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Otávio Augusto Reis de Sousa O vocábulo trabalho A linguagem é sem dúvida dotada de aspectos contraditórios. Se nos pos- sibilita uma esplendorosa vida em sociedade, enquanto elemento facilita- dor em necessárias relações com o semelhante, traz-nos na vida e no Direito enormes dificuldades ligadas na maioria das vezes às próprias relações entre os signos. Os diferentes usos que comportam os vocábulos na situação comu- nicativa 1 não podem ser ignorados em particular ao tratarmos de trabalho. Dissentem os autores acerca da etimologia do vocábulo trabalho, ora per- seguindo-a com base em tripalium, “instrumento de tortura, constituído de cavalete de pau (tres ‘três’ + palu ‘pau’)”(OLIVEIRA, 1994, p. 30), ora a partir do latim trabs, trabis, “viga de onde se originou em primeiro lugar um tipo trabare, que deu no castelhano trabar, etimologicamente, obstruir o caminho por meio de uma viga”, conforme lições do professor Evaristo de Moraes Filho (apud FERRARI, 1998, p. 13). E conclui que [...] a quase totalidade dessas hipóteses já se encontra ultrapassada. Merece ser fixada uni- camente a primeira, assim como admitida no século passado por poucos etimologistas. O mais credenciado é E. Littrê, que aponta trabs como a raiz originária, lembrando igualmen- te que trabalhar teve o sentido de viajar, sentido que se liga ao de pena, de fadiga. É dessa acepção que deriva o inglês to travel. A origem certa, porém, e neste sentido se inclina a maioria dos filólogos e linguistas, é das palavras tripalium e tripaliare. (MORAES FILHO apud FERRARI, 1998, p. 13-14) É certo que o vocábulo trabalho apresentou, desde o seu surgimento, um sentido de expiação, de castigo ou de fadiga. O homem, desde o começo dos tempos, teve de trabalhar, como forma de obter os meios necessários 1 Sobre o tema, ver as lições de Tércio Sampaio Ferraz Junior (apud SOUSA, 1999). Há que se ressaltar aqui não só a definição do vocábulo, mas, dentre os ângulos possíveis do estudo da linguagem, o prisma pragmático, ou seja, ao definir, o fazemos o mais das vezes buscando uma definição persuasiva. História do Direito do Trabalho no mundo

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Otávio Augusto Reis de Sousa

O vocábulo trabalhoA linguagem é sem dúvida dotada de aspectos contraditórios. Se nos pos-

sibilita uma esplendorosa vida em sociedade, enquanto elemento facilita-dor em necessárias relações com o semelhante, traz-nos na vida e no Direito enormes dificuldades ligadas na maioria das vezes às próprias relações entre os signos. Os diferentes usos que comportam os vocábulos na situação comu-nicativa1 não podem ser ignorados em particular ao tratarmos de trabalho.

Dissentem os autores acerca da etimologia do vocábulo trabalho, ora per-seguindo-a com base em tripalium, “instrumento de tortura, constituído de cavalete de pau (tres ‘três’ + palu ‘pau’)”(OLIVEIRA, 1994, p. 30), ora a partir do latim trabs, trabis, “viga de onde se originou em primeiro lugar um tipo trabare, que deu no castelhano trabar, etimologicamente, obstruir o caminho por meio de uma viga”, conforme lições do professor Evaristo de Moraes Filho (apud FERRARI, 1998, p. 13).

E conclui que

[...] a quase totalidade dessas hipóteses já se encontra ultrapassada. Merece ser fixada uni-camente a primeira, assim como admitida no século passado por poucos etimologistas. O mais credenciado é E. Littrê, que aponta trabs como a raiz originária, lembrando igualmen-te que trabalhar teve o sentido de viajar, sentido que se liga ao de pena, de fadiga. É dessa acepção que deriva o inglês to travel. A origem certa, porém, e neste sentido se inclina a maioria dos filólogos e linguistas, é das palavras tripalium e tripaliare. (MORAES FILHO apud FERRARI, 1998, p. 13-14)

É certo que o vocábulo trabalho apresentou, desde o seu surgimento, um sentido de expiação, de castigo ou de fadiga. O homem, desde o começo dos tempos, teve de trabalhar, como forma de obter os meios necessários

1 Sobre o tema, ver as lições de Tércio Sampaio Ferraz Junior (apud SOUSA, 1999). Há que se ressaltar aqui não só a definição do vocábulo, mas, dentre os ângulos possíveis do estudo da linguagem, o prisma pragmático, ou seja, ao definir, o fazemos o mais das vezes buscando uma definição persuasiva.

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à sua própria subsistência, o que de certa forma explica as acepções que tomou o vocábulo trabalho. Maria Helena Diniz (1998) referindo-se ao trabalho à luz da história do Direito, confirma tal percepção ao asseverar que “na Grécia antiga, era um castigo”.

Se focarmos o mesmo a partir das Sagradas Escrituras, veremos que o trabalho é visto de maneira quase antitética, não fosse o sentido religioso oculto: como castigo ao homem decaído e, ao mesmo tempo, valorizado como fonte de liber-tação e progresso. É o que se extrai da Bíblia Sagrada (GÊNESIS, 1993, 1:28): “[...] prolificai-vos e povoai a terra; submetei-a e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem sobre a terra”. E em outra passagem:

[...] porque deste ouvido à voz de tua mulher e comeste da árvore que eu havia proibido comer, a terra será maldita por tua causa; com trabalho penoso tirarás dela o alimento todos os dias de tua vida. Produzir-te-á abrolhos e espinhos e nutrir-se-á com as ervas do campo; comerás o pão com o suor da tua fronte. (GÊNESIS, 1993, 1:17-19)

Para a Igreja Católica, o trabalho é parte fundamental da existência humana, consoante se colhe das palavras do Sumo Pontífice João Paulo II (apud FERRARI, 1998, p. 25): “[...] a igreja vai encontrar logo nas primeiras páginas do Livro Gênesis a fonte dessa sua convicção, de que o trabalho constitui uma dimensão funda-mental da existência humana sobre a terra”. É o que se retira inclusive das encícli-cas papais desde a Rerum Novarum até a Laborem Exercens. Se o conceito religioso de trabalho foi decisivo ao longo da evolução do trabalho humano no sentido de sua valorização, decerto servirá para explicar muitas das dificuldades vivenciadas pela sociedade pós-industrial, como veremos posteriormente.

De Plácido e Silva (1987, p. 1.573) conceitua trabalho como “[...] todo esforço físico, ou mesmo intelectual, na intenção de realizar ou fazer qualquer coisa”. Po-deríamos adotar esse conceito enquanto gênero, para buscar dentro dele vários sentidos: religioso, econômico, jurídico, sociológico. Quanto ao aspecto econô-mico, o fenômeno trabalho afigura-se como toda atividade humana destinada à produção de um bem ou serviço, enquanto, sob a ótica do Direito do Trabalho, a ênfase se encontra sem dúvida alguma no trabalho subordinado (relação de emprego ou contrato individual de trabalho), em torno do qual gravita a grande maioria de seus institutos, com esparsas exceções.2

2 Se a tônica do Direito do Trabalho se encontra na subordinação, requisito essencial do contrato individual de trabalho, entendi-da esta como subordinação jurídica do empregado ao empregador, não ignora de todo o trabalho prestado sem esse elemento, como é exemplo a disposição do artigo 652, “a”, III, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

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Como se vê, há múltiplas conceituações de trabalho, dependendo do enfoque adotado. De todo modo, tal multiplicidade é indicativa da importância do trabalho para a sociedade. Este sempre foi, ao longo do tempo, “[...] forma de dominação: a dominação do homem sobre a natureza” (COSTA, 1998, p. 19). O ser humano, ao longo de sua existência, sempre se deparou com um problema que pouco diferia daquele vivido pelos demais animais – a luta pela sobrevivência –, e o trabalho foi, historicamente, a forma de assegurar a continuidade e perpetuação da espécie. Este é, em certa medida, o grande problema da economia: possibilitar os meios para que supra a sociedade suas necessidades prementes, absolutas.

As necessidades podem ser agrupadas em dois tipos: absolutas, sem o atendi-mento das quais ameaçada resta a própria existência, e relativas, no dizer de John Maynard Keynes3: “[...] que satisfazem o desejo de superioridade, podem de fato ser inesgotáveis, pois quanto mais alto for o nível geral, tanto maiores se tornam”. Ao longo do presente estudo, interessar-nos-emos pelas primeiras. Se pudermos imaginar a possibilidade de a sociedade prover suas necessidades absolutas sem o elemento trabalho4, verificar-se-á, então, que o trabalho não participa da natu-reza do ser humano, o que faria desmoronar toda uma ordem moral arraigada há séculos em nossa sociedade.

O trabalho é, em nossa sociedade, quase que uma instituição, e sua importân-cia bem poderia ser mensurada por um historiador que, no futuro, volvesse os olhos para este período da história, pelo simples fato de existirem nos dicionários inúmeros conceitos e locuções que o contemplam. Apenas De Plácido e Silva nos traz 37 locuções diversas que envolvem a palavra trabalho (DINIZ, 1998, p. 823-824). Por ora, ressalte-se que, se apenas em tese se admitir a solução do problema econômico, seremos forçados a reavaliar a importância do trabalho na nossa so-ciedade, do trabalho subordinado ou da relação de emprego, formas mais usuais de satisfação das necessidades urgentes do homem. Relembre-se ainda aqui Aristóteles (apud VIANNA et al., 1993, p. 28), “[...] a escravidão poderá desaparecer quando a laçadeira do tear se movimentar sozinha”.

3 Keynes (1883-1946) é, sem dúvida, um dos mais importantes nomes da economia em todos os tempos, e suas ideias e con-clusões serão em parte adotadas no presente trabalho, notadamente pela sua preocupação em determinar os fatores que regiam os níveis de emprego em uma economia industrial a partir do princípio da demanda efetiva.

4 Como elemento integrado à produção de bens ou serviços, cuja forma mais usual é o subordinado.

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Evolução histórica do trabalho humanoSe o trabalho, desde o início dos tempos, esteve associado à ideia de sofri-

mento e se era, ao mesmo tempo, essencial ao atendimento das necessidades absolutas do homem e da sociedade, durante muito tempo, na Antiguidade, con-sistiu na exploração forçada do homem pelo homem, pela escravidão, o modo de produção reinante. Dos conflitos das guerras, surge a escravidão. O vencedor que, inicialmente, privava o vencido da vida, passa agora a escravizá-lo, reduzi-lo à condição de coisa como forma de se apropriar de seu trabalho. Percebe, então, que vivo e escravizado o vencido apresenta maior utilidade, e surge assim a mais desprezível condição de exploração do homem já verificada na história da hu-manidade. Na expressão de Orlando Gomes (1995b, p. 110): “O trabalhador era propriedade viva de outro homem, sobre cujos ombros recaíam os encargos de produção de riqueza”.

Daí em diante, a escravidão se alastra quer pelas guerras, quer pelo nascimen-to, pois os que nasciam de pais escravos em geral preservavam tal condição. A praxe, disseminada durante a Antiguidade, teve em Roma e na Grécia ampla uti-lização, o que de certa forma apenas contribuiu para agregar ao trabalho uma conotação de desvalor infamante. Basta relembrar a classificação dos bens em Roma: instrumento vocal (escravo), instrumentos semivocais (bois, cavalos), ins-trumentos mudos (arado).

O escravo não se apresenta no mundo jurídico como titular de direitos, nem se lhe reconhece a possibilidade de contrair obrigações: não é sujeito de direito; é sim objeto de direito de outrem. A relação que se mantém não é outra senão de direito real entre o amo (dominus) e a coisa, o escravo (res). Não existe azo, por-tanto, nesse período, para se falar em Direito do Trabalho, pois o próprio modo de produção das sociedades da época era lastreado na escravidão, em que, como ficou dito, o que presta o trabalho escravo não é reconhecido como sujeito, mas como objeto de Direito, afasta tal possibilidade.

Era exíguo, na Grécia e em Roma, o trabalho prestado por homens livres. Não havia regulamentação que se assemelhasse, em seus contornos, à construção doutrinal do Direito Laboral5, sendo, ademais, de pouca importância na estrutura

5 Segundo Domenico De Masi (1999, p. 19-20): “Na cidade – onde se concentrava o ‘gado humano’ – os escravos se desincum-biam de grande parte do trabalho doméstico e de muitos serviços públicos. As casas mais ricas chegavam a ter até mil escra-vos; um ateniense médio tinha uma dezena; não ter nenhum escravo era sinal de extrema pobreza.” E prossegue mais adiante: “Quanto à Itália, calcula-se que, ao fim do século I a.C., os escravos somassem 2 milhões numa população total de 6 milhões. Nos tempos do império, entre 50 a.C. e 150 d.C., nos territórios romanos, os escravos somavam 10 milhões, numa população total de 50 milhões”.

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social o labor desenvolvido por esses homens livres. Daí por que não se nos afi-gura técnica qualquer referência ao Direito do Trabalho na Antiguidade, não obs-tante se reconheçam, mesmo em alguns Códigos de então, esparsas disposições sobre o trabalho humano.

Ainda assim, habitualmente, reportam-se os autores a um contrato de Direito Romano, a locatio conductio operarum, como antecedente remoto do contrato in-dividual de trabalho. Acerca do trabalho dos homens livres de então fala Orlando Gomes que

[...] o Direito Romano o regulou como fruto de um contrato denominado – locatio conductio. Era um contrato que se realizava quando “se prometia, por certa paga, uma coisa para fruir, um serviço para prestar, uma obra para fazer”. Esse contrato podia apresentar-se sob três modalida-des:

locatio rei � ;

locatio operarum � ;

locatio operis faciendi � .

E prossegue, esclarecendo que os dois últimos tinham por objeto o trabalho humano, sendo que “[...] na locatio operarum, ao contrário, o que se leva em conta é o serviço” (GOMES, 1995b, p. 110).

Mesmo no Código de Hamurabi pode ser abstraída alguma regulamentação do trabalho humano6, mas a larga utilização da mão-de-obra escrava obstava ao desenvolvimento do Direito do Trabalho.

A escravidão persiste na história do trabalho do homem, mesmo ao longo das demais fases, embora com âmbito cada vez mais restrito, chegando ao período contemporâneo e aos nossos dias. Até em nosso país, são por vezes noticiados relatos de sua prática. De todo modo, em um segundo momento, surge outro modo de produção, a servidão.

O servo, se cotejado com o escravo, apresenta um grau de liberdade supe-rior. Reconhece-se-lhe a titularidade de direitos, o caráter de pessoa, ainda que persista, em relação a este, uma série de limitações que o aproximam do regime da escravidão. Característica marcante da Idade Média, a servidão seria banida

6 Hamurabi (2067-2025 a.C.) foi o reunificador da Mesopotâmia e fundador do Primeiro Império Babilônico, tendo como maior realização a centralização jurídica através do célebre Código de Hamurabi (1994, p. 38). Nele, contempla dispositivos sobre tra-balho de médicos (art. 215 a 223), veterinários (art. 224 a 225), barbeiros (226 a 227), dentre outras categorias de trabalhadores, por exemplo, “Art. 228. Se um pedreiro edificou uma casa para um homem e lha terminou, ele dará como honorários para cada sar (medida agrária equivalente a 35 metros quadrados) de casa dois siclos de prata”.

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na França no período da Revolução; já na Rússia, persistiu quase até o século XX. Assim, ao servo se reconhecia a qualidade de pessoa, logo, titular de direitos e obrigações, sofrendo, entretanto, sérias restrições de deslocamento.

No regime de então, o Feudalismo, era a terra a grande produtora de riquezas e o servo a mão-de-obra a ser apropriada. Este era visto quase como uma “benfei-toria humana”, tanto que, caso desejasse deslocar-se do local onde habitava, ha-veria de requerer permissão ao seu senhor, bem como àqueloutro onde preten-dia se estabelecer. Demais disso, encontrava-se sujeito à pesada tributação pela utilização da terra, de toda sorte e gênero; “[...] até mesmo quando se casava uma jovem, para obter a licença do senhor da terra, havia que lhe pagar uma quantia (merchet)”. (VIANNA et al., 1993, p. 30). A condição de servo era hereditária, passa-va de pai para filho, e, se lhes era permitido ser proprietários de bens, o imposto de transmissão da herança solapava o patrimônio amealhado.

Completando o quadro, encontravam-se sujeitos ao poder político e militar do senhor, que os podia mobilizar para a guerra.

Com o reaparecimento das cidades, para as quais se torna crescente a migra-ção do homem, a servidão sofre um impacto. Surge uma nova forma de organi-zação do trabalho: as corporações de ofício. Fugindo das restrições derivadas da servidão, organizam-se os trabalhadores a partir da atividade que desempenham, como ainda aqui pontificam Segadas Vianna et al. (1993, p. 31) “[...] a identidade de profissão, como forma de aproximação entre homens, obrigava-os, para as-segurar direitos e prerrogativas, a se unir, e começaram a repontar, aqui e ali, as corporações de ofício ou ‘Associações de Artes e Misteres’”.

O trabalho de então não era livre, uma vez que somente se permitia o exercício da profissão aos que fizessem parte da corporação.

Gradativamente, com a regulamentação da aprendizagem e a organização hierárquica, sofreria a corporação de ofício sua forma mais usual. Nela se organi-zavam três níveis hierárquicos precisos: abaixo, os aprendizes, seguidos dos com-panheiros, todos submetidos ao mestre. A perspectiva que se apresentava aos aprendizes era a de que, aos poucos, fossem galgando degraus, até que, depois de terem aprovada uma obra-prima ou obra-mestra, passassem eles próprios ao topo da hierarquia. Descortinou-se, todavia, um quadro diverso, pois, de modo a preservar o mercado contra uma proliferação de corporações e consequente derrocada dos preços dos produtos, iniciou-se um aburguesamento das corpo-rações.

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Tamanhos eram os encargos e dificuldades para a elaboração da obra-prima que se estabeleceu, no seio da corporação, uma verdadeira estrutura de castas. Passando por um período em que se permeariam as corporações por ingerência do poder público, viriam a representar mais tarde, pela força que passaram a assumir, uma ameaça à nova ordem nascente, sendo extintas em 17 de junho de 1791 pela Lei Le Chapelier, que, preconizando a liberdade de trabalho, entendia--as como atentatórias aos direitos do homem e do cidadão. Tratava-se da primei-ra Revolução Industrial.

Nota sobre um instante relevante: primeira Revolução Tecnológica

Usualmente se reportam os autores à Revolução Industrial como precedente necessário ao surgimento do Direito do Trabalho. Antes de tratar especificamente desse fato, porém, cumpre ressaltar que ao longo da História distinguem-se três revoluções na tecnologia, albergáveis sob tal denominação e ligadas à modifica-ção das fontes de energia utilizadas na indústria.

Nesse sentido, há o magistério de Romita (1997, p. 16):

A observação dos fatos históricos que caracterizam a evolução do capitalismo permite discernir três revoluções industriais: 1.ª – fins do século XVIII, princípios do século XIX: proporcionada pela produção de motores a vapor por meio de máquinas; 2.ª – fins do século XIX, princípios do século XX: desenvolvimento e aplicação do motor elétrico e do motor à explosão; 3.ª – a partir da Segunda Guerra Mundial (1940 nos Estados Unidos e 1945 nos demais países): automação por meio de aparelhos eletrônicos. Observa-se sempre a apropriação de fontes energéticas dis-tintas, que ditam as transformações nos meios de produção, as quais por seu turno vão gerar mudanças na organização do trabalho, com as consequências sociais conhecidas. Na primeira revolução industrial, o vapor d’água; na segunda, a eletricidade e o petróleo; na terceira, a ele-trônica e a energia atômica.

Sinteticamente, poderíamos conceituar a Revolução Industrial (primeira Re-volução Tecnológica) como um processo de mecanização em inúmeros setores produtivos, gerando uma substituição da força muscular humana e animal.

David S. Landes, conceituado historiador, citado por De Masi, conceitua a Re-volução Industrial como “[...] complexo de inovações tecnológicas que, substituin-do a habilidade humana por máquinas e o esforço físico de homens e animais por energia inanimada, possibilitaram a passagem do artesanato à manufatura, criando assim uma economia moderna” (1999, p. 39-40).

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Um agrupamento de fatores propiciou a eclosão da Revolução Industrial, dos quais três foram determinantes: o acúmulo de capitais oriundo do mercantilismo; a farta mão-de-obra existente nas cidades, por força do processo migratório, uma vez que vislumbravam os trabalhadores nas cidades melhores condições de vida; as inovações tecnológicas como a máquina a vapor7, a máquina de fiar (1738), o tear mecânico (1784).

É necessário acrescentar que, ao lado das inovações tecnológicas, surgiriam, mais tarde, importantes inovações organizacionais a partir das ideias de Frederick Taylor e de sua concepção de organização científica do trabalho.8

Da conjunção dos três fatores supra indicados surge o fenômeno conheci-do como primeira Revolução Industrial, bem sintetizado nas precisas palavras de Arion Sayão Romita (1997, p. 17): “[...] apesar da diversidade de datas, as suas características e efeitos são basicamente os mesmos, em toda a parte. Ela está sempre relacionada com o crescimento da população, com a aplicação da ciência à indústria e com o uso do capital de forma mais intensa e mais extensa”.

A primeira Revolução Industrial e os efeitos sociais por ela gerados, associados aos valores vigentes naquele período histórico, serão decisivos para o surgimento do Direito do Trabalho, pois serão a fonte material9 de toda uma construção jurídi-ca engendrada para muitos, com uma finalidade específica: proteger o proletaria-do de então da situação abjeta e desumana vivenciada pelos trabalhadores.10

7 Noticia Amauri Mascaro Nascimento (1996, p. 5) que “[...] a primeira máquina a vapor saiu das fábricas de Soho, em 1775, destinando-se a uma mina de carvão. Depois, outra máquina foi feita para mover altos-fornos, em Broseley. Assim, a produção mecânica do movimento punha-se em substituição à produção hidráulica. As suas aplicações subsequentes foram muitas, servindo para o abastecimento de águas de Paris, para as empresas industriais da Inglaterra, para as atividades dos moinhos, para a indústria cerâmica e, também, para a indústria de tecelagem. Na Inglaterra, em 1800, podiam-se contar 11 máquinas a vapor em Birmignham, 20 em Leeds e 32 em Manchester”.

8 A aplicação mais efetiva à produção do conhecimento científico foi determinante na otimização da produtividade. Segundo De Masi (1999, p. 43), “[...] graças à introdução de seus princípios de organização em um departamento em Midvale, onde se tornea-vam aros de aço, a produção aumentou no mínimo em 33% com os mesmos operários e as mesmas máquinas. Em outra fábrica, a Sysmonds Rolling Machine, onde se produziam rolamentos para bicicletas, para efeitos de organização científica 35 moças conseguiram dar conta de um volume de trabalho para o qual antes eram necessárias 120. Seu salário foi dobrado, a jornada de trabalho reduzida de dez para oito horas e meia, e as perdas da produção diminuíram em 58%”.

9 O conceito de fonte material pode ser apreendido a partir das lições de Maria Helena Diniz (1996, p. 573-574): “Fonte mate-rial ou real que aponta a origem do direito, configurando sua gênese, condicionando seu desenvolvimento e determinando o conteúdo das normas. Fontes materiais ou reais são não só os fatores sociais, que abrangem os históricos, os religiosos, os naturais (clima, solo, raça, natureza geográfica do território e constituição anatômica e psicológica do homem), os demográ-ficos, os higiênicos, os políticos, os econômicos e os morais (honestidade, decoro, decência, fidelidade, respeito ao próximo), mas também os valores de cada época (ordem, segurança, paz social, justiça), dos quais fluem as normas jurídico-positivas”. [...] “Tais fatores decorrem das convicções, das ideologias e das necessidades de cada povo, em certa época. Atuam como fontes de produção do direito positivo, pois condicionam o aparecimento e as transformações das normas jurídicas. As fontes materiais, portanto, não são o direito positivo, mas o conjunto de fatos sociais determinantes do conteúdo do direito e dos valores que o direito procura realizar fundamentalmente sintetizados no conceito amplo de justiça”.

10 A proteção consiste em técnica ou quando muito função secundária do Direito do Trabalho.

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Surgimento do Direito do TrabalhoA Revolução Industrial causou profundas repercussões na vida econômica e

social. Se o grande contingente de mão-de-obra foi um dos fatores de eclosão da Revolução Industrial, como frisamos alhures, a substituição do homem pela máquina era a constante que desequilibrava. A máquina, ao mesmo tempo em que impulsionava a produção, gerava desemprego. À medida que crescia a me-canização, menor era a demanda por trabalhadores, já que uma única máquina era capaz de substituir dez, cem ou mil trabalhadores, com vantagens evidentes, pois não se fatigava ou necessitava de repouso. Se tal fato por si só refletia nos custos de produção, uma segunda perversa equação tomava forma. Vigorava no plano das ideias o liberalismo. O indivíduo era a pedra de toque, livre sob todas as formas, liberdade política, liberdade econômica e, o que mais de perto nos interessa, liberdade para contratar. O ideário poderia ser resumido no célebre “laissez-faire, laissez-passer”. A burguesia nascente buscava assegurar-se em face do Estado antes despótico, e o fazia na medida em que teorizava seu afastamento da economia e limitava sua ação à de mero garantidor das liberdades individuais. Disso nos fala Mascaro Nascimento (1996, p. 18):

No plano político, o individualismo se reveste de características predominantes de tutela dos direitos civis; na esfera econômica parte do pressuposto coerente da existência de uma ordem econômica natural e que se forma espontaneamente, independendo da atuação do Estado, que, assim, deve omitir-se, deixar fazer.

Quanto ao trabalho, era reconhecido como livre, sendo qualquer restrição atentatória aos direitos do homem e do cidadão, tanto assim que foram abolidas as corporações de ofício. Na esfera do Direito, o ideário liberal ecoara reforçando a ideia do Direito Civil de igualdade das partes. As partes empregado e empregador poderiam, então, contratar da forma que melhor lhes aprouvesse. Eis a sutileza da construção: qualquer interferência do Estado se afigurava como ilegítima e viola-dora das liberdades individuais.

O contingente crescente de mão-de-obra; a diminuição da demanda das in-dústrias por trabalhadores, em face do progressivo aumento da mecanização e substituição do homem pela máquina; o ideário liberal que pregava a não-inter-venção do Estado nas relações da economia, e muito menos nos contratos, de-terminaram a incidência da única lei conhecida pelo mercado: a da oferta e da procura. À medida que aumentava a demanda por trabalho e diminuía sua oferta, a tarifa paga (salário) decaía de forma vertiginosa.

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A completar o quadro, era usual a utilização das chamadas “meias-forças”, ou seja, trabalho do menor, trabalho da mulher, cuja remuneração era ainda inferior a do trabalhador maior, do sexo masculino. A consequência foi o aviltamento das condições de trabalho.

As novas fábricas eram ambientes inóspitos, com pouca ou nenhuma ventila-ção; as jornadas de trabalho eram de sol a sol, sem quaisquer interrupções anuais ou semanais, e com escassos intervalos intrajornada; acidentes de trabalho eram frequentes, não existindo qualquer aparato de proteção aos acidentados; os pata-mares salariais caíam dia a dia e a sociedade bipartia-se em duas classes antagô-nicas: burguesia e proletariado.

Segadas Vianna et al. (1993, p. 35) traça com precisão o quadro existente:

No seu supermundo, em monopólio absoluto, os ricos avocavam para si todos os favores e todas as benesses da civilização e da cultura: a opulência e as comodidades dos palácios, a fartura transbordante das ucharias, as galas e os encantos da sociabilidade e do mundanismo, as hon-rarias e os ouropéis das magistraturas do Estado. Em suma: a saúde, o repouso, a tranquilidade, a paz, o triunfo, a segurança do futuro para si e para os seus.

No seu inframundo repululava a população operária: era toda uma ralé fatigada, sórdida, andra-josa, esgotada pelo trabalho e pela subalimentação; inteiramente afastada das magistraturas do Estado; vivendo em mansardas escuras, carecida dos recursos mais elementares de higiene individual e coletiva; oprimida pela deficiência dos salários; angustiada pela instabilidade do emprego; atormentada pela insegurança do futuro, próprio e da prole; estropiada pelos aciden-tes sem reparação; abatida pela miséria sem socorro; torturada na desesperança da invalidez e da velhice sem pão, sem abrigo, sem amparo.

A igualdade formal tinha-se revelado uma abstração e lançado a sociedade em uma odisséia autodestrutiva. A miséria fez surgir nos trabalhadores a consciência de classe, a clareza de que a situação vivenciada individualmente era comum aos demais, manifestando-se a tendência ao associativismo.

Surgem então as primeiras revoltas, as quais se dirigiam quase que de maneira inocente contra o que parecia aos trabalhadores o causador da miséria em que viviam: as máquinas. A solução pensada era a destruição destas, e com isso retor-nariam os empregos e viria a melhoria da sua condição social: eram os ludistas. Com formas diversas, as crescentes revoltas desestruturavam a produção, atin-giam em cheio o lucro e chamavam a atenção do antes impassível Estado.

Conspurcada a paz das relações de produção, viu-se o Estado forçado a inter-vir, e o fez invocando o poder de polícia, uma vez que persistia atado às ideias liberais. As greves eram violentamente reprimidas e proibidas as associações de

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todos os gêneros, inclusive as de trabalhadores, elevada a proibição a tipo penal.11 A situação de fato, ainda assim, pouco se alterou.

A situação aterradora do proletariado não passou de todo despercebida à bur-guesia: existiram vozes que se levantavam, a exemplo do industrial inglês Robert Owen. Mas as primeiras normas do Direito do Trabalho surgiriam mesmo de forma autônoma, por concessão dos empregadores, que, desejosos de restaurar a paz no ambiente de produção, por vezes concederam algumas das reivindica-ções dos trabalhadores. Apenas em momento posterior o Estado se vê guindado a regulamentar as relações de trabalho; verifica-se aí o chamado movimento as-cendente.12

Impendia uma revisão das ideias liberais, para as quais influíram vários aspec-tos. A doutrina social da Igreja exerceu papel determinante no surgimento do Direito do Trabalho. A visão de solidariedade e sentimento cristão para com os trabalhadores, justiça social, todas reveladas nas Encíclicas Papais desde a Rerum Novarum, serão determinantes para justificar uma nova postura por parte do Estado.

O Manifesto Comunista (1848) irá suscitar, nos trabalhadores, um novo ânimo pela luta e, na burguesia, a revisão da postura diante da questão social, mormente a partir dos Congressos da Internacional Socialista e da Revolução Comunista na Rússia (1917).

Do mesmo modo, será decisiva a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

O esforço bélico trazia a necessidade de paz na produção, sob pena de naufra-gar o Estado beligerante. Surge um novo Estado, disposto a intervir no domínio econômico e no âmbito contratual. Reconhece-se agora que se as partes (empre-gado e empregador) são no plano formal iguais, materialmente são diferentes. Percebe-se, para citar Lacordaire (apud VIANNA et al., 1993, p. 37), que “[...] entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, é a liberdade que escraviza, é a lei que liberta”.

11 É o que se verifica na Lei contra a Conjura (1799/1800), em que o sindicalismo é tido como movimento criminoso.

12 Reconhece Segadas Vianna et al. (1993, p. 55-56) que, em quase todo o mundo, as normas em Direito do Trabalho tiveram tal origem, e assim se reporta: “Os movimentos ascendentes, que deram origem às legislações trabalhistas do México, Inglaterra e França, caracterizavam-se pela sua coexistência com uma história social marcada pela luta de classes, com trabalhadores for-temente apoiados por suas organizações profissionais, com o espírito de classe bem nítido e com a existência de indústrias ou atividades produtivas arregimentando grandes massas de trabalhadores”.

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Direito Individual do Trabalho I

Aliás, esta é de igual sorte a percepção de Rivero-Savatier, reportando-se à França e também à clássica fórmula de Lacordaire (RIVERO-SAVATIER, 1993, p. 51):

La première loi sociale date du 22 mars 1841: elle interdit le travail des enfants de moins de 08 ans! Mais c’est un poin de départ: à partir de ce moment, lois el règlements, à um rythme qui ira en s’accélerant, vont intervenir dans le relations de travail, et limiter des parties, c’est-à-dire en fait l’ ar-bitraire patronal. C’est la période de’la loi qui afrranchit, par oposition à la “liberté qui oprime”, selon la formule de Lacordaire.

A fórmula encontrada se aparta em absoluto dos princípios do Direito Civil da época. Reconhece o Estado que as partes na relação de trabalho são desiguais economicamente: de um lado se encontra a opulência do empregador e de outro, a hipossuficiência do empregado. A forma de igualar desiguais é desigualando; cria-se, então, uma outra desigualdade, igual e em sentido inverso, agora jurídica, como forma de restabelecer a igualdade substancial entre empregado e empre-gador.

Busca-se compensar a inferioridade econômica do empregado outorgando--lhe superioridade jurídica. Surge o princípio da proteção, o Direito do Trabalho e o Estado do bem-estar, Welfare State. Quebra-se com o princípio da igualdade, alicerce do Direito Civil, fazendo-se surgir uma nova disciplina jurídica, que dele se aparta, qual seja, o Direito do Trabalho. O Estado passa a intervir ativamente nas relações de trabalho, editando normas sobre os seus vários aspectos: salário mínimo, jornada de trabalho, higiene e segurança no trabalho, entre outros. Fala--se em dirigismo contratual e se debate os autores em adaptar a nova realidade ao arcabouço jurídico conhecido.

Apreendendo e sintetizando em boa medida as mudanças, assim se expressa Orlando Teixeira da Costa (1998, p. 23):

Com isso, estabeleceu-se um modus vivendi amparado por um preceito ético, por uma preo-cupação e por uma técnica. Preceito ético: a melhoria das condições de vida do trabalhador. Preocupação: a proteção jurídica daqueles que se apresentavam numa posição extremamente desvantajosa no contexto de uma relação. Técnica: a superação relativa da inferioridade eco-nômica do trabalhador, ante a superioridade econômica do patrão, por meio de uma forma de compensação jurídica, que acabou por esboçar a função essencial do Direito do Trabalho nascente.

A partir do término da Primeira Guerra Mundial, pronuncia-se tendência à in-ternacionalização do Direito do Trabalho, sendo relevante o Tratado de Versalhes, que institui a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e sedimenta os princí-pios básicos do Direito Laboral.

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Usualmente se dividem em quatro as fases pelas quais passou o Direito do Trabalho no mundo, ao longo de sua evolução, com referência necessária à obra de Granizo-Rothvoss (apud OLIVEIRA, 1994, p. 70; MARANHÃO, 1993, p. 18-20): a primeira até 1848 (formação); de 1848 a 1890 (intensificação); de 1890 a 1919 (consolidação) e de 1919 até os dias de hoje (autonomia).

Ao longo da primeira fase, surgem, fruto da preocupação do Estado com a questão social, as primeiras normas do Direito do Trabalho. Destaca-se a Moral and Health Act, de 1802, também conhecida como Lei de Peel, e que teve o berço exatamente na Inglaterra, a qual tomara a dianteira na Revolução Industrial. A Lei de Peel proibia o trabalho noturno dos menores e limitava a jornada a 12 horas por dia. A França, em 1841, por meio da primeira lei social daquele país, já refe-rida acima, proíbe o trabalho aos menores de oito anos. Iniciativas semelhantes seriam adotadas em 1839 na Alemanha e, em 1843, na Itália.

As primeiras leis a disciplinar matéria relativa ao Direito do Trabalho tiveram duas preocupações básicas: restringir a utilização do trabalho do menor, fixan-do idade para ingresso no mercado de trabalho, e estabelecer um limite máximo para a duração do trabalho, quer diária (jornada), quer semanal ou anual. A pro-dução legislativa nesse período era tímida e “inorgânica”.

Em 1848, inicia-se a segunda fase da evolução do Direito do Trabalho, com a publicação do Manifesto Comunista. As agitações das massas operárias que se seguiram na Europa conduzem a uma intensificação do processo legislativo. Bus-ca-se normatizar o Direito do Trabalho como forma mesmo de sustentar o modo de produção capitalista, revelando aqui a face histórica oculta deste ramo do Direito, qual seja, a de mediar a relação entre capital e trabalho e com isso possi-bilitar uma exploração autossustentável do trabalho pelo capital, arrefecendo o espírito de luta da classe operária.

Data dessa época a primeira Lei de Seguro Social, de 1883, na França. Em 1884, consagra-se a liberdade de associação e é reduzida a jornada de trabalho para 10 horas. Em 1890, desponta a Encíclica Rerum Novarum, manifestando ao mundo a preocupação da Igreja com a questão social e preconizando a aplicação dos pre-ceitos cristãos à relação capital-trabalho.

Já existe, então, um corpo relativamente vasto de leis acerca de Direito do Tra-balho. Inicia-se a reunião das normas existentes, entre as quais já se vislumbra o seu traço sistemático. Cria-se em 1890, na Alemanha, uma estrutura judiciária

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Direito Individual do Trabalho I

para o julgamento de dissídios trabalhistas, e, em 1917, pela primeira vez na his-tória, passa o trabalho a ser matéria constitucional, sendo incorporado ao texto da Constituição mexicana.

Em 1919, o Tratado de Versalhes cria a OIT e sedimenta os princípios univer-sais do Direito do Trabalho. Com a Constituição de Weimar (1919), alastra-se a constitucionalização do Direito do Trabalho. A partir de então, desponta o Direito Laboral como disciplina jurídica autônoma, composta por um corpo de princí-pios peculiares e dotada de institutos próprios irredutíveis às fórmulas clássicas de outros ramos do Direito. Reconhece-se que o trabalho, indissociável de quem o presta, deve ser garantido como forma mesmo de se atingir a dignidade da pessoa humana, não comportando nessa medida tratamento como simples meio de troca ou como mercadoria.

A evolução do Direito Laboral, porém, não cessou. Poderíamos mesmo discer-nir uma quinta fase do Direito do Trabalho, a da flexibilização ou adaptabilidade, a principiar com a revolução tecnológica (terceira Revolução Industrial) e a quebra da relação entre o incremento da produção/criação de postos de trabalho. Com a crise do petróleo (1970) e com a hegemonia de uma única nação sobre as demais (notadamente a partir da queda do muro de Berlim, em 1990), podemos hoje pensar em uma revisão dos princípios clássicos, uma ruptura com a forma original de proteção: a proliferação dos contratos por tempo determinado; a retificação do contrato de trabalho; a flexibilização do Direito Laboral; sua desconstituciona-lização parcial e re-regulamentação; enfim, há uma profunda e completa revisão dogmática a se refletir em ideias como a do nominado Direito do Trabalho de Crise13 (NASCIMENTO, 1998, p. 39).

13 Preferimos, todavia, augurando maior precisão terminológica, utilizar o termo flexibilização ou quando muito adaptabili-dade.

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Ampliando seus conhecimentosA Terceira Via, de Anthony Giddens, editora Record.

História do Trabalho, do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho, de Amauri Mascaro Nascimento, Irany Ferrari e Ives Gandra da Silva Martins Filho, editora LTr.

Nova Teoria Geral do Direito do Trabalho, de Otávio Augusto Reis de Sousa, edi-tora LTr.

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