não foram poucos os ex-itegralistas que

acabaram próximos dos nacionalistas antiimperialistas do pós-guerra.

A pergunta que se deve colocar desde o início é a seguinte: até que ponto

a conjuntura política da primeira década do pós-guerra explica a forte presença

dessa questão no cenário da sociedade brasileira? E a esta questão acrescentar-se-

ia uma outra, necessariamente complementar. Essa forte presença do elemento

nacional a nortear discursos e apelos foi mais notável no Brasil, ou o país apenas

conheceu, a sua maneira, uma tendência comum naquela época? Em ambos os

casos, se está diante da problemática conjuntural, e tanto o plano interno quanto

o externo suscitam dúvidas a respeito do encaminhamento dessas indagações.

Contudo, é preciso chamar atenção para a componente da ação política detentora

de uma relativa autonomia no contexto conjuntural. No caso brasileiro, a ação

política aludida assumira a representação de um ator político individual de

notável presença, Getúlio Vargas, líder e ideólogo do projeto nacional.

Sem negar as influências de uma conjuntura favorável à irradiação de

movimentos e manifestações de cunho nacional, uma vez que a guerra aflora esse

sentimento em países ainda submetidos a formas mais ou menos característica de

opressão colonial, o caso brasileiro dos anos de 50 possui um caráter muito

particular. Daí, estabelecermos essa fronteira a separar o fenômeno mais geral

daquele que guardou especificidades que procuraremos detalhar mais adiante.

Por outro lado, trataremos de acrescentar as novas leituras acerca da questão de

fronteiras ideológicas, desprovidas estas das inconveniências de uma época em

que tais parâmetros se encontravam inteiramente vinculados aos paradigmas

instituídos pela polarização que confrontava o capitalismo ao comunismo43,

como muitos preferiam, ao invés de socialismo. Essas novas leituras incluem a

idéia de fronteira como obstáculo e como conquista. No primeiro caso, a

expressar desafios de ordem epistemológica e superações de natureza teórico-

43 De um modo geral, a grande imprensa brasileira usava constantemente capitalismo versus comunismo;

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metodológicas; e, no segundo, a marcar aquisições mais recentes provenientes da

contribuição dos diversos campos da ciência, para a qual, hoje, a fronteira do

conhecimento não obsta o diálogo entre os mais variados tipos de cientistas e

pesquisadores.

Os anos cinqüenta no Brasil despertaram o país para o desenvolvimento.

Mais até, para a possibilidade de alcançá-lo breve e sem grandes sacrifícios. Tal

expectativa derivou do pós-guerra a estimular mudanças estruturais postergadas

por muito tempo. O crédito pessoal junto à população, depois de 15 anos no

poder, muito provavelmente tenha beneficiado Getúlio Vargas em 1950, quando

se submeteu pela primeira vez às urnas.44 De posse de um projeto de

desenvolvimento nacional Vargas contribuiu para acrescentar ao excitado quadro

daquele pós-guerra nas nações periféricas do sistema capitalista uma forte

componente: o nacionalismo como instrumento e motor do desenvolvimento.

Mas esse componente que dotava o desenvolvimento desejado por todos

de um sentido, ao mesmo tempo em que estava destinado a impulsionar a nação

brasileira através de um projeto transformador, tinha contra si um obstáculo. O

projeto concebido por Vargas e depois levado a efeito pelo legado varguista

ancorava-se no fator econômico. Neste encontrava-se a chave para a travessia da

fronteira que levaria o país para o desenvolvimento e a afirmação nacional.

Dessa maneira, a questão nacional ao longo dos anos cinqüenta no Brasil

combinava desenvolvimento, nacionalismo e soberania. Além disso, escalava

como protagonistas desse empreendimento nacional o Estado e seus principais

coadjuvantes: as classes produtoras (leia-se, a burguesia empresarial) e os

trabalhadores.

Contudo, para atravessar a fronteira almejada era preciso remover duas

outras fronteiras, isto é, dois obstáculos, um interno, o latifúndio, e outro externo,

o imperialismo. Tanto os que se alinhavam em torno do projeto quanto os que o

combatiam, usavam argumentos de natureza ideológica. Esses argumentos eram

muito mais eficazes do que os de cunho técnico e científico. Isso se explica pela

componente radical e maniqueísta de uma época marcada pelos confrontos dos

44 Vargas concorreu pelo PTB nesse ano contra Eduardo Gomes, da UDN, e Cristiano Machado pelo PSD, obtendo quase 50% dos votos válidos;

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que se identificavam com os sistemas de poder vigentes, mas também pelas

características da política de então profundamente emocional, dado o forte

contencioso que se acumulara ao longo de um processo histórico marcado por

dívidas em relação aos interesses das nações que haviam conhecido um passado

colonial.

Para os ideólogos da questão nacional era preciso que as forças vivas da

nação, unificadas em torno do Estado, capitaneassem o processo

desenvolvimentista. Criava-se, assim, o nacional como fronteira, isto é, como

parâmetro a partir do qual eram estabelecidos os limites e os instrumentos de

superação do subdesenvolvimento. Nação versus antinação45, nacionalistas em

oposição aos entreguistas, oponentes cujas teses transitavam pela via da

nacionalidade e de sua afirmação, fosse esta fruto da luta contra os grandes

proprietários de terras e o grande capital internacional, fosse no combate sem

tréguas ao comunismo e seus aliados.

Ao proclamar o nacional como fronteira, as partes litigantes -

nomeadamente à esquerda e a direita - sustentavam suas idéias pela negação de

seus interlocutores, desqualificando-os e, com isso, desobrigando-se de

apresentarem propostas concretas para o país. O exemplo mais notável ocorreu

por ocasião da criação da Petrobrás. Desde os fins da guerra e durante toda a

década de 1950, o que mais se debateu foi o monopólio instituído pelo Decreto

2004 que originou a implantação dessa estatal. Raras foram às vozes e,

principalmente, os estudos relativos aos investimentos tecnológicos e científicos,

só invocados para a reafirmação das teses conflitantes. Durante o tempo em que

o tema ocupou o cenário político do país, proliferaram os proselitismos prós e

contra a política monopolista definida pelo governo de então.

O apego ao fator econômico como símbolo das afirmações tanto de

esquerda como de direita explicava-se pela indisfarçável situação do país no que

concerne aos desequilíbrios sociais e regionais. A evidência do

subdesenvolvimento estava na subnutrição e no estágio desesperador de

inúmeros municípios do norte, nordeste e centro oeste. Os apologistas das

45 Essa expressão fora muito usada por Álvaro Vieira Pinto, filósofo e um dos nomes mais proeminentes do ISEB. Ele costumava contrapor Elite e massas;

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transformações estruturais ou de seus reajustes encontravam-se na fronteira da

economia política, campo fértil para as pregações evocadas por seus líderes, seja

nos legislativos, na imprensa ou em entidades representativas da sociedade civil.

A lógica segundo a qual cabia ao Estado empreender os equipamentos infra-

estruturais para que as demais instâncias alcançassem as condições para o

desenvolvimento estava presente naqueles dias. Para todos os problemas,

preponderava uma mesma lógica, como observou uma estudiosa de um desses

problemas presentes na pauta política daqueles tempos. Segundo ela: “Neste tipo

de nacionalismo os possíveis ‘inimigos internos e externos’ não se definem por

oposições culturais, étnicas, lingüísticas ou religiosas. É, ao contrário, um

nacionalismo estritamente econômico”46

Neste sentido, destaca-se a ação do proselitismo dos comunistas brasileiros

organizados em torno do PCB. Nos documentos provenientes dos órgãos

dirigentes, de seus periódicos ou de pronunciamentos das lideranças mais

expressivas desse partido, encontram-se inúmeras manifestações que atestam o

nacionalismo econômico em vigor. A força desse argumento levou-o a alterar a

tática de lutas, sinalizando para a formação de uma aliança com a pequena

burguesia e setores de uma burguesia nacional, com vistas à revolução

democrático burguesa, então preconizada. Logo no início da já mencionada

Declaração de março de 1958, “Em direção a uma nova política”, os comunistas

não deixam dúvidas em relação a reavaliação do quadro nacional.

“Modificações importantes têm ocorrido, durante as últimas décadas, na

estrutura econômica que o Brasil herdou do passado, definido pelas

seguintes características: agricultura baseada no latifúndio e nas relações

pré-capitalistas de trabalho, predomínio maciço da produção agropecuária

no conjunto da produção, exportação de produtos agrícolas como eixo de

toda a vida econômica, dependência da economia nacional em relação ao

estrangeiro, através do comércio exterior e da penetração do capital

monopolista nos postos-chave da produção e da circulação.”

46 Moreira, Vânia M. Losada. “Nacionalismo e reforma agrária nos anos 50” in Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 18, nº 35, 1998, p. 336;

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Antes, no entanto, que essa orientação viesse a se consagrar, os comunistas

insistiam nos discursos de condenação aos governos e as instituições vigentes.

Mesmo após a extraordinária consagração de Vargas nas eleições de 1950 e de

seu programa modernizador, o órgão oficial do PCB, A Voz Operária, de

primeiro de agosto de 1952, tecia considerações nada simpáticas aos novos

dirigentes. O exagero de cunho meramente panfletário dominava a redação do

jornal, para a qual, a “política do governo de Vargas, política de guerra, de

colonização, de fome e de reação crescente contra a classe operária e as massas

populares, impôs-se a intensificação das lutas da classe operária em defesa da

paz, contra a venda crescente do país aos monopólios ianques, contra a miséria e

a fome, pela salvaguarda dos direitos e conquistas dos trabalhadores.” Vê-se que

o espírito belicoso, profundamente amargo e naturalmente tendencioso sobre os

fatos, contrariava flagrantemente as proclamações a favor da paz, até porque

vigorava uma recomendação dos dirigentes do partido (Manifesto de agosto de

1950) abertamente insurrecional num país que acabara de reconquistar o direito

às urnas.

Predominava a época uma composição no Comitê Central do PCB francamente

tripartite, de acordo com os dados do IV Congresso de 1954, constituída de 48%

de trabalhadores manuais (operários), 28% de profissionais liberais e 24% de

militares. Considerando estes dois últimos segmentos, havia, portanto, uma

ligeira maioria formada de setores da classe média urbana desejosa, de um lado,

de mudanças rápidas e eficazes e, de outro, afirmação como protagonistas da

história, sem ter acumulado suficiente volume de experiência que os tornassem

capazes de conduzir tais transformações. A outra metade de operários pouca

influência tinha ao lado dos dois agrupamentos, responsáveis pelas lideranças

intelectuais de que valiam os dirigentes naqueles dias.

O quadro se alteraria um pouco por ocasião do V Congresso de 1960, onde, a

despeito das mudanças havidas na orientação do partido, prevaleciam os mesmos

grupos com números um pouco modificados em relação àquela composição

apontada anteriormente, passando para 36%, 36% e 28%, respectivamente O que

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acarretou, então, a significativa mudança de rumos ocorrida entre o IV e o V

congressos e cuja repercussão se fará sentir, inclusive, no VI Congresso apesar

do golpe de 64 a alterar substancialmente o panorama do país? Esta pergunta não

chegou a ser plenamente respondida até hoje, e é importante que se procure

explicar essa questão. A hipótese que lançaremos mão nesse estudo é a de que da

mesma forma que os comunistas exerceram uma influência considerável na

política nacional, amparados que estavam no apego aos temas nacionalistas,

também eles foram alvos da influência dos debates a politizar a questão das

salvaguardas da nação e, portanto, elementos ativos na defesa da fronteira

nacional que se forjara principalmente a partir de meados dos anos 50. Nesta

época, o nacional passou a definir as pessoas, suas idéias e proposições, além de

seu caráter e de seu patriotismo. Quem não se filiasse as perspectivas dos que

sustentavam uma política nacionalista, era naturalmente identificado como

adepto de princípios e valores anti-nacionais.

Os comunistas, sem dúvida, engajaram-se nas lutas nacionalistas com muito

mais denodo do que os próprios trabalhistas filiados ao partido concebido por

Vargas, ainda ao término de seu governo de 15 anos consecutivos, para conduzir

o seu projeto de conciliação e colaboração de classe, o PTB. Além da militância

comum aos comunistas, pairava uma outra questão, a de que ambos os

agrupamentos disputavam as massas trabalhadoras, seus sindicatos e suas

reivindicações. Estas só foram, na verdade, objeto de real interesse dos

comunistas a partir da Resolução Sindical de 1952, pois antes dessa data tais

demandas eram solenemente ignoradas ou desprezadas como prioritárias uma

vez que se insistia no proselitismo doutrinário. A referida Resolução, para a qual

concorreu muito a percepção e astúcia política de Carlos Marighela, produziram

uma enorme mudança nas práticas dos militantes sindicais vinculados ao partido.

A partir dessa Resolução, os comunistas que atuavam no movimento sindical

passaram a desenvolver práticas políticas que se diferenciavam daquelas

usualmente adotadas pelo partido nas demais áreas de atuação, causando um

embaraço constante com as direções ainda presas à orientação que provinha da

direção nacional, regional ou municipal, todas profundamente marcadas pelo

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sectarismo. Essas práticas políticas dos sindicalistas comunistas provocaram,

inclusive, a possibilidade de se construir alianças com os trabalhistas. As

questões concretas dos trabalhadores passavam a ter primazia no seio desse setor

do partido. É muito provável que essa composição política tenha trazido

influências recíprocas, mas devem-se destacar os elementos comuns,

responsáveis pela aglutinação de comunistas e trabalhistas: a bandeira do

nacionalismo. Foi essa cultura política comum que permitiu a identidade da

classe operária no Brasil dos anos cinqüenta.

A propósito é conveniente lembrar que o conceito de classe proposto por

Edward Thompson em The Making of the English Working Class (A Formação

da Classe Operária Inglesa ) resolve o impasse ideológico criado pela leitura

dogmática de Marx e Engels a respeito da classe operária, ao considerar tal classe

“uma categoria histórica que descreve as pessoas em termos de seu

relacionamento ao longo do tempo”, pois só poderemos entender essas pessoas

como produtos de uma “formação social e cultural”. Aqui há que esclarecer duas

coisas: a distinção entre história operária e história sindical ou movimento

operário e movimento sindical. No primeiro caso, as pessoas que integram essa

história ou esse movimento são pessoas que possuem um universo construído

historicamente, portanto integrados por força de um determinado modo de vida.

No segundo caso, são essas mesmas pessoas que atuam no seu ambiente de

trabalho e possuem interesses funcionais, profissionais, salariais, em comum,

independentemente de suas crenças, paixões, aptidões e escolhas. Todavia, o

estudo do movimento operário não pode deixar de referir-se ao outro, isto é, ao

sindical, pois trata-se de algo essencialmente indissolúvel e inseparável. E a

recíproca é verdadeira.

Quando invocamos o dado nacional (ismo) como um dado agregador,

unificador e mobilizador, estamos identificando um elemento comum que torna

próximo tanto a classe como o movimento, tanto o operário e sua dimensão de

cidadão a contemplar a possibilidade de ser partícipe de uma história nacional até

um sindicalista que percebe brechas no sistema que facilita a conquista de

reivindicações pleiteadas por seus companheiros. Se, no entanto, aceitarmos a

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idéia de que o nacionalismo difundido e tornado instrumento de desenvolvimento

contêm uma componente ideológica, a derivação dessa premissa consiste em

considerar os trabalhadores como cooptados por um sistema de dominação que

teve a necessidade histórica de trazê-los para o campo do debate político mais

geral, transformando-os em atores coadjuvantes desse projeto de afirmação

nacional.

Ao longo dos anos cinqüenta, os comunistas foram paulatinamente se

aproximando da vertente trabalhista. O suicídio de Getúlio Vargas em agosto de

1954 levou-os a rever radicalmente a postura eqüidistante que vinham adotando -

aquela altura absolutamente imobilista e sem apoio nas bases - e tornaram-se

cada vez mais próximos dos acenos trabalhistas, fato este que os levou a

apoiarem a candidatura de JK em 1955. Consolidara-se neste momento o projeto

nacional desenvolvimentista primo irmão da etapa democrática burguesa

preconizada pelo PCB. As fronteiras internas e externas na ocasião não deixavam

mais dúvidas: de um lado, situava-se em fronteira oposta, o latifúndio e os

interesses antinacionais, de outro, o imperialismo yankee. Para um partido de

tradição e concepção proletária, cuja demanda internacionalista consubstanciara-

se em premissa básica, razão pela qual os desvios nacionalistas eram inaceitáveis,

essa nova situação era no mínimo instigante.

A Nova Política tornada pública pelos comunistas em 1958, depois de alguns

problemas internos derivados da denúncia dos crimes cometidos por Stálin

expostos pelo Relatório Kruschev, em 1956, e que no Brasil somara-se as crises

de 1955 que resulta no abandono de quadros como Agildo Barata entre outros,

cindiu de vez o partido com reflexos imediatos na tática comunista. O documento

lançado em março daquele ano reconhecia o avanço das relações capitalistas de

produção no país e a necessidade de dar-se sustentação política a esse processo,

cujos efeitos eram danosos para as forças do atraso. Estaria, assim, cristalizada a

nova fronteira de lutas a vislumbrar perspectivas bastante promissoras para o

projeto que parecia irmanar de vez o nacional desenvolvimentismo e a etapa

democrática burguesa. Cabia, pois, aos comunistas cerrar fileiras para isolar as

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forças conservadoras, situação esta bafejada pelos êxitos alcançados pelos

processos de libertação nacional e descolonização.

A caracterização e a delimitação dessa fronteira política e ideológica ficaria

ainda mais evidenciada no ano de 1960, de vez que tanto no plano nacional

quanto no plano orgânico do PCB, haveria mudanças significativas. No Brasil, a

eleição de duas lideranças populares, na famosa dobradinha Jan-Jan, Jânio

Quadros e João Goulart (Jango), que a despeito de se situarem em chapas e

programas que se enfrentavam eleitoralmente, foram homogados pelas urnas,

cuja população estabeleceu seus próprios critérios de fidelidade. Não a partidária,

mas a de maior proximidade dos candidatos em relação ao povo, usando

mecanismos que os definiriam dentro dos marcos do que se convencionou

chamar de populismo. O fato é que de novo os comunistas foram às ruas em

apoio a candidaturas burguesas nacionalistas, como acontecera com Juscelino

anteriormente. Desta vez com mais entusiasmo porque as candidaturas

progressistas de Jango e do General Henrique Teixeira Lott47 eram dignas desse

apoio, já que vinculava a tradição militar nacionalista do Exército e de seu

próprio representante, que garantira a posse de JK, com a do político mais ligado

às tradições getulistas, João Goulart.

Ao transitar de uma atitude política estreita e avessa ao estabelecimento de

alianças para uma outra inteiramente aberta e capaz de contrair demandas

comuns com forças e correntes distintas ideologicamente, os comunistas que se

orientaram pelas novas diretrizes da Declaração de Março romperam

parcialmente a rígida fronteira ideológica que vigorava anteriormente, deram

início a construção de uma fronteira convergente em torno de uma bandeira

comum, o nacionalismo. Assim, o elo promovido entre comunistas, trabalhistas e

reformista de diferentes origens criou potencialmente as condições para a

reinvenção da fronteira nacional. Contudo, e na prática, esse renascimento do

elemento nacional padeceu de um pecado original: o povo esteve a reboque desse

processo. Neste sentido, aproximou-se mais de um momento de circulação das

elites, típica de sociedades marcadas por heranças coloniais e neocoloniais.

47 Ver Wagner William. O Soldado Absoluto Uma biografia do marechal Henrique Lott. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2005;

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Contribuiu para essa situação a convicção - ainda que jamais admitida - de que

na esfera da política convencional os impasses nacionais poderiam ser resolvidos

sem que houvesse necessariamente o concurso direto do povo de forma concreta,

figurando sua participação no discurso desse pacto de elites políticas,

intelectuais, sindicais e partidárias, certos os pactuantes de que se encontravam

legitimados pelas massas. Algumas dessas figuras integrantes das elites

intelectuais chegavam a sustentar tese contrária, como a do filósofo do ISEB e da

então Universidade do Brasil, Álvaro Vieira Pinto48. Segundo ele, a revolução

brasileira era uma tarefa das massas, e competia as massas orientar o processo de

transformação na sociedade brasileira.

Entretanto, da mesma forma que a noção de nacionalismo obedecia a um

mecanismo ideológico de convencimento, o mesmo se aplica a noção de massa,

termo adotado para caracterizar multidões que embora despreparadas para a

política, possuíam a faculdade de perceber onde estava o caminho para a sua

libertação. Esta conveniente convicção alardeada por ideólogos de uma

revolução sobre a qual todos verbalizavam chegara a academia, aos ambientes

intelectuais, mas não a ponto de integrar essas mesmas multidões ao processo

supostamente da revolução tão alardeada. Neste sentido, foram as revoluções

anunciadas, cuja realização ficou mais na vontade e na esperança de um êxito do

projeto nacional do que de um processo verdadeiramente real.

Mas a crença de que se estava em meio a um processo revolucionário parece

ter anestesiado esses ideólogos. Dentre os comunistas adeptos do estreitamento

de relações com os progressistas, e empurrados pela Declaração de Março de

1958 referendadas em seu V Congresso de 1960, havia uma outra questão não

menos importante. Tratava-se da possibilidade - pela primeira vez cogitada - de

que esse processo revolucionário tinha condições de ser culminado

pacificamente. Afinal, o amplo conglomerado de forças a apoiar a mudança

política e institucional prevista àquela altura por todos os aliados da revolução

brasileira era suficiente para reafirmar essa convicção. Desse modo, mais do que

a influência do quadro internacional produzia-se no Brasil dos anos cinqüenta

48 Ver Marcos Cezar de Freitas. Álvaro Vieira Pinto. A personagem histórica e sua trama. 1º edição. São Paulo: Cortez, 1998

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uma significativa alteração nas fronteiras políticas, doutrinárias e ideológicas

ancorada na questão nacional, e neste processo de remover fronteiras

encontravam-se os comunistas brasileiros.

Com essa atitude de dar mais ênfase ao jogo político e aos marcos

de uma democracia burguesa mais tolerante em vista das atividades dos

comunistas, pode o PCB alcançar um grau de influência junto às correntes de

esquerda democráticas como nenhum outro partido de concepções socialistas ou

comunistas logrou atingir ao longo da República brasileira. De certa forma, os

comunistas brasileiros anteciparam-se ao degelo promovida pela política de

coexistência pacífica inaugurada pelos líderes soviéticos, tendo à frente Nikita

Krushev. O resultado dessa mudança teve reflexos internos, com a separação de

parte da direção sob os comandos de João Amazonas, Maurício Grabois, Pedro

Pomar, entre outros, que mais tarde conseguem atrair também Diógenes de

Arruda Câmara, um dos quadros mais afinados com o estilo de direção stalinista

no PCB, formando um novo partido comunista dissidente, o PCdoB49.

Assim, o “novo” PCB, tendo à frente Prestes e a maioria dos dirigentes

comunistas, passaram a se aproximar ainda mais dos trabalhistas do PTB

firmando, com eles, uma aliança que nascera desde a Resolução Sindical de

1952, mas só concretizada com o apoio dos comunistas à dobradinha para

presidente JK-JG, pois tanto Juscelino quanto Jango acenavam com a disposição

de ter os comunistas como aliados, ainda que incômodo para ambos, mas de

grande valia nas relações com o crescente movimento sindical daquela época.

Essa tática não resultou de uma estratégia urdida com vistas a beneficiar-se de

eventuais cargos na administração pública. Por ética e princípios, os comunistas

pretendiam tão-somente influir nas tomadas de decisão que dissessem respeito

aos trabalhadores. A base essencial desse encontro histórico foi construída pela

imprensa das duas correntes, especialmente pela imprensa comunista, e

49 Trata-se de um resgate da velha sigla, que por motivos de exigência da justiça eleitoral foi forçado a abrir mão da preposição para que os comunistas se assumissem como agremiação efetivamente brasileira, daí o PCB tornar-se Partido Comunista Brasileiro, e não como era assim chamado o então Partido Comunista do Brasil. Os dissidentes fizeram questão de enfatizar o uso da preposição, isto é, retomam a velha sigla; assim como farão com o jornal oficial, A Classe Operária;

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transformou-se num legado importante que o golpe de 64 atacou desde os

primeiros instantes.

Contudo, as expectativas de grandes mudanças levadas pelas forças

políticas comprometidas com as Reformas de Base do governo Goulart foram

frustradas duplamente. Em primeiro lugar, pela ação arquitetada da direita em

consonância com os interesses estratégicos norte-americanos para a América

Latina, acentuados freneticamente depois dos rumos da Revolução Cubana. E,

em segundo lugar, pela total desarticulação dos esquemas previstos de

sustentação do governo, seja nas forças armadas ou junto as entidades sindicais.

O próprio desinteresse de Jango diante da maré montante que contra ele e seu

governo estava sendo armada, que incluía até passeata de mulheres – a “Marcha

da Família, com Deus pela Liberdade”50 - contra uma suposta República

sindicalista acabou por levá-lo a jogar a toalha antes de se cogitar de algum tipo

de resistência. Esta nem precisaria ser necessariamente armada, pois bastaria

acionar a diplomacia e buscar apoios junto aos governos próximos com base no

princípio da legalidade constitucional.

Nem os trabalhistas que cerravam fileiras com o governo, muito embora

muitos deles já começassem a se bandear para as hostes oposicionistas –

principalmente os bigorrilhos51 -, nem os comunistas conseguiram promover

formas de resistir aos golpistas, que com o passar do tempo tornaram-se maioria52

na sociedade e principalmente nos meios militares até então divididos. Ainda que

a sociedade se mostrasse igualmente dividida em face de uma encruzilhada a

apontar entre a estrada da tradição, portanto, da imobilidade diante dos desafios a

serem vencidos e, de outro, das reformas a sugerir mudanças que poderiam

conduzir o país para sendas mais consentâneas com as necessidades de seu povo,

o espírito conservador acabou tendo prevalência nesse entrechoque, o que talvez

explique a atitude refratária a qualquer movimento de defesa das instituições

violentadas. O fato é que com o Golpe vitorioso perdia a República e o país. O 50 Ver Solange de Deus Simões. Deus, Pátria e Família. As mulheres no golpe de 64. Petrópolis: Vozes, 1985;51 Termo usado e popularizado pela imprensa política para se referir ao grupo trabalhista sem princípios doutrinários ou ideológicos, que costumavam agir de acordo com interesses imediatos, pragmáticos;52 Sobre o processo de deslocamento da base de apoio dos militares a favor da solução golpista ver os volumes sobre a Ditadura do jornalista Elio Gáspari, editadas pela Companhia das Letras;

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que seria construído como sociedade pela ditadura que se implantou foi à

mediocridade dos sonhos, a acalentar o individualismo desenfreado e o

progressivo abandono da fraternidade, fatal para a República e suas instituições.

Com a implantação do regime ditatorial a partir de 64, o Brasil ingressou

definitivamente na rota da expansão capitalista sob o domínio do grande capital

internacional. Cresceu economicamente beneficiado por uma conjuntura aonde

foi relativamente fácil atrair investimentos de capitais, e fez crescer ainda mais o

fosso social entre os grandes proprietários e detentores de riquezas e as grandes

massas deserdadas e jogadas à própria sorte. Com a agravante de não ter mexido

em sua estrutura fundiária, o Brasil arrastou nessa onde de crescimento

vertiginoso um atraso histórico e estrutural tão vivamente denunciado por

revoltas e movimentos que sustentaram no passado remoto ou recente as

demandas por uma justa distribuição agrária. Reivindicação tão justa que os

próprios militares, durante o governo Castelo Branco, introduziu o Estatuto da

Terra.53

Portanto, não fora a bandeira da reforma agrária radical que teria

despertado os militares para a quebra da legalidade. Havia entre eles um

sentimento de vivo interesse pelas concessões que reduzissem a influência dos

latifundiários nas zonas por eles dominadas. É evidente que receavam a presença

de lideranças comunistas a orientar alguns dos movimentos agrários, bem como

de lideranças comunistas à testa de alguns sindicatos importantes. Mas, a quebra

da disciplina e da hierarquia, tão ciosamente prezadas pela corporação viram-se

atingidas com a predisposição do presidente da República, João Goulart, de dar

apoio às reivindicações de subalternos, seja no caso dos marinheiros punidos e

imediatamente anistiados pelo presidente, quando do confronto com seus

superiores, seja na reunião dos sargentos e sub-tenentes em cuja sede

compareceu, poucos dias antes do desfecho do golpe. Nos dois casos, a atitude

de Jango irritou os mais indecisos e os fez trilhar o caminho golpista. Nada,

contudo, justifica um golpe, sobretudo quando esse golpe é feito contra os

53 Lei 4.504 assinada em 30 de Novembro de 1964;

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interesses nacionais e populares, como aconteceu com o regime que se instituiu

com a quebra da legalidade constitucional.

Tudo o que viria a acontecer no país depois de instaurado um sistema que

se estendeu por cerca de 20 anos foi conseqüência de uma decisão bem pensada.

As resistências foram pouco a pouco quebradas, e o dispositivo de segurança

com vistas a preservação dessa agressão à República e à democracia política,

demonstrou a razão de tanto empenho dos que se envolveram naquela trama. Não

foi um gesto de defesa da democracia como foi propalado à época. Tampouco

buscou conter um suposto continuísmo presidencial com apoio dos comunistas.

O proselitismo abundantemente usado pelos intérpretes golpista para justificar o

fato baseou-se no mais puro anticomunismo e no total desprezo pelo povo. Toda

a parafernália de atos institucionais e de medidas excepcionais foi praticada num

contexto adverso para as repúblicas e suas instituições, mormente na América

Latina, palco das mais sangrentas ações contrárias às massas populares.