História Medieval - UNIASSELVI

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2013 HISTÓRIA MEDIEVAL Prof. Fabiano Dauwe Prof. Thiago Juliano Sayão Prof. Itamar Siebert

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2013

História Medieval

Prof. Fabiano DauweProf. Thiago Juliano SayãoProf. Itamar Siebert

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Copyright © UNIASSELVI 2013

Elaboração:

Prof. Fabiano Dauwe

Prof. Thiago Juliano Sayão

Prof. Itamar Siebert

Revisão, Diagramação e Produção:

Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri

UNIASSELVI – Indaial.

930 D244h Dauwe, Fabiano História medieval / Fabiano Dauwe; Thiago Juliano Sayão; Itamar Siebert. Indaial : Uniasselvi, 2013. 284 p. : il

ISBN 978-85-7830- 717-2

1. História do mundo antigo. 2. História medieval. I. Centro Universitário Leonardo da Vinci.

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apresentação

Prezado(a) acadêmico(a)!

Nesta disciplina, vamos estudar a Idade Média. É um período histórico fascinante, que nos “transporta” facilmente a um mundo fantástico, repleto de guerreiros bárbaros, servos feudais, cavaleiros em armaduras, cruzados e sarracenos. Esse parece ser um mundo tão distante do nosso e, ao mesmo tempo, tão familiar que mexe profundamente com a nossa imaginação, como comprova a enorme quantidade de livros, seriados, contos de fadas e filmes que existem sobre a Idade Média; para completar, o período parece (especialmente há alguns anos) “estar na moda”.

O objetivo deste Caderno de Estudos, além de transmitir a você alguns conhecimentos sobre os acontecimentos que são tradicionalmente estudados nesse período - e que realmente são importantes -, é quebrar em parte a visão tradicional e limitada sobre esse período de mil anos. Ao contrário do que acredita o senso comum, a Idade Média foi um período repleto de inovações tecnológicas, mudanças sociais, econômicas e demográficas profundas e constantes, intensas trocas culturais e uma economia comercial fortemente globalizada, em que a cultura letrada foi preservada e, em determinadas partes do mundo, floresceu como nunca havia acontecido antes.

Se toda essa imagem nova parece estranha, considerando o que sabemos sobre a Idade Média na Europa, isso ficará claro quando observarmos esse período a partir de uma perspectiva diferente. Não apenas vamos repensar o que ocorreu na própria Europa (e como isso ocorreu), mas também veremos a história de outras regiões muito mais dinâmicas, naquela época, do que a sociedade agrária, fechada e beligerante que surgiu com o fim do Império Romano do Ocidente. Há muito mais na Idade Média do que a Europa, e desfazer essa imagem eurocêntrica é fundamental para entendermos não apenas o período que desejamos estudar como o próprio período histórico em que vivemos. Hoje, não é mais possível olharmos para o mundo simplesmente a partir de um predomínio dos países tradicionalmente poderosos: o mundo está fragmentado demais, geopoliticamente falando, para que isso seja suficiente.

O caderno que você tem em mãos é uma reformulação da edição original. Nesta versão, algumas discussões foram ampliadas, outras foram inseridas. A estrutura do caderno foi ligeiramente alterada, mas manteve-se uma organização baseada, na medida do possível, em critérios cronológicos.

A primeira unidade deste caderno trata dos primórdios da Idade Média; inicialmente, uma discussão teórica e historiográfica sobre o seu significado, seguida dos eventos fundantes desse período: a queda do Império

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Romano, a política e a religião nos primeiros séculos, tanto na Europa quanto no novo mundo muçulmano.

A segunda unidade concentra-se nas grandes civilizações da época e suas realizações: Império Romano do Oriente (Bizantino), mundo islâmico e Europa feudal.

A terceira unidade trata dos eventos que transformaram a sociedade feudal e deram origem ao mundo moderno que será objeto de estudos futuros: as Cruzadas, o avanço mongólico e a chamada Baixa Idade Média.

A intenção deste caderno não é esgotar o tema, mas dar a você uma visão muito resumida do que um professor de História precisa saber para ensinar Idade Média aos seus alunos em sala de aula.

Alguns dos temas aqui abordados talvez não estejam no currículo tradicional das escolas. No entanto, é fundamental que você tenha em mente, o tempo todo, que, se deseja ser um bom professor, terá que conhecer muito bem o assunto que ensinará, o que significa, no mínimo, conhecer mais do que o material que utilizará em sala de aula. Este caderno não pode, nem pretende apresentar tudo: em vez disso, o objetivo é trazer uma visão diferente sobre aquela história contada, para que você possa observar os livros de História com um olhar mais crítico.

Portanto, não cometa o erro de ler pouco sobre algum tema ou de achar que algumas páginas (ou alguns tópicos resumidos) dirão tudo o que você precisa saber sobre um assunto.

Não pare e tenha sempre em mente as razões que levaram você a desejar saber o suficiente sobre isso para ser capaz de ensinar outras pessoas.

Bons estudos!

Fabiano DauweThiago Juliano SayãoItamar Siebert

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UNI

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano,

há novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos!

Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos!

UNI

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UNIDADE 1 - AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA ........................................................................... 1

TÓPICO 1 - INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA ................................. 31 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 32 SOBRE O CONCEITO DE IDADE MÉDIA ................................................................................... 4 2.1 A IDADE MÉDIA E O SENSO COMUM .................................................................................... 4 2.2 OS SIGNIFICADOS DA IDADE MÉDIA .................................................................................... 6 2.2.1 Imaginando ................................................................................................................................ 6 2.2.2 O problema em julgar o passado ............................................................................................ 6 2.2.3 Evitando o anacronismo .......................................................................................................... 7 2.2.4 O conceito de “idade média” é anacrônico! .......................................................................... 83 O CONCEITO DE IDADE MÉDIA APÓS O RENASCIMENTO .............................................. 9 3.1 NA REFORMA RELIGIOSA ......................................................................................................... 9 3.2 NO ILUMINISMO .......................................................................................................................... 9 3.3 O ROMANTISMO E A IDADE MÉDIA ..................................................................................... 10 3.4 A PERSPECTIVA LIBERAL ........................................................................................................... 11 3.5 A PERSPECTIVA MARXISTA ....................................................................................................... 124 CONCEITOS MODERNOS ............................................................................................................... 125 FAZ SENTIDO FALAR EM “UMA” IDADE MÉDIA? ................................................................. 13LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 15RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 17AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 18

TÓPICO 2 - A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA .............................................................. 191 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 192 TEORIAS SOBRE O INÍCIO DA IDADE MÉDIA ....................................................................... 20 2.1 A IDADE MÉDIA E A QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO ....................................................... 20 2.1.1 Os contemporâneos: Vegécio e Salviano ............................................................................... 20 2.1.2 Uma visão Iluminista: Gibbon e a “decadência moral” ...................................................... 21 2.1.3 Os grandes sistemas civilizadores: Toynbee ......................................................................... 22 2.2 A TEORIA DOS MÚLTIPLOS FATORES .................................................................................... 22 2.3 TEORIAS DO COLAPSO AMBIENTAL ...................................................................................... 24 2.4 TEORIAS DA TRANSFORMAÇÃO ............................................................................................ 253 TEORIAS SOBRE O FINAL DA IDADE MÉDIA ......................................................................... 27 3.1 A TEORIA CLÁSSICA ................................................................................................................... 27 3.2 A EXPLICAÇÃO A PARTIR DAS PERIODIZAÇÕES ............................................................... 28 3.3 JACQUES LE GOFF E A “LONGUÍSSIMA IDADE MÉDIA” .................................................. 29 3.4 QUAL PERIODIZAÇÃO ADOTAR? .......................................................................................... 30LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 31RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 34AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 35

TÓPICO 3 - ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA ....................................................... 371 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 37

suMário

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2 O AUGE E A DECADÊNCIA DO IMPÉRIO ROMANO ............................................................. 37 2.1 POR QUE A DECADÊNCIA? ....................................................................................................... 39 2.1.1 O fim das conquistas militares ................................................................................................ 39 2.1.2 A crise do século III .................................................................................................................. 40 2.2 OS REFORMADORES: DIOCLECIANO E CONSTANTINO .................................................. 43 2.3 AS ORIGENS REMOTAS DO FEUDALISMO ............................................................................ 453 OS BÁRBAROS NO IMPÉRIO DO OCIDENTE .......................................................................... 47 3.1 OS HUNOS ...................................................................................................................................... 48 3.2 A QUEDA DE ROMA .................................................................................................................... 50LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 51RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 54AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 55

TÓPICO 4 - O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA ............................................................ 571 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 572 OS REINOS BÁRBAROS ................................................................................................................... 573 O REINO FRANCO ............................................................................................................................. 60 3.1 O REINADO DE CARLOS MAGNO ........................................................................................... 62 3.1.1 O Renascimento Carolíngio ..................................................................................................... 63 3.1.2 A divisão do Império ................................................................................................................ 63 3.2 NOVOS INVASORES ..................................................................................................................... 644 A IGREJA NA ALTA IDADE MÉDIA ............................................................................................. 65 4.1 SANTO AGOSTINHO .................................................................................................................. 65 4.2 O ARIANISMO ............................................................................................................................... 66 4.3 OS BÁRBAROS E A IGREJA ......................................................................................................... 67 4.4 A REGRA DE SÃO BENTO ........................................................................................................... 68LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 70RESUMO DO TÓPICO 4 ....................................................................................................................... 73AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 74

TÓPICO 5 - AS ORIGENS DO ISLAMISMO ................................................................................... 751 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 752 UMA NOVA FÉ: O ISLAMISMO ..................................................................................................... 76 2.1 OS PRIMÓRDIOS: A ARÁBIA DO SÉCULO VII ....................................................................... 77 2.2 MAOMÉ E A CRIAÇÃO DO ISLAMISMO ................................................................................ 78 2.3 MORTE E SUCESSÃO DE MAOMÉ ............................................................................................ 793 OS PRINCÍPIOS BÁSICOS DO ISLAMISMO ............................................................................. 80 3.1 OS CINCO PILARES DO ISLÃ ..................................................................................................... 82 3.2 O ALCORÃO ................................................................................................................................... 83 3.3 O DIREITO ISLÂMICO: OS HADITHS, AS SUNAS E A SHARIA ......................................... 85 3.3.1 As escolas de interpretação da lei ........................................................................................... 86 3.4 O MODELO DE CONDUTA DO PROFETA .............................................................................. 87 3.5 O MISTICISMO ISLÂMICO: O SUFISMO .................................................................................. 87LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 89RESUMO DO TÓPICO 5 ....................................................................................................................... 92AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 93

UNIDADE 2 - O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS ............................................... 95

TÓPICO 1 - A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL ........................................... 971 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 972 AS ORIGENS DO IMPÉRIO ROMANO DO ORIENTE ............................................................. 98 2.1 A QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO NA PERSPECTIVA ORIENTAL .................................. 98

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2.2 A PERIODIZAÇÃO DA HISTÓRIA BIZANTINA .................................................................... 99 2.3 O REINADO DE JUSTINIANO .................................................................................................... 100 2.3.1 A revolta de Nika ...................................................................................................................... 101 2.3.2 As reformas de Justiniano ........................................................................................................ 102 2.4 A TRANSFORMAÇÃO DO IMPÉRIO ........................................................................................ 103 2.5 AS PERDAS BIZANTINAS NA ÁFRICA .................................................................................... 1043 CONSTANTINOPLA .......................................................................................................................... 105 3.1 A CIDADE ........................................................................................................................................ 107 3.2 MÉSIA, A PRINCIPAL AVENIDA DE CONSTANTINOPLA ................................................. 108 3.3 O HIPÓDROMO ............................................................................................................................. 111LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 113RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 115AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 116

TÓPICO 2 - RELIGIÃO E OPULÊNCIA NO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL ...................... 1171 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 1172 AS CONTROVÉRSIAS RELIGIOSAS BIZANTINAS ................................................................. 117 2.1 O NESTORIANISMO ..................................................................................................................... 117 2.2 A ICONOCLASTIA ........................................................................................................................ 118 2.2.1 A justificativa teológica do conflito ........................................................................................ 119 2.2.2 As motivações sociais do conflito ........................................................................................... 121 2.3 O GRANDE CISMA ....................................................................................................................... 1223 O AUGE DO IMPÉRIO DO ORIENTE: A DINASTIA MACEDÔNICA ................................. 125 3.1 A CRISTIANIZAÇÃO DA RÚSSIA ............................................................................................. 1264 A DECADÊNCIA ................................................................................................................................. 128 4.1 MOTIVOS ECONÔMICOS E POLÍTICOS DO DECLÍNIO DE CONSTANTINOPLA ..................................................................................................................... 128LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 132RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 135AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 136

TÓPICO 3 - A EXPANSÃO MUÇULMANA E A “ERA DE OURO” DO ISLAMISMO ..................................................................................................................... 1371 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 1372 O AVANÇO MUÇULMANO ............................................................................................................. 137 2.1 O CALIFADO RASHIDUN ........................................................................................................... 139 2.2 O CALIFADO OMÍADA ................................................................................................................ 140 2.3 O CALIFADO ABÁSSIDA ............................................................................................................. 142 2.4 A PAX ISLAMICA E A QUEBRA DA UNIDADE ...................................................................... 1433 MAIS POVOS SE UNEM AO ISLÃ ................................................................................................. 144 3.1 A CONQUISTA DO MAGREBE E DE AL- ANDALUS ............................................................ 144 3.2 OS TURCOS E OS MONGÓIS ...................................................................................................... 146 3.3 A AMPLITUDE DOS DOMÍNIOS MUÇULMANOS: DA ÁFRICA À CHINA .................... 1474 A CULTURA MUÇULMANA ............................................................................................................ 148 4.1 AS ARTES ........................................................................................................................................ 148 4.1.1 Os arabescos .............................................................................................................................. 148 4.1.2 A caligrafia ................................................................................................................................. 149 4.1.3 A arquitetura ............................................................................................................................. 150 4.1.4 Literatura .................................................................................................................................... 151 4.1.5 Outras artes ................................................................................................................................ 152 4.2 A FILOSOFIA E AS CIÊNCIAS ..................................................................................................... 152 4.2.1 A Educação ................................................................................................................................ 152

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4.2.2 A Filosofia .................................................................................................................................. 152 4.2.3 As ciências ................................................................................................................................. 153 4.3 AS MULHERES E O ISLAMISMO ............................................................................................... 154 4.4 O ISLÃ E OS “INFIÉIS” ................................................................................................................. 156LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 157RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 159AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 160

TÓPICO 4 - O FEUDALISMO .............................................................................................................. 1611 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 1612 SOBRE O CONCEITO DE FEUDALISMO .................................................................................... 161 2.1 AS ORIGENS DO CONCEITO DE FEUDALISMO ................................................................... 162 2.2 CRÍTICAS AO CONCEITO DE FEUDALISMO ......................................................................... 163 2.3 OS FEUDALISMOS: LOMBARDIA, GRÃ-BRETANHA E OUTROS LUGARES ........................................................................................................................................ 1643 OS MODELOS DE FEUDALISMO .................................................................................................. 165 3.1 O MODELO CLÁSSICO DE FEUDALISMO .............................................................................. 165 3.1.1 A homenagem ........................................................................................................................... 165 3.1.2 O feudo ....................................................................................................................................... 166 3.1.3 As obrigações servis ................................................................................................................. 167 3.2 A PERSPECTIVA MARXISTA ....................................................................................................... 1674 AS ORIGENS DO FEUDALISMO ................................................................................................... 169 4.1 A FRAGMENTAÇÃO DO IMPÉRIO CAROLÍNGIO ................................................................ 169 4.2 OUTROS FATORES ........................................................................................................................ 169 4.3 EM RESUMO ................................................................................................................................... 1715 FUGINDO AO ESQUEMA ................................................................................................................ 171 5.1 REVENDO CONCEITOS ............................................................................................................... 172 5.2 AS COMUNICAÇÕES ................................................................................................................... 172 5.3 A ECONOMIA ................................................................................................................................ 173 5.4 A NATUREZA E O TEMPO MEDIEVAIS ................................................................................... 1746 O AUGE DO FEUDALISMO ............................................................................................................. 174 6.1 O FIM DAS INVASÕES BÁRBARAS ........................................................................................... 176 6.2 A PRIMOGENITURA ..................................................................................................................... 176 6.3 A PRESSÃO ECONÔMICA ........................................................................................................... 178 6.4 A EXPANSÃO INTERNA DA SOCIEDADE .............................................................................. 178LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 180RESUMO DO TÓPICO 4 ....................................................................................................................... 182AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 184

UNIDADE 3 - A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES .................................................... 185

TÓPICO 1 - AS TRANSFORMAÇÕES DO SÉCULO XI E AS CRUZADAS .............................. 1871 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 1872 AS ORIGENS HISTÓRICAS DAS CRUZADAS .......................................................................... 187 2.1 O SÉCULO XI, PERÍODO DE CONQUISTAS ............................................................................ 187 2.1.1 Os turcos seljúcidas .................................................................................................................. 187 2.1.2 Os primeiros tempos da reconquista ibérica ........................................................................ 188 2.1.3 As conquistas normandas ........................................................................................................ 189 2.2 A CRISE NA IGREJA NO SÉCULO XI ........................................................................................ 190 2.3 A ECONOMIA EUROPEIA NO SÉCULO XI ............................................................................. 191 2.4 O CONCÍLIO DE CLERMONT .................................................................................................... 1913 AS MOTIVAÇÕES PARA AS CRUZADAS ................................................................................... 191

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3.1 MOTIVAÇÕES ECONÔMICAS ................................................................................................... 191 3.2 MOTIVAÇÕES RELIGIOSAS ........................................................................................................ 192 3.3 MOTIVAÇÕES POLÍTICAS .......................................................................................................... 1924 AS CRUZADAS .................................................................................................................................... 193 4.1 OUTRAS CRUZADAS ................................................................................................................... 195 4.2 O FIM DAS CRUZADAS ............................................................................................................... 195 4.3 AS CRUZADAS VISTAS PELOS ÁRABES ................................................................................. 196 4.4 AS PERSEGUIÇÕES AOS JUDEUS NAS CRUZADAS ............................................................. 200RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................................... 201AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 203

TÓPICO 2 - AS CONQUISTAS MONGÓLICAS ............................................................................. 2051 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 2052 A ÁSIA CENTRAL ANTES DE GENGIS KHAN .......................................................................... 206 2.1 A CHINA DA DINASTIA TANG ................................................................................................. 206 2.2 A ROTA DA SEDA ......................................................................................................................... 2083 GENGIS KHAN E AS CONQUISTAS MONGÓLICAS .............................................................. 210 3.1 A EXPANSÃO MONGOL .............................................................................................................. 211 3.2 SOB DOMÍNIO MONGÓLICO ................................................................................................... 212 3.3 A PAX MONGOLICA .................................................................................................................... 2134 CONSEQUÊNCIAS DAS INVASÕES MONGÓLICAS .............................................................. 214 4.1 NA CHINA ...................................................................................................................................... 214 4.2 NO MUNDO MUÇULMANO ...................................................................................................... 215 4.3 NA EUROPA ................................................................................................................................... 216RESUMO DO TÓPICO 2 ....................................................................................................................... 218AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 219

TÓPICO 3 - A IGREJA E A CULTURA NA IDADE MÉDIA ......................................................... 2211 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 2212 A REFORMA ECLESIÁSTICA DO SÉCULO XI ........................................................................... 221 2.1 O QUE SIGNIFICAVAM “REFORMA” E “IGREJA”? ............................................................... 222 2.2 A IGREJA NO SÉCULO XI ............................................................................................................ 222 2.3 O MOVIMENTO REFORMISTA .................................................................................................. 223 2.3.1 O celibato clerical ...................................................................................................................... 223 2.3.2 O Monasticismo ........................................................................................................................ 224 2.3.3 Os cátaros e a Inquisição .......................................................................................................... 2263 AS UNIVERSIDADES ........................................................................................................................ 2274 O RENASCIMENTO DO SÉCULO XII ........................................................................................... 231 4.1 A CONTRIBUIÇÃO GRECO-ÁRABE ......................................................................................... 231 4.2 A REDESCOBERTA DOS CLÁSSICOS NOS ÁRABES ............................................................. 232 4.3 A ESCOLÁSTICA ............................................................................................................................ 234LEITURA COMPLEMENTAR 1 ........................................................................................................... 236LEITURA COMPLEMENTAR 2 ........................................................................................................... 237LEITURA COMPLEMENTAR 3 ........................................................................................................... 237RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................................... 239AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 240

TÓPICO 4 - O RENASCIMENTO COMERCIAL E URBANO ...................................................... 2411 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 2412 A ERA DO PREDOMÍNIO ISLÂMICO DO COMÉRCIO .......................................................... 241 2.1 O EFEITO DAS CONQUISTAS MONGÓLICAS ....................................................................... 2433 O COMÉRCIO NA EUROPA ............................................................................................................ 244

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3.1 AS FEIRAS MEDIEVAIS ................................................................................................................ 245 3.2 A FORMAÇÃO DOS BURGOS ..................................................................................................... 2464 A VIDA URBANA NA BAIXA IDADE MÉDIA ............................................................................ 247 4.1 DEMOGRAFIA E URBANISMO .................................................................................................. 247 4.2 O SISTEMA CORPORATIVO ....................................................................................................... 249 4.3 A FORMAÇÃO DA BURGUESIA ................................................................................................ 2515 O MOVIMENTO COMUNAL E AS CIDADES LIVRES ............................................................. 253LEITURA COMPLEMENTAR 1 ........................................................................................................... 256LEITURA COMPLEMENTAR 2 ........................................................................................................... 257RESUMO DO TÓPICO 4 ....................................................................................................................... 259AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 261

TÓPICO 5 - AS CORTES MEDIEVAIS .............................................................................................. 2631 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 2632 AS PRIMEIRAS FORMAS DE REINTEGRAÇÃO POLÍTICA .................................................. 263 2.1 OS EFEITOS DO COMÉRCIO ....................................................................................................... 264 2.2 OS TIPOS DE NOBREZA FEUDAL ............................................................................................. 2643 AS DISPUTAS ENTRE PODERES PARTICULARES E UNIVERSAIS .................................... 2664 A GUERRA DOS CEM ANOS E O NASCIMENTO DA MONARQUIA ABSOLUTISTA .................................................................................................................................... 2685 AS MULHERES E A SOCIEDADE ................................................................................................... 270LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................. 271RESUMO DO TÓPICO 5 ....................................................................................................................... 272AUTOATIVIDADE ................................................................................................................................ 273REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................ 275

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UNIDADE 1

AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

Esta unidade tem por objetivos:

• compreender os conceitos de Idade Média formulados por historiadores ao longo dos tempos;

• identificar os principais fatores que levaram à queda do Império Romano do Ocidente;

• conhecer o processo de formação dos reinos bárbaros;

• perceber o papel que a religião desempenhou na constituição do mundo feudal;

• caracterizar a religião e a sociedade muçulmanas, compreendendo sua formação histórica.

Esta unidade está dividida em cinco tópicos. Ao final de cada um deles você encontrará atividades que o(a) ajudarão a refletir e fixar os conhecimentos abordados.

TÓPICO 1 – INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA

TÓPICO 2 – A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA

TÓPICO 3 – ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA

TÓPICO 4 – O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA

TÓPICO 5 – AS ORIGENS DO ISLAMISMO

Assista ao vídeo desta unidade.

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TÓPICO 1UNIDADE 1

INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A

IDADE MÉDIA

1 INTRODUÇÃO

Prezado(a) acadêmico(a), estamos iniciando nossos estudos sobre a Idade Média. É um período que você certamente já viu, muitas vezes, representado no cinema, em livros, na televisão e na imaginação das pessoas. Os contos de fadas, as histórias do Rei Arthur, os filmes e seriados sobre cavaleiros, todos parecem representar uma época com características muito particulares e sobre a qual pensamos que sabemos muito.

No entanto, essa é uma sensação perigosa. Estamos tão acostumados a ver uma certa representação da Idade Média e tão acostumados a pensar o período como a era do feudalismo, do predomínio da Igreja e dos cavaleiros, que nem nos damos conta de que pode haver muito mais para observar.

Até mesmo em nossos estudos no colégio, quando estudamos alguma coisa sobre as invasões bárbaras, o feudalismo, as Cruzadas e o renascimento urbano, acreditamos que isso dá conta de explicar o início, o desenvolvimento e o final da Idade Média. Isso, claro, para não falar do rótulo “medieval” que as piores coisas recebem: fala-se em “condições de tratamento medievais”, “instrumentos de tortura medievais”, “mentalidades medievais” e “técnicas de produção medievais”. Nesses casos, a palavra medieval significa, respectivamente: “atroz”, “cruéis”, “retrógradas” e “rudimentares”. Essas descrições, além de historicamente incorretas, traduzem uma falta de cuidado tremenda com as palavras e reforçam estereótipos absurdos.

Ao mesmo tempo, existe outra questão fundamental que precisa ser levada em consideração. A história da Idade Média, como a estudamos, padece de um vício muito grave de eurocentrismo. Ou seja, está completamente focada na história da Europa,- mais especificamente da Europa Ocidental: França, Alemanha, Inglaterra -, e ignora completamente outras regiões, como o mundo muçulmano, onde uma cultura, muito distinta, estava em seu auge.

Este Caderno de Estudos tem uma dupla finalidade: ao mesmo tempo pretende transmitir a você informações essenciais sobre essas características da Idade Média e provocar em você o questionamento dessa visão tão unilateral e eurocêntrica.

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Quando isso acontecer, você verá uma época completamente diferente: dinâmica, inovadora e vibrante, simplesmente o oposto da tradicional e injusta imagem de “Idade das Trevas”.

2 SOBRE O CONCEITO DE IDADE MÉDIA

Antes de iniciarmos os estudos sobre a Idade Média, é importante discutir os significados desse conceito. Como você vai perceber, não falaremos ainda neste tópico o que a Idade Média foi, nem como surgiu, caracterizou-se ou terminou. Teremos muito tempo para isso neste caderno. Este tópico servirá para discutirmos o próprio sentido do termo Idade Média e os cuidados que devemos ter ao analisá-lo.

Vamos, por enquanto, apenas supor que você tem uma noção do que signifique Idade Média, que você aprendeu no Ensino Médio e talvez tenha complementado com algumas leituras próprias. É exatamente essa visão que nos interessa por enquanto, porque essa é, provavelmente, a visão que seus futuros alunos terão quando começarem a ter aulas sobre o assunto.

2.1 A IDADE MÉDIA E O SENSO COMUM

Dificilmente vamos encontrar algum período histórico tão carregado de imagens errôneas e caricaturais quanto a Idade Média. Você conhece muito bem várias delas: encontra essas imagens com frequência na televisão, no cinema e em outros meios de comunicação e na fala das pessoas. É muito provável que você mesmo carregue vários desses preconceitos e nem saiba. Mas, para estudarmos adequadamente a Idade Média, precisamos antes tomar consciência disso.

AUTOATIVIDADE

Prezado(a) acadêmico(a), vamos fazer uma pesquisa? Entreviste dez ou mais pessoas que você conhece, de preferência de diferentes idades e origens sociais, fazendo-lhes as seguintes perguntas: “O que você sabe sobre a Idade Média?” e “Como você sabe disso?” Ah! Não se esqueça de também responder às perguntas VOCÊ MESMO, de preferência ANTES de seguir adiante em suas leituras e de entrevistar os seus conhecidos!

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TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA

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As respostas provavelmente vão girar em torno de diversas ideias preconcebidas e clichês, como o cavaleiro andante salvando uma donzela presa na torre do castelo, matando dragões ou derrubando os adversários com sua lança nos torneios; a Inquisição e seus cruéis métodos de tortura, Rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda, os servos explorados pelos senhores feudais e pela Igreja; bárbaros saqueando tudo o que viam pela frente, nobres vestidos em roupas de couro rudimentar e armaduras de metal prestando homenagens uns aos outros e forjando alianças militares, padres obesos e beberrões e dezenas de outros estereótipos.

Provavelmente, ninguém (a menos que você entreviste um estudioso do assunto) descreverá a Idade Média como uma época de inovações tecnológicas e filosóficas; do surgimento de culturas inovadoras, da invenção do amor cortês e de alguns dos nossos costumes de higiene mais básicos.

No entanto, a Idade Média real geralmente está mais próxima disso do que dos clichês do senso comum, que, às vezes, são pura ficção, como no caso do Rei Arthur e seus cavaleiros, dos dragões e, também, das donzelas nas torres.

Prezado(a) acadêmico(a), se você já é, ou quando se tornar professor, que tal solicitar aos alunos uma pesquisa sobre algum evento histórico da época ocorrido fora da Europa durante esse período.

Mas, provavelmente, o clichê (ou, antes, o chavão) mais comum será o apelido de Idade das Trevas, que esse período histórico ganhou há muito tempo e do qual ainda não foi possível livrá-lo.

Cabe a nós, como historiadores e professores de História, tentar mudar a ideia que as pessoas têm sobre a Idade Média, criticando as imagens que são difundidas por nossa cultura e demonstrando a importância crucial desses mil anos, para que nos tornássemos o que somos hoje.

SUGESTÃO DE LEITURASCaro(a) acadêmico(a), veja aqui uma lista de livros dedicados a desmistificar a Idade Média:

PERNOUD, Régine. O Mito da Idade Média. Lisboa: Europa-América, 1977.

DUBY, Georges. A Europa e a Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa: Estampa, 1980.

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DICAS

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

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2.2 OS SIGNIFICADOS DA IDADE MÉDIA

Agora que já tomamos consciência do nosso desconhecimento sobre a Idade Média, trataremos de entender o seu significado.

2.2.1 Imaginando

IMAGINE!Prezado(a) acadêmco(a)! Antes de começar, vamos fazer um exercício de ficção!

Vamos imaginar que, por algum fenômeno misterioso, chegasse às nossas mãos um livro de História escrito daqui a mil anos. Esse livro contaria toda a história do III Milênio, desde o ano 2000 até o final do século XXX. E vamos imaginar que o mundo em que ele foi escrito fosse completamente diferente do nosso.

Talvez uma grande crise, uma catástrofe ambiental ou mesmo uma transformação gradual do mundo que conhecemos criasse uma sociedade completamente diferente da atual. Imaginemos que a maioria das coisas que hoje nos parecem importantes não exista mais daqui a mil anos, ou não sejam mais úteis, ou tenham mudado completamente de sentido.

Neste nosso exercício de ficção, vamos imaginar, também, que os estudiosos do século XXXI considerem que nós vivemos hoje o momento em que a sociedade anterior, que eles entenderiam como organizada, começou a entrar em decadência, e que muita coisa ruim teria acontecido nos séculos seguintes por causa dos nossos preconceitos, nossos defeitos morais, das nossas escolhas erradas, ou da nossa inexperiência. Para completar, vamos imaginar que muitas invenções essenciais à vida nesse futuro só teriam sido inventadas lá pela metade do III Milênio.

2.2.2 O problema em julgar o passado

Agora, pense sobre o que você acharia de um historiador do futuro que descrevesse a época em que vivemos como uma era de ignorância, porque acreditávamos em coisas que ele considerava absurdas, fazíamos coisas que ele considerava ridículas, submetíamos-nos a autoridades que ele considera inaceitáveis, não conhecíamos muitas coisas essenciais à vida no ano 3000 e nos preocupávamos com coisas que, na opinião dele, eram erradas ou pouco importantes. E que isso tudo, para ele, é prova de que os homens do início do século XXI eram primitivos, ignorantes e supersticiosos, estúpidos, e que vivíamos em uma época de decadência. Que a época em que ele estivesse escrevendo deixou

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TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA

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2.2 OS SIGNIFICADOS DA IDADE MÉDIA para trás. E que, por isso, ele resolvesse chamar a nossa época de Idade das Trevas, um longo período de ignorância, superstição, estupidez generalizada e decadência.

A principal queixa que poderíamos fazer seria:

Ei, não é justo você nos julgar por coisas que nós não podemos saber como serão um dia! Nós vivemos agora, não no futuro, e nossas preocupações são as que fazem sentido para nós hoje. Se você se preocupasse em entender como vivemos, compreenderia por que pensamos dessa forma e por que fazemos essas coisas. Você não está nos estudando, está só nos chamando de ignorantes por não sermos como você!

AUTOATIVIDADE

ANÁLISETente pensar em outras argumentações que poderíamos fazer para discordar de uma visão tão parcial e tão inadequada sobre nós e nosso tempo. Em sua opinião, esse tipo de perspectiva revela mais sobre o período que está sendo discutido ou sobre quem está criticando? O que levaria alguém a tratar dessa forma uma cultura passada?

Foi exatamente isso o que fizeram os primeiros estudiosos que se preocuparam em descrever o período que hoje conhecemos por Idade Média! Entusiasmados por um enorme otimismo em relação ao mundo em que viviam, olharam para o milênio anterior e só conseguiram ver ignorância, superstição, decadência. Não que esse período que estudavam de fato fosse assim; simplesmente foi assim que esses estudiosos o entenderam. Tratando com desprezo essa “longa noite de mil anos”, chamaram-na de Idade das Trevas ou de Idade Média, um longo hiato entre a Idade Antiga (a época de glória de uma cultura que eles consideravam superior) e a sua própria, que chamaram de Renascimento, quando aqueles valores antigos, supostamente perdidos na ignorância anterior, foram recuperados

2.2.3 Evitando o anacronismo

De volta ao nosso historiador do futuro: se você fosse descrever a nossa época, você diria que nós vivemos hoje em um período de decadência e ignorância?

Pode ser até que você discorde de muita coisa que existe hoje, mas provavelmente não chamaria o século XXI de Idade das Trevas. Muito menos diria que esse período é simplesmente uma preparação para um tempo no futuro em que as pessoas serão realmente felizes, por pensarem de uma maneira que nós nem sabemos ainda qual é, ou por terem tecnologias que ainda nem foram inventadas. Como você poderia saber o que vai acontecer no futuro?

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É como imaginar alguém reclamando, lá por 1820: “Puxa vida! Seria muito mais fácil descobrir informações se já tivessem inventado o computador!” Antes de alguma coisa como essa ter sido inventada, dá para imaginar alguém se lamentando que ela não existisse?

Prezado(a) acadêmico(a)! Esse tipo de atitude é um anacronismo: é atribuir a uma certa época características de outra diferente. Nesse caso, uma retroprojeção: supor que o passado tem, ou deveria ter, características parecidas com o presente. Isso é uma característica das histórias ou das ficções históricas mal escritas, e é muito mais comum do que se imagina. Tente perceber alguns exemplos disso em livros de História, filmes e no senso comum! Quem sabe, até em frases que você mesmo já tenha ouvido ou dito...Essa retroprojeção traz, ainda, um esnobismo cronológico: achar que, uma vez que no passado não existiam algumas coisas que consideramos óbvias (porque são soluções que hoje nós conhecemos), as pessoas que viviam naquela época seriam estúpidas. Por esse motivo, fizemos a brincadeira com uma era que veria a nossa época como de ignorância...

2.2.4 O conceito de “idade média” é anacrônico!

É claro que as pessoas que viveram na Idade Média não se referiam ao seu próprio tempo como “Idade Média”, muito menos como “Idade das Trevas”!

Acredita-se que o termo Idade das Trevas tenha sido criado por Francesco Petrarca (1304-1374) por volta da década de 1330, ou seja, nos primeiros instantes da renovação cultural renascentista. Por ser da região da Toscana, na atual Itália, e um representante do período florentino do Renascimento, Petrarca entendia que a queda de Roma teria trazido a decadência da cultura clássica, com o surgimento de uma nova raça de homens violentos, analfabetos e incultos: os bárbaros.

Assim, do ponto de vista da cultura, um véu de escuridão teria se colocado sobre o mundo neste período, o que justificaria entender o período anterior como uma Idade das Trevas.

Perceba que Petrarca viveu no século XIV – durante, portanto, o período histórico tradicionalmente considerado como Idade Média, que só se encerraria em 1453. De acordo com as periodizações históricas mais comuns, portanto, Petrarca era um ‘homem medieval’. Ora, se um “homem medieval” critica os “tempos medievais” anteriores e louva a sua própria época como diferente disso, não lhe parece que a divisão tradicional é, pelo menos, uma simplificação exagerada?

NOTA

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TÓPICO 1 | INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS SOBRE A IDADE MÉDIA

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Prezado(a) acadêmico(a), ficou claro por que não devemos julgar o passado? Mesmo quando dispomos de muitas fontes, sabemos tão pouco sobre o passado que não somos capazes de compreendê-lo razoavelmente. E mesmo se pudéssemos, que direito teríamos de supor que somos melhores do que os que vieram antes de nós?Lembre-se sempre disso, pois é tentador criticar os hábitos e as decisões das pessoas do passado. Os historiadores não têm o direito de fazer isso e têm o dever de chamar a atenção de quem faz.

3 O CONCEITO DE IDADE MÉDIA APÓS O RENASCIMENTO

3.1 NA REFORMA RELIGIOSA

Durante a Reforma Religiosa (século XVI), a Idade Média foi vista como um momento de corrupção da Igreja Católica, quando a Igreja detinha um poder político e econômico enorme e os padres eram pecadores. Sendo assim, os reformadores podiam se apresentar como restauradores da moralidade na religião, como representantes de uma fé mais pura e mais simples, mais semelhante à Igreja primitiva. Inversamente, a Reforma Católica difundiu uma imagem da Idade Média como um período de harmonia religiosa, como seria de se esperar em um momento em que a Europa inteira seguia a “única verdadeira fé”.

Não lhe parece que a visão de Idade Média que os reformadores protestantes e católicos criaram dizia muito mais sobre o que eles próprios pensavam a respeito da Igreja Católica da época em que viviam do que sobre a Idade Média em si?

3.2 NO ILUMINISMO

Durante o Iluminismo (século XVIII), a Razão passou a ser entendida como a única forma de se alcançar um conhecimento verdadeiro. A Fé, nesse momento, passou a ser entendida como um sinal de tudo o que era atrasado e que deveria ser destruído, o que incluía o poder político da Igreja. Entendendo a Idade Média como a Idade da Fé, os iluministas tinham uma visão bastante negativa do período, reforçando as visões anteriores de decadência.

O historiador inglês Edward Gibbon, um dos grandes representantes dessa perspectiva, foi categórico em atribuir o “declínio e queda do Império Romano” (título de sua grande obra) ao “triunfo da barbárie e da religião”.

NOTA

IMPORTANTE

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3.3 O ROMANTISMO E A IDADE MÉDIA

O Romantismo surgiu no final do século XVIII e ganhou força no século seguinte como um movimento ideologicamente oposto ao Iluminismo.

Os românticos inverteram o sentido que os iluministas haviam dado para a Idade Média. Passaram a vê-la como um momento idílico, do auge da religiosidade, de grandes feitos de cavalaria e de exaltação dos sentimentos mais puros da humanidade, em oposição ao frio racionalismo e anticlericalismo dos iluministas e dos excessos da Revolução Francesa.

Os nacionalistas foram buscar na Idade Média, especialmente nos últimos séculos, a origem de seus países, e os burgueses viam no período as origens de seu poder.

Ao fazerem isso, criaram “ficções históricas” perigosas, como a ideia de que os países europeus foram formados por grupos étnicos coesos e que habitavam aquelas regiões havia muitos séculos: ideia que, no início do século XX, descambaria para a ideologia nazifascista. Dentre os principais “ideólogos” dessa verdadeira “Era de Ouro Medieval” encontram-se: o francês Jules Michelet e o holandês Jacob Burckhardt.

Perceba como, em todas as visões da Idade Média, do Renascimento ao Romantismo, o período foi analisado a partir de preconceitos dos estudiosos, motivados pelo momento histórico em que viviam, com isso servindo a propósitos políticos muito bem determinados. Ou seja, os estudiosos ‘usaram’ a Idade Média como arma política ou ideológica para demonstrar que seus próprios objetivos mereciam ser perseguidos.

LEITURA!Caro(a) acadêmico(a), para saber mais sobre a evolução do conceito de Idade Média, leia o texto “A Idade Média de Jacques Le Goff”, publicado em: LE GOFF, Jacques. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

IMPORTANTE

DICAS

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3.3 O ROMANTISMO E A IDADE MÉDIA 3.4 A PERSPECTIVA LIBERAL

Há uma corrente historiográfica bastante influente, de caráter liberal, que pautou grande parte das interpretações sobre a Idade Média que surgiram no século XIX e século XX.

Essa historiografia, surgida entre os intelectuais ligados ao partido Whig (Liberal) inglês, entende a História como a narrativa dos eventos e circunstâncias que levaram a sociedade a atingir, na época atual, o que se considera o ponto culminante da civilização.

Essa visão histórica extremamente otimista tem, contudo, graves problemas metodológicos:

É teleológica: considera que existe um “caminho” a ser percorrido pela “civilização”, e cada cultura está em um ponto determinado dele e deverá seguir atingindo os demais um por um.

É unívoca: considera que o caminho que foi percorrido pela civilização ocidental é o único possível e que todas as “civilizações” um dia trilharão esse mesmo caminho. Portanto, despreza tudo o que não tiver perdurado até hoje como sendo uma “relíquia” sem utilidade.

É naturalizante: considera que existem noções inquestionáveis, como se surgidas da natureza – “progresso”, “civilização” etc.

É eurocêntrica – ou, antes, anglocêntrica ou francocêntrica: considera que a Europa é o grande centro de civilização e, como tal, a única região digna de ser estudada, ou concentra-se ainda mais, conforme o estudioso, na Idade Média inglesa ou francesa.

É personalista: considera que os “grandes homens”, e muito raramente grandes mulheres, são os responsáveis, com sua iniciativa e habilidade, pela movimentação da História, sempre na direção “correta”, a do “progresso”. Isto é, para eles, o triunfo do liberalismo, ou então, com sua resiliência, tentam barrar esse avanço.

É maniqueísta: identifica com o “lado certo” os “grandes homens” que contribuíram para tornar a civilização o que ela é hoje, e com o “lado errado” aqueles que supostamente tentaram opor-se a essa “torrente irresistível”.

Uma análise liberal da Idade Média perceberia, então, as mudanças ocorrendo pela iniciativa de pessoas como: Constantino, Justiniano, Carlos Magno, as Cruzadas, o Rei Ricardo Coração de Leão, dentre outros. E, sobretudo, pelos “burgueses”, que promoveram, com seus interesses particulares, a quebra do sistema feudal e sua substituição pelo sistema capitalista.

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Em oposição a essas mudanças estariam perfilados os sarracenos, os senhores feudais resistentes ao capitalismo e a Igreja Católica, entre outros.

Prezado(a) acadêmico(a), essa perspectiva liberal não lhe parece, ao mesmo tempo, excessivamente simplista (além de preconceituosa) e perturbadoramente familiar? Esta é, a grosso modo, a interpretação da história que se apresenta em grande parte dos livros de História de nível escolar! Fora dessa perspectiva, os livros costumam trazer apenas breves descrições sobre os modos de produção feudal e capitalista, baseadas no pensamento marxista (ver a seguir), sem, contudo, tecer qualquer consideração sobre os aspectos críticos do marxismo.

3.5 A PERSPECTIVA MARXISTA

O marxismo entende a luta de classes como sendo a força que movimenta a História. Para esta perspectiva, é - a partir da tomada de consciência das classes sociais desfavorecidas que as revoluções acontecem e que os modos de produção são transformados.

Os estudos marxistas sobre a Idade Média concentram-se, geralmente, na análise do feudalismo como modo de produção com características específicas e, em certa medida, opostas às do capitalismo que o sucedeu.

A análise marxista tradicional não se aprofunda nas origens do feudalismo, tomando-o como uma realidade unívoca. Estudos marxistas mais recentes fogem a essa simplificação.

4 CONCEITOS MODERNOS

Você se lembra do nosso historiador do futuro, aquele que falou tão mal da época em que vivemos? Já reclamamos de sua parcialidade. Outra objeção a ele poderia ser: Além do mais, nós e você não somos assim tão diferentes. Somos todos seres humanos e temos as mesmas necessidades. O que muda é a forma de satisfazer essas necessidades e as complicações que nós inventamos para satisfazê-las ou impedir que isso aconteça. Sem falar que você é nosso descendente, o seu mundo surgiu a partir do nosso, e tudo o que você considera importante apareceu, um dia, a partir do que nós tínhamos em nossa época.

É em uma linha de argumentação mais próxima a essa que a historiografia entende a Idade Média atualmente: em vez de tentarem fazer juízos de valor ou “romantizar” o período, colocando os seus preconceitos e a sua visão de mundo nos estudos sobre a época, os historiadores preferem, hoje em dia, entender a Idade Média a partir do que ela realmente teria sido.

NOTA

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Ou, então, do que podemos descobrir a partir das fontes disponíveis, desvendando as práticas, as mentalidades e a visão de mundo dos homens e mulheres medievais. Isso permite um entendimento mais adequado e mais fiel sobre o período, em vez de simplesmente ‘usar-se’ a Idade Média para finalidades indevidas, como uma propaganda política ou ideológica.

Ao fazerem isso, os historiadores vêm descobrindo uma Idade Média extremamente complexa, original e carregada de inovações tecnológicas e culturais, em uma imagem muito diferente daquela que a maioria das pessoas tem como verdadeira. Cabe a nós, historiadores e professores de História, a transmissão dessa nova ideia e, aos poucos, a mudança do senso comum a respeito deste período tão longo, tão importante e tão fascinante da história do Ocidente.

Jacques Le Goff é um historiador filiado à chamada Ecole des Annales, movimento historiográfico francês surgido no início do século XX a partir das obras de Marc Bloch e Lucien Febvre, que contou com os trabalhos de historiadores como Fernand Braudel, Georges Duby e outros. Na perspectiva dos Annales, o historiador deve buscar fazer uma “história total”. Ou seja, compreender a história da forma mais ampla possível, levando em consideração muito mais do que a economia ou a política: categorias como mentalidades, imaginário e representações tornam-se importantes. A perspectiva de Le Goff sobre a Idade Média é tributária dessa abordagem.

A Idade Média foi uma época de inúmeras inovações tecnológicas. Para saber mais a respeito, sugerimos a leitura de:BARK, William Carroll. Origens da Idade Média. Riao de Janeiro: Zahar, 1979, p. 125-140, ou o artigo de Ênio José Toniolo, “O progresso técnico na Idade Média”, disponível em:<http://www.lepanto.com.br/EstPrgIdM.html>.

5 FAZ SENTIDO FALAR EM “UMA” IDADE MÉDIA?

A imagem simplista que temos da Idade Média não consegue dar conta de descrever praticamente nada desse período. Na verdade, a imagem de cavaleiros andantes e senhores feudais, além de ser uma ficção que simplifica exageradamente essa época - só corresponderia ao período final da Idade Média da Europa Ocidental, e, mesmo assim, representa melhor algumas regiões europeias do que outras. Todo o período inicial, entre a queda de Roma e a consolidação do feudalismo – que é o período tratado nesta Unidade 1 –, exige uma descrição muito diferente dessa. Da mesma forma, o sistema feudal que vai existir nessa região (e só entre os séculos

NOTA

DICAS

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

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X a XIII, aproximadamente) é muito diferente do formato muito mais brando, que vigorou no Império Bizantino, e absolutamente distinto do modo de vida dos muçulmanos nos primeiros séculos do Islã – que serão vistos na Unidade 2.

Além disso, o feudalismo da Europa Ocidental muito diferente em cada região. Foi mais “típico”, digamos assim, na França e na Alemanha do que na Itália e em Portugal. E como teria sido na Rússia? Na Suécia? No norte da Espanha? Na Polônia? E isso para nem mencionarmos o Egito, a África ao sul do Saara, a China, as estepes da Mongólia, o Sudeste Asiático, o Japão... Muito menos o continente americano!

Como você pôde perceber, o conceito de Idade Média foi criado por estudiosos europeus para explicar a história de suas regiões de origem – sem levar em consideração se as características de outras regiões, como o mundo islâmico ou o Império Bizantino, eram ou não semelhantes a essas. Ou seja, o conceito de Idade Média é eurocêntrico! Precisamos questionar esse eurocentrismo e buscar interpretações sobre o mundo mais globais. Por que é que nós, no Brasil do século XXI, contamos a história da forma como os europeus a viam no século XIX e esquecemos que existia muita coisa no mundo fora de lá?

Em resumo, temos que ter cuidado ao estudar a Idade Média, para não cairmos numa simplificação exagerada, que termina por prejudicar a nossa compreensão sobre o período. Pior ainda, se generalizarmos as características da Idade Média, transformando-a em uma “idade do feudalismo”, estaremos falseando a verdade, ignorando aspectos essenciais dessa própria história ou, mesmo, apresentando os elementos “externos” a ela (como os muçulmanos) sob um ponto de vista maniqueísta, como as grandes ameaças (felizmente malsucedidas) à “nossa” cultura. Ou seja, estaremos recaindo nos mesmos preconceitos e supersimplificações que desejamos e precisamos combater.

Maniqueísmo é quando se pressupõe que existem apenas dois lados possíveis em uma determinada questão, um deles identificado com o “bem” e o outro com o “mal”.

Caro(a) acadêmico(a)! Régine Pernoud (1909-1998), historiadora e arquivista francesa, foi uma grande especialista em Idade Média, e deu muito destaque à presença feminina nesse período. Apresentamos aqui um trecho de seu livro Pour en finir avec le Moyen Age (traduzido em Portugal como “O mito da Idade

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NOTA

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Média”), no qual ela se dedica a atacar os preconceitos comuns sobre o tema. Neste trecho, Pernoud fala sobre as origens do feudalismo e sobre o choque de culturas na época.

Um poder centralizado ao último ponto, o do Império Romano, desmorona-se no decurso do século V. Na confusão que se segue, os poderes locais manifestam-se; é por vezes um chefe de grupo que reúne à sua volta os seus companheiros de aventuras; outras vezes, também o senhor dum domínio que tenta assegurar à sua sociedade e a si próprio uma segurança que o Estado já não garante.

Com efeito, as trocas tornam-se difíceis, pois o exército já lá não está para conservar nem fiscalizar as estradas; por isso, mais do que nunca, a terra é a única fonte de riqueza. Essa terra é preciso protegê-la. Não se vê nascer hoje em alguns países, onde os pacíficos habitantes se consideram ameaçados pelo aumento da delinquência, polícias semelhantes? Isso pode fazer compreender o que se produziu então; um pequeno cultivador, impotente para assegurar sozinho a sua segurança e a da sua família, dirige-se a um vizinho poderoso que tem a possibilidade de manter homens armados, este consente em defendê-lo, em troca do que este lhe dará uma parte das suas colheitas.

Um beneficiará duma garantia, o outro, o senhor, senior, o ancião, o patrão ao qual se dirigiu, achar-se-á mais rico, mais poderoso e, portanto, mais capaz de exercer a proteção que se espera dele. Finalmente, mesmo que se trate da pior das hipóteses, imposta pelas circunstâncias difíceis, em princípio, o mercado aproveitará tanto de um como de outro. É um acto de homem para homem, um contrato mútuo que a autoridade superior não sanciona, e não sem motivo, mas que se conclui sob juramento, numa altura em que o juramento, sacramentum, acto sagrado, tem um valor religioso.

Tal é, em geral, o esquema das relações que se criam nos séculos V e VI; certamente que as modalidades são muito diversas, segundo as circunstâncias de tempo e de lugar; elas conduzem, em definitivo, a esse estado que se chama, muito justamente, feudal. Baseia-se, com efeito, no fief, feodum. O termo, de origem germânica ou celta, designa o direito que se desfruta sobre qualquer bem, geralmente uma terra: não se trata duma propriedade, mas dum usufruto, dum direito de uso.

A evolução precipita-se devido à mistura de populações que se faz na época. O movimento de migração, que se chama as grandes invasões, nos séculos V e VI, nem sempre teve o aspecto de conquista violenta que lhe supõem; muitos povos — pensemos, por exemplo, no dos Burgúndios — instalaram-se nas terras na qualidade de trabalhadores agrícolas.

LEITURA COMPLEMENTAR

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Dentro de um milhar de anos, com o recuo do tempo, o historiador que estudar o século XX não deixará de estabelecer comparações com a Alta Idade Média. Não conhece o nosso século movimentos de migração que fazem que, em França, por exemplo, mais de três milhões e meio de trabalhadores sejam algerianos, marroquinos, espanhóis e portugueses, que se encontrem na Holanda e na Alemanha turcos, jugoslavos?... A única diferença está nas facilidades de transporte, que a Alta Idade Média não conheceu. Em consequência disso, uma vez fixado, era, em princípio, para toda a vida que o trabalhador estrangeiro se estabelecia com a mulher e os filhos na quinta que o proprietário, que se chamava «galo-romano», não queria trabalhar.

O movimento não se processava sem trazer problemas, que foram resolvidos de forma muito mais liberal da que se seria levado a crer. Assim, a primeira pergunta a fazer àquele que, perseguido por um delito, comparecia perante um tribunal é: «Qual é a tua lei?» Com efeito, ele é julgado segundo a sua lei, e não sob a da região em que se encontra. Daí a extrema complexidade desse Estado feudal e a diversidade dos costumes que aí se instauram.

Aos historiadores instruídos no direito romano, com as suas bases uniformes e uniformemente aplicáveis, isso pode parecer o cúmulo do arbitrário; na época as distorções são certamente muito grandes duma região para a outra, mas, aí ainda, nós aproximamo-nos dessas concepções, pois hoje compreendemos melhor que a justiça, a verdade, consiste em julgar cada um segundo a sua lei.

FONTE: PERNOUD, Régine. O mito da Idade Média. Lisboa: Europa-América, 1979, p. 58-60.

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Neste tópico, você viu que:

O conceito de Idade Média continua sujeito a uma série de preconceitos e simplificações que nos impedem de compreender a importância deste período.

Durante muito tempo, as interpretações que se fizeram sobre a Idade Média eram parciais e serviam de arma política ou ideológica para os seus criadores. Foi assim, no Renascimento e no Iluminismo, que a viam como uma Idade das Trevas, e no Romantismo, que inverteu essa visão.

O termo “Idade Média” é uma simplificação exagerada, que esconde as variações regionais e as transformações sociais ao longo de todo esse tempo.

Para estudar a Idade Média ou qualquer outro período histórico, devemos evitar os perigos do julgamento do passado, do anacronismo e do eurocentrismo.

Atualmente, a preocupação dos historiadores é compreender a Idade Média a partir dos registros da própria época, que revelam uma Idade Média muito rica e muito complexa, totalmente afastada da ideia de “Idade das Trevas”.

RESUMO DO TÓPICO 1

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1 Identifique, em um livro didático qualquer de Ensino Médio, no capítulo (ou capítulos) correspondente(s) à Idade Média:

a) Qual é a perspectiva, dentre as que analisamos nos itens 3 e 4 deste tópico, que melhor descreve a forma como a Idade Média é tratada pelo(s) autor(es) do livro?

b) Qual o nível de profundidade com que civilizações como a bizantina e a muçulmana são tratados?

c) Pelo que você pôde perceber, o tema da Idade Média foi tratado de forma adequada? Que complementações você sente que precisaria fazer em sala de aula para melhorá-lo?

AUTOATIVIDADE

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TÓPICO 2

A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃO

Se desejarmos estudar e ensinar Idade Média de forma adequada, precisaremos ir além do que o senso comum fala a respeito desse período e estudar as interpretações feitas pelos historiadores do assunto. Mas isso não significa, apenas, conhecer os “fatos” que contribuíram para a transição da Antiguidade para o mundo medieval. Estudar História é interpretar, é questionar a validade das teorias, dos conceitos e das interpretações, tentando sempre compreender como surgiram, ou seja, situá-las em um contexto histórico.

Para um historiador, esse procedimento é ainda mais importante do que o conhecimento dos “fatos” ou “eventos” históricos. Afinal, fatos e eventos não existem soltos por aí. Só existem quando um historiador estabelece a sua validade.

Por isso, antes de determinarmos que “acontecimentos” levaram à dissolução do Império Romano e ao surgimento do período medieval, precisamos saber o que foi essa transição, se houve efetivamente uma transição (até mesmo, em alguns casos, o que se entende por “transição”) e que características teve.

Só assim seremos capazes de selecionar adequadamente os “fatos” que compõem a história que vamos contar. É por esse motivo que discutiremos as interpretações dos estudiosos (a historiografia) neste tópico. Antes, portanto, dos “fatos” que são tradicionalmente considerados como explicativos da crise do mundo antigo.

No tópico anterior discutimos algumas questões teóricas relevantes quando se tenta compreender um período histórico tão complexo como a Idade Média. Este tópico aprofundará algumas questões, discutindo-as mais diretamente do ponto de vista da produção dos historiadores sobre o período. Em resumo, no tópico anterior aprendemos a questionar as “verdades recebidas” sobre a Idade Média. Neste tópico vamos aprender como fazer isso!

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

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2 TEORIAS SOBRE O INÍCIO DA IDADE MÉDIA

Diversas teorias foram propostas por estudiosos, ao longo do tempo, para explicar as origens desse período histórico que se denomina Idade Média. Alguns estudiosos formularam teorias elaboradas a respeito, de caráter moral ou econômico, e outros procuraram manter-se mais atentos à enorme complexidade do processo. É importante conhecermos algumas delas, sempre considerando que essas teorias carregam elementos da época em que foram criadas.

Inicialmente, porém, é interessante nos questionarmos até que ponto existe uma vinculação automática entre os fenômenos históricos que denominamos a “queda do Império Romano” e o “surgimento da Idade Média”. Essa vinculação nos parece óbvia, por estarmos habituados a ela.

Aliás, tradicionalmente, a própria definição de Idade Média é o período posterior à queda. No entanto, como veremos a seguir, não são todos os estudiosos (Henri Pirenne é uma exceção) que atribuem uma relação tão forte de causa e efeito entre os dois fenômenos.

2.1 A IDADE MÉDIA E A QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO

HISTORIOGRAFIAPrezado(a) acadêmico(a), discutiremos a seguir algumas das teorias ou interpretações que foram feitas ao longo do tempo sobre o declínio do Império Romano e o surgimento da Idade Média. Preste atenção não apenas ao conteúdo das teorias, mas tente observar a época em que a teoria foi criada, o local em que o seu formulador viveu e sua origem social ou cultural, pois isso é fundamental para compreender o seu sentido.

2.1.1 Os contemporâneos: Vegécio e Salviano

As explicações mais antigas para a queda do Império Romano foram elaboradas por cronistas que viveram no período, tais como Publius Flavius Vegetius (Vegécio) e Salviano. Pouco se sabe sobre esses autores.

Vegécio viveu por volta do ano 450 e escreveu sobre a tecnologia militar do Império Romano tardio e início da Idade Média. Salviano vinha de uma família abastada, possivelmente nobre, e foi sacerdote cristão no início do século V. Eram, portanto, contemporâneos (ou seja, viveram na mesma época) do processo de queda do Império. Eram também romanos, cristãos e letrados, o que demarca uma posição sociocultural muito específica e privilegiada.

NOTA

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TÓPICO 2 | A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA

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Para Vegécio, a entrada de germânicos (“bárbaros”) no exército teria enfraquecido militarmente o Império, pois o novo exército carecia do treinamento e da lealdade do antigo e a noção de cidadania da população.

Salviano descreve o processo de ruína e de perda da liberdade dos pequenos camponeses, constrangidos pelos impostos e pelas difíceis condições em que estavam, com os saques e destruições de cidades pelos bárbaros. Confrontado com a incômoda questão de “como um império que adotou a verdadeira religião foi capaz de se dissolver?”, explicou as invasões como um castigo de Deus aos romanos, por sua infinita corrupção.

AUTOATIVIDADE

Quais são as características em comum entre as visões de Vegécio e Salviano? Eles percebiam a “transição” como uma queda de um mundo antigo ou o surgimento de um novo? A que fatores eles atribuíam essa mudança? Percebiam isso como decadência ou como progresso? Por que você acha que eles pensavam dessa forma?

2.1.2 Uma visão Iluminista: Gibbon e a “decadência moral”

O historiador inglês Edward Gibbon (1737-1794) é considerado um dos primeiros grandes estudiosos a analisar a queda do Império Romano a partir de fontes documentais.

Em seu monumental “Declínio e queda do Império Romano”, Gibbon atribuiu a queda de Roma a uma perda da virtude cívica de seus cidadãos. Para ele, a grandeza e o poder do Império teriam causado a “decadência moral” de seus habitantes, que teriam perdido o interesse ou a habilidade de adotar um modo de vida viril.

Gibbon (2005) entendia que o Cristianismo teria tido um impacto devastador sobre o Império Romano, pois introduzia uma nova ética que privilegiava a busca da salvação e de uma vida melhor após a morte. Essa nova forma de pensar teria facilitado as invasões bárbaras, ao atrofiar o tradicional espírito marcial dos romanos e diminuir o seu desejo de se sacrificarem pelo Império.

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

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AUTOATIVIDADE

Perceba que a visão de Gibbon guarda algumas semelhanças, mas muitas diferenças em relação à de Vegécio e Salviano. Quais são as principais? A que fatores se pode atribuir essa diferença, se o objeto de estudo era, supostamente, o mesmo? Justifique.

SUGESTÃO DE LEITURAO livro “Declínio e queda do Império Romano”, de Edward Gibbon, é uma leitura obrigatória para quem desejar entender a fundo o processo de surgimento da Idade Média. Além de detalhado e muitíssimo bem redigido, o livro, escrito no século XVIII, é hoje um documento histórico importantíssimo, pois mostra como um estudioso viu esse processo há mais de 200 anos e por ser um dos grandes exemplos de como se escrevia História antes da grande transformação do século XIX.

2.1.3 Os grandes sistemas civilizadores: Toynbee

O historiador britânico Arnold J. Toynbee, baseado na ideia do apogeu e declínio das civilizações, explicou a decadência do Império Romano a partir de características econômicas e sociais da própria sociedade romana.

Para ele, o Império Romano já continha, desde a sua formação, os elementos que o tornariam inviável posteriormente. A economia romana não era baseada no comércio com outros povos ou na inovação tecnológica, mas unicamente na exploração das terras conquistadas e na escravização das populações. No momento em que as conquistas cessaram, a autoridade política do imperador lentamente declinou, até finalmente entrar em colapso. No século V, o poder do imperador era meramente simbólico, a ponto de Odoacro, o líder dos hérulos que conquistou Roma em 476, nem o desejar para si.

2.2 A TEORIA DOS MÚLTIPLOS FATORES

Algumas explicações sobre a queda do Império Romano não se concentram em um aspecto específico, seja ele moral, político ou econômico. Ao contrário, entendem que um movimento tão longo e tão dramático como este não pode ser atribuído a algumas causas fortuitas nem teria acontecido continuamente, sem qualquer tentativa de se revertê-lo. Três estudos são especialmente característicos dessa linha de pensamento.

DICAS

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TÓPICO 2 | A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA

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2.1.3 Os grandes sistemas civilizadores: Toynbee

John B. Bury, nos anos 1920, atribuiu a queda do Império a uma série de fatores e dedicou-se a derrubar a teoria da “queda moral” de Gibbon, considerando-a “simplista”. Para ele, o que ocorreu foi uma série de ocorrências infelizes em sequência, de crise econômica e uma crescente dependência dos povos germânicos para o exército a uma perda de vigor moral que gerou uma falta de lideranças firmes.

O historiador russo radicado nos EUA Mikhail Rostovtzeff entendeu a queda de Roma a partir das dificuldades econômicas que o Império sofreu a partir do século III, e das quais não foi possível recuperar-se completamente. A moeda, que antes baseava seu valor na quantidade de ouro, prata ou bronze que continha, passou a ser cunhada com ligas de metais sem valor, gerando uma grande inflação. No entanto, Rostovtzeff continuava a perceber, como fazia Gibbon, o surgimento da Idade Média como uma falência do mundo clássico, o que ainda guardaria, em sua perspectiva, uma visão de decadência.

William Carroll Bark elaborou uma abordagem diferente para a questão, preferindo entender o fim do Império não como uma época de trevas. Ao contrário, Bark (1979, p. 48) afirma que “o início da Idade Média foi uma época de inovações e descobertas, e que a regressão da civilização no Ocidente, partindo do nível romano, foi uma ocorrência feliz”.

Para Bark, o Império Romano do Ocidente caiu apesar das tentativas de mantê-lo inteiro, ou mesmo por causa delas. As reformas de Diocleciano e Constantino, mais do que conter as mudanças, terminariam por acelerá-las. Para Bark (1979, p. 141), “um ponto decisivo da evolução da tradição ocidental foi atingido no período entre 300 e 600 de nossa era, quando a velha civilização clássica pagã chegou a um ponto morto no Ocidente”.

Essa mudança se caracterizou por uma transformação completa na forma de se ver o mundo, ditada pelas necessidades da nova sociedade em gestação, que era essencialmente diferente do mundo clássico romano.

Nas palavras de Bark:

Foram muitos os outros, orientais, gregos, celtas e alemães, que inventaram ou adaptaram formas de arte, conhecimento e ciência estrangeiras, que se fizeram necessárias e que existiam no novo mundo ocidental, constantemente modificado.

Muitos de seus trabalhos, especialmente parte de sua produção literária, parecem extremamente ingênuos e inúteis a nossos olhos, e é essa a principal razão pela qual sua época foi chamada de Idade das Trevas.

Repetimos, essa denominação se baseia num raciocínio falaz. Poderíamos concluir igualmente, após um estudo comparativo da Grécia clássica e das realizações da engenharia moderna norte-americana, que a Grécia dificilmente merece ser chamada de civilizada. Está muito mais próximo da verdade dizer

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

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que o gênio criador dos primeiros homens medievais não estava, ou não se exercia, no conhecimento literário do velho modelo clássico.

Seu objetivo era expressar-se de outras formas e operar sob a égide de finalidades e valores diferentes. Se temos de fazer comparação, essas novas formas devem participar delas. Não foi apenas por acaso, no final das contas, que as cidades, sociedades, artes e artesanatos de uma Europa posterior e mais adiantada se diferenciaram tanto dos gregos e romanos. Isso ocorreu porque se orientaram numa direção decididamente diferente, desde a época de sua origem na longa idade do desmoronamento e lenta regeneração da Europa Ocidental. (BARK, 1979, p. 108).

Em uma linha relativamente semelhante, o antropólogo Joseph Tainter (1990) argumentou que a queda do Império Romano não foi desastrosa para todos. O sistema agrícola romano, baseado em grandes propriedades exploradas por colonos ricos e em grande parte ociosas, deu lugar a uma forma de produção mais eficiente.

A quebra do Estado liberou os cidadãos menos abastados de uma enorme carga de obrigações tributárias e civis, o que significaria, em parte, uma melhoria nas condições de vida. A análise de ossadas anteriores e posteriores ao século V permite verificar que a nutrição melhorou após a queda.

2.3 TEORIAS DO COLAPSO AMBIENTAL

Algumas teorias recentes vinculam a queda do Império Romano a um colapso ambiental da sociedade. O sistema agrícola ineficiente e a devastação das florestas teriam gerado erosão e, em regiões do norte da África, salinização do solo.

O êxodo rural decorrente dessa degradação teria agravado, por sua vez, as condições de saúde nas cidades, predispondo as populações a epidemias de varíola, cólera e outras doenças.

Também os processos de produção de gêneros e transporte de água encanada levaram a uma contaminação da população urbana com metais pesados.

O chumbo, especialmente, é extremamente danoso ao organismo humano, atacando os sistemas nervoso, renal, cardiovascular e reprodutivo. Em longo prazo, essa contaminação e os desastres ambientais e sanitários prejudicariam o crescimento populacional, o que ajudaria a explicar o decréscimo populacional no império a partir de meados do século III.

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TÓPICO 2 | A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA

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Prezado(a) acadêmico(a), perceba como as interpretações sobre a queda do Império Romano acompanham de perto as preocupações da época dos seus autores. Gibbon (2005) pensa em termos morais no Iluminismo.Toynbee (1986) fala em crise de civilizações, e algumas teorias atuais falam em crise ambiental. Não é coincidência: os estudiosos sempre estão sujeitos, em suas interpretações, aos dilemas e problemas de suas próprias épocas.

2.4 TEORIAS DA TRANSFORMAÇÃO

Alguns estudiosos questionaram a vinculação tradicional entre a queda de Roma e o surgimento da Idade Média, argumentando que a civilização romana não foi destruída: apenas transformou-se, lentamente, para gerar o que seria a futura Idade Média.

Uma teoria que segue essa linha foi criada por Henri Pirenne, no início do século XX. Pirenne discordava do marco tradicional da queda do Império Romano, estabelecido por Gibbon como a queda de Roma em 476 sob os exércitos de Odoacro. Para ele, os reinos germânicos não representaram o fim do Império Romano, mas uma continuidade deste, apenas em um formato ligeiramente diferente.

HISTORIOGRAFIAAs teses de Henri Pirenne tiveram influência muito grande sobre alguns de seus conterrâneos, que viriam a elaborar os pressupostos da escola historiográfica dos Annales – especialmente Marc Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel. Bloch rejeitava a história dos eventos e advogava estudos baseados na interpretação de fenômenos sociais. Febvre trabalhou com a noção de rupturas e permanências na história. Braudel desenvolveu a teoria do mundo mediterrâneo, ao redor do qual as trocas culturais permitiriam uma homogeneização da civilização. Busque mais informações sobre esses autores e tente relacionar a teoria de Pirenne com essas ideias.

De acordo com Pirenne (2010), a estrutura econômica dos reinos germânicos pôde manter-se baseada nas rotas comerciais do Mar Mediterrâneo, como havia acontecido sob Roma, por causa da capacidade do Império Bizantino de manter a paz e a liberdade comercial sobre a região, entre os séculos V e VI.

NOTA

NOTA

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

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Foi somente no momento em que os muçulmanos ocuparam o entorno do Mar Mediterrâneo que esses reinos foram forçados a abandonar a estrutura econômica mediterrânea e a se interiorizar.

Desta maneira, teria sido o domínio muçulmano do Mar Mediterrâneo, no século VII, muito mais do que as invasões germânicas, o principal fator de desagregação do modo de vida romano e o gerador da sociedade medieval.

Essencialmente, a tese de Pirenne considera os fatores econômicos e produtivos como mais importantes, para a descrição do mundo medieval como sendo distinto da Antiguidade, do que os fatores étnicos ou políticos. Mesmo que a unidade do Império Romano ou sua “latinidade” não fossem mais tão sólidas quanto antes, o mundo dos séculos IV a VIII guardaria enormes semelhanças com o período anterior, por ainda se basear na mesma forma de produção e de circulação de mercadorias.

Antes da mudança do eixo de forças no Mediterrâneo, com o avanço muçulmano, as modificações eram importantes, mas não decisivas. Os povos germânicos romanizavam-se e cristianizavam-se aos poucos, o que não configurava uma ruptura cultural.

A tese de Pirenne é controversa, por se basear essencialmente em uma análise economicista da História e por considerar o reino franco como continuador do Império Romano, em uma forma adequada à nova sociedade românico-germânica europeia, e em resposta ao avanço do Islã.

Diversos historiadores já tentaram demonstrar que o comércio mediterrâneo, embora de fato continuasse a existir entre a queda do Império do Ocidente e a conquista muçulmana, não seria suficiente para explicar uma continuidade entre o mundo antigo e os reinos romano-germânicos até o século VII.

SUGESTÃO DE LEITURA!Prezado(a) acadêmico(a), se você tiver interesse nas teorias de Henri Pirenne, procure seu clássico sobre o assunto:PIRENNE, Henri. Maomé e Carlos Magno. O impacto do Islã sobre a civilização europeia. Rio de Janeiro: PUC-RIO/Contraponto, 2010.

Obs.: O livro foi publicado na França logo após a morte de Pirenne, em 1835.Muitos foram os críticos da tese de Pirenne. Citamos alguns:BARK, William Carroll. Origens da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 16-48.

HODGETT, Gerald A.J. História social e econômica da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 55-60.

LOPEZ, Robert S. Mohammad and Charlemagne: a Revision. Speculum, XVIII (1943), p. 14-38.

DICAS

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TÓPICO 2 | A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA

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AUTOATIVIDADE

REFLETINDO...Quando Pirenne estabelece como marco inicial da Idade Média o avanço do Islamismo, que sentidos para a história ele está, implícita ou explicitamente, atribuindo? Quais os significados que ele dá para os marcos tradicionais e para o marco que ele próprio estabelece? Perceba que um dos “marcos” dessa controvérsia é o papel que os povos germânicos teriam entre a tomada do Império (século V) e o confronto com o Islã (século VII). Perceba também que a coroação de Carlos Magno se torna, na análise de Pirenne, um símbolo que demarca uma transformação significativa. O que você pensa a respeito disso?

3 TEORIAS SOBRE O FINAL DA IDADE MÉDIA

Além das controvérsias sobre o período e as causas do início da Idade Média, há divergência entre os historiadores sobre as causas e o momento do final do período. Essas divergências refletem, como você pode imaginar, perspectivas particulares de cada estudioso sobre os significados da Idade Média e, também, da Idade Moderna.

Não nos estenderemos, agora, nesse ponto. Veremos apenas algumas das perspectivas mais comuns sobre o tema.

3.1 A TEORIA CLÁSSICA

A maioria das interpretações sobre o final da Idade Média está baseada na ideia do renascimento comercial, que teria levado, de um lado, ao fortalecimento da burguesia e, de outro lado, ao enfraquecimento do feudalismo. Esses dois fenômenos costumam vir relacionados, como se se tratasse de uma “troca de guarda” nas relações de domínio social e dos modos de produção: o fortalecimento do comércio e da burguesia levaria necessariamente ao enfraquecimento do poder dos senhores feudais.

Esta relação não é totalmente absurda. Existe, de fato, uma vinculação entre a perda do poder senhorial, baseado na posse da terra, com a formação da burguesia, que acontece no momento em que o dinheiro volta a circular na Europa Ocidental.

No entanto, precisamos apontar que essa explicação não é, em si mesma, satisfatória:

1. A transformação da sociedade medieval na sociedade moderna não se deu apenas por motivações econômicas. Há uma série de transformações culturais

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

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envolvidas nesse processo e elas não podem ser explicadas simplesmente pelo retorno do comércio.

2. A transformação não aconteceu de forma homogênea: cada região fez a “transição” de sua versão local de “Idade Média” para sua versão local de “Idade Moderna” em seu próprio período histórico, à sua própria maneira e com suas próprias características.

3. A transformação não foi completa: estudiosos como Mikhail Bakhtin, Robert Darnton e outros mostram que a cultura popular na Idade Moderna guardava muitos elementos medievais, e as estruturas políticas feudais só foram extintas após as Revoluções: Gloriosa (na Inglaterra), Industrial, Francesa e Russa.

Talvez, em parte, o argumento possa ser resumido da seguinte forma: a Idade Média, se é que é possível resumir com esse termo um período tão longo e tão complexo, é complexa demais para caber em qualquer tentativa de definição, explicação e conceitualização.

A única forma de compreendermos esse período é analisá-lo em detalhes, relacionando a maior quantidade de fatores possíveis e levando sempre em conta a influência global nos casos locais.

3.2 A EXPLICAÇÃO A PARTIR DAS PERIODIZAÇÕES

Estabelecer marcos para o início e o fim de um determinado período é uma ferramenta útil e, ao mesmo tempo, perigosa. Seria ingênuo acreditar que um determinado acontecimento, por mais relevante que seja, vai alterar sozinho toda a percepção de mundo das pessoas, a ponto de precisar ser considerado como originador de uma nova “era”. Eras são conceitos criados pelos historiadores, e as periodizações, além de demarcarem os limites iniciais e finais desses períodos, servem para simbolizar e sintetizar as explicações que esses historiadores trazem para o período.

Vários momentos já foram propostos para demarcar o final da Idade Média. O marco tradicional adotado na historiografia francesa é o ano de 1453, em que ocorreram tanto a tomada de Constantinopla pelos turcos como o final da Guerra dos Cem Anos.

Na historiografia alemã costuma-se delimitar o início da Idade Moderna com a publicação das 95 Teses de Martinho Lutero, que marcou a Reforma Religiosa, em 1517.

Há também quem defina a descoberta da América, em 1492, como o marco fundamental do início da Era Moderna. Cada uma dessas datas, como você pode imaginar, já traz em si uma explicação do que seria a Idade Média e o período que a sucedeu. O historiador dá pistas muito importantes sobre a interpretação que deseja para a história que está contando ao determinar onde ela termina.

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TÓPICO 2 | A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA

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Mas mais importante, talvez, do que definir um “ponto de virada”, é perceber que qualquer periodização é arbitrária e reducionista e que a história é muito mais complexa do que pode ser expresso por uma datação. As datações têm finalidades sobretudo didáticas, ainda que, ao serem estabelecidas, determinem uma teoria explicativa sobre os períodos históricos que tem também finalidades políticas e ideológicas.

AUTOATIVIDADE

Prezado(a) acadêmico(a), você consegue imaginar quais seriam as “explicações” para o surgimento e para o final da Idade Média que são apresentadas por historiadores que usam os marcos que já vimos até agora? Queda de Roma/tomada do Mediterrâneo pelos árabes, para o início; tomada de Constantinopla/descoberta da América/Reforma Religiosa, para o final? Você consegue imaginar outras possíveis periodizações? Conseguiria sintetizá-las entre dois eventos? Consegue perceber que essas sintetizações são completamente arbitrárias?

3.3 JACQUES LE GOFF E A “LONGUÍSSIMA IDADE MÉDIA”

Jacques Le Goff, um dos mais renomados medievalistas (estudiosos da Idade Média) franceses, caracteriza o período medieval a partir de uma perspectiva mais ampla do que a maioria dos historiadores. Do ponto de vista econômico e social, especialmente entre os segmentos populares, Le Goff (2008) considera que as características da Idade Média mantiveram-se muito fortemente em meio à cultura popular até muito além do século XVI.

Do ponto de vista cultural e das mentalidades, especialmente entre as classes populares, a Idade Média teria se estendido, com poucas alterações fundamentais, até a Revolução Industrial.

De acordo com Le Goff, o Renascimento não se constituiu numa ruptura assim tão grande com a Idade Média, como Petrarca e outros pretendiam que ele fosse. Houve, aliás, outros renascimentos antes do ocorrido entre os séculos XIV e XVI: o Renascimento Carolíngio nos séculos VIII-IX, a Escolástica nos séculos XII-XIII, para não mencionar os períodos de florescimento cultural em outras culturas, como a islâmica e a bizantina.

“Renascimentos”, portanto, são relativamente comuns, e ocorreram também em épocas consideradas “atrasadas”.

Le Goff (2008) explica essa tese a partir de algumas constatações. A perspectiva humanista formulada pela Igreja durante a Idade Média - especialmente após a Escolástica – baseou até mesmo a Declaração dos Direitos do Homem surgida na

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

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Revolução Francesa. As noções medievais de trabalho e a organização do tempo medieval prevaleceram na Europa até o advento da Revolução Industrial. Claro que houve mudanças profundas entre 1450 e 1850, mas para Le Goff é possível perceber continuidades importantes.

3.4 QUAL PERIODIZAÇÃO ADOTAR?

O período conhecido como “Baixa Idade Média” é, como praticamente todos os conceitos históricos (e você nos verá criticando muitos deles), sujeito a muitas controvérsias, seja na determinação de seus marcos inicial e final, como na descrição de suas características.

A historiografia francesa costuma dividir a Idade Média em Alta Idade Média, Idade Média Central e Idade Média Tardia. A britânica, em Idade Média Inicial (Early Middle Ages), Alta (High M.A.) e Tardia (Late M.A.). Nas línguas latinas, os historiadores preferem falar em Alta e Baixa Idade Média ou outros termos. Como se pode ver, a periodização varia imensamente e o mesmo termo pode se referir a períodos muito diferentes.

Neste Caderno de Estudos utilizamos, tanto quanto possível, todos esses conceitos: consideramos a “Baixa Idade Média” o período posterior ao ano 1000 – do século XI até o século XV, aproximadamente. Falaremos, no entanto, também em Idade Média Tardia, correspondendo ao final da Baixa Idade Média, a partir de 1200, aproximadamente.

Essas divisões, é claro, são completamente arbitrárias e, como você já deve ter percebido, não correspondem a divisões precisas nas sociedades: têm uma finalidade sobretudo didática. Entendemos, porém, que essa divisão da Baixa Idade Média em duas partes é útil, por razões que ficarão mais claras na Unidade 3.

Em nossa definição, portanto, a Baixa Idade Média “propriamente dita” (1000-1200) marca, grosso modo, o auge do sistema feudal, e a Idade Média Tardia corresponde justamente ao “desmonte” desse sistema.

Prezado(a) acadêmico(a), apresentamos a você um trecho de um livro de Gerald Hodgett intitulado “História social e econômica da Idade Média”. Nesse trecho, o autor faz uma discussão historiográfica sobre o tema do comércio na Alta Idade Média, colocando diversos pontos de vista. É interessante para você perceber como esse tipo de discussão costuma ser conduzido pelo historiador e como, apesar de parecer à primeira vista uma discussão árida, ela pode conter elementos interessantes. Boa leitura!

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TÓPICO 2 | A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA

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LEITURA COMPLEMENTAR

Prezado(a) acadêmico(a), apresentamos a você um trecho de um livro de Gerald Hodgett intitulado “História social e econômica da Idade Média”. Nesse trecho, o autor faz uma discussão historiográfica sobre o tema do comércio na Alta Idade Média, colocando diversos pontos de vista. É interessante para você perceber como esse tipo de discussão costuma ser conduzido pelo historiador e como, apesar de parecer à primeira vista uma discussão árida, ela pode conter elementos interessantes. Boa leitura!

HISTÓRIA SOCIAL E ECONÔMICA DA IDADE MÉDIA

Gerald Hodgett

[...] A tese de Pirenne foi que após 570, aproximadamente, o comércio através do Mediterrâneo começou mesmo a expandir-se até o princípio do século VIII.

Em seu famoso livro Mahomet et Charlemagne, ele expressou a opinião de que o comércio mediterrâneo, “le grand commerce”, foi desfeito não pelas invasões germânicas do século V, mas pelos avanços islamíticos em fins do século VII. Isso foi o que causou o declínio da economia da Europa durante o período carolíngio, e Pirenne acreditava que, a partir de 700, aproximadamente, teve início uma era de estagnação. Julgou que, como resultado direto dessa estagnação econômica, os governantes carolíngios foram forçados a adotar uma economia dominial onde a produção se concentrava nas grandes villae, uma economia que estava muito pouco distante de uma economia de troca direta – “um período sombrio de estagnação e retrocesso na vida econômica”.

Essa interrupção no comércio resultou da descontinuidade daquilo que o vinha mantendo em movimento, a saber, abundantes ofertas de ouro de Constantinopla, que era obtido nas minas da Núbia. Após a conquista do Egito pelos islamitas em 641, o Império viu-se privado dessa fonte de oferta de metais preciosos.

Alguns papiros ainda conseguiam atravessar, como demonstra o privilégio concedido a Corbie em 718, mas, de modo geral, após meados do século VII, o ouro bizantino não mais chegava ao Ocidente e os mercadores bizantinos passaram a compensar a perda do comércio ocidental voltando-se para a Ucrânia. Ao redor de 700, portanto, o foco do comércio bizantino voltou-se para o Oriente, como havia ocorrido no final do século IV e século V.

O esvaziamento do comércio através do Mediterrâneo fez que os carolíngios se voltassem para o Norte, onde havia uma atividade comercial centralizada ao redor da foz do Reno em Duurstede e em Quentovic, nas proximidades de Etaples no Passo de Calais. A prata tomou o lugar do ouro e espalhou-se no Sul da Frância como sendo a moeda corrente para o comércio que lá prosperava.

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

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No julgamento de Pirenne, o abandono do ouro era um indício seguro do declínio de “le grand commerce”. O Império Carolíngio foi assolado pelas incursões de sarracenos e de nórdicos, os quais não pôde impedir. Dopsch discordou da tese de Pirenne acerca de uma economia em estagnação e insistiu em que não houve interrupção brusca entre o comércio merovíngio e o carolíngio.

Certos aspectos das opiniões de Pirenne não são mais aceitáveis pelos estudiosos. Baynes julgou que suas alusões aos mercadores sírios mencionados por Gregório de Tours não provavam a continuidade do comércio1. Lopez, apesar de concordar que, culturalmente, o avanço islamítico foi mais disruptivo do mundo romano do que haviam sido as ocupações germânicas, discorda em muitos detalhes econômicos2. Argumenta particularmente que muitos dos “desaparecimentos” na Europa ocidental, que, para Pirenne, coincidiram com o controle da Europa ocidental pelos muçulmanos, não foram contemporâneos, quer em relação ao avanço árabe, quer um em relação ao outro. [...] Como Lopez demonstrou, a oferta de papiro não cessou com a conquista do Egito; pelo contrário, as fábricas, que contavam em grande parte com o trabalho de cristãos, continuaram a produzi-lo e os muçulmanos a exportá-lo para Constantinopla, onde o Código de Justiniano, ainda em vigor, exigia que certos documentos fossem redigidos em papiro. [...]

Portanto, é incorreto dizer que o avanço muçulmano causou o término do comércio mediterrâneo. A ruptura ocorreu cerca de cinquenta anos mais tarde e foi o resultado das hostilidades entre o Império e o Islã. Essas hostilidades provocaram a interrupção da circulação das moedas de ouro bizantino nos territórios islamíticos e na área do Mediterrâneo em geral.

O papiro desapareceu por completo somente no século X, quando os egípcios pararam de fabricá-lo, pois o papel havia assumido seu lugar nos domínios islamíticos. O imperador em Constantinopla, e gradualmente toda a Europa ocidental, passaram a utilizar o pergaminho, sendo que apenas o Papado resistiu à mudança até, aproximadamente, o fim do século X.

Dessa forma, os argumentos de Pirenne sobre o papiro são fracos e sua tese de que houve um súbito abandono por parte dos carolíngios da cunhagem em ouro merovíngia não pode ser mantida, pois, tanto Carlos Magno como Luís, o Piedoso, cunharam moedas de ouro. Como disse Renouard, ele não conseguiu substanciar sua tese de que a vida econômica na Europa ocidental se manteve com a mesma intensidade até o século VIII3.

Entretanto, como escreveu Vercauteren, nem todas as teorias de Pirenne podem ser derrubadas4. O conhecimento mais moderno e bem informado registra uma flutuação no comércio entre o início do século IV e o fim do século IX. Na bacia do Mediterrâneo, o comércio declinou no século IV e o princípio do século V, sendo revitalizado no século VI e princípio do VII e novamente reduzido no fim do século VII e princípio do VIII, permanecendo, provavelmente, em baixo nível durante todo o século IX.

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TÓPICO 2 | A IDADE MÉDIA NA HISTORIOGRAFIA

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Nem as invasões germânicas nem o avanço muçulmano mataram-no completamente, e havia a compensação de vínculos comerciais em outros lugares. No Norte, o comércio floresceu no século VI, em fins do século VIII e no século IX, estando relacionado a um grande renascimento do comércio efetuado pelos vikings, que estabeleceram vínculos comerciais da Escandinávia até Constantinopla através da Rússia.

É indubitável que as trocas comerciais como um todo, entre a Europa ocidental e a oriental, declinaram devido à diminuição do poder de compra (ouro) no Ocidente5, mas se esse declínio foi catastrófico, é uma questão em aberto. Parece que a procura efetiva potencial de artigos orientais teria sido satisfeita, pois, em fins do século X, os grandes senhores eclesiásticos e leigos dispunham de muita riqueza acumulada em barras de ouro e joias que foram fundidas e utilizadas quando, ao aproximar-se o fim daquele século e durante o seguinte, o comércio começou a revitalizar-se. Lopes julga que a oferta de ouro pode ter sido insuficiente e que isso pode ter refreado o crescimento econômico do século XI, mas o comércio do século V ao IX não foi limitado seriamente pela falta de metal precioso. Seja como for, parece que seria razoável admitir-se a possibilidade de um declínio em relação ao florescente comércio da Roma imperial que prevaleceu durante os primeiros 250 anos da era cristã.

Deve-se atentar constantemente para um fato: para escrever a história do comércio europeu durante esses seis ou sete séculos, dispomos de pouco mais que referências ocasionais em crônicas e alguns dados arqueológicos em forma de descoberta de moedas.

NOTAS [conforme o original]

1 N.H. Baynes, “Pirenne and the unity of the Mediterranean world”, J. Rom. Studies, XIX (1929), 230-5.2 R. S. Lopez, “Mohammed and Charlemagne: a Revision”.3 Y. Renouard, Hommes d’Affaires Italiens (Paris, Colin, 1949), p. 8.4 F. Vercauteren, “Monnaie et circulation monétaire en Belgique e dans le Nord de la France du Ve au XIe siècle”, Settimane di studio... di studi sull’alto medioevo, Spoleto, VIII (1961), 279-311.5 No que concerne às razões monetárias que levaram à substituição do ouro pela prata no Ocidente, ver P. Grierson: “The monetary reforms of ’Abd al-Malik”, J. of the Economic and Social History of the Orient, III, 3 (1960), 241 e ss.

FONTE: HODGETT, Gerald A.J. História social e econômica da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 56-60.

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico você viu que:

O início da Idade Média costuma ser associado à queda do Império Romano, embora nem todos os estudiosos concordem com essa perspectiva.

Edward Gibbon, no século XVIII, entendia a queda do Império Romano como uma perda da virtude moral, e que o advento do Cristianismo teria favorecido as invasões bárbaras.

Toynbee considerava que o Império Romano já continha em si os elementos que levariam à sua derrocada.

Henri Pirenne, divergindo da maioria dos estudiosos, considera que a queda do Império Romano não foi o momento fundante da Idade Média; a grande transformação teria sido posterior, quando do fechamento do comércio mediterrâneo em consequência do avanço muçulmano.

A teoria clássica sobre o final da Idade Média vincula o enfraquecimento do feudalismo ao ressurgimento do comércio.

Jacques Le Goff considera que a Idade Média se estende, de alguns pontos de vista econômicos e sociais, até o século XVIII.

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1 Que relações podem ser estabelecidas entre a ideia de Gibbon e o contexto histórico em que ele vivia, de difusão dos ideais iluministas?

2 Baseado nas teorias apresentadas nesta seção, tente elaborar uma explicação abrangente para a decadência do Império Romano do Ocidente e o surgimento do mundo medieval.

AUTOATIVIDADE

Assista ao vídeo deresolução da questão 2

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TÓPICO 3

ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃO

No tópico anterior tratamos da forma como os estudiosos interpretaram a transformação do mundo antigo na sociedade medieval. Agora, conheceremos os eventos que levaram a essa transformação, para podermos, nós mesmos, avaliar o processo. Isso ocorreu no período que se costuma chamar, atualmente, de Antiguidade Tardia: um período situado, de forma imprecisa, entre os primórdios da era Cristã e a quebra do poder político romano, seja com as invasões germânicas, seja com o avanço muçulmano.

Você perceberá, à medida que for tomando conhecimento de detalhes dessa transformação, que vários dos preconceitos mais comuns sobre a Idade Média, especialmente no que se refere aos povos germânicos, estão vinculados a esse período, mas não têm razão de ser.

No final do tópico, as leituras complementares escolhidas reforçarão mais ainda essa nossa afirmação e trarão um panorama mais amplo sobre o quotidiano dos homens do início do período medieval. Boa leitura!

2 O AUGE E A DECADÊNCIA DO IMPÉRIO ROMANO

As conquistas militares sempre estiveram no centro da estrutura do Estado romano e foram elas que possibilitaram a grandeza e a glória do Império. A conquista de territórios possibilitava a ampliação das áreas sob o comando de Roma, garantindo a paz ao livrar as fronteiras da presença dos povos bárbaros. Com as conquistas, eram transformados em escravos (e, geralmente, transferidos para outras partes do Império). Foi essa quantidade enorme de escravos que

UNI

Prezado(a) acadêmico(a)!Vamos falar sobre o processo de transformação do Império Romano na cultura

medieval. Repare, ao longo do texto, que várias das características medievais estão surgindo nesse momento.

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

pôde manter o modo de vida luxuoso dos patrícios romanos. No entanto, como a escravidão era baseada essencialmente nos prisioneiros de guerra, era necessário conquistar terras sem parar, sob risco de o sistema econômico entrar em colapso.

No entanto, muitas conquistas significavam muitos problemas. Havia a necessidade de ocupar essas regiões, fundar e manter cidades e garantir o bem-estar dos romanos que lá vivessem. Regiões muito distantes eram de difícil controle e os transportes terrestres não eram tão bons quanto os marítimos. Por esse motivo, o Império Romano pôde desenvolver-se com facilidade ao redor do Mar Mediterrâneo, ao passo que enormes regiões na Europa, ao norte dos rios Reno e Danúbio, permaneceram de fora, servindo de lar a dezenas de povos nômades e externos à cultura romana (chamados ‘bárbaros’ por eles). Com o tempo, a administração dessa máquina militar e administrativa tornou-se excessivamente cara, especialmente pela necessidade de se manter um exército muito grande e muito poderoso, e as conquistas se tornaram inviáveis.

O reinado de Trajano assistiu à máxima expansão do Império, com a breve conquista da Armênia e da Mesopotâmia, em 116-177 d.C. A partir desse momento, as conquistas praticamente cessaram e a estrutura econômica baseada no escravismo lentamente entrou em decadência.

FIGURA 1 – IMPÉRIO ROMANO EM SUA MÁXIMA EXTENSÃO, SOB TRAJANO (177 D.C.)

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/0/00/Roman_Empire_Trajan_117AD.png/800px-Roman_Empire_Trajan_117AD.png>. Acesso em: 15 fev. 2013.

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TÓPICO 3 | ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA

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2.1 POR QUE A DECADÊNCIA?

Provavelmente, você vai se perguntar: como é possível que um império tão extenso e poderoso como o romano entrasse em decadência? A resposta é complexa e envolve diversos fatores: sociais, culturais, políticos e religiosos. A própria preocupação que temos com a “decadência” de Roma já é, em si só, significativa: desde Gibbon, pelo menos, essa é uma questão que assombra os estudiosos.

Como vimos no tópico anterior, os estudiosos sempre analisam a História a partir de questões com que se deparam em sua própria época. Seria a preocupação com a queda do Império Romano um reflexo do temor de decadência da nossa própria sociedade?

Ocorre que o Império Romano era mais frágil do que parecia. Mesmo hoje, as modernas estratégias de administração e as tecnologias avançadas de comunicações e transportes nem sempre são suficientes para garantir a eficiência do governo de um território tão extenso como era o do Império Romano, que dirá há mais de 1.500 anos!

A aparente pujança do Império era ilusória ou no mínimo uma memória de um passado distante. Toynbee (1986) considerava, como vimos no tópico anterior, que o Império já havia sido criado em um formato politicamente disfuncional e que a autoridade do imperador foi mantida à custa de muito sangue, pois do contrário seria insustentável.

Não havia um sistema eficiente e seguro de arrecadação de tributos, por isso o Império não dispunha de recursos suficientes para manter uma burocracia funcional. O resultado era uma concentração exagerada de poder e riqueza nas mãos do imperador. No entanto, dependia da força do exército e de conspirações palacianas para manter-se no poder.

No momento em que os imperadores decidiram (ou precisaram) interromper as conquistas, cessou o crescimento, cessaram os recursos para o Exército (que já eram mal geridos) e lentamente declinou a autoridade imperial.

2.1.1 O fim das conquistas militares

As conquistas não poderiam mesmo prosseguir indefinidamente. Apesar de sua finalidade ser a exploração dos recursos e a escravização das populações, conquistar uma determinada região implicava trazê-la para o mundo romano, e, consequentemente, colonizá-la. Isso significava a concessão de terras para colonos ricos, a construção de estradas, a transferência de população para o local,

NOTA

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

o estabelecimento de uma burocracia e uma estrutura urbana em alguns lugares e a manutenção de tropas legionárias enquanto a região ainda oferecesse riscos de insurreição ou estivesse na fronteira do Império. Por vezes, as legiões ficavam muitas décadas estacionadas na mesma região.

Avançar, às vezes, era arriscado. Rios largos como o Reno e o Danúbio eram fronteiras naturais relativamente fáceis de manter, mas conquistar a margem oposta deixaria as novas regiões vulneráveis. A menos que toda a nova região de vastas planícies fosse ocupada até o próximo rio, o custo de manter legiões voltadas para regiões abertas poderia ser proibitivo. Na Bretanha, a solução encontrada foi construir a Muralha de Adriano, para isolar os povos gaélicos do norte. Em outras regiões, como a Germânia, os conflitos eram inevitáveis.

A conquista da Dácia (atual Romênia), em 105-106 d.C., demonstrou com clareza essa dificuldade. A região, localizada além-Danúbio, era a única do Império que não tinha uma barreira natural em sua fronteira exterior, e sua colonização foi tarefa complexa e que em poucos anos malogrou. A grande diminuição populacional (os dácios foram escravizados e movidos para outras regiões do império) não foi compensada pelo afluxo de imigrantes de outras regiões do Império, de modo que a região ficou bastante despovoada. A instabilidade militar e o despovoamento das províncias limítrofes levaram ao seu abandono pelo Imperador Aureliano em 271.

2.1.2 A crise do século III

No início do século III, o império estava enfraquecido e ameaçado por dois inimigos poderosos: os diversos povos germânicos ao norte, e o Império Sassânida (de origem persa) a leste. A necessidade de garantir a segurança das duas fronteiras gerava gastos extraordinários e uma tensão permanente entre os comandantes militares e o imperador. As dificuldades fariam o Império mergulhar em uma profunda crise econômica durante pelo menos metade do século III (235-285).

O final das conquistas militares gerou, como vimos, uma diminuição da oferta de escravos no Império. Apesar de a condição escrava ser hereditária, os escravos conseguiam, aos poucos, libertar-se e a seus descendentes dessa situação, e não havia mais como repor esse tipo de trabalho.

Por outro lado, não havia na Roma imperial uma situação econômica que favorecesse o trabalho livre, muito menos o assalariado, em grande escala, de modo que os escravos pudessem simplesmente ser absorvidos em uma economia urbana de mercado. Muito ao contrário, a crise e a concentração de legiões nas fronteiras enfraqueceram as rotas comerciais entre as províncias.

O resultado foi uma diminuição do poderio econômico das cidades e um verdadeiro êxodo urbano. Preocupados em garantir sua sobrevivência, muitos romanos buscaram seu sustento no campo, onde poderiam produzir seu próprio

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TÓPICO 3 | ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA

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alimento, mas deviam oferecer alguma compensação para o chefe local, único capaz de garantir efetivamente sua segurança.

Mas, e o Estado? Como vimos, o Estado romano não era forte o bastante para garantir a segurança da população, e os imperadores viviam assolados por conspirações.

Em parte, a crise do período entre 235 e 285 foi gerada pela fórmula da sucessão imperial. Como não havia um sucessor direto, a disputa era intensa, e quase todos os imperadores desse meio século (dos 25 imperadores, houve apenas duas exceções) foram mortos em combate ou assassinados.

Junte-se a isso e às dificuldades econômicas uma série de epidemias de peste, e torna-se fácil compreender de que forma o império mergulhou em uma crise tão profunda.

FIGURA 2 - O IMPÉRIO PERSA DA DINASTIA SASSÂNIDA (226-651)

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/f/f0/Sassanid_Empire_226_-_651_%28AD%29.GIF/769px-Sassanid_Empire_226_-_651_%28AD%29.GIF>. Acesso em: 15 fev. 2013.

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

OS SASSÂNIDASOs Sassânidas foram uma dinastia persa que reinou no chamado Segundo Império Persa, entre 226 e 651 d.C. Seu primeiro período de apogeu, entre 309-379, coincidiu em grande parte com o período de queda do Império Romano. Seus territórios iam, em sua máxima extensão, da Líbia à Índia, do Iêmen ao lago Baikal (Rússia), chegando a incluir toda a Ásia Menor (atual Turquia). Sua religião era o Zoroastrismo. O Império Persa durou até o momento da grande expansão árabe do século VII, quando, enfraquecido pelos conflitos com o Império Bizantino, não resistiu ao avanço fulminante do Islã.

FIGURA 3 - MÁSCARA DE OURO REPRESENTANDO O REI SASSÂNIDA YAZDGIRD III

FONTE: Disponível em: <http://iranpoliticsclub.net/library/english-library/222-years1/images/Yazdgird%20III%20 Sassanid%202.jpg>. Acesso em: 14 nov. 2012.

No Oriente, o antigo Império Persa se reorganizava sob os Sassânidas e assustava os imperadores romanos. No norte, os germânicos (chamados de “bárbaros” pelos romanos) começavam a entrar no Império. Mesmo nas províncias africanas havia pressão de povos vizinhos, como os garamantes.

NOTA

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TÓPICO 3 | ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA

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O termo “bárbaros” significava, originalmente, estrangeiros – para os gregos, eram os que não falavam seu idioma. Os romanos do final do Império viam os bárbaros germânicos com temor, e depreciavam a sua cultura por não terem uma organização social tão sofisticada quanto a do Império. Com o tempo, o termo “bárbaro” ganhou o sentido de violento ou ignorante, de modo que precisamos tomar cuidado com o seu uso.

Prezado(a) acadêmico(a), você consegue perceber como é tendenciosa a denominação “invasões bárbaras”? E como é fácil perceber ‘de que lado estava’ quem criou essa denominação? O termo em alemão, para as ‘invasões bárbaras’, pode ser traduzido como “migração dos povos”. (Como você pode imaginar, os alemães, que são descendentes dos povos ‘invasores’, não iriam referir-se como “bárbaros” a seus próprios ancestrais)!

2.2 OS REFORMADORES: DIOCLECIANO E CONSTANTINO

Diocleciano (284-305) pôs fim à maior parte dos conflitos ao iniciar reformas profundas, que teriam consequências muito importantes para o futuro do Império. Fortaleceu o exército, permitindo o recrutamento dos bárbaros, neutralizou o Senado e, em 286, dividiu o império em uma parte ocidental, entregue ao seu grande amigo Maximiano, e uma parte oriental – que daria origem ao Império Bizantino –, que conservou para si. Essa divisão marcava uma profunda distinção que já havia entre as metades do Império e que se acentuariam muito nos séculos seguintes.

FONTE: Disponível em: <http://go.hrw.com/venus_images/0304MC05.gif>. Acesso em: 20 maio 2012.

ATENCAO

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

FIGURA 4 - A DIVISÃO DO IMPÉRIO ROMANO POR DIOCLECIANO, 395 D.C.

FONTE: Disponível em: <http://go.hrw.com/venus_images/0304MC05.gif>. Acesso em: 15 fev. 2013.

O Império Bizantino será estudado na Unidade 2 deste Caderno de Estudos.

Além disso, nomeou dois césares, para auxiliar os imperadores: Constâncio foi o César de Maximiano e Galério, o de Diocleciano. Este sistema, conhecido como tetrarquia, só foi eficiente durante o reinado de Diocleciano, devido em parte às relações de amizade entre os governantes. A partir de 305, com a renúncia dos imperadores em favor dos césares, o sistema entrou em crise. No ano seguinte, Constantino, filho de Constâncio, foi proclamado imperador por suas tropas.

Dentre suas realizações, fundou a cidade de Constantinopla e tornou-a capital do Império. Constantino também é conhecido por suas ações em relação ao Cristianismo: em 313, liberou o culto e, anos mais tarde, tornou-se ele próprio um cristão.

Com a conversão de Constantino, a Igreja passou a desfrutar de uma posição bastante poderosa na política romana, como veremos no Tópico 4 desta unidade.

ESTUDOS FUTUROS

ESTUDOS FUTUROS

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TÓPICO 3 | ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA

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2.3 AS ORIGENS REMOTAS DO FEUDALISMO

Como dissemos anteriormente, a divisão do Império consolidava uma cisão que já existia entre as partes ocidental e oriental. Essa divisão não era simplesmente geográfica: havia muitas diferenças entre as duas partes do Império.

Uma das principais diferenças era econômica. A parte oriental era muito mais rica do que a ocidental, por ter ocupação muito mais antiga e intensa, um comércio mais vigoroso e cidades mais populosas. Por mais que tentassem preservar o seu ouro, os imperadores do Ocidente, ao contrário de seus equivalentes orientais, não conseguiam conter a fuga ou a estocagem de recursos, e o resultado foi uma séria crise inflacionária. Com o dinheiro perdendo praticamente todo o seu valor, cada vez mais a economia monetária, baseada no ouro e em outros metais, foi sendo substituída por uma economia natural no Império ocidental.

Economia natural: é o nome que se dá a uma forma de produção que não envolve o uso do dinheiro. Nesse tipo de produção, as pessoas em geral se dedicam à subsistência, e os poucos produtos restantes são trocados por mercadorias de valor equivalente.

AUTOATIVIDADE

Tente imaginar a vida moderna baseando-se nas trocas de produtos e em pagamentos in natura. Seria possível? Se o dinheiro não circulasse entre nós, seria viável vivermos em cidades? Como as pessoas fariam para sobreviver?

Isso gerou tremendas consequências para o Império. Os impostos e salários começaram a ser pagos in natura, o que era muito vantajoso para os soldados e os funcionários civis. O desperdício na cobrança de impostos que a cobrança in natura causava forçou o Imperador Diocleciano a reforçar o exército com os bárbaros, que eram pagos em terras. Os colonos mais pobres ficavam arruinados com a exigência de pagamento dos impostos e ameaçavam abandonar suas fazendas, pondo em risco a produção agrícola.

NOTA

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

Antes de continuar a leitura, imagine que atitudes os imperadores romanos poderiam tomar para tentar conter esse abandono das fazendas.

A solução encontrada foi obrigar os trabalhadores a permanecerem para sempre em suas atividades e, mais tarde, tornar hereditária essa condição. Dessa forma, os colonos pobres, tanto os pequenos proprietários como os arrendatários, se tornavam cada vez mais dependentes de um senhor poderoso e presos à terra em que viviam: começavam a tornar-se servos.

Servo é um termo que vem do latim servus, ‘escravo’. Apesar disso, os servos não eram escravos: estavam presos não a um senhor, mas à terra em que viviam. Mesmo assim, ao contrário do que se costuma pensar, a escravidão continuou existindo na Europa durante a Idade Média; apenas era mais rara. Geralmente, os escravos eram capturados de povos estrangeiros, especialmente muçulmanos, e havia muitos cristãos escravizados em terras islâmicas.

No final do século IV, a situação havia melhorado um pouco. A tendência à economia natural e à feudalização pôde ser revertida no Oriente, onde o dinheiro voltou a ser utilizado para pagar os impostos e salários, mas isso não foi possível no império ocidental. Em parte, isso pode ser explicado pela capacidade que o Império oriental tinha de resistir à pressão dos povos bárbaros. Como dispunha de muito dinheiro, o imperador de Constantinopla podia pagar aos invasores para que fossem embora, coisa que o imperador do Ocidente não conseguia fazer.

Observe que, até esse momento, as explicações para o colapso do Império Romano praticamente não fizeram menção aos bárbaros. Isso mostra que a ideia, muito comum, de que o Império teria caído simplesmente por causa das invasões bárbaras não é totalmente correta. O Império Romano do Ocidente já estava em franca decadência quando as invasões do século V ocorreram.

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IMPORTANTE

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TÓPICO 3 | ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA

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3 OS BÁRBAROS NO IMPÉRIO DO OCIDENTE

Desde o final do século II, os povos bárbaros vizinhos ao Império Romano estavam sendo progressivamente assentados como colonos em terras imperiais, na condição de foederati (federados), uma estratégia diplomática romana para conter os invasores, ao garantir a sua submissão (em latim, foedus).

Esses povos federados ganhavam o direito a ter um governo próprio e estavam isentos dos impostos romanos, mas deviam fornecer soldados ao exército quando necessário. Os romanos que vivessem em regiões dos foederati continuavam sujeitos às leis romanas. Dentre os povos federados nos séculos III e IV estão os francos, os godos (divididos em dois ramos, os ostrogodos e os visigodos), os alamanos, os saxões, os vândalos e vários outros.

Perceba que não estamos falando de pequenos bandos, mas de tribos inteiras, às vezes, milhares de pessoas, assentadas em terras romanas e mantendo sua autonomia e sua cultura no interior do Império!

AUTOATIVIDADE

De que formas as alianças com os foederati representavam um indício de fraqueza do Império Romano? Tente pensar em todas as razões que puder.

Havia problemas, porém, nessa aliança, para os romanos: os germânicos entendiam a condição de foederati como um contrato assinado entre líderes, não entre estados. Portanto, a aliança vencia, no seu entendimento, quando da morte do imperador romano. Isso se tornou problemático, especialmente nos séculos IV e V, quando os povos federados começaram a sofrer uma pressão intensa de um novo e terrível inimigo: os hunos.

O terror inspirado por esse povo nômade levou diversos povos a atravessarem as fronteiras do Império e lá se fixarem, inicialmente com a concordância dos romanos. Os godos, que tiveram seus dois reinos nas estepes ao norte do Mar Negro destruídos pela presença dos hunos, foram os primeiros, em 376. Dois anos depois, eles entraram em confronto com as legiões romanas na Batalha de Adrianópolis. A vitória dos godos, atribuída à força de sua cavalaria e aos sérios erros estratégicos do exército imperial, é considerada um dos grandes marcos da decadência final do poderio romano. A partir deste momento, diversos povos germânicos se estabeleceriam dentro do Império e começariam a constituir seus domínios.

ATENCAO

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

Como você provavelmente já sabia ou já percebeu, o que chamamos de reinos bárbaros (que serão vistos com mais detalhe no próximo tópico) surgiram dos domínios que os germânicos passaram a conquistar. O grande sentido de lealdade dos germânicos a seus líderes lhes deu o status de reis, e as leis próprias que eles podiam seguir lhes davam autonomia como reinos. Posteriormente, a associação desses reis com a Igreja consolidou a aura de divindade que estava associada à nobreza.

Uma tentativa de invasão da Itália foi rechaçada pelo general Estilicão (que era de origem vândalo-romana). Após a morte de Estilicão, o chefe godo Alarico comandou um cerco a Roma e, em 410, tomou a cidade e saqueou-a durante três dias.

São Jerônimo descreveria o saque de Roma em tom de lamentação, da seguinte forma:

Quem acreditaria que Roma, edificada pelas vitórias sobre todo o universo, viesse a cair; que tivesse sido simultaneamente a mãe das nações e o seu sepulcro; que as costas do Oriente, do Egito e da África, outrora pertencentes à cidade dominadora, fossem ocupadas pelas hostes dos seus servos e servas; que em cada dia a santa Belém recebesse como mendigos pessoas de um e outro sexo que haviam sido nobres e possuidoras de grandes riquezas? (apud ESPINOSA, 1981, p. 9).

À medida que os povos germânicos invadiam com mais intensidade o Império, os hunos começaram a se tornar cada vez mais ameaçadores ao próprio Império Romano.

3.1 OS HUNOS

Há muitas controvérsias sobre a unidade étnica e linguística desse povo – como, de resto, também entre os povos germânicos. Os hunos eram uma confederação de povos nômades, provavelmente originários das estepes da Ásia Central (região entre o Mar de Aral e a Mongólia), que falavam uma língua provavelmente aparentada ao turco.

O historiador de origem grega Amiano faz uma descrição dos hunos que dá uma demonstração clara do terror que esses homens infundiam nos romanos:

Todos eles têm membros compactos e firmes, pescoços grossos, e são tão prodigiosamente disformes e feios que os poderíamos tomar por animais bípedes ou por toros desbastados em figuras que se usam nos lados das pontes.

ATENCAO

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TÓPICO 3 | ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA

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Tendo, porém, o aspecto de homens, embora desagradáveis, são rudes no seu modo de vida, de tal maneira que não têm necessidade nem de fogo nem de comida saborosa; comem as raízes das plantas selvagens e a carne semicrua de qualquer espécie de animal que colocam entre as suas coxas e os dorsos dos cavalos para as aquecer um pouco.

Vestem-se com tecidos de linho ou com as peles de ratos silvestres cosidas umas às outras, e esta veste serve tanto para uso doméstico como de fora. Mas uma vez que meteram o pescoço numa túnica desbotada, não a tiram ou mudam até que pelo uso quotidiano se faça em tiras e caia aos pedaços. (apud ESPINOSA, 1981, p. 4-5).

FIGURA 5 - COMPARAÇÃO ENTRE UM SOLDADO GERMÂNICO (ESQUERDA), UM OFICIAL HUNO (CENTRO) E UM GUERREIRO HUNO (DIREITA)

FONTE: Disponível em: <http://www.ernak-horde.com/huns.jpg>. Acesso em: 18 out. 2012.

Além de assustadores em sua aparência e seus modos, os hunos amedrontavam os romanos por serem extraordinários guerreiros: sob o comando de Átila (406-453), ameaçaram a unidade do Império do Oriente, chegaram às portas de Constantinopla e de Roma (embora não tenham saqueado nenhuma das duas cidades) e, entre os dois eventos, chegaram a colaborar com o Império do Ocidente na luta contra os visigodos.

Os hunos chegaram a criar um império nômade que se estendia da atual Alemanha até os montes Urais (na Rússia, no limite tradicional entre a Europa e a Ásia), e do Mar Negro e rio Danúbio até o Mar Báltico, ao norte. Com a morte de Átila, os hunos foram rapidamente dominados e seu império desmoronou.

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

FIGURA 6 - OS DOMÍNIOS HUNOS EM 450 D.C.

FONTE: Disponível em: <http://www.emersonkent.com/images/maps/roman_hunnic_empire_450.jpg>. Acesso em: 18 out. 2012.

Os domínios dos hunos, em sua máxima extensão, estendiam-se do rio Reno (na fronteira da Alemanha) até as proximidades do mar Cáspio, e da atual Estônia até o rio Danúbio.

3.2 A QUEDA DE ROMA

O colapso do império huno coincidiu com um enfraquecimento cada vez maior do Império Romano, que não conseguia mais honrar os acordos ou pagar os tributos que devia aos foederati. Em 476 d.C., Odoacro, líder dos hérulos, depôs Rômulo Augusto (ou Augústulo, como foi muitas vezes chamado, em alusão ao seu caráter fraco, o último imperador romano) e abriu caminho para a desagregação completa do império do Ocidente. A partir daí, consolidam-se os vários reinos comandados por germânicos, e novas ondas de imigração tornariam irreversível o processo de feudalização da Europa.

Prezado(a) acadêmico(a), apresentamos na Leitura Complementar a seguir o início do 4º Capítulo do livro Origens da Idade Média, de William C. Bark, onde o autor discute em linguagem informal as modificações pelas quais o mundo romano passou nos primeiros cinco ou seis séculos da nossa Era. Repare que, em um certo trecho do texto, o autor se dedica a atacar a teoria de Henri Pirenne sobre a permanência do mundo romano com os germânicos. Você consegue identificar onde? Releia o trecho correspondente no Tópico 2, se for necessário.

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TÓPICO 3 | ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA

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LEITURA COMPLEMENTAR

ORIGENS DA IDADE MÉDIAWilliam C. Bark

Se Júlio César ou Adriano, que muito viajaram pelo mundo civilizado de suas respectivas épocas, tivessem podido visitar a Europa do século V ou VI, teriam encontrado muitas alterações intrigantes na aparência externa do mundo que conheceram. Essas modificações, bastante acentuadas no Oriente, no Ocidente teriam sido ainda mais evidentes, especialmente no estado das cidades, grandes e pequenas, na composição e disposição dos exércitos, o caráter do transporte e do comércio, as ocupações quotidianas e mesmo a roupa do povo.

Ambos teriam sem dúvida considerado o Ocidente romano como inteiramente decadente. Mesmo assim, o teriam reconhecido. Embora César sem dúvida se pudesse aborrecer com o estado das armas romanas e Adriano entristecer-se com a sorte de suas grandes cidades, a “deterioração” que teriam encontrado seria pelo menos a deterioração de um ambiente, mais ou menos familiar, de criações e costumes romanos.

Muito mais surpreendente teria sido a descoberta, se lhes fosse possível fazê-la, de que por maiores que parecessem as modificações externas, eram pequenas se comparadas a certas alterações mais sutis da perspectiva, dos valores, dos modos de pensar e das aspirações. A evolução política, econômica e social [...] foi um movimento de repulsão às velhas práticas romanas, mas no qual ainda se identificavam as antigas instituições que haviam provocado. As demais modificações representavam um movimento no sentido de alguma coisa nova e inteiramente estranha à experiência de um César ou um Adriano, e dentro em breve se expressariam no comportamento externo, bem como no pensamento e no sentimento.

Os edifícios, ruas, teatros, obras de engenharia de uma grande cidade, nem sempre desaparecem quando os que foram capazes de planejá-los e executá-los já não existem. O túmulo de um imperador pode durar vários séculos, servindo posteriormente como palácio papal, e um palazzo pode continuar existindo como casa de cômodos. Mesmo assim, ainda há modificações: a roupa lavada é pendurada nas janelas da casa de cômodos, minaretes são acrescidos à Santa Sofia.

As modificações no reino do pensamento são mais difíceis de perceber. O sentido verdadeiro de uma instituição como o exército, ou o sistema de administração política, pode sofrer uma transformação vital sem se revelar em ajustes de nomes e aspectos. Nessas circunstâncias, uma organização social aparentemente vigorosa, uma religião, por exemplo, ou um sistema fiscal, pode tornar-se mera casca que não denuncia externamente a profunda alteração que sofreu.

A função do estudo histórico é interpretar a modificação como um todo, manter especificamente os sentidos internos que não se mostram na aparência externa. Não é necessário dizer que isso nem sempre é fácil. Como já vimos, o

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

vinho sírio era transportado para a França no século II, e também no século VI. O produto era o mesmo, o meio de transporte o mesmo, a fonte e o destino os mesmos: nada mais provável, portanto, que as condições continuassem as mesmas, que as circunstâncias predominantes no Mediterrâneo perdurassem.

A história não pode ser escrita sem analogias semelhantes, baseadas nesse tipo de fatos. Não obstante, nessa interpretação o historiador pode deixar de identificar novas evoluções de aspecto não familiar, pode passar sobre o trigo para ir ocupar-se do joio. Pode estar descrevendo o lado de fora de uma casca, deixando a impressão de que se trata mais do que de uma simples casca.

O objetivo deste capítulo é examinar quatro aspectos diferentes do novo mundo que se formava atrás da casca do velho, e era parcialmente obscurecido por ela. A modificação que marcou época, ou a série de modificações, ocorridas entre os séculos IV-V e IX-X, foram tanto internas como externas: 1) na forma pela qual os homens pensavam e nos objetos de seus pensamentos; 2) na forma pela qual viviam e se expressavam; 3) naquilo que julgavam compensador fazer; e 4) na forma pela qual o faziam. O que estava realmente ocorrendo nesse período — isto é, o que os homens faziam e os pensamentos que os levavam a tal ação — era muito diverso do que ocorrera na época do poderio romano. [...]

A tese primordial [...] deste trabalho como um todo é a de que algo novo, distinto e essencialmente original começou na parte europeia ocidental do Império Romano, que seus elementos são identificáveis a partir do século IV, e alguns até mesmo antes. Esse “algo de novo” talvez se compreenda melhor como uma nova atitude para com a vida. Nos séculos de sua formação, ela é parcialmente obscurecida pelas aparências externas dos remanescentes romanos, mais familiares e mais evidentes, pela turbulência da época e pela escassez de nossas fontes.

Grande parte das informações que mais gostaríamos de ter não pareceu aos contemporâneos como merecedora de ser preservada, sob qualquer forma; outra parte perdeu-se para nós em incêndios, guerras, mau trato. Talvez a pior ameaça de todas tenham sido certas ideias fixas poderosas: a preocupação com a imensa epopeia do declínio e queda, a opinião “autorizada” de que o princípio da Idade Média foi uma época de ignorância supersticiosa e letargia geral, animada apenas por instantes de violência e crueldade bárbaras. [...]

Sabemos agora que a Idade das Trevas não foi de trevas. Ignorância, letargia, desordem, existiram então como hoje, e longe estiveram de predominar numa época ansiosa de conhecimento, vigorosa em seu modo de viver e de se expressar, e idealista nas suas construções.

Talvez não seja demais dizer que a sociedade medieval tinha formas funcionais com que a idade antiga nem sonhara, formas essas que levaram a fins jamais imaginados em épocas anteriores. Por “funcional” entendo que era uma sociedade ativa, trabalhadora, experimentadora, cometendo erros frequentemente, mas também utilizando a energia de seu povo muito mais integralmente que suas

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TÓPICO 3 | ANTECEDENTES: A ANTIGUIDADE TARDIA

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predecessoras, e finalmente permitindo a esse povo um desenvolvimento muito mais amplo e mais livre.

O fato de que as condições, acontecimentos e povos se tivessem reunido de tal forma no princípio da Idade Média foi extremamente feliz para os atuais herdeiros da tradição ocidental.

FONTE: BARK, William C. Origens da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 97-101.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico você viu que:

O Império Romano estava desgastado com o fim das conquistas militares no século II, e iniciou um longo processo de decadência. Apesar de revertido parcialmente em alguns momentos, esse processo levou a uma ruralização progressiva da sociedade romana.

Os imperadores Diocleciano e Constantino fizeram reformas profundas na tentativa de salvar o Império da decadência. Dentre elas, a divisão do Império em Oriental e Ocidental e a aceitação de bárbaros no exército.

Os bárbaros passaram a ser assentados no interior do Império na condição de federados, tendo direito a seguir suas próprias leis e com grande autonomia em relação a Roma.

Os hunos foram um povo especialmente temido por bárbaros e romanos, e a pressão que eles faziam acelerou a queda do Império.

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1 Explique a relação entre a crise do escravismo e a decadência do Império Romano.

2 Estabeleça uma relação entre a pressão dos bárbaros e as crises políticas do Império.

3 Como foi dito no tópico anterior, William C. Bark acredita que o Império Romano caiu por causa das tentativas de mantê-lo. Encontre neste tópico elementos que permitam confirmar essa teoria.

AUTOATIVIDADE

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TÓPICO 4

O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃO

O período compreendido entre os séculos V e X, aproximadamente, costuma ser denominado pelos historiadores de Alta Idade Média. Foi um período marcado pela criação de reinos que, em um lento processo, promoveriam a integração entre as culturas tão diferentes dos romanos e dos germânicos, por meio da religião cristã. Esses reinos, no entanto, não tinham a unidade e a estabilidade que havia tido o Império Romano, de modo que, por volta do ano 1000, a ordem política da Europa era claramente fragmentada.

A única instituição que se manteve unida, nesse momento de fragmentação, foi a Igreja. De fato, a única noção de unidade que havia entre os homens medievais era a Cristandade. Neste tópico vamos estudar esse duplo processo de desagregação política e a unidade religiosa.

SUGESTÃO DE LEITURAPrezado(a) acadêmico(a), uma boa obra de referência para aprofundar seus conhecimentos acerca dos temas abordados neste tópico é: LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Bauru: Edusc, 2005.

Como vimos no tópico anterior, a presença dos bárbaros completou o processo de desagregação do Império Romano do Ocidente. Até o século V, diversos povos haviam invadido o Império, e começaram a criar domínios relativamente independentes (inicialmente na condição de foederati), que se tornariam os chamados reinos germânicos.

2 OS REINOS BÁRBAROS

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

Quem eram os POVOS BÁRBAROS?Constituíam os povos de origem germânica que habitavam as regiões ao norte, ao nordeste da Europa e noroeste da Ásia, na época do Império Romano. Os romanos se utilizavam da expressão "bárbaros" para designar todos aqueles que residiam nas regiões situadas além das fronteiras do Império Romano, e em especial que não falavam o latim, a língua oficial do Império.

Os reinos germânicos enfrentaram grandes dificuldades e dependiam da cooperação entre romanos e germânicos. Sem tradição de governos centralizados, os bárbaros confiavam muito mais na autoridade pessoal do líder e na sua capacidade de manter as tribos unidas do que nos preceitos do Direito Romano. A assimilação era dificultada pelas leis romanas, que não permitiam a realização de casamentos entre romanos e estrangeiros. Sendo assim, em muitas regiões levou mais de um século para que um processo de miscigenação realmente pudesse se iniciar.

Outro problema enfrentado pela maioria dos reinos bárbaros era religioso: no processo de migração, os bárbaros haviam sido, em sua maioria, cristianizados pela corrente ariana do Cristianismo. Para os católicos romanos, o arianismo era uma heresia, e os povos germânicos que a adotavam eram vistos, muitas vezes, como inimigos.

Arianismo é o nome que se dá a uma dissidência – ou heresia, na terminologia usada pelo Catolicismo romano – do Cristianismo que surgiu no início do século IV. A controvérsia gerada pelo arianismo será estudada em breve.

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ESTUDOS FUTUROS

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TÓPICO 4 | O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA

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FIGURA 7 - OS REINOS BÁRBAROS

FONTE: Disponível em: <http://www.igm.mat.br/homepage/joao_afonso/J.A/figuras_inhumas/reinos%20barbaros.jpg>. Acesso em: 20 fev. 2013.

Os principais povos germânicos a estabelecer reinos foram:

Anglo-Saxões: anglos, saxões, jutos, frísios e outros povos instalaram-se na foz do rio Reno. Alguns grupos migraram para a ilha da Grã-Bretanha no século V, dominaram as populações celtas originais e criaram reinos que durariam até a invasão dos normandos (vikings) em 1066.

Burgúndios: fundaram um reino no início do século V, destruído pelos hunos. Em 443, criam novo reino que seria destruído pelos francos cerca de um século depois.

Francos: criaram o mais poderoso e mais importante reino bárbaro, que será estudado em detalhes a seguir.

Ostrogodos: o maior dos reis ostrogodos, Teodorico, foi educado em Constantinopla e criou na Itália o primeiro reino que reuniu pacificamente romanos e germânicos. Com a sua morte, o reino começou a decair e em 553 foi conquistado pelo Império Bizantino.

Suevos: em 410, estabeleceram um reino na Galícia (norte de Portugal e costa atlântica da Espanha), destruído em 585 pelos visigodos.

Vândalos: após invadirem a Península Ibérica entre 407 e 409, foram expulsos de lá pelos romanos e visigodos. Invadiram a África do Norte em 429, onde fundaram um reino poderoso. (Santo Agostinho morreu durante essa invasão

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

em Hipona, a segunda maior cidade do novo reino). De lá, em 455, comandaram uma expedição que saqueou Roma. A violência do saque deu ao termo vândalo o sentido de arruaceiro e violento.

Visigodos: estabelecidos na Península Ibérica a partir de 418, seu reino duraria até a conquista dos muçulmanos, no século VII. Após a invasão, muitos atravessaram os Pirineus e se tornaram colaboradores dos francos.

A imagem que se tem dos povos bárbaros como incapazes de criar um reino organizado, por não conhecerem as tradições e as leis romanas, não é correta. Observe-se, por exemplo, o caso de Teodorico, rei ostrogodo. Essa imagem é preconceituosa porque parte da ideia de que os germânicos eram ignorantes e incapazes de elaborar governos sofisticados, coisa que só os civilizados romanos teriam condições de fazer.

3 O REINO FRANCO

No entanto, de todos os povos bárbaros, o que teve mais sucesso em criar e consolidar um reino foram os francos. As razões para isso têm a ver, entre outros fatores, com a conversão dos francos ao cristianismo católico, que facilitou a sua aceitação pelas populações galo-romanas.

Os francos eram uma confederação de tribos, nem todas etnicamente aparentadas, que viviam nos limites do Império Romano pelo menos desde o século III. No final do século V, Clóvis, o primeiro rei franco, adotou o cristianismo católico e tornou os francos aliados naturais da Igreja de Roma. Clóvis ampliou os domínios francos e, após sua morte, os domínios foram divididos em dois reinos, Nêustria e Austrásia. O costume franco de dividir o reino entre todos os herdeiros enfraqueceu aos poucos os reinos e permitiu o fortalecimento político dos prefeitos do palácio (ou mordomos, do latim major domus).

De meros administradores do palácio, com o tempo passaram a cobrar os impostos, administrar o exército e nomear os condes e duques; eram inclusive os tutores dos herdeiros do trono. O cargo terminou por se tornar hereditário. Os reis merovíngios dessa época, sem poder, ficaram conhecidos como os reis indolentes.

Em 732, o prefeito do palácio Carlos Martel derrotou os muçulmanos que, após destruírem o reino visigodo e ocuparem quase toda a Península Ibérica, avançaram sobre os francos. A vitória em Poitiers deu a Martel um enorme prestígio, que lhe permitiu centralizar o poder sobre todos os reinos francos. Seu filho, Pepino, o Breve, venceu os lombardos e doou terras à Igreja, que viriam a se tornar os Estados Pontifícios. Em 751, ele destronou Childerico III, o último rei merovíngio, e criou a nova dinastia Carolíngia.

ATENCAO

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TÓPICO 4 | O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA

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Com a morte de Pepino, o Breve, seu filho Carlos assumiu o trono. Seu reinado foi caracterizado por uma grande ampliação nos domínios francos (ver mapa a seguir) e por uma valorização da cultura. Carlos Magno, como ficou conhecido, consolidou a aliança entre os francos e a Igreja e, como um prêmio à sua lealdade e às suas conquistas e forma de garantir a predominância do papado sobre o governante mais poderoso do Ocidente na época, o Papa Leão III coroou-o “imperador romano” no Natal de 800.

FIGURA 8 – O REINO FRANCO DE CLÓVIS A CARLOS MAGNO

FONTE: Disponível em: <http://fr.wikipedia.org/wiki/Image:Frankish_empire.jpg>. Acesso em: 20 fev. 2013.

A coroação foi controversa, porque o papa ignorou a existência do Império Bizantino, formalmente era o legítimo continuador do Império Romano. No entanto, o papa alegou que o trono bizantino encontrava-se vago (pois era ocupado por uma mulher), para consolidar seu poder no Ocidente.

É claro que a explicação para a atitude do papa vai muito além do “machismo” e da “prepotência ocidental”. A coroação de Carlos Magno que atendia a um duplo propósito: o desejo dos governantes francos de expandir seu poder e a intenção dos papas de consolidar sua versão de religiosidade cristã como hegemônica.

E os adversários eram os mesmos: internamente, os povos bárbaros com seus reinos rivais e seu cristianismo ariano, e externamente, muçulmanos. Depois, os próprios bizantinos, com seu desejo de expandir seus domínios e

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

suas divergências político-religiosas com Roma. A coroação de Carlos Magno consolidou uma vinculação muito próxima entre a autoridade papal e o poder no Ocidente e separou irreversivelmente os domínios e os rituais religiosos de cristãos católicos e ortodoxos.

3.1 O REINADO DE CARLOS MAGNO

Para melhor administrar seu reinado, Carlos Magno dividiu-o em condados e, nas fronteiras, as marcas, que delegou a nobres de sua confiança (os condes e marqueses, respectivamente), com amplos poderes em suas regiões. O rei tentou criar um sistema imperial organizado, com uma reforma monetária e funcionários que fiscalizavam a atuação dos nobres, os missi dominici.

No entanto, essa estrutura não conseguiu centralizar o poder em suas mãos: aos poucos, os vínculos de doação e vassalagem se tornaram mais importantes do que a lealdade ao rei e o poder na Europa Ocidental tornou-se cada vez mais fragmentado.

FIGURA 9 - MAPA: REINO FRANCO EM 814, MOSTRANDO SUAS DIVISÕES TRADICIONAIS E AS CIDADES QUE SERVIAM DE PARADA AO REI

FONTE: Disponível em: <http://www.moneymuseum.com/imgs/ximages/image/ 2010/8/I_EN_63655_8.jpg>. Acesso em: 20 out. 2012.

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TÓPICO 4 | O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA

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3.1.1 O Renascimento Carolíngio

Durante os reinados de Carlos Magno e de seu filho, Luís, o Piedoso, surgiu um movimento de renascimento cultural e intelectual que ficou conhecido como Renascimento Carolíngio. Carlos Magno trouxe estudiosos (em sua maioria religiosos) para sua corte em Aachen (Aix-la-Chapelle, em francês) e copiou muitos manuscritos antigos usando a recém-criada caligrafia carolíngia. Quase toda a herança greco-romana que era conhecida durante a Idade Média se deve a essa iniciativa. Os livros ganharam um cuidado especial, com encadernações riquíssimas e muito elaboradas.

Carlos Magno, ele próprio analfabeto até a idade adulta, entendeu bem a importância da educação. Seus estudiosos, comandados por Alcuíno de York, instituíram os currículos do trivium (gramática, lógica e retórica) e do quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia) e criaram obras literárias originais em latim medieval.

FIGURA 10 – MANUSCRITO DO SÉCULO X. EXEMPLO DA CALIGRAFIA CAROLÍNGIA

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/7/72/CarolingianMinuscule.jpeg>. Acesso em: 14 fev. 2013.

3.1.2 A divisão do Império

Após a morte de Luís, o Piedoso, em 840, seus filhos lutaram para organizar a sucessão. Pelo Tratado de Verdun (843), a parte ocidental ficou com Carlos, o Calvo; a oriental com Luís, o Germânico; e a região central com Lotário. Após a morte de Lotário, em 855, as lutas entre seus herdeiros fragmentaram todo o Império, garantindo ainda mais poder para a nobreza rural. No leste, o reino de Luís deu origem ao Reino da Alemanha, mais tarde o Sacro Império Romano-Germânico.

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

FIGURA 11 – DIVISÃO DO IMPÉRIO CAROLÍNGIO APÓS OS TRATADOS DE VERDUN (843) E MEERSEN (870)

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d7/843-870_Europe.jpg>. Acesso em: 15 fev. 2013.

O Sacro Império Romano-Germânico surgiu como uma tentativa de manter a vinculação entre o poder temporal (do rei) e o poder da Igreja. Apesar do nome, era politicamente fragmentado, aproximando-se muito mais de uma confederação de domínios feudais do que de um reino. O governante recebia o título de imperador romano, e o posto não era hereditário: o imperador era eleito pelos principais nobres. O império sobreviveu ao fim da Idade Média e foi desfeito apenas em 1806, durante as conquistas napoleônicas.

3.2 NOVOS INVASORES

No final do século IX, nova onda de invasões aterrorizou a Europa. Do Oriente vieram os magiares, que se fixariam mais tarde na Hungria. Do norte, os temíveis vikings (ou normandos, os “homens do norte”) atingiram toda a região da Inglaterra e França até serem cristianizados e se assentarem na região conhecida como Normandia (na França). Sua presença, como piratas ou comerciantes, estendeu-se por toda a região do Báltico, Mar Mediterrâneo e mesmo o Oriente Médio: os vikings estabeleceram contatos comerciais com os muçulmanos e estão ligados à formação da Rússia de Kiev e da Liga Hanseática.

NOTA

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TÓPICO 4 | O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA

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4 A IGREJA NA ALTA IDADE MÉDIA

O Cristianismo surgiu na Palestina, no início do Império Romano, e aos poucos começou a se tornar uma força significativa dentro da sociedade romana. As ideias de salvação da alma, igualdade entre os homens e caridade tinham muita repercussão entre as camadas mais pobres da sociedade, especialmente entre os escravos. As perseguições feitas pelos imperadores romanos, pela recusa dos cristãos a venerarem os deuses imperiais, aumentavam a simpatia ao movimento que, no século IV, já era majoritário entre a população do Império.

Em vista disso, o Imperador Constantino proibiu as perseguições aos cristãos e, mais tarde, converteu-se ele próprio à religião. A conversão de Constantino pode ou não ter sido uma jogada política, mas o fato é que ele conseguiu, dessa forma, manter um controle sobre a religião, associando-a aos interesses do Estado romano. Em meados do século VIII, essa relação seria invocada e invertida, e a coroação de Carlos Magno simbolizava o domínio da Igreja sobre a Monarquia.

4.1 SANTO AGOSTINHO

Uma das figuras mais importantes para o desenvolvimento da Cristandade medieval foi Santo Agostinho de Hipona (354-430), que elaborou grande parte dos fundamentos religiosos do Cristianismo. Para elaborar sua teologia, Agostinho baseou-se, principalmente, na filosofia de Platão e dos neoplatônicos, adaptando-as às preocupações religiosas.

FIGURA 12 - REPRESENTAÇÃO TRADICIONAL DE SANTO AGOSTINHO DE HIPONA

FONTE: Disponível em: <http://lifeondoverbeach.files.wordpress.com/2011/06/augustine-of-hippo.jpg>. Acesso em: 23 out. 2012.

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

Essa “cristianização de Platão” pode ser entendida como um símbolo da adaptação que fizeram os homens da Antiguidade Tardia e da Alta Idade Média do pensamento clássico, embora há quem veja nisso um sinal inequívoco de decadência. A Leitura Complementar, no final deste tópico, ajudará você a refletir melhor sobre o assunto.

4.2 O ARIANISMO

A Igreja, criada como uma analogia do Império, tinha uma estrutura rígida, que se fundou cada vez mais na primazia do bispo de Roma, considerado o sucessor de São Pedro (desde Leão I, em meados do século V), sobre os demais. Isso significava a necessidade de se manter uma única autoridade suprema na Terra, assim como havia uma única divindade no Céu.

Isso levou a Igreja a se defrontar com algumas questões bastante delicadas, não só pela necessidade de explicá-las de um ponto de vista teológico, como pelas implicações políticas que elas traziam. Na época, não havia a separação, nem política nem filosófica, entre religião e poder, e as ameaças à doutrina eram também ameaças ao poder do papa. Era necessário combater as dissidências – em grego, heresias – a fim de preservar a unidade da religião.

Não estamos querendo dizer, com isso, que a motivação para combater as heresias fosse simplesmente política, ou seja, que os papas estivessem preocupados apenas em manter o seu poder diante das ameaças. Entender o combate às heresias apenas do ponto de vista político é tão incorreto quanto entendê-lo apenas do ponto de vista teológico. Como dissemos, não havia uma separação clara entre as duas categorias.

Uma das heresias mais importantes da Idade Média foi o já mencionado arianismo, nome dado em razão de seu fundador, Ário de Alexandria (c. 250–336). O ponto mais controverso da teologia de Ário era a sua ideia de que Jesus Cristo tinha sido criado por Deus, não igual a Ele. Da mesma forma, o Espírito Santo seria uma criação de Deus, e estaria subordinado a Cristo, como Cristo a Deus. Em outras palavras, o arianismo negava a ideia da Santíssima Trindade, o que era potencialmente destrutivo para a Igreja Católica.

Para tentar solucionar a controvérsia gerada pelo arianismo, o Imperador Constantino convocou o primeiro Concílio Ecumênico da história do Cristianismo, em Niceia (325), na atual Turquia. O resultado do Concílio foi avassalador: dos 250

NOTA

ATENCAO

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TÓPICO 4 | O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA

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4.2 O ARIANISMO

a 318 bispos que se estima que compareceram (de acordo com as várias contagens), apenas dois apoiaram Ário. O Concílio estabeleceu o chamado Credo Nicênico, que reafirmava toda a doutrina católica e que, com modificações, é recitado até hoje, em praticamente todas as denominações religiosas do Cristianismo.

Caro(a) acadêmico(a), veja a seguir uma tradução do conteúdo original do Credo Nicênico (em itálico, os trechos que hoje não fazem parte do Credo regular, mas que eram, como se verá, os pontos centrais):

Creio em um Deus, Pai Todo-poderoso, Criador do céu e da terra, e de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um Senhor Jesus Cristo, o unigênito Filho de Deus, gerado pelo Pai antes de todos os séculos, Deus de Deus, Luz da Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado não feito, de uma só substância com o Pai; pelo qual todas as coisas foram feitas; o qual por nós homens e por nossa salvação, desceu dos céus, foi feito carne pelo Espírito Santo da Virgem Maria, e foi feito homem; e foi crucificado por nós sob o poder de Pôncio Pilatos. Ele padeceu e foi sepultado; e no terceiro dia ressuscitou conforme as Escrituras; e subiu ao céu e assentou-se à direita do Pai, e de novo há de vir com glória para julgar os vivos e os mortos, e seu reino não terá fim. E no Espírito Santo, Senhor e Vivificador, que procede do Pai e do Filho, que com o Pai e o Filho conjuntamente é adorado e glorificado, que falou através dos profetas. Creio na Igreja una, universal e apostólica, reconheço um só batismo para remissão dos pecados; e aguardo a ressurreição dos mortos e da vida do mundo vindouro.

FONTE: Extraído de ANGLADA, Paulo. Sola Scriptura: A Doutrina Reformada das Escrituras. São Paulo: Os Puritanos, 1998, p. 179-80.

4.3 OS BÁRBAROS E A IGREJA

O rei, entre os bárbaros, tinha um papel sagrado: visto como de origem divina, era o chefe dos ofícios religiosos, muito mais do que um simples líder militar. Por isso, a conversão dos povos bárbaros era uma tarefa relativamente simples: bastava converter o líder, e o seu povo se converteria com ele. Isso tornava o trabalho dos missionários mais fácil, em um primeiro momento, mas exigia um longo trabalho de catequização para que a nova tradição religiosa fosse assimilada adequadamente, sem alterações ou deturpações.

O arianismo teve um papel especialmente importante na Idade Média, porque a maioria dos povos bárbaros que entravam no Império foi cristianizada sob essa forma. Quando os reinos germânicos foram formados, no século V, alguns de seus criadores eram arianos havia mais de um século. Os romanos, no entanto, eram majoritariamente trinitários (católicos), e isso gerou sérias dificuldades de adaptação com os recém-chegados.

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

4.4 A REGRA DE SÃO BENTO

Como dissemos, o trabalho de cristianização dos povos germânicos não se resumia à conversão do rei. Após esse processo, que era antes uma formalidade, era preciso ensinar a religião a todo o povo, o que levou décadas ou até mesmo séculos, em alguns casos.

A conversão dos povos germânicos implicava, mais do que o ensinamento de preceitos religiosos, a introdução de uma cultura completamente diferente, que terminou por ser mesclada às culturas locais, criando-se uma forma híbrida de cultura e de práticas religiosas, que passou a ser o modo de vida medieval.

FIGURA 13 - SÃO BENTO DE NÚRCIA, AUTOR DA REGRA QUE ORGANIZAVA A VIDA DOS MOSTEIROS MEDIEVAIS. A PINTURA É DE FRA ANGÉLICO

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/7/73/Fra_Angelico_031.jpg/220px-Fra_Angelico_031.jpg>. Acesso em: 23 out. 2012.

Para essa tarefa, foi muito importante a constituição de um clero regular, ou seja, submetido a regras, a uma rígida disciplina. Em 534, São Bento de Núrcia (480-547) elaborou a sua Regra, baseando-se em algumas já existentes, mas com muito mais clareza e simplicidade.

Hilário Franco Júnior (2004, p. 70) faz a seguinte reflexão sobre a Regra:

Por ela, a vida do monge beneditino transcorre em função do preceito do ora et labora. Oração e trabalho num duplo sentido, numa dupla forma de alcançar Deus: rezar é combater as forças maléficas, contribuindo

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TÓPICO 4 | O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA

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4.4 A REGRA DE SÃO BENTO para a salvação não apenas da alma do próprio monge, mas também de toda a sociedade; trabalhar é afastar a alma de seus inimigos, a ociosidade e o tédio, é alcançar por meio dessa forma de ascese uma fonte de alegria. Tanto quanto o trabalho manual, o intelectual, a leitura de textos sagrados, prepara a alma para a oração. Enfim, orar é uma forma de trabalhar, trabalhar é uma forma de orar.

VOCÊ SABIA?Quando o Papa Bento XVI explicou, dias após a sua eleição, em 2006, a razão para escolher seu nome, mencionou o trabalho importantíssimo de São Bento na evangelização da Europa.

Os centros monásticos constituídos dessa forma passaram a ser, então, os locais onde os monges pudessem conviver com os pagãos (ou com os arianos) e trazer auxílio e soluções para os seus problemas quotidianos. Assim, os religiosos ganhavam reputação entre os bárbaros e, de quebra, promoviam a fusão das culturas de uma forma mais intensa e duradoura.

Os monges que atuavam nessa verdadeira frente de batalha foram muito mais do que simples transmissores de uma mensagem religiosa, verdadeiros agentes de transformação cultural. Buscavam completá-la com uma atuação direta e constante nas comunidades, de modo a demonstrar a superioridade do modo de vida cristão sobre as antigas práticas pagãs.

Perceba que esses monges serviram como o elo de ligação entre essas duas culturas tão diferentes, o que explica, em parte, o caráter central que a religião teve durante a Idade Média.

Caro(a) acadêmico(a), apresentamos um trecho de William C. Bark sobre Santo Agostinho e a difícil tarefa de adaptar a cultura clássica às necessidades medievais.

NOTA

UNI

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

LEITURA COMPLEMENTAR

A vida intelectual do novo mundo na Idade Média teve um molde inteiramente diverso da antiguidade clássica — principalmente helênica. Um dos pontos cruciais da história do pensamento foi o momento em que os gregos não só começaram a adquirir conhecimento, como ocorrera até então, mas a especular sobre ele, a unir a ciência e a filosofia. O legado dessa união não se exauriu nunca, embora os romanos não o pudessem apreciar devidamente e embora desde o início da Idade Média os europeus ocidentais o tivessem por vezes utilizado de uma forma que sem dúvida pareceria estranha aos que originalmente recolheram aquela fortuna.

No Último Império, o fogo grego ardeu muito obscuramente. A ciência perdeu a vitalidade e a velha união com a filosofia se dissolveu. Houve novas necessidades a serem satisfeitas: para os intelectuais, a recordação das glórias da Academia não tinha mais utilidade do que para os fazendeiros desapropriados de Salviano a lembrança da grandeza do nome romano e da liberdade de seus ancestrais.

A filosofia contraiu nova aliança, dessa vez com a teologia. A partir de então, durante alguns séculos, a vida intelectual se processaria sob a orientação da Igreja. O conhecimento do passado foi em parte mantido e transformado, em parte virtualmente ignorado.

Os líderes cristãos, acima de todos Santo Agostinho, lutaram com energia e êxito para reorganizar os padrões do pensamento e adaptar o conhecimento clássico e as realizações intelectuais que se conservaram aos novos objetivos da vida humana. Uma vida na qual a salvação se havia tornado a principal finalidade do homem educado.

Santo Agostinho tem, merecidamente, um lugar de destaque. De todas as tarefas impostas ao intelecto humano, talvez a mais difícil seja a de perceber, em período de enormes modificações fundamentais, o que está morto e destituído de sentido, e então conceber, aperfeiçoar e propagar valores mais adequados à nova era.

A maioria dos homens, em todas as épocas, e muito mais em épocas de agitação do que nas de estabilidade, se apega firme e cegamente àquilo que lhe é familiar e aceito, evitando o frio desconforto do reajustamento mental e espiritual. Ao reconhecer o que estava morto, ou agonizante, e ao dar sentido ao que estava vivo e nascia, Santo Agostinho teve poucos pares. As Confissões e a Cidade de Deus bastam para nos mostrar como lhe era poderosa a atração do passado. Sua superioridade está no reconhecimento de que, para a sua geração e para as gerações futuras, nas condições de vida que deviam imperar, as vozes de Platão e do resto eram apenas ecos de um túmulo. Não repudiou a inspiração de Platão, utilizou-a. Mas escolheu apenas aquilo que considerava de valor, adaptou-o às novas condições e fez dele parte da estrutura intelectual que teria sido incompreensível à Academia.

É cabível indagar da história se há alguma razão válida para supor que o gênio humano chamejou com menos brilho quando os homens, por boas razões

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TÓPICO 4 | O ESTADO E A IGREJA NA IDADE MÉDIA

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pessoais e da época, transferiram o pensamento especulativo da ciência-filosofia para a teologia-filosofia. Presumivelmente, os homens do Último Império e do princípio da Idade Média nasceram com a mesma capacidade de pensar, inquirir e evoluir intelectualmente que os homens de qualquer outra época. A questão, então, não é se tinham capacidade, mas se podiam ou desejavam usá-la, e como a usavam. Devemos fazer aqui uma distinção entre a atitude de fins do período clássico e início do medieval, tal como mencionada na discussão das opiniões de Pirenne sobre a decadência da cultura clássica.

É perceptível, antes do século IV, um declínio não universal, mas generalizado, da qualidade das obras intelectuais e literárias pertencentes à tradição clássica. Essa tradição perdera muita vitalidade e seus adeptos já não pareciam convictos de que os assuntos de que tratavam tivessem muito sentido.

Os pensadores e autores da tradição patrística, ao contrário, estavam imbuídos de uma completa fé na força daquilo que para eles era vital -, e sobre isso escreveram com energia e segurança, na apologética, na exegese, na homilética, em obras sobre a organização eclesiástica, sobre ascetismo e hagiografia, sobre controvérsias doutrinárias.

Nossa época supõe geralmente que essa produção, particularmente na última forma, representa uma perda de tempo. Tal não é, porém, a opinião daqueles que conhecem tais obras bem e reconhecem o lugar que lhes cabe no desenvolvimento dos processos de pensamento do homem ocidental. Muitas das controvérsias versaram assuntos fúteis e áridos, muitas foram inspiradas por motivos econômicos e políticos, ou por interesses pessoais, e seu estilo se reveste mais de paixões do que de inteligência.

Não obstante, é certo que as polêmicas teológicas frequentemente se ocuparam de assuntos de imorredouro interesse para a humanidade, que frequentemente eram cheias de sinceridade e brilhantismo e que deram um estímulo grande ao desenvolvimento de um método de pensamento que é agudo, inquisitivo e lógico. Sua contribuição para a formação, nos séculos posteriores, da filosofia escolástica — um dos pontos altos na evolução do pensamento ocidental — é bastante bem conhecida para ser descrita aqui.

Devemos, portanto, ser extremamente cautelosos no julgamento das realizações intelectuais da Idade Patrística, em comparação com as da antiguidade clássica. Devemos reconhecer as divergências dos antigos padrões, a simplificação e mesmo o abandono de certas áreas do conhecimento.

Formular, porém, uma condenação geral da vida intelectual da época como decadente, retrogressiva e obscura é simplesmente abrir caminho para a deformação da realidade histórica e tornar sua compreensão impossível. Não há como negar que certos males como pobreza, instabilidade e violência se tornaram piores após a época de São Jerônimo e Santo Agostinho, antes que melhorassem, e que os empreendimentos intelectuais sofreram, como todas as outras manifestações vitais.

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

O essencial é que pelo século IV uma nova atitude intelectual para com o mundo já se firmara, e que essa atitude não era necessariamente superior ou inferior à da antiguidade clássica, mas simplesmente diferente, e que as circunstâncias e natureza de seu desenvolvimento eram da maior importância. É de duvidar que qualquer atitude mental e espiritual menos consistente, agressiva e menos convencida de sua missão pudesse ter preparado as tempestades que iam envolver a Europa ocidental nos séculos futuros.

FONTE: Bark (1979, p. 102-105)

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RESUMO DO TÓPICO 4

Neste tópico você viu que:

Os reinos bárbaros que se formaram com o fim do Império Romano do Ocidente tiveram grandes dificuldades por causa do choque cultural com os romanos, das tradições políticas germânicas e dos conflitos religiosos.

O reino bárbaro mais poderoso foi o dos francos, que conseguiu o apoio da Igreja e consolidou o seu domínio sobre grande parte do Ocidente.

O maior dos reis francos, Carlos Magno, promoveu um movimento de recuperação cultural chamado Renascimento Carolíngio.

A Igreja medieval, preocupada em fortalecer seu poder e afirmar-se como a única via de salvação, teve que enfrentar diversas heresias; a mais importante delas foi o arianismo, que questionava a divindade de Jesus Cristo.

Os grandes responsáveis pela evangelização da Europa foram os monges, especialmente os beneditinos. Nesse processo, eles ajudaram a desenvolver uma cultura totalmente nova, fundindo os elementos cristãos, romanos e germânicos.

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AUTOATIVIDADE

1 Quais as razões da forte aliança celebrada entre a Igreja e os reis francos?

2 Discorra sobre o papel da Igreja na organização da sociedade medieval.

Assista ao vídeo deresolução da questão 1

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TÓPICO 5

AS ORIGENS DO ISLAMISMO

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃO

Desde o início do século XXI, o Islamismo parece estar o tempo todo em evidência. Os atentados de 11 de setembro de 2001, a crise no Oriente Médio, as polêmicas sobre símbolos religiosos na Europa, tudo parece apontar para uma tensão entre Ocidente e Oriente, entre cristãos e muçulmanos. A ideia de um “choque de civilizações” é controversa e exagerada, mas não temos como negar que existe pelo menos um estranhamento entre o mundo ocidental e os valores do Islamismo.

A polêmica tese do “choque de civilizações”, elaborada pelo cientista político Samuel Huntington, diz que os conflitos mundiais, neste período pós-Guerra Fria, serão travados entre civilizações, não entre ideologias. Huntington aponta principalmente a tensão entre o mundo ocidental (europeu e norte-americano), com seus valores democráticos, seculares e racionalistas, e o mundo islâmico, entendido por ele como detentor de valores opostos a esses.

Esse estranhamento não é recente; pelo contrário, vem desde a época do surgimento do Islã. Além das questões religiosas, que tanto aproximam como afastam cristãos e muçulmanos, os seguidores dessas religiões entraram em guerra incontáveis vezes na História e, de certa forma, esse confronto ajudou a criar o mundo que conhecemos hoje.

No entanto, não é apenas pelos conflitos com o Ocidente que devemos compreender o Islamismo. O surgimento dessa religião, a cultura que ela criou e as relações dos muçulmanos com os outros povos são eventos extraordinários por si sós.

Nas grandes cidades muçulmanas, abastecidas com sistemas de esgoto, iluminação noturna, universidades e bibliotecas públicas, viviam mercadores de todas as partes do mundo conhecido, de Portugal à China, das estepes da Rússia à África ao sul do Saara, que abasteciam os bazares com todos os tipos imagináveis de produtos e de experiências culturais.

NOTA

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

Poetas, filósofos e cientistas tinham à sua disposição, em árabe ou persa, obras gregas de Aristóteles há muito esquecidas no Ocidente. Judeus, muçulmanos e cristãos conviviam em harmonia, sem perseguições religiosas nem discriminações por causa de etnia ou religião.

Se na chamada Antiguidade Clássica o mundo “civilizado” falava grego e latim, um viajante do século VIII ou do XII não teria dúvidas: o auge da civilização humana naquela época parecia ser um povo que falava árabe e rezava voltando-se para Meca.

SUGESTÕES DE LEITURAPrezado(a) acadêmico(a), existem diversos livros que podem nos dar uma visão mais precisa sobre o mundo muçulmano, dos pontos de vista político e cultural. Quatro obras, facilmente acessíveis no mercado editorial brasileiro, podem servir de referência mais imediata:Para uma visão mais factual do mundo islâmico, ver o livro de:● GIORDANI, Mário Curtis. História do mundo árabe medieval. Petrópolis: Vozes, 1997. O livro é parte de uma série de títulos que o autor escreveu sobre História Geral, em um estilo bastante descritivo e detalhado, mas como costuma ocorrer em obras dessa magnitude, sem o compromisso com uma reflexão teórico-metodológica mais aprofundada. É um bom ponto de partida, mas vale a pena complementá-lo com obras posteriores.Para discussões mais recentes e mais críticas sobre o mundo islâmico, ver:● HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.● MAALOUF, Amin. As Cruzadas vistas pelos Árabes. São Paulo: Brasiliense, 1988.● SAID, Edward. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

2 UMA NOVA FÉ: O ISLAMISMO

O Islamismo é, hoje, a segunda maior religião do mundo em número de seguidores, e a que cresce mais rapidamente, de acordo com o U.S. Center for World Mission. Em todo o mundo, são cerca de 1,5 a 1,8 bilhão de muçulmanos, e esse número vem aumentando consistentemente, não apenas pelo crescimento demográfico nas regiões de população muçulmana, mas por conversões em países em que o Islã não é a religião original.

Ao mesmo tempo, o imaginário ocidental atribui um papel muito negativo ao Islã. Estamos habituados a associar os muçulmanos à imagem de guerra e fanatismo religioso, para não mencionar a suposta intolerância em relação às mulheres, que são constantemente noticiadas pela mídia televisiva e jornalística.

No entanto, é importante termos em mente que essa visão ocidental pejorativa sobre os árabes é um estereótipo reducionista e, muitas vezes, mentiroso, criado em parte por ignorância e em parte intencionalmente, como propaganda

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TÓPICO 5 | AS ORIGENS DO ISLAMISMO

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política de guerra. Reduzir o Islã ao terrorismo fundamentalista é tão errado quanto seria considerar todos os cristãos como fanáticos religiosos dispostos a passar no fio da espada qualquer um que duvide de sua fé.

É claro que existem, nas duas religiões, pessoas dispostas a isso, mas é claro, também, que essas pessoas são uma ínfima minoria em populações que são, em sua quase totalidade, pacíficas.

Como estudiosos de História, não nos cabe julgar o Islã e, muito menos, aceitar sem questionamento as visões preconceituosas criadas sobre ele. Por isso, precisamos conhecer o que é o Islã, como surgiu e por que tem obtido esse sucesso extraordinário.

2.1 OS PRIMÓRDIOS: A ARÁBIA DO SÉCULO VII

O Islamismo surgiu na Península Arábica, uma região desértica localizada entre a África e o Oriente Médio, ao sul da Palestina. A proximidade com culturas muito antigas, como as do Egito, da Etiópia, do Levante (Síria, Líbano e Jordânia), do Iêmen e do Irã (terra dos impérios de Ciro e Xerxes, e dos impérios Parto e Sassânida), fez dessa região uma zona de convergência cultural e religiosa privilegiada desde tempos muito remotos. A população da península organizava-se, essencialmente, entre os beduínos – tribos nômades de língua árabe que viviam no deserto – e os moradores das cidades, como Meca.

Não devemos, contudo, entender os nômades do deserto da Arábia como povos isolados. Segundo o historiador Ciro Flamarion Cardoso (1994), os beduínos mantinham estreitas relações com os povos sedentários dos centros urbanos da península e do Oriente Próximo, através do comércio e como soldados dos exércitos imperiais bizantinos ou sassânidas.

As relações com os sedentários, marcadas por uma complementaridade ecológica e econômica, variaram muito no plano político. Hoje se sabe que as acusações de banditismo, de barbárie, de pilhagens, de invasões feitas aos nômades, muitas vezes, se originam, de fato, na propaganda dos Estados urbanos desejosos de impor tributos ou outras obrigações às tribos das estepes, desertos ou montanhas (CARDOSO, 1994, p. 40).

Os beduínos estavam organizados, desde cerca de 1500 a.C., em comunidades formadas a partir de famílias patriarcais. Os líderes dessas comunidades eram chamados de xeques (literalmente, “anciãos”).

As diversas tribos nômades que viviam na região central da Arábia (desértica) estavam em constantes disputas pelos oásis – os raros locais onde existia água e pastagem para os animais (carneiros, ovelhas e camelos). No entanto, a Arábia não é composta apenas de desertos: no litoral do Mar Vermelho e do Oceano Índico, um intenso comércio mercantil floresceu com as regiões próximas ao Mar Vermelho, no Golfo Pérsico e no Oceano Índico. As caravanas cameleiras

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

atravessavam o deserto rumo ao norte, onde as regiões vassalas do Império Sassânida ofereciam enormes oportunidades comerciais. Além disso, o clima ameno do sul da Arábia permitia o desenvolvimento da agricultura e da pecuária.

Essas populações eram, em sua maioria, politeístas, embora alguns indivíduos, que tinham contato com as regiões próximas, adotassem alguma das religiões dos povos vizinhos, como: Judaísmo, Cristianismo ou Zoroastrismo. Certamente, essas religiões eram conhecidas dos primeiros muçulmanos, como se pode verificar pela grande vinculação dos episódios narrados no Alcorão com a tradição religiosa judaico-cristã.

Com tudo isso, como podemos verificar, a Arábia, embora predominantemente desértica, estava plenamente inserida no contexto econômico e social das regiões próximas.

2.2 MAOMÉ E A CRIAÇÃO DO ISLAMISMO

A religião muçulmana viria a unificar todas essas populações, diversificadas e politeístas, em torno da crença em um único deus. Até o advento do Islamismo, os árabes cultuavam os astros e as manifestações da natureza e tinham como um de seus objetos de veneração a “pedra negra”, guardada na Caaba, em Meca. Segundo a tradição, ela teria sido enviada por Deus a Adão e seria originalmente branca: teria se tornada negra devido aos pecados dos homens.

A cidade de Meca foi construída sobre um oásis, e tornou-se desde muito cedo um importante centro religioso e comercial. Na época do nascimento de Maomé (ca. 570 d.C.), a cidade era governada pela tribo dos coraixitas, grupo que enriqueceu com as transações comerciais e as peregrinações dos que se dirigiam à cidade para fazer votos aos deuses na Caaba.

“ca.” (em itálico) é uma abreviatura consagrada do latim circa, que quer dizer “cerca de”; na dúvida, substituir o “ca.” por “cerca de”,

Maomé (ou Muhammad, na grafia árabe) nasceu entre os coraixitas, embora não fizesse parte dos segmentos mais abastados da tribo. Órfão desde cedo, foi criado pelo tio Abu Talib e tornou-se mercador e pastor.

Aos 25 anos, casou-se com Khadija, uma rica viúva comerciante. Aos 40 anos, Maomé começou a ter visões em que um anjo o incitava a proclamar a existência de um deus único. Embora logo tenha arregimentado seguidores, a pregação de Maomé trouxe-lhe a ira dos comerciantes da cidade, que temiam perder os negócios voltados aos cultos politeístas.

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TÓPICO 5 | AS ORIGENS DO ISLAMISMO

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2.2 MAOMÉ E A CRIAÇÃO DO ISLAMISMO

Perseguidos em Meca, Maomé e seus seguidores refugiaram-se em 622 na cidade de Yathrib (que passou a se chamar Medina), onde os preceitos do Islamismo começaram a ser organizados e sistematizados. Aos poucos, os cidadãos de Medina foram se convertendo à nova fé e Maomé passou a dispor de um efetivo de guerreiros capaz de vencer o conflito entre as duas cidades. Finalmente, conquistaram Meca em 630.

A ida de Maomé e seus seguidores para Medina, chamada Hégira, é considerada pelos muçulmanos como o momento fundamental da sua religião. Os muçulmanos não entendem a Hégira como uma fuga, mas como uma migração. A partir desse momento, o Islamismo se organizou como sistema político e religioso.

O CALENDÁRIO ISLÂMICOO calendário islâmico é contado a partir da migração de Maomé a Medina. Portanto, o ano 1 AH (Ano da Hégira) inicia-se em 622 d.C. O calendário islâmico não segue uma contagem solar (ou seja, o ano não tem 365,25 dias), mas puramente lunar. O ano é composto de 12 meses de 28 ou 29 dias, que se iniciam sempre quando a Lua crescente é avistada ao pôr do Sol. Dessa forma, o ano tem cerca de 11 dias a menos do que o do nosso calendário. Portanto, embora tenham decorrido 1390 anos entre a Hégira e o ano de 2012, o ano islâmico que se iniciou em 15 de novembro de 2012 foi 1434 AH.

2.3 MORTE E SUCESSÃO DE MAOMÉ Após a conquista de Meca, a população local converteu-se rapidamente

ao Islã e Maomé dispôs de uma grande força militar para lançar conquistas por toda a Península Arábica. Recomendando a prática do jihad – termo normalmente (mas de forma inapropriada, conforme interpretações islâmicas) traduzido como “guerra santa”, Maomé contou com a ajuda dos fiéis para conquistar toda a Península Arábica em dois anos.

Nos últimos meses de sua vida, Maomé promoveu o último evento fundamental da religião islâmica: a peregrinação à Caaba, que passou a ser obrigatória aos fiéis uma vez na vida, da forma como Maomé a fez.

Após a morte do Profeta, em 632 d.C. (ano 10 d.H.), o poder político passou

a ser disputado entre o genro de Maomé, Ali, e seu grande amigo Abu Bakr, que foi escolhido pela comunidade como novo líder. A disputa gerou uma cisão religiosa entre os muçulmanos, que passaram a se dividir entre xiitas e sunitas, respectivamente, conforme o reconhecimento da autoridade de Ali e de Abu Bakr.

IMPORTANTE

NOTA

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

Prezado(a) acadêmico(a), é muito importante desfazermos algumas concepções equivocadas e, muitas vezes, mal-intencionadas que se tem, na nossa cultura, sobre alguns termos do Islamismo. Em particular, os termos jihad e xiita precisam ser bem compreendidos. Jihad não é sinônimo de guerra santa, mas, de acordo com algumas interpretações, é uma atitude de defesa da fé, em todas as suas formas. Xiita, igualmente, não é sinônimo de fanático, mas é o nome de uma das divisões religiosas do Islamismo. Os xiitas não são mais nem menos “fanáticos” (nunca use esse termo!) do que os sunitas, os católicos, os protestantes, os bahá’i ou os membros de qualquer outra facção religiosa.O termo xiita significando fanático (e, portanto, “perigoso”) foi popularizado no Ocidente por grupos políticos ultraconservadores, no contexto da rivalidade política entre EUA e Irã que se seguiu à Revolução Islâmica promovida pelo Aiatolá Khomeini, em 1979. Traduz, portanto, um discurso político reacionário, calculado para despertar o pânico na opinião pública e justificar intervenções militares. Perceba que, hoje, apenas veículos de comunicação ultraconservadores utilizam o termo xiita com esse sentido. Pelo bem da atitude crítica que um professor de História deve ter, elimine essa expressão de seu vocabulário (inclusive no famigerado “ecoxiita”) e, sempre que necessário, chame a atenção das pessoas para isso.

3 OS PRINCÍPIOS BÁSICOS DO ISLAMISMO

O Islamismo é uma religião monoteísta, ou seja, o muçulmano acredita na existência de um único deus – chamado, em árabe, de Allah. Este é o mesmo deus dos judeus e dos cristãos, e também é este o nome que os cristãos que falam árabe utilizam para se referir a Deus. O Islamismo, além disso, é uma religião abraâmica, ou seja, baseia-se na tradição religiosa judaica, que via em Abraão o patriarca fundamental. Por isso, o Islã aceita essa tradição religiosa, contida na Torá judaica e na Bíblia cristã, apesar de dar interpretações distintas a muitas das passagens que ali estão.

Pela tradição muçulmana, o Islã representa a mensagem verdadeira de Deus, que havia sido corrompida por interpretações anteriores, mas que teria sido revelada em toda a sua pureza a Maomé. O propósito da vida, para os muçulmanos, é louvar e servir a Deus. O termo islã vem da palavra árabe para “submissão”.

IMPORTANTE

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TÓPICO 5 | AS ORIGENS DO ISLAMISMO

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ÁRABE OU MUÇULMANO?Costuma haver grande confusão entre os termos “árabe” e “muçulmano”. Árabe é a designação de uma etnia, formada por pessoas que nasceram, ou cujos ancestrais vieram da Península Arábica e que falam a língua árabe, de origem semita. Nesse sentido, é árabe a maioria dos habitantes da atual Arábia Saudita, mas também dos Emirados Árabes Unidos, Egito, Iraque e outros países, mas não a maioria dos iranianos, turcos, afegãos ou nigerianos. Em um sentido mais restrito, árabe pode designar uma nacionalidade, aplicada aos moradores dos Emirados Árabes Unidos.Muçulmano é a designação dos fiéis de uma religião, de pessoas que reconhecem em Maomé o profeta, e que seguem seus preceitos.Pessoas de qualquer etnia podem ser muçulmanas e, curiosamente, os árabes são, há muitos séculos, minoria no Islã: dos dez países islâmicos mais populosos hoje, apenas o Egito é etnicamente árabe. Há, também, árabes que não são muçulmanos, como é o caso da maioria dos libaneses (cristãos).

A principal diferença entre essas três religiões é, essencialmente, a seguinte:

● Os judeus esperam a vinda de um Messias, enviado por Deus para libertá-los.● Os cristãos identificam esse Messias com a figura de Jesus Cristo. ● Os muçulmanos consideram que não existe um Messias divino; há apenas

profetas, dos quais Maomé é o último e mais perfeito. Jesus Cristo (a quem os muçulmanos denominam Issa) não é, para eles, o filho de Deus. É apenas um profeta anterior a Maomé.

Prezado(a) acadêmico(a), o que estamos falando aqui sobre o Islamismo não tem, de nenhuma forma, a intenção de “confundir suas crenças”, nem de “doutrinar” ou “converter” você. Os próprios autores, aliás, nem muçulmanos são... Mas o Islamismo é uma das maiores religiões do mundo e o seu surgimento influenciou enormemente a história mundial, e é por esse motivo que precisamos, como historiadores, conhecê-lo de forma relativamente detalhada, independente de convicções religiosas. Se isso faz ou não sentido para você, é questão inteiramente pessoal. O mesmo valerá, no futuro, para qualquer outra religião ou perspectiva filosófica que você estudar.Lembre-se: para ser um bom estudioso ou professor de História, é preciso manter a cabeça aberta a várias perspectivas, buscar conhecer os diversos lados possíveis de uma questão e não julgar as atitudes ou as crenças de ninguém. Por isso, não leia sobre o Islamismo (ou qualquer outra religião) pensando “isso não é verdade, porque eu sei/o padre disse/ não tem lógica/ na Bíblia fala que...”; essa atitude é inadequada para quem deseja estudar História.No fim das contas, para os historiadores, pouco importa se uma coisa é ou não “verdadeira”, ou se existe ou não uma “Verdade”. O que importa é como as pessoas entenderam e lidaram com isso.E quando você mesmo(a) for professor(a), incite seus alunos a fazerem a mesma coisa.

ATENCAO

ATENCAO

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

3.1 OS CINCO PILARES DO ISLÃ

Os preceitos básicos do Islamismo podem ser resumidos nos cinco pilares, que são:

1. O testemunho: o fiel deve repetir a fórmula “só há um Deus e Maomé é o seu profeta”. Deus é único, onipotente, onisciente, senhor absoluto da Terra e da vontade dos homens. Sabe e controla tudo o que acontece, aconteceu e acontecerá. Maomé é, para o muçulmano, o último profeta que existirá, pois sua mensagem é perfeita.

2. As preces: o fiel tem a obrigação de rezar cinco vezes ao dia. A prece é feita recitando-se versos do Alcorão em língua árabe, com o corpo voltado na direção de Meca (se o fiel não conseguir descobrir qual o lado correto, basta supor). Pode ser feita em uma mesquita ou em qualquer outro lugar onde o fiel esteja

FIGURA 14 - MUÇULMANOS REALIZANDO AS PRECES, VOLTADOS PARA A CAABA EM MECA

FONTE: Disponível em: <http://www.neurosoup.com/mosque_prayer.jpg>. Acesso em: 17 out. 2012.

3. Os tributos: o fiel tem a obrigação de dar parte dos seus rendimentos para auxiliar aos pobres ou necessitados. Essa contribuição, chamada zakat, é diferente da esmola, que é opcional: o zakat é uma obrigação religiosa.

4. O jejum: o fiel é obrigado a guardar jejum de comida e bebida, enquanto houver luz natural, no mês do Ramadã. Essa obrigatoriedade pode ser dispensada para crianças ou pessoas enfermas. Além do jejum, nesse período o fiel está proibido de manter relações sexuais.

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TÓPICO 5 | AS ORIGENS DO ISLAMISMO

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5. A peregrinação: o fiel deve viajar a Meca, em peregrinação, pelo menos uma vez na vida, se suas condições econômicas assim lhe permitirem. Uma vez em Meca, deverá cumprir uma série de rituais ao redor da Caaba e em outros pontos na cidade.

Segundo Maria Yedda Leite Linhares (1989), “o Islã não é apenas o conjunto dos dogmas teológicos e normas sociais [...], é, antes de tudo, um tipo de comunidade civil guiada pelas leis do Corão e por uma herança cultural comum”. (LINHARES, 1989, p. 20).

FIGURA 15 - O SANTUÁRIO DA CAABA EM 2008, DURANTE A ÉPOCA DA PEREGRINAÇÃO DOS MUÇULMANOS (HAJJ)

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/9/92/Al-Haram_mosque_-_Flickr_-_Al_Jazeera_English.jpg>. Acesso em: 19 jul. 2012.

3.2 O ALCORÃO

O Alcorão é o livro sagrado dos muçulmanos. De acordo com a tradição islâmica, o Alcorão representa com perfeição a palavra de Deus e existe desde sempre. Por esse motivo, é chamado de “O Livro Incriado”. Ele teria sido simplesmente revelado a Maomé em 114 capítulos, ou suras, das quais 92 ditadas em Meca e as outras 22 suras em Medina.

O conteúdo do Alcorão vai muito além das questões estritamente religiosas: traz preceitos morais, interpretações islâmicas de episódios da tradição religiosa judaica, legislação e situações do quotidiano. Por isso é frequentemente utilizado como referência básica para os sistemas legais dos países que adotam o Islamismo como religião oficial.

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

Prezado(a) acadêmico(a), você já viu algumas vezes, neste tópico, falar em “tradição islâmica”. Com esse termo estamos nos referindo a pontos centrais da crença muçulmana, que não constam diretamente do Alcorão (ou mesmo das Sunas ou dos Hadiths), mas que foram interpretados dessa forma pelos estudiosos da religião. Algumas dessas tradições podem parecer absurdas ou totalmente contrárias à razão. Mas lembre-se: o compromisso da tradição islâmica não é com a razão e sim com a interpretação do Livro Sagrado. Toda religião parte de pressupostos que parecem absurdos aos não crentes, mas não cabe ao historiador julgar se esses preceitos têm alguma validade racional, teológica ou metafísica.

De acordo com a tradição sunita, o Alcorão não foi escrito por Maomé. Ele teria recebido a revelação das suras diretamente de Allah, e estas eram anotadas por pessoas próximas a ele. Temendo que o conteúdo do livro se perdesse, o primeiro califa, Abu Bakr, ordenou a transcrição do livro pouco tempo após a morte de Maomé.

Foi apenas no reinado do terceiro califa, Uthman Ibn Affan (às vezes, traduzido em português como Osman ou Omã), que o texto final, como é conhecido hoje, foi consolidado a partir das diferentes versões que já existiam. O texto final foi copiado e difundido para toda a ummah (mundo islâmico) que, àquela altura, como veremos, já era bastante extensa.

Já os xiitas, talvez por não reconhecerem a autoridade de Abu Bakr, em função dos conflitos que surgiram na sucessão de Maomé, atribuem ao próprio profeta essa tarefa. Os estudiosos do assunto consideram em sua maioria que os sunitas estão corretos. Independentemente das desavenças, o conteúdo do Alcorão, para ambos os ramos do Islã, é idêntico.

FIGURA 16 - PÁGINAS DO ALCORÃO RICAMENTE TRABALHADAS

FONTE: Disponível em: <http://www.alquranacademy.co.uk/images/quran22.jpg>. Acesso em: 17 out. 2012.

IMPORTANTE

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TÓPICO 5 | AS ORIGENS DO ISLAMISMO

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“CORÃO” OU “ALCORÃO”?O termo “Alcorão”, utilizado, frequentemente, para descrever o nome do livro sagrado dos muçulmanos, popularizou-se em Portugal durante a ocupação islâmica, na Idade Média. O prefixo “al” representa, na língua árabe, o artigo definido “o”; em português, passou a ser utilizado em centenas de palavras de origem árabe que foram incorporadas ao idioma: algodão, alface, alcaide, aldrava, algibeira, almoxarifado, almanaque, e muitas outras. O termo “Alcorão” segue a mesma regra. “Alcorão” significa “a recitação”.Recentemente, temos visto na imprensa o termo “Corão”. É a tradução direta do termo utilizado em francês (Coran) e inglês (Koran ou, como tem sido comum hoje, Qur’an), entre outras línguas, para designar o livro. Lembre-se de que a França e a Inglaterra não foram ocupadas pelos árabes, então não fizeram essa incorporação do “al”. Termos de origem árabe que em português incorporam o artigo (arroz, açúcar, algodão), não o fazem em francês (riz, sucre, coton) nem em inglês (rice, sugar, cotton). Em português, os dois termos são corretos, mas é preferível o termo clássico “Alcorão”.

Os muçulmanos tratam o Alcorão como uma revelação divina diretamente recebida por Maomé. Por esse motivo, consideram heresia atribuir-lhe a autoria do livro; segundo eles, o autor do Alcorão é o próprio Deus.

Apenas para você ter uma ideia do estilo e do conteúdo do Alcorão, apresentamos os primeiros versículos da sura 96, chamada Al-Alaq (“O Coágulo”). Este trecho é considerado, por quase todos os intérpretes do Alcorão, como os primeiros versos revelados a Maomé. À direita, também para você ter uma ideia do estilo de escrita árabe, o texto original (que é lido da direita para a esquerda).

Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso. ميحرلانمحرلاهللامسب1 Recita em nome de teu Senhor que criou, قلخيذلاكبرمسابأرقا2 Criou o homem de sangue coagulado. قلعنمناسنإلاقلخ3 Recita. E teu senhor é o mais generoso, مركألاكبروأرقا4 Que ensinou com a pena, يذلاملعملقلاب5 Ensinou ao homem o que ele não sabia. ملعناسنإلاامململعي

FONTE: O Alcorão. Tradução de Mansour Chalitta. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2011, p. 479.

3.3 O DIREITO ISLÂMICO: OS HADITHS, AS SUNAS E A SHARIA

Além dos preceitos do Alcorão, os muçulmanos baseiam-se também em outros textos, que geralmente vêm para confirmar os ditos de Maomé ou garantir a aprovação ou desaprovação de uma determinada prática e que constituem, juntamente com o Alcorão, a base da jurisprudência islâmica.

Dentre esses textos encontramos três fontes principais:

NOTA

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

os Hadiths, que são extensas compilações das tradições e das declarações de Maomé sobre os mais variados assuntos ou de interpretações feitas sobre essas declarações por doutores da lei, das quais as mais respeitadas são as de Muhammad al-Bukhari;

as Sunas, descrição daquilo que Maomé fazia, acreditava ou aprovava. Alguns estudiosos consideram as sunas e os hadiths equivalentes. Ao contrário dos sunitas, que baseiam sua conduta nas sunas (daí o nome), os muçulmanos xiitas não aceitam a maior parte das sunas e têm suas próprias compilações; e

a Sharia, o código moral e religioso do Islã, que trata dos mais variados aspectos da legislação e da vida quotidiana dos muçulmanos: alimentação, higiene, conduta, vestimenta, comércio etc.

3.3.1 As escolas de interpretação da lei

Durante os primeiros 200 anos do Islamismo, surgiram quatro escolas de interpretação da lei islâmica. As três primeiras escolas (Hanafita, Malikita e Shafiita) guardam diversas semelhanças entre si, mas a quarta escola, Hanbalita, é mais tradicionalista e conservadora.

As três primeiras escolas consideram todas as quatro como igualmente ortodoxas, mas os hanbalitas não retribuem a reverência. Os hanbalitas eram pouco expressivos até o início do século XVII, quando a corrente wah habi tornou-se mais poderosa.

Atualmente, os wahabitas são a doutrina religiosa dominante na Arábia Saudita e sua associação com os hanbalitas explica a interpretação severa que se dá à sharia na Arábia Saudita atual e que nas últimas décadas tornou-se mais popular entre grupos fundamentalistas islâmicos em diversas outras regiões.

Mesmo entre os muçulmanos, são severas as críticas ao fundamentalismo da interpretação da sharia naquele país.

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3.3.1 As escolas de interpretação da lei

FIGURA 17 - Mapa: A distribuição das escolas de interpretação da lei (Fiqh) pelo mundo islâmico. Nos tons mais escuros, os locais de predominância xiita

FONTE: Disponível em: <http://ayshawazwaz.files.wordpress.com/2010/02/muslimdistribution3b.jpg>. Acesso em: 25 nov. 2012.

3.4 O MODELO DE CONDUTA DO PROFETA

Por fim, outro guia para a conduta dos muçulmanos é o exemplo do Profeta. Os muçulmanos consideram Maomé um modelo de conduta a ser imitado, e por isso vários de seus hábitos foram incorporados pelos muçulmanos. Alguns críticos do Islã (mesmo críticos “de dentro”) condenam o recurso exagerado a isso, pois, em última análise, isso tenderia a perpetuar práticas da Arábia do século VIII – anacrônicas, portanto.

3.5 O MISTICISMO ISLÂMICO: O SUFISMO

Outro elemento muito importante para a constituição da cultura e da sociedade islâmica foi o misticismo muçulmano, denominado sufismo. O misticismo sufi parece ter sido influenciado por práticas oriundas de outras culturas, talvez mesmo do Cristianismo bizantino, mas tem suas características profundamente vinculadas à cultura onde se originou.

Uma mescla de tradições árabes, persas, levantinas (ou seja, do Levante, região da Síria e Palestina) e, posteriormente, das outras culturas incorporadas ao Islã, como a turca.

O sufismo desenvolveu-se ao longo dos primeiros séculos do Islã, primeiramente como um modelo de conduta interior, que buscava respostas para como o fiel deveria proceder diante de Deus. Com o tempo, tornou-se uma doutrina do amor divino e, posteriormente, uma busca de Deus interna e pessoal, o que colocou o sufismo em conflito com a autoridade dos ulemás (doutores da Lei) e, na visão desses, até mesmo com o Alcorão.

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

Controvérsias políticas à parte, o sufismo continha, efetivamente, uma ameaça em potencial à autoridade da sharia. Seu objetivo era a busca de Deus pela verdade interior, não pelas determinações legais. Por volta de 1500, quase todos os muçulmanos eram sufis. Como se pode ver, o Islamismo tem “formatos” que não condizem em nada com a ideia de fundamentalismo que se faz dele, assim como tem doutrinas intransigentes que não aceitam nenhuma perspectiva diferente da sua (é o caso dos wahabitas – ver item 3.3.1).

O sufismo guarda uma notável semelhança, mantidas as devidas proporções, com o misticismo das ordens monásticas cristãs. Centenas de ordens sufis surgiram ao longo dos quase 1500 anos de Islã, e elas mantinham entre si grandes diferenças, muitas delas exigindo uma postura ascética dos seus seguidores.

O sufismo foi muito importante como mecanismo difusor de cultura, pois tem como um de seus fundamentos a transmissão de seus preceitos, e também como agente estabilizador da sociedade, ao tomar para si a responsabilidade de manutenção de escolas, orfanatos, bibliotecas, hospitais e mesquitas.

Por tudo isso, foi um dos elementos fundamentais de difusão do Islã entre os povos conquistados, do estabelecimento de uma certa homogeneidade cultural no mundo muçulmano, e do notável florescimento cultural ocorrido entre os séculos VIII – XIII, aproximadamente, que ficou conhecido como “A Era de Ouro do Islã”.

A “Era de Ouro” do Islamismo será estudada na Unidade 2 deste caderno.

Caro(a) acadêmico(a), apresentamos agora alguns trechos do livro Introdução ao Islã, de Muhammad Hamidullah (Rio de Janeiro: Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro, 1993), que traz descrições sobre o quotidiano dos muçulmanos. Para os que têm interesse, vale a pena uma leitura mais abrangente do texto. Boa leitura!

ESTUDOS FUTUROS

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TÓPICO 5 | AS ORIGENS DO ISLAMISMO

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LEITURA COMPLEMENTAR

INTRODUÇÃO AO ISLAM

Muhammad Hamidullah

521. Em seguida, vem o nascimento involuntário, quando nasce uma criança numa família muçulmana. Imediatamente após a parteira terminar o seu trabalho, pronuncia-se o adan no ouvido direito da criança, e a icáma no seu ouvido esquerdo, de modo a fazer com que a primeira coisa que o recém-nascido escute seja o testemunho da fé, o chamado ao louvor do Criador e o pedido de graças pelo seu bem-estar. O adan, ou “Chamado à Oração”, é o seguinte: “Deus é o Maior”, (quatro vezes), “Eu testemunho que não há outra divindade, além de Deus” (duas vezes). “Testemunho que Mohammad é o Mensageiro de Deus” (duas vezes). “Vinde para a oração” (duas vezes). “Vinde para a salvação” (duas vezes). “Deus é o Maior” (duas vezes). “Não há outra divindade, além de Deus”. A icáma ou a preparação para a oração, é formulada nos seguintes termos: “Deus é Maior! Deus é Maior! Testemunho que não há outra divindade além de Deus; testemunho que Mohammad é o Mensageiro de Deus! Vinde para a oração; vinde para a salvação; a oração está prestes a começar; a oração está prestes a começar; Deus é Maior; Deus é Maior. Não há outra divindade além de Deus”.

Os Primeiros Anos de Vida

522. Quando se cortam, pela primeira vez, os cabelos da criança, costuma-se distribuir o equivalente ao peso destes em prata ou o valor correspondente em dinheiro, entre os pobres. Se se dispõe de meios para tanto, abate-se uma cabra ou uma ovelha, para festejar a ocasião com os pobres e com os amigos.

523. Não há uma idade específica, mas a circuncisão é feita, no menino, quando ainda em tenra idade. Para os adultos convertidos isto não é obrigatório.

524. Quando a criança chega à idade adequada para iniciar os seus estudos, logo após os primeiros quatro anos, organiza-se uma festa em família, ocasião em que a criança recebe a sua primeira lição. Para promover um augúrio, lê-se, diante da criança, os primeiros cinco versículos da 96ª Surata do Alcorão, que consistem da primeira revelação que sobreveio ao iletrado Profeta do Islã, e que se refere à leitura e à escrita. Faz-se a criança repetir palavra por palavra esse texto. Eis uma tradução [...]: “Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso. 1. Lê, em nome do teu Senhor, que criou; 2. Criou o homem de um coágulo. 3. Lê, que teu Senhor é Generosíssimo, 4. Que ensinou através do cálamo, 5. Ensinou ao homem o que este não sabia. (96ª Surata, versículos 1-5). [...]

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UNIDADE 1 | AS ORIGENS DA IDADE MÉDIA

Morte

535. O muçulmano moribundo, em seu leito de morte, deve procurar pronunciar a seguinte profissão de fé: “Não há outra divindade além de Deus, Mohammad é o Mensageiro de Deus.” As pessoas que estiverem ao redor do moribundo poderão ajudar, repetindo essa fórmula, para a pessoa que está nos estertores da morte.

537. É proibido gastar com fausto em sepulcros, que devem ser os mais simples possíveis; devemos, ao invés disso, gastar tais valores com os pobres e com aqueles que merecem e rogar a Deus para que a recompensa dessa caridade seja dada ao falecido.

Hábitos Gerais

538. Além das horas dedicadas diariamente às orações e o jejum anual, certos hábitos são recomendados aos muçulmanos. O mais importante é o de estudar continuamente o texto e a tradução do Alcorão, meditar sobre o seu conteúdo, para assimilar as suas diretrizes na vida quotidiana. O que pode causar mais felicidade do que a invocação da Palavra de Deus?

539. Devemos dizer Bismil-lah (i.é, em nome de Deus) quando estivermos para começar qualquer ato, e alhamdulil-lah (i.é, louvado seja Deus) ao terminar o mesmo. Quando se pretende ou se promete algo para o futuro, deve-se dizer imediatamente inchaal-lah (i.é., se Deus quiser).

540. Quando dois muçulmanos se encontram, saúdam-se, dizendo: As-salamu ‘alaikum (que a paz esteja convosco). Pode se responder do mesmo modo, ou dizer Wa’alaiht-mus-salaam (que a paz esteja convosco).

541. Devemos nos habituar a glorificar Deus, ao nos deitarmos e levantarmos: Subhanallah (glorificado seja Deus) é a fórmula mais simples. Devemos, também, invocar a misericórdia de Deus para com o Profeta, usando, por exemplo, a seguinte fórmula: Al-lá-humma sal-li’ala Mohammad wa baarik wa sal-lim (i.e., que Deus abençoe Mohammad e lhe dê paz).

542. O Profeta preferia o lado direito. Quando calçava as sandálias, calçava primeiro o pé direito, e depois o esquerdo, e exatamente o contrário quando as tirava; quando vestia uma camisa, vestia primeiro o braço direito, depois o esquerdo; quando penteava o cabelo, penteava-o primeiro do lado direito, e depois do esquerdo; ao entrar numa casa, ou na mesquita, fazia-o primeiro com o pé direito, depois com o

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TÓPICO 5 | AS ORIGENS DO ISLAMISMO

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esquerdo; mas quando entrava no banheiro, fazia-o primeiro com o pé esquerdo, e, ao sair, com o pé direito na frente. Quando tirava a roupa, calçados, etc., despia primeiro o braço, perna ou pé esquerdo. Quando distribuía algo, ele começava sempre pelos que estavam à sua direita e terminava com os que estavam à esquerda.

FONTE: HAMIDULLAH, Muhammad. Introdução ao Islam. Rio de Janeiro: Sociedade Beneficente

Muçulmana do Rio de Janeiro, 1993.

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RESUMO DO TÓPICO 5

Neste tópico você viu que:

O Islamismo é uma religião monoteísta fundada por Maomé, na região da Arábia, no século VII.

O marco inicial do Islamismo acontece com a migração de Maomé e seus seguidores (a Hégira), da cidade de Meca para Medina, em 622 d.C.

Os princípios básicos do Islamismo são a crença em um único deus (chamado Allah), nas profecias de Maomé, na palavra divina (o Alcorão) e nos cinco pilares.

Os cinco pilares do Islã são o testemunho, as cinco preces diárias, o pagamento dos tributos, o jejum no mês do Ramadã e a peregrinação a Meca, ao menos uma vez na vida.

O Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos, contém, além da palavra de Deus, na visão dos muçulmanos, também preceitos morais e legais detalhados, que serviram para organizar o direito islâmico (a sharia).

Além do Alcorão, a sharia retira seus preceitos dos hadiths e das sunas, que reúnem declarações e práticas de Maomé.

Existem diversas correntes dentro do Islã. As mais importantes são os sunitas e os xiitas.

Também o misticismo islâmico (sufismo) teve papel importante na difusão e aperfeiçoamento do Islamismo.

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93

1 Elabore uma síntese explicativa sobre o Islamismo.

AUTOATIVIDADE

Assista ao vídeo deresolução da questão 1

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UNIDADE 2

O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir desta unidade você será capaz de:

• identificar as principais características dos períodos áureos das civiliza-ções bizantina e muçulmana;

• refletir sobre a importância das civilizações do Oriente Médio para a pre-servação e ampliação do conhecimento da Antiguidade Clássica;

• compreender o caráter global do comércio e das trocas culturais entre o mundo muçulmano e as demais regiões da Europa, Ásia e África entre os séculos VIII – XII d.C.;

• perceber a influência islâmica e bizantina na formação da identidade e da cultura da Europa Ocidental na Era Moderna;

• estabelecer a vinculação entre as civilizações construídas por bizantinos, muçulmanos e cristãos ocidentais com suas tradições religiosas: ortodoxa, islâmica e católica, respectivamente;

• apontar as características e as limitações conceituais do feudalismo e das sociedades feudais;

• observar a era feudal a partir de uma perspectiva mais ampla e mais com-plexa do que a tradicional redução simplista da Europa medieval ao feu-dalismo e à “Idade das Trevas”.

Esta unidade está dividida em quatro tópicos. No decorrer e no final de cada um deles você encontrará atividades que contribuirão para sua reflexão e análise dos conteúdos adquiridos.

TÓPICO 1 – A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

TÓPICO 2 – RELIGIÃO E OPULÊNCIA NO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

TÓPICO 3 – A EXPANSÃO MUÇULMANA E A “ERA DE OURO” DO ISLAMISMO

TÓPICO 4 – O FEUDALISMO

Assista ao vídeo desta unidade.

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TÓPICO 1

A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO ROMANO

ORIENTAL

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

Houve um tempo em que arte, religião, cultura e política se fundiram a tal ponto que era impossível distinguir uma da outra. Nessa época, a fé movia os exércitos e era por eles transportada para novas regiões. As concepções sobre Deus moldavam não apenas a conduta das pessoas, mas a sua lealdade para com o Estado. Debates acalorados aconteciam a respeito de minúcias religiosas, e de seus desfechos dependiam reis, exércitos, estados e a vida dos camponeses. A arte refletia tudo isso, ora retratando imperadores, com a autoridade divina, ora escapando completamente à representação humana de Deus ou do Profeta, considerada blasfêmia.

Foi uma época contraditória. De um lado, como se pode ver, quase todos os aspectos da vida cotidiana ficavam sujeitos à religião; de outro, diversas regiões do mundo, em contato, sobretudo pela guerra e, novamente, pela diferença de crenças, prosperaram, cada uma a seu modo. Nesse longo período, as sociedades dividiam-se localmente por querelas religiosas ou por dificuldades de controle de vastos territórios por governantes fracos, mas permaneceram coesas por séculos.

Tudo isto aconteceu numa ampla região do mundo, do Oceano Atlântico até a Índia, durante um período de cerca de 500 anos. O período compreendido entre os séculos VIII e XIII, aproximadamente, foi o momento em que o Império Romano recuperou-se do traumático período de divisão e de esfacelamento de sua porção ocidental e constituiu duas unidades culturais coesas, mas radicalmente diferentes entre si. Ao mesmo tempo, mais ao sul, na Península Arábica, um profeta transformava os nômades que viviam em uma região desértica e esquecida do mundo em uma comunidade poderosa e agressiva, que com seu fervor religioso criou em pouco tempo o império mais vasto de que se tinha tido notícia.

Nesta unidade, estudaremos três regiões do mundo que, durante cerca de 500 anos, constituíram unidades culturais distintas, mas com características importantes em comum: com a religião ocupando parte importante da vida das pessoas, criaram-se em cada uma delas amálgamas sociais que perdurariam por muito tempo.

Falaremos do Império Romano do Oriente (também chamado Império Bizantino), dos reinos cristãos romano-germânicos e do mundo islâmico. Você

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UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

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perceberá que, em todas essas sociedades, o período entre os séculos VIII e XIII foi de intensas transformações culturais, que moldaram o mundo de hoje de forma irreversível.

2 AS ORIGENS DO IMPÉRIO ROMANO DO ORIENTE

Caros acadêmicos!A partir de agora iniciaremos uma leitura sobre o Império Romano do Oriente, na qual procuraremos destacar suas características marcantes. Você encontrará, ao longo do texto, referências bibliográficas, caso queira se aprofundar no assunto. Recomendamos a consulta em mapas, se houver dúvida acerca de alguma localização geográfica. Boa leitura!

2.1 A QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO NA PERSPECTIVA ORIENTAL

Como já vimos, a divisão do Império Romano em quatro partes (Oriente, Itália, Danúbio e Reno) pelo imperador Diocleciano, em 284, introduziu a separação entre Ocidente e Oriente. Mas foi em 395, sob o governo de Teodósio, que o Império Romano foi cindido entre Império Romano do Ocidente, com capital em Milão, e Império Romano do Oriente, com capital em Constantinopla (atual Istambul, na Turquia).

A queda do Império Romano do Ocidente não afetou a parte oriental. Muito ao contrário, o Império Romano do Oriente - chamado pelos historiadores do século XIX de Império Bizantino - conheceu, a partir do século VI, um período de opulência.

Constantinopla, na condição de capital do império e importante porto comercial do Oriente, centralizou o poder político e econômico durante toda a existência do Império Bizantino.

Perry Anderson explica, em seu livro “Passagens da antiguidade ao feudalismo” (2004), que o motivo determinante para a queda do império Ocidental está relacionado ao regime de trabalho escravo, praticado amplamente nas colônias romanas. Segundo Anderson (1985), a grande propriedade rural e a escravidão agrícola, no Império Romano do Ocidente, fizeram enfraquecer e “ruir todo o edifício imperial”. Por outro lado, no Oriente romano, a economia estava fundada no regime produtivo em pequenas propriedades e no comércio.

NOTA

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TÓPICO 1 | A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

99

2 AS ORIGENS DO IMPÉRIO ROMANO DO ORIENTE

O poder de Bizâncio (Império Bizantino) estava baseado em sua produção agrícola e na transação comercial entre Europa e Ásia. Segundo Perry Anderson (2004, p. 256-257), a ocupação romana encontrou na região dos Bálcãs “um meio ambiente costeiro e marítimo que já havia sido densamente povoado com cidades comerciais pela grande onda da expansão grega no período helenístico”. Portanto, a escravidão jamais se tornou um sistema econômico predominante no Império Romano Oriental, o que contribuiu com sua estabilidade econômica no século V.

A região dos Bálcãs corresponde ao Leste Europeu, onde se localizam os seguintes países: Turquia, Bulgária, Romênia, Sérvia, Croácia, Macedônia, Albânia e Grécia.

Prezado(a) acadêmico(a), é importante destacar que o termo “Império Bizantino” nunca foi utilizado na própria época. O termo é uma criação de historiadores do século XIX. Os próprios “bizantinos” referiam-se ao seu império como “Império Romano”, do qual se consideravam legítimos continuadores –, à sua capital como Constantinopla e a si mesmos como “romanos”, mesmo depois que a cultura tornou-se cada vez mais grega e a religião separou-se da católica romana.

2.2 A PERIODIZAÇÃO DA HISTÓRIA BIZANTINA

As fases da história do Império Romano Oriental, segundo Hilário Franco Júnior (1987), são as seguintes:

Primeira fase: Alto Império (330-610)

Segunda fase: Médio Império (610-1261)

Terceira fase: Baixo Império (1261-1453)

O Alto Império foi marcado pelo reinado de Justiniano, conforme veremos a seguir, mas também pela revolta popular conhecida como Sedição de Nika, em 532. Neste episódio, o povo se revoltou contra a alta dos impostos, destinados a financiar as expedições militares no Ocidente.

O Médio Império, por sua vez, representou o mais longo dos períodos. Nos primeiros momentos, os bizantinos sofreram com as invasões persas em

NOTA

IMPORTANTE

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UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

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Jerusalém e árabes na Síria e no Egito. Porém, nesta mesma fase o império viveu, sob a dinastia dos Macedônicos, a segunda época de ouro.

Já o Baixo Império foi marcado pelo relativo reerguimento de Constantinopla, que havia sido saqueada pelos mercadores venezianos durante a Quarta Cruzada (1204). Após 1261, o Império Bizantino passou a depender dos grandes proprietários rurais e dos comerciantes de Veneza e Gênova, até a tomada definitiva da capital bizantina pelos muçulmanos em 1453. Portanto, estes últimos 192 anos correspondem ao período de reclínio, no plano político e econômico, do Império Bizantino.

As Cruzadas eram expedições militares de caráter religioso, conduzidas, principalmente, por nobres cristãos na Idade Média, entre os anos de 1095 a 1270, com o fim de fazer a guerra denominada “santa” contra os muçulmanos. Buscavam reconquistar Jerusalém, a Terra Santa, e o túmulo de Cristo. As Cruzadas foram convocadas pelo Papa Urbano II, em nome de um projeto de união da Cristandade contra os “infiéis” – entenda-se “muçulmanos”. Este assunto será debatido no final desta unidade.

Assim, a tomada de Constantinopla pelos cruzados em 1204 contribuiu, de forma decisiva, para o declínio do Império Bizantino e da Igreja Ortodoxa.

No próximo tópico estudaremos a disputa religiosa que motivou a separação da Igreja Católica. Como veremos, dividiu-se entre Igreja Católica Apostólica Romana (Ocidental) e Igreja Católica Ortodoxa (Oriental).

2.3 O REINADO DE JUSTINIANO

O Império Romano do Oriente durou cerca de mil anos e, atravessou, de acordo com a perspectiva de historiadores, pelo menos duas eras de grande prosperidade. Em seu primeiro período áureo, sob o comando do Imperador Justiniano (527-565), uma grande extensão territorial foi reincorporada ao império do Oriente. A intenção de Justiniano era, declaradamente, conquistar os reinos germânicos para reunificar todas as regiões do antigo Império Romano.

Justiniano atingiu boa parte de seus objetivos. Os bizantinos reconquistaram os territórios que o Império Romano do Ocidente havia perdido, conquistando o

NOTA

ESTUDOS FUTUROS

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TÓPICO 1 | A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

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norte da África, a Itália e o sul da Espanha. Expulsaram os vândalos do norte da África e os ostrogodos da Península Ibérica (Portugal e Espanha).

A campanha, no entanto, enfraqueceu o Estado bizantino e abriu espaço para revoltas que, juntamente com a peste, mergulharam o Império no caos político, após a morte do imperador. Os reis que sucederam Justiniano, o Grande, não puderam manter os territórios ocidentais do Império, em razão das invasões dos lombardos, persas, árabes, eslavos e búlgaros. O Império Bizantino passou então a concentrar suas forças no Oriente, na defesa de suas fronteiras, no próprio território balcânico.

FIGURA 18 – DIMENSÕES DO IMPÉRIO BIZANTINO NA ÉPOCA DE JUSTINIANO

FONTE: Disponível em: <www.igm.mat.br/homepage/joao_afonso/J.A/figuras_inhumas/ imp._bizantino.jpg>. Acesso em: 1 ago. 2012.

2.3.1 A revolta de Nika

Mas a política expansionista de Justiniano cobrou seu preço. As grandes despesas com o exército e o aumento do custo de vida, aliados a uma política impopular do imperador, levaram a uma grande revolta popular em Constantinopla, no ano de 532.

A revolta iniciou-se no Hipódromo, de onde os manifestantes saíram no fim da tarde gritando “Níka” (em grego: “Vitória!”), e tomaram de assalto a cidade inteira. Nos dias seguintes, os manifestantes sitiaram o palácio do imperador e incendiaram alguns edifícios. O fogo se espalhou por toda a cidade e calcula-se que pelo menos um terço de Constantinopla tenha sido queimada, incluindo a catedral de Santa Sofia.

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2.3.2 As reformas de Justiniano

Após o fim da revolta, Justiniano aproveitou a oportunidade para reformar a cidade de Constantinopla a partir das cinzas e tornou-a ainda mais magnífica. A catedral de Hagia Sophia foi reconstruída, na forma como existe ainda hoje. A catedral (também chamada de basílica, devido ao seu formato arquitetônico) representou o desejo de unificação das igrejas existentes em Bizâncio (Ortodoxa, Nestoriana e Monofisista).

FIGURA 19 - HAGIA SOPHIA, CONSTRUÍDA COMO BASÍLICA POR JUSTINIANO. OS TURCOS, POSTERIORMENTE, TRANSFORMARAM-NA EM MESQUITA E ERGUERAM AS TORRES (MINARETES) AO REDOR. ATUALMENTE É UM MUSEU

FONTE: Disponível em: <http://istanbulvisions.com/images/hagia_sophia_1.jpg>. Acesso em: 17 nov. 2012.

Durante o governo de Justiniano foram reorganizadas também as estruturas jurídicas do Império. O Corpus Juris Civilis (Corpo do Direito Civil) foi elaborado a partir de uma revisão e sistematização do Direito Romano. O Código de Justiniano, como ficou conhecido, era formado pelas Novelas (constituições elaboradas pelos imperadores depois de 534), o Digesto (síntese da jurisdição romana) e as Institutas (manual aos estudantes).

O Corpus Juris Civilis é um exemplo significativo da transformação cultural da herança romana (por meio dos códigos de leis) sob a perspectiva bizantina. Foi este Código que serviu de base para a elaboração dos sistemas jurídicos das nações modernas.

Assim, através do direito, da língua (latina) e da religião (cristã) foi consolidada a unidade do Império Bizantino sobre as bases da cultura herdada do Ocidente. Posteriormente, no entanto, essa cultura foi sendo transformada, aos poucos, até assumir um caráter especificamente grego, como veremos a seguir.

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2.3.2 As reformas de Justiniano Outra característica fundamental da era de Justiniano foi a integração da Igreja no Estado. A partir desta união o imperador passou a ser ao mesmo tempo representante da Igreja (papa) e do Estado (césar). Édouard Perroy denominou esta concepção de governo de “cesaropapismo”.

A representação do imperador enquanto personalidade sagrada pode ser percebida na arte bizantina, onde os mosaicos apresentam Justiniano com uma auréola em torno de sua cabeça. Essa representação é reservada exclusivamente para Cristo e os santos.

FIGURA 20 – REPRESENTAÇÃO EM MOSAICO DO IMPERADOR JUSTINIANO

FONTE: Disponível em: <www.portal planetasedna.com.ar/edad_media_media07.jpg>. Acesso em: 4 ago. 2012.

2.4 A TRANSFORMAÇÃO DO IMPÉRIO

No início do século VII, o Império Romano do Oriente estava em calamidade. A crise econômica e o avanço dos monarcas sassânidas favoreciam as revoltas de povos integrantes do Império, como os ávaros e os eslavos. Muitos territórios conquistados por Justiniano haviam sido perdidos. O Império enfrentava dificuldades econômicas e políticas muito sérias.

Sob o Imperador Heráclio (575-641), Constantinopla conseguiu recuperar grande parte de seu poder militar e econômico, mas passou a ser acossada (perseguida), também, pelos muçulmanos.

NOTA

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Heráclio tomou o poder em 610, após o assassinato do odiado Imperador Fócias, e começou um lento processo de substituição de parte da herança deixada pelos romanos. Heráclio decretou o grego como língua oficial do Império e adotou o título de Basileus, tradução grega para o Imperator romano. A partir desse momento, a cultura do Império tornou-se cada vez mais helênica e afastou-se, inclusive do ponto de vista religioso, de Roma.

Vejamos o que Édouard Perroy fala sobre o soberano de Constantinopla:

Soberano absoluto, o imperador, o Basileus, sejam quais forem sua origem, a fonte militar e, muitas vezes, não hereditária de seu poder, é agora uma personalidade sagrada. Isto é comprovado pela etiqueta que, no seu palácio, verdadeira cidade interior fechada, o isola do comum dos homens e mesmo de seus cortesãos: imitação, em certos pontos, das tradições das monarquias orientais, mas fruto, também, de uma evolução interna. (PERROY, 1964, p. 40).

Portanto, o Império Bizantino era um Estado autocrata, onde o poder político estava concentrado nas mãos do imperador. Ele era considerado por seu povo como um Deus vivo. O Basileus dispunha de poderes absolutos.

A hereditariedade não era garantia de continuidade. Os golpes de Estado eram comuns em Bizâncio e resultavam, em último caso, no assassinato dos governantes. Segundo Hilário Franco Júnior, dos 107 imperadores que governaram, apenas 34 tiveram morte natural. Os demais foram mutilados ou assassinados. Por isso, a história de Bizâncio foi marcada pela alternância constante entre imperadores.

Os bizantinos entendiam o imperador como um representante de Deus na Terra (teocracia). Por isso, uma das características políticas mais curiosas do Império era o fato de os golpes de Estado serem facilmente legitimados pela população. Acreditava-se que a deposição de um imperador era a vontade de Deus, e o golpista, caso tivesse sucesso, teria sido escolhido por Ele para aquela tarefa.

2.5 AS PERDAS BIZANTINAS NA ÁFRICA

Na época da divisão do Império Romano, parte das terras do Império Oriental estava em continente africano. Essas terras foram rapidamente perdidas para os árabes, assim que a expansão muçulmana se iniciou. Além do poderio militar e do fervor religioso dos árabes, outros elementos mais específicos da política e da religião bizantinas ajudam a explicar esse fenômeno, como nos explica o historiador tcheco Ivan Hrbek:

NOTA

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TÓPICO 1 | A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

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O Império Bizantino cessou de exercer qualquer verdadeira influência na África no curso do século VII. O Egito foi rapidamente perdido e as tentativas esporádicas realizadas para reconquistá‑lo pelo mar fracassaram; algumas porções do litoral norte africano permaneceram, todavia, sob controle bizantino até o final do século, e guerras intestinas interromperam as ofensivas árabes por várias décadas.

A Igreja Ortodoxa bizantina jamais fora muito poderosa nas províncias africanas: os egípcios permaneciam fortemente ligados à doutrina monofisista e as populações urbanas da África do Norte à Igreja Romana. As conquistas muçulmanas privaram em definitivo a Igreja Ortodoxa da fraca influência da qual ela gozara nos séculos precedentes. Embora a Núbia não tenha jamais pertencido ao Império Bizantino, as influências culturais e religiosas deste império ali permaneceram relativamente fortes, mesmo após a conquista do Egito pelos árabes, particularmente na Makuria, o mais central dentre os três Estados cristãos da Núbia que, contrariamente aos dois outros, adotaram o culto ortodoxo (melkita).

A administração era calcada no modelo bizantino, as classes superiores vestiam‑se à moda bizantina e falavam grego. Porém, estes laços com a cultura e a religião bizantinas paulatinamente enfraqueceram-se e, ao final do século VII, o rei de Makuria introduziu o monofisismo em seu Estado, desde então unido à Nobádia do Norte. Esta evolução teve como efeito a reaproximação deste reino com o Egito copta e, parcialmente, com a Síria e a Palestina, onde alguns cristãos da Núbia encontravam eco para as suas convicções monofisistas.

Em sua luta contra a Pérsia, os bizantinos haviam buscado aliar-se à Etiópia- cristã, embora monofisista. A expansão árabe barrou-lhe o acesso ao Mar Vermelho e impôs um termo aos seus intercâmbios comerciais com a Índia, tornando tal aliança, pela mesma ocasião, impossível e vã. Identificando-se de mais em mais com o Estado e o povo etíopes, o cristianismo monofisista, hostil às outras crenças cristãs tanto quanto ao Islã, encontrou a sua própria identidade, que, nem no plano teológico ou no plano da expressão artística ou literária, nada devia aos modelos bizantinos. (HRBEK, 2010, p. 13-14).

3 CONSTANTINOPLA

Quando um estrangeiro em embaixada, ou mais simplesmente um humilde súdito do império, que a sorte não favoreceu, contempla Constantinopla do alto das colinas que a cercam, sua fama, levada de cidade em cidade e de aldeia em aldeia, torna-se uma esplendorosa realidade. No cruzamento das vias terrestres da Europa e da Ásia, Constantinopla está construída sobre o estreito canal marítimo, o Bósforo, que abre caminho ao Mar Negro e às terras da Ásia Central para o Mediterrâneo. A cidade prospera em uma situação natural privilegiada. No fim do século V de nossa era, Constantinopla conta com cerca de um milhão de habitantes; é a maior metrópole do império. (FÈVRE, 1991).

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A fundação de Constantinopla remonta ao período de decadência do Império Romano. Após o século III, a unidade política e territorial do Ocidente romano foi ameaçada pelas lutas internas dos exércitos romanos das províncias (“anarquia militar”; 235-268) e pelas revoltas dos escravos.

Diante da fragmentação do Império Ocidental, Constantino (272-337), sucessor de Diocleciano, empreendeu uma luta pelo restabelecimento da unidade imperial.

A capital de seu império reunificado passou a se localizar na antiga colônia grega de Bizâncio, no Estreito de Bósforo, limite entre Europa e Ásia, que ele rebatizou como Nova Roma. O termo não caiu no gosto popular e a cidade logo passou a ser chamada Constantinopla (Cidade de Constantino).

Segundo Edward Gibbon, Constantino teria obedecido às “ordens de Deus” ao plantar “as perenes fundações de Constantinopla”. Tais “ordens” lhe teriam sido transmitidas em um sonho, quando ele dormia entre as muralhas de Bizâncio.

O gênio tutelar da cidade, uma venerável matrona curvada ao peso dos anos e das enfermidades, subitamente, se transformara numa florescente donzela, adornada por suas próprias mãos com todos os símbolos da grandeza imperial. O monarca despertou, interpretou o auspicioso presságio e obedeceu sem hesitação à vontade do céu. (GIBBON, 2005, p. 295).

Portanto, o ato de fundação de Constantinopla esteve envolto por uma mentalidade sobrenatural, comum para a época. Ou seja, o mito de fundação da cidade de Constantino estava ligado à relação religiosa (espiritual) que os bizantinos mantinham com o ambiente mundano. Podemos dizer que “o mundo se dava pela fé”. Um exemplo disso está no valor atribuído aos sonhos, considerados como presságios, pois continham sinais que antecipavam o futuro. A interpretação dos sonhos fazia parte das práticas culturais bizantinas, herdadas dos gregos e romanos. A interpretação dos sonhos ou ciência dos sonhos foi reunida em textos por Achmet, entre 813 e o final do século XI, sob o título de a “Chave dos Sonhos”.

Mentalidade: é definida por Hilário Franco Júnior como “o plano mais profundo da psicologia coletiva, no qual estão os anseios, esperanças, medos, angústias e desejos assimilados e transmitidos inconscientemente, e exteriorizados de forma automática e espontânea pela linguagem cultural de cada momento histórico em que se dá essa manifestação”. (FRANCO Júnior, 2004, p. 184).

NOTA

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107

3.1 A CIDADE

A cidade de Constantinopla, abençoada por Deus, conseguiu sobreviver aos ataques dos povos bárbaros no século V. A razão para isso, é claro, tem menos a ver com a proteção divina do que com as reforçadas defesas da cidade e a grande disponibilidade de recursos (ouro) que podiam ser usados para subornar os invasores. Ambas as características deviam-se, em parte, à posição estratégica da cidade e à necessidade de garantir sua segurança.

Localizada na antiga região da Trácia, no continente europeu, na costa do pequenino Mar de Mármara e bem de frente para a Anatólia na Ásia, Constantinopla estava no lugar perfeito para compor uma ponte entre dois mundos.

A cidade foi construída em uma ponta, delimitada pelo Mar de Mármara e por um canal chamado Chifre de Ouro. Com isso, havia um único lado acessível por terra, no qual foi construída uma série de muralhas praticamente indevassáveis. Em toda a história do Império Bizantino, as muralhas de Constantinopla foram invadidas apenas duas vezes: durante a Quarta Cruzada, em 1204, quando a cidade foi saqueada, e sob o ataque otomano em 1453, quando o Império foi derrubado.

FIGURA 21 - DETALHE DAS MURALHAS EXTERNAS DE CONSTANTINOPLA, CONSTRUÍDAS POR TEODÓSIO. A MAIOR PARTE DAS MURALHAS FOI PRESERVADA NA MODERNA CIDADE TURCA DE ISTAMBUL

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/1/1c/Walls_of_Constantinople.JPG/800px-Walls_of_Constantinople.JPG>. Acesso em: 23 set. 2012.

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3.2 MÉSIA, A PRINCIPAL AVENIDA DE CONSTANTINOPLA

Agora, o convidamos a percorrer a Mésia, a principal avenida de Constantinopla e descobrir como em um passeio turístico a paisagem urbana da grande cidade do Oriente. Em nosso passeio virtual, podemos sentir de perto a pobreza e o luxo, experiência que encontramos apenas ao transitar pelas cidades-capitais do mundo.

Em Constantinopla, o povo vive comprimido em pequenos bairros, conjuntos de ruelas sombrias, pouco arejadas, onde se encontram as pobres moradas de um povo orgulhoso e arrogante, consciente de pertencer à mais civilizada das comunidades.

As vielas serpenteiam entre as pequenas tabernas, casas construídas com tijolos e materiais baratos. Algumas casas grandes de encontros, as ínsulas, contrastam com esta desordem de tijolos e madeira, de telhas mal ajustadas. Dessa massa compacta emergem levas de crianças, nela vão e vêm as famílias.

No centro desse bairro improvisado, de construção anárquica, uma pequena praça reúne a atividade econômica e acolhe os funcionários, os estrangeiros perdidos na grande cidade. Ali é distribuído, diariamente, o pão da anona, feito por ordem imperial com o precioso trigo do Egito, de acordo com a tradição romana que determina que o poder deve sustentar a plebe.

Em troca de um tablete, a téssera, o cidadão de Constantinopla recebe o pão, marca tangível de sua vinculação à cidade imperial. Duas ou três escadas permitem ao visitante ou ao representante da autoridade que veio distribuir o pão deixar esse mundo sombrio, anônimo entre centenas de outros, para chegar ao topo da colina onde o luxo imperial impõe seu esplendor.

Os muros avermelhados das casas pobres vão se espaçando e cedem lugar às altas casas de pedra que comunicam com o exterior por grandes janelas. As ruas alargam-se e um rumor crescente anuncia a proximidade da artéria vital da cidade, a Mésia.

A capital do grande Império Romano do Oriente encarna-se inteira nessa bela avenida, cujos pórticos em dois andares formam arcadas cobertas. A multidão barulhenta acotovela-se diante das lojas de luxo. Os ourives fascinam os estrangeiros, os ofícios ligados ao ouro e à prata, às peles, ocupam os melhores pontos da avenida transbordante de vida.

O segundo andar, ornado de estátuas, serve de passeio, é o lugar em que toda a cidade se encontra. As livrarias atraem em seu santuário da cultura latina e grega os retóricos, sempre prontos a uma discussão inflamada sobre a natureza de Cristo ou sobre os escritos dos Pais da Igreja.

A multidão colorida percorre sem cessar a parte central de Mésia, pois o eixo de Constantinopla atravessa a cidade, partindo das portas da cidade até

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3.2 MÉSIA, A PRINCIPAL AVENIDA DE CONSTANTINOPLA o Palácio Sagrado à beira do mar. A Mésia conduz o estrangeiro ou o mercador que percorreu as estradas da Europa da Porta de Ouro, aberta na gigantesca muralha teodosiana com sua dupla fortificação, até o centro do Império, o Palácio Sagrado.

Outros caminhos retilíneos vêm ter à Mésia, de onde saem cavaleiros e passantes, carros carregados com as mercadorias comercializadas em todo o império. Toda riqueza de Constantinopla é oferecida ao egípcio, ao godo dos vales selvagens que cruzam os diversos fóruns ligados pela Mésia. Ao fórum de Arcadius, situado a oeste da cidade, sucede o fórum Bovis, do boi, onde uma gigantesca cabeça de boi esculpida em bronze serve para incinerar os resíduos.

Trazido de Pérgamo, este objeto estranho é apenas a primeira maravilha que encontram o provinciano e o bárbaro, de quem zombam os vaidosos habitantes da capital do império. De olhos presos aos pórticos, à multidão, às estátuas e às cruzes de prata erigidas no alto dos fóruns, o estrangeiro entra na parte mais imponente na Mésia cercado por uma multidão cada vez maior. A diversidade da população aparece sob os traços de um godo ou de um sírio, ao lado de um grego, este representando a maioria autóctone.

Mais além do fórum Tauri, situado em pleno coração do promontório que forma a cidade, aumenta rapidamente a densidade de edifícios luxuosos. Banhos públicos, igrejas e mosteiros erguem-se nas belas ruas adjacentes. O palácio do Imperador Leão I está ao lado da Basílica de Teodósio, a estátua equestre do Imperador Arcádio domina o fórum.

Ninguém pode deixar de ver a suposta grandeza desses herdeiros de Roma; a selvagem tutela dos bárbaros não é visível nos mármores e nos baixos-relevos gravados em honra do Império de Constantino. O fórum de Constantino, distante do Palácio Sagrado algumas centenas de metros, ultrapassa todos os outros em luxo de edificação. É necessário impressionar a multidão; quando das festas religiosas ou imperiais, ou os desfiles de condenados, o povo pode entrar no magnífico fórum através de dois magníficos arcos de mármore branco.

Os bárbaros vindos das estepes áridas extasiam-se e perdem-se na contemplação das estátuas de animais fabulosos. Mas a cruz de Constantino lembra que esta beleza profana não pode eclipsar o domínio de Cristo sobre a cidade, farol do cristianismo em meio à heresia e ao paganismo bárbaros.

A parte mais atraente da Mésia conduz o passante até as proximidades do Palácio Sagrado, escondido por trás de suas fortificações, universo enigmático de onde saem, por vezes, grandiosos cortejos imperiais.

O povo, ávido de luxo e esplendor, une seus farrapos aos mantos reais debruados de ouro dos aristocratas para ver o cortejo. Nessas ocasiões, a praça do Augusteon, ponto terminal da Mésia, abriga uma multidão efervescente, recolhida ou hostil segundo a cerimônia e o humor da cidade.

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O palácio, a Basílica de Santa Sofia e os serviços das grandes corporações do império concentram-se no Milhare de ouro, ponto central onde um arco do triunfo é o ponto de partida de todas as estradas do império.

Aqui, às portas do palácio imperial, culminam a grandeza e a efervescência de Constantinopla. As procissões religiosas, ao sair da basílica, cruzam-se com os desfiles dos generais vitoriosos. Os desfiles unem o povo a seu senhor imperial, o basileu, sucessor dos soberanos romanos por escolha divina e, mais frequentemente, pelo poder das armas. (FÈVRE, 1991, p.15-17).

FIGURA 22 - RECONSTITUIÇÃO DE VISTA AÉREA DE CONSTANTINOPLA DURANTE O IMPÉRIO ROMANO DO ORIENTE. À ESQUERDA E ABAIXO, O MAR DE MÁRMARA. O CANAL À DIREITA É O CHIFRE DE OURO

FONTE: Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/File:Bizansist_touchup.jpg>. Acesso em: 23 set. 2012.

Mésia, Mese ou Mesê se referem à mesma rua, a Rua do Meio, a principal de Constantinopla. Agora procure localizá-la no mapa que segue. Localize-a também na vista aérea da cidade, na figura anterior.

NOTA

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FIGURA 23 - MAPA DE CONSTANTINOPLA, ONDE APARECE A AVENIDA MÉSIA (MESE), LIGANDO UM DOS PÓRTICOS À CATEDRAL DE SANTA SOFIA (ESTRELA MAIS ESCURA). AO SUL DA CATEDRAL, O HIPÓDROMO (O EDIFÍCIO ALONGADO)

FONTE: Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Byzantine_Constantinople.png>. Acesso em: 15 fev. 2013.

3.3 O HIPÓDROMO

As corridas de cavalos eram muito populares entre os romanos da Antiguidade, e mantiveram-se como o “esporte nacional” dos bizantinos. Em Constantinopla, o Hipódromo (do grego hippos = cavalo; drómos = corrida) era mais do que uma simples pista de corrida. Era o local onde as discussões políticas aconteciam, onde os negócios eram fechados. As altas apostas feitas nos vencedores eram capazes de criar e destruir fortunas do dia para a noite.

O Hipódromo havia sido construído ainda na época da Bizâncio grega e foi reformado por Constantino. Desde a época pré-bizantina, as torcidas se organizavam ao redor de quatro equipes (Demes), identificadas pelas cores: verdes, azuis, brancos e vermelhos.

As equipes eram mais do que agremiações esportivas: na época bizantina, as duas únicas equipes que se mantiveram – azul e verde – formavam verdadeiros partidos políticos. Os grupos serviam como válvula de escape para as inquietações populares, disputas religiosas, pretendentes ao trono etc. Isso explica o motivo de a revolta de Nika ter se iniciado no Hipódromo.

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FIGURA 24 - CONCEPÇÃO ARTÍSTICA DO HIPÓDROMO DE CONSTANTINOPLA, EXIBIDA NO MUSEU TOPKAPI SARAYI, EM ISTAMBUL

FONTE: Disponível em: <http://phdiva.blogspot.com.br/2011/08/hippodrome-in-constantinople.html>. Acesso em: 14 out. 2012.

Apresentamos aqui um trecho do clássico de Steven Runciman “A civilização bizantina”. Steven Runciman é um dos mais destacados historiadores ingleses que trataram do Império Romano do Oriente e das Cruzadas.

Neste trecho, o autor discorre sobre a marcante influência bizantina na cultura e na religiosidade russa. Boa leitura.

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TÓPICO 1 | A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

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LEITURA COMPLEMENTAR

BIZÂNCIO E OS POVOS ESLAVOS

Steven Runciman

Um dos mais belos capítulos do Legado Bizantino é a profunda influência de Constantinopla na formação cultural dos eslavos e de outros povos (como os búlgaros), que na região balcânica se colocaram ao alcance da ação civilizadora de Bizâncio. Tatakis observa que os eslavos se deixaram impregnar tão profundamente pela influência bizantina que ainda hoje é difícil separar na civilização daqueles povos o que é propriamente eslavo do que é bizantino.

Quem pretender estudar a fundo a formação e a evolução da alma eslava terá que partir do estudo da própria civilização bizantina. O grande veículo da penetração bizantina foi naturalmente a Igreja Ortodoxa. Graças à religião é que se conservou através dos séculos de dominação turca o espírito de patriotismo dos povos balcânicos. «Durante quatro séculos, no Oriente balcânico, a Igreja Ortodoxa manteve o patriotismo cristão, e à sua sombra se preparou, no curso do século XVIII, o grande movimento donde, ao raiar do século XIX, saíram o despertar das nacionalidades oprimidas e sua independência». Não podemos evidentemente estudar em todos os seus aspectos o legado bizantino aos povos eslavos.

Tal estudo resultaria provavelmente em substanciosos volumes. Limitar-nos-emos aqui apenas a citar como exemplo dessa marcante influência a civilização russa. Com efeito, a Rússia dos Czares permaneceu, «até a aurora do século XX, em todas as manifestações de sua vida, a mais fiel imagem de Bizâncio desaparecida».

Durante séculos os russos haviam sentido o influxo da civilização bizantina, sobretudo através da atuação da Igreja. Quando Constantinopla caiu em poder dos turcos, numerosos emigrados gregos procuraram a Rússia, provocando aí um movimento de renovação cultural paralelo ao Renascimento Ocidental. O casamento (1472) de Ivan III, grande príncipe de Moscou, com Sofia, a última dos Paleólogos, selou a convicção de que a capital russa deveria ser considerada a sucessora política de Bizâncio. Com a criação do patriarcado de Moscou em 1589, os russos reivindicaram também a sucessão religiosa de Bizâncio.

«Nunca, daí por diante, a Rússia dos czares esqueceu as ambições que lhe impunha essa herança, nem deixou modificar-se o espírito que lhe havia instilado sua educação bizantina. Ainda recentemente, se se quisesse fazer ideia do que foi o mundo bizantino, seria para a corte de São Petersburgo e para o Kremlin de Moscou que valeria a pena dirigir os olhos. Em nenhuma parte, mais que na Rússia czarista, se havia conservado a imagem fiel de Bizâncio desaparecida».

Essa imagem era bem visível na concepção russa do poder imperial (o czar era o lugar-tenente de Deus na Terra), na etiqueta, no luxo da corte, na íntima ligação existente entre a Igreja e o Estado, no esplendor das cerimônias litúrgicas, no grande

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UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

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número de mosteiros e no prestígio enorme desfrutado pelos monges. Os exemplos da influência bizantina na Rússia poderiam ser multiplicados indefinidamente.

A consciência de serem sucessores e continuadores dos Basileus levou os czares a orientarem a política externa russa no sentido de Constantinopla. Santa Sofia foi o sonho constante de várias gerações russas: «Substituir na cúpula da grande Igreja o crescente pela cruz de ouro, tal foi o fim ideal que, desde séculos, a Rússia se propôs, ao mesmo tempo em que sonhou libertar os povos cristãos do jugo otomano e apossar-se de Tsaringrad, «indissoluvelmente ligada à ideia do czarismo cristão». «O dia em que Moscou se fez herdeira de Bizâncio fixou para séculos a política do império dos czares».

A espiritualidade bizantina imprimiu-se de tal modo no povo russo que a encontramos nas obras de romancistas como Dostoievsky (que pinta magistralmente a alma atormentada pelo vivo sentimento do pecado e pela consciência da imperfeição humana em sedenta busca da perfeição) e de pensadores como Berdiaeff (cuja síntese filosófica pretende focalizar o homem em toda a sua espiritualidade).

FONTE: RUNCIMAN, Steven. A civilização bizantina. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, p. 286-287.

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RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico você viu que:

A queda do Império Romano do Ocidente não afetou diretamente o lado oriental, que se manteve estável e organizado pelos próximos mil anos.

O Império Romano do Oriente, chamado pelos historiadores de Império Bizantino, foi a estrutura política mais estável da Europa durante a Idade Média.

O reinado mais significativo da primeira etapa da história bizantina foi o de Justiniano. Ele expandiu as fronteiras do império, editou o Codex Juris Civilis, código de leis, e promoveu reformas em Constantinopla.

Aos poucos, o Império Romano do Oriente assumiu características próprias, seja na língua – o grego –, seja na religião.

Constantinopla situava-se no Estreito de Bósforo, entre a Europa e a Ásia, e tornou-se uma grande metrópole durante o período bizantino.

As muralhas de Constantinopla eram praticamente indevassáveis, e a cidade só foi ocupada duas vezes: na 4ª Cruzada (1204) e na tomada pelos turcos otomanos (1453).

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AUTOATIVIDADE

1 Como vimos, os habitantes do Império Romano do Oriente consideravam-se herdeiros diretos e legítimos do Império Romano, e assim intitulavam-se. A partir de um certo momento, contudo, é possível perceber alguma ruptura entre os costumes e a organização social oriental em relação à dos romanos, o que de fato nos permite falar em uma cultura especificamente “bizantina”. Quando isso ocorre e devido a que fatores?

2 Que relação simbólica é possível traçar entre o fim das conquistas militares e essa “helenização” do Império Romano do Oriente?

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TÓPICO 2

RELIGIÃO E OPULÊNCIA NO IMPÉRIO

ROMANO ORIENTAL

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

O Império Romano do Oriente, conhecido pelos historiadores desde o século XIX como Império Bizantino, como o continuador do Império Romano da Antiguidade, foi uma entidade política muito particular. Durou mais de mil anos – a rigor, os marcos temporais tradicionais da Idade Média delimitam a sua duração e abarcou uma grande quantidade de populações de diferentes origens e religiões. Como é de se imaginar, em um império tão duradouro, houve períodos de grande prosperidade econômica e outros de crise.

Neste tópico, vamos complementar nossos estudos sobre o Império Romano do Oriente, analisando dois aspectos importantes de sua história: as disputas religiosas, tanto internas quanto externas, e o período de maior prosperidade, durante a dinastia Macedônica.

2 AS CONTROVÉRSIAS RELIGIOSAS BIZANTINAS

O Império Bizantino foi palco de uma série de controvérsias religiosas ao longo de sua história. Muitas delas ocorreram em função de disputas religiosas e políticas no início da história do Cristianismo. Vejamos brevemente algumas das mais relevantes.

2.1 O NESTORIANISMO

Em 428, Nestório, patriarca de Constantinopla, propôs a ideia de que Jesus Cristo, ao contrário do que dizia a doutrina oficial da Igreja, tinha duas naturezas distintas: divina e humana. Isso era entendido por seus opositores como rebaixando a condição de Cristo e da Virgem Maria, e foi condenado pelos Concílios de Éfeso (431) e de Calcedônia (451).

As motivações para a disputa eram tanto religiosas quanto políticas. Nestório era de Antioquia, cidade que, na época, rivalizava em importância com Alexandria e onde as influências de teólogos como Diodoro de Tarso e Teodoro de Mopsuestia, que divergiam consideravelmente da doutrina ortodoxa, eram mais fortes. O triunfo de uma das perspectivas teológicas significaria, também, o triunfo de seu defensor e da região de onde ele provinha.

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2.2 A ICONOCLASTIA

As desavenças quanto ao uso de certos elementos no culto católico eram antigas. A “Querela das Imagens” (728-842) foi um dos significativos conflitos envolvendo imagens (de Cristo, de Maria, dos santos etc.) nos cultos religiosos.

Naquele importante episódio da história, os imperadores bizantinos proibiram que os fiéis cultuassem imagens. Os partidários das ideias desses imperadores ficaram conhecidos como iconoclastas.Por isso, a iconoclastia se transformou em uma doutrina bizantina, nos séculos VIII e IX, que repudiava a representação e veneração de imagens (estátuas, pinturas ou qualquer outro objeto utilizado em cerimônias religiosas).

Iconoclastia significa, literalmente, “a destruição dos ícones”. Esse movimento gerou um conflito que durou mais de um século (728 a 842, com uma “trégua” entre 787 e 814). Novamente, assim como no nestorianismo, a controvérsia surgiu por motivações religiosas e políticas, embora diversos aspectos relativos ao confronto não sejam muito bem entendidos. Isso se dá, em parte, porque os iconoclastas, ao serem derrotados ao final, tiveram sua perspectiva silenciada pelos vencedores.

Nestório foi excomungado, mas seus seguidores fugiram para terras do Império Sassânida e estabeleceram a Igreja Persa, apesar da perseguição dos zoroastrianos. Os nestorianos deram origem a vários ramos da igreja cristã oriental, que prosperaram mesmo em terras islâmicas, e chegaram até à China.

FIGURA 25 - KRYSTÓS PANTOKRÁTOR (CRISTO TODO-PODEROSO), ÍCONE BIZANTINO DO SÉCULO XIII. MOSAICO LOCALIZADO NA BASÍLICA DE SANTA SOFIA

FONTE: Disponível em: <http://www.iconsexplained.com/iec/pics/058_christ_pantocrator_205x250.jpg>. Acesso em: 14 out. 2012.

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2.2 A ICONOCLASTIA

Dentre os motivos para o confronto, historiadores (como Toynbee) apontam a influência do avanço muçulmano – com sua proibição de representar a figura humana ou a tensão entre os povos periféricos do império, defensores da iconoclastia, e os moradores mais abastados de Constantinopla, de origem grega, contrários a ela. Essa última interpretação carrega em si características de conflito de classe e é corrente, como se pode imaginar, na historiografia marxista.

Ao final, a posição iconoclasta foi derrotada, ao custo de um grande desgaste político e econômico. Além do mais, as soluções que foram encontradas para a questão em diversos concílios afastaram ainda mais a Igreja de Constantinopla da de Roma.

2.2.1 A justificativa teológica do conflito

Como vimos, não é fácil saber as justificativas e motivações dos iconoclastas, porque seus oponentes, como acontece com frequência, ao vencerem o conflito, ganharam o direito de contar a história a seu modo. Podemos, no entanto, tentar vislumbrar nas entrelinhas da história dos vencedores, alguns elementos que expliquem o conflito.

No texto que segue podemos ver a sanção (documento com força de lei) da Igreja Bizantina, condenando o uso das imagens em cerimônias religiosas. Este documento foi publicado no ano de 754, no Palácio de Hiereia, que ficava às margens do Estreito de Bósforo. O documento foi retirado do livro de Fernando Espinosa intitulado “Antologia de textos históricos medievais”.

Sob a inspiração do Espírito Santo, julgamos que a arte ilegítima de pintar criaturas vivas é uma blasfêmia contra a doutrina fundamental da nossa salvação – nomeadamente a encarnação de Cristo. Para que serve a loucura do pintor que com as suas mãos maculadas tenta modelar aquilo que poderá apenas ser entendido no coração e confessado com a boca?

Faz uma imagem e chama-lhe Cristo. O nome Cristo significa Deus e homem. Consequentemente, pintou a natureza divina que não pode ser representada. Refugiam-se na desculpa: “Representamos apenas o corpo de Cristo”. Mas como é que esses loucos ousam separar o corpo da natureza divina? Caem no abismo da impiedade, porque atribuem ao corpo uma subsistência em si próprio, e isto introduz uma quarta pessoa na Trindade.

Mas, se alguém disser: podemos ter razão no que respeita às imagens de Cristo, mas não está certo para nós proibir também as imagens da simultaneamente imaculada e sempre gloriosa Mãe de Deus, replicaremos que a Cristandade rejeitou a totalidade do paganismo. Se alguém pensar trazer de novo para a vida os santos por meio de uma arte morta descoberta pelos pagãos, torna-se culpado de blasfêmia. Quem ousará com uma arte gentílica pintar a Mãe de Deus? A escritura diz: “Deus é um espírito”, e também: “Não farás nenhuma imagem esculpida”. (ESPINOSA, 1981, p. 63).

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Prezado(a) acadêmico(a), gostaríamos de destacar duas questões levantadas neste texto. A primeira diz respeito ao significado atribuído à Cristandade. Como vimos, a religião cristã ocupava um lugar de destaque na sociedade bizantina. Nesse sentido, a sociedade bizantina era permeada pela concepção sagrada do mundo. Isto quer dizer que o mundo ganhava sentido através da relação sobrenatural - os acontecimentos cotidianos eram entendidos de acordo com determinadas crenças.

Assim, Cristandade é entendida como o sentimento coletivo que unia os bizantinos à comunidade cristã. Entretanto, esse sentimento só pode ser entendido nos contextos de lutas contra outras sociedades, sejam eles povos politeístas ou monoteístas (que acreditam em um único deus).

Nesse sentido, a batalha contra os povos muçulmanos, a partir do século VII, foi decisiva para reforçar o sentimento de Cristandade. Segundo Hilário Franco Jr. (1987, p. 41), os bizantinos “passaram a se ver como um povo eleito, destinado a defender toda a Cristandade” [...], e “se tornaram um instrumento de Deus face aos infiéis” (muçulmanos).

FIGURA 26 - EXEMPLO DE IGREJA OBEDIENTE AO ESPÍRITO ICONOCLASTA BIZANTINO: IGREJA DE HAGIA IRENE, EM ISTAMBUL

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/6/6b/Irenekirken.jpg/250px-Irenekirken.jpg>. Acesso em: 14 out. 2012.

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2.2.2 As motivações sociais do conflito

O texto a seguir nos ajuda a entender tanto a origem da idolatria, o culto das imagens religiosas, quanto as implicações sociais ligadas à “Querela das Imagens”. Neste sentido, vemos que os imperadores iconoclastas, chefes militares, estavam interessados na dominação dos territórios da Anatólia (Ásia Menor; sul da Turquia, nas proximidades dos Montes Taurus) administrados por determinados mosteiros, os quais asseguravam seu prestígio sobre o povo através do culto aos ícones.

O texto pode ser encontrado no livro: “História Medieval”, de Jacques Heers:

As imagens, ícones, dos personagens divinos, aceitas inicialmente para instruir os fiéis nos mistérios da fé cristã, tornaram-se tão numerosas que suscitaram estranhos fervores, práticas religiosas particulares, verdadeiras devoções populares. Eram encontradas em toda a parte: afrescos ou mosaicos nas cúpulas e nas paredes das igrejas, relevos de marfim ou madeira pintados, placas de bronze douradas ou esmaltadas expostas no dia de festa do santo e associadas diretamente ao ritual dos ofícios.

Os sacerdotes usavam pequenos ícones e cada lugar os possuía também, alvos de minuciosas atenções. Essas imagens representavam o Cristo, a Virgem e todos os santos protetores e curandeiros. O povo atribuía-lhes um poder divino certo e via neles muito mais do que simples representações figuradas. Venerava-os, prestava-lhes homenagem, suplicava-lhes, esperando os milagres.

Alguns ícones eram reputados como sobrenaturais e seus poderes sobrepujavam os de todos os outros. As massas populares corriam em peregrinação aos mosteiros que expunham os mais insignes e abandonavam-se a devoções extravagantes, práticas idólatras que lembravam ainda as superstições, encantamentos e ritos mágicos do paganismo.

Esses excessos provocavam, em alguns meios mais rigoristas, uma viva reação. Leigos, sacerdotes lembram as condenações ou as admoestações dos primeiros doutores da Igreja e invocam a abolição do culto das imagens. Assim, chocam-se claramente: os iconólatras favoráveis às imagens e os iconoclastas, hostis; estes dois partidos, no século VIII, dividem todo o Império.

Do ponto de vista social, os partidários de uma religião sensível, ligada a algumas crenças primitivas, de maneira geral o povo, as mulheres, os monges, opõem-se aos que são capazes de manter na prática religiosa uma espiritualidade mais elevada, o verdadeiro sentido do cristianismo; estes se encontram nos meios do imperador, da nobreza e do alto clero.

De fato, não se trata somente da veneração das imagens sagradas, mas do direito mesmo de representar Deus e suas criaturas.

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Mas a querela traduz também o cisma entre as províncias orientais, fiéis a um certo rigor espiritual, influenciadas talvez pelas proibições lançadas pelo Islã ou pelo judaísmo sobre a representação da pessoa humana e, por outro lado, a Grécia e a capital, ferozmente fiéis ao culto das imagens.

Alguns historiadores pensam também que a atitude dos cristãos da Ásia foi ditada pela esperança de converter mais facilmente muçulmanos e judeus, no Império ou nas fronteiras. Leão, o Isauro, e todos os imperadores iconoclastas são de origem oriental, ao passo que duas mulheres, ambas gregas, Irene e depois Teodora, restabelecem os ícones assim que podem. O exército, decididamente iconoclasta, é formado principalmente por soldados da Ásia ou da Armênia. (HEERS, 1985, p. 258-259).

Diante disso, prezado(a) acadêmico(a), podemos ver que a luta em torno do culto das imagens estava relacionada aos desejos do Império em expandir seus domínios. Dessa forma, quanto maior o número de pessoas convertidas à religião oficial, maior a extensão e o poder de Bizâncio. Nesse sentido, as propriedades dos conventos, tomadas pelos imperadores iconoclastas, eram repartidas entre os soldados-camponeses como forma de garantir a posse da terra pelo Império.

Por outro lado, a Querela significou o combate sistematizado contra os cultos pagãos, ligados às religiões politeístas (as crenças que cultuam mais de um deus), como veremos no documento histórico que será apresentado a seguir.

2.3 O GRANDE CISMA

As divergências a respeito do dogma, da liturgia e das práticas religiosas, as questões de precedência, envenenadas pelos conflitos políticos, explicam os cismas que separam as igrejas do Oriente e do Ocidente. O patriarca de Constantinopla, que permanece após as invasões árabes, o único chefe dos cristãos no Oriente, suporta mal a supremacia romana e tenta libertar-se; rejeita toda a ingerência do papa. (HEERS, 1985).

Desde o início do Cristianismo, havia divergências doutrinárias. Às vezes, elas apareciam na forma de uma contestação direta à doutrina ortodoxa, que era rechaçada (heresias); em outras, as divergências ganhavam dimensões maiores (como na iconoclastia). Com a divisão do Império Romano, as divergências políticas foram acompanhadas de divergências religiosas, e aos poucos, as igrejas de Roma e das demais dioceses afastaram-se.

Segundo Waldir Freitas Oliveira (1987), o final da Antiguidade foi marcado pelas disputas religiosas, uma vez que a doutrina cristã ainda não estava definida. Igualmente, os cismas, ou desacordos religiosos, giravam em torno das questões doutrinárias (conjunto de ideias) entre as diferentes igrejas cristãs da Idade Média.

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2.3 O GRANDE CISMA

Contudo, o Grande Cisma ou Cisma do Oriente representou a separação definitiva entre os ramos do catolicismo grego e romano, e a vitória dos ortodoxos sobre os demais credos.

Já vimos que o Imperador Honório aproximou o Império Bizantino da cultura grega e que os patriarcados (sedes religiosas, equivalentes à de Roma) de Antioquia e Alexandria rivalizavam em importância. Ao mesmo tempo, no Ocidente, os papas sentiam a necessidade de sustentar sua proeminência religiosa em bases políticas, o que levou à aliança da Santa Sé com os imperadores francos (como vimos na Unidade 1).

Os conflitos e divergências (cismas) acerca da natureza de Cristo e das liturgias fizeram parte do cotidiano de Bizâncio. Segundo Hilário Franco Júnior (1987), a religião ocupava um lugar de destaque na vida da população do Império, problemas políticos e sociais acabavam por tomar aspectos religiosos. A luta por emancipação e autonomia de Constantinopla, na última década da dinastia Macedônica (867-1059), foi acompanhada pela luta da Igreja Ortodoxa em se autogovernar, pois até então ela estava sujeita às determinações do papado romano.

A liturgia consiste no conjunto de elementos e de práticas relacionadas aos cultos religiosos de uma igreja ou seita religiosa: missa, orações, cerimônias, sacramentos, objetos de cultos.

Podemos perceber, então, que uma série de divergências políticas, culturais e religiosas contribuiu para afastar, progressivamente, os patriarcas de Roma (o papa) e de Constantinopla.

Em 1054, o Papa Leão IX escreveu ao patriarca de Constantinopla, Miguel

Cerularius, exigindo que este reconhecesse que Roma tinha a primazia (privilégio) em assuntos religiosos.

Vamos ler um trecho da carta:

Sois acusado de ter condenado publicamente a Igreja Apostólica e Latina sem um julgamento ou uma prova. E a razão principal desta condenação, a qual demonstra uma presunção sem exemplo e uma impudência inacreditável, é que a Igreja Latina ousa celebrar a comemoração da paixão do Senhor com pão ázimo. Como é bem vossa uma acusação tão gratuita, um tão pernicioso exemplo de arrogância! “Colocais a vossa boca no céu, enquanto a vossa língua, caminhando através do mundo” (Salmo LXXIII, 9) procura por meio de argumentos humanos e conjecturas arruinar e subverter a antiga fé. (ESPINOSA, 1981, p. 66).

NOTA

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VocabulárioPão ázimo: pão sem fermento, utilizado nos rituais da Páscoa judaica e para a fabricação da hóstia.Pernicioso: nocivo.Conjecturas: suposições, afirmações baseadas em dados não comprovados.

O que podemos apreender de imediato da carta? O descontentamento do Papa em relação ao fechamento das “Igrejas Latinas” sob a acusação de se utilizar a hóstia durante a comemoração “da paixão do Senhor”. Leão IX se baseava na suposta Doação de Constantino, em que o antigo imperador daria a Roma esse privilégio. Mas, como muitos já desconfiavam, o documento é uma falsificação.

Caro(a) acadêmico(a), a intenção aqui não é aprofundar um debate teológico (discussão sobre doutrinas religiosas), apenas apresentar, por meio de umdocumento de época, um dos motivos que levou à separação definitiva dos católicos: a discórdia em relação aos ritos. Resumidamente, as disputas entre as igrejas (nestoriana, monofisista, ortodoxa) representaram verdadeiras lutas pelo poder.

A recusa do patriarca, aliada a algumas controvérsias religiosas, levou ambos a excomungarem-se mutuamente e declararem a outra igreja como herética. O Grande Cisma (palavra que significa “separação”), como ficou conhecido, selou definitivamente a separação entre as igrejas do Ocidente e do Oriente – que passaram a ser conhecidas, respectivamente, como “Católica” e “Ortodoxa”. A separação mantém-se até hoje, apesar de tentativas recentes de aproximação.

O Grande Cisma gerou uma considerável tensão entre Leste e Oeste e teve influência direta na iniciativa dos guerreiros da IV Cruzada em saquear Constantinopla.

REMISSÃO À LEITURANo site: <http://www.fosja.com.br/curiosidades.htm#003>, você encontrará informações sobre as diferenças entre os rituais das Igrejas: Ocidental e Oriental.

NOTA

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3 O AUGE DO IMPÉRIO DO ORIENTE: A DINASTIA MACEDÔNICA

As decisões políticas dos imperadores partiam de Constantinopla, capital do Império e principal porto. Ali, também governaram Basileus descendentes de uma mesma família; estes, por sua vez, compunham dinastias que comandaram o Estado por longos períodos. Um exemplo foi a dinastia dos Macedônicos, que governou o Império por 192 anos (867-1059). Foi durante o governo dos Macedônios que as fronteiras do Império alargaram-se novamente para dar lugar à segunda Idade de Ouro bizantina.

Como vimos, o governo de Justiniano (527-565) foi o primeiro período áureo do Império Bizantino, caracterizado pela retomada de parte dos territórios tomados pelos bárbaros. A segunda idade de ouro veio no século X, com o avanço das tropas de Bizâncio sobre as possessões islâmicas.

O período de domínio da dinastia macedônica foi de constantes guerras contra os muçulmanos, ao sul, e contra os eslavos, ao norte; os triunfos militares garantiram a prosperidade econômica, pois Constantinopla conquistou novamente a supremacia marítima sobre o Mediterrâneo oriental.

FIGURA 27 - IMPÉRIO ROMANO DO ORIENTE (MAIS CLARO) EM SEU AUGE, SOB A DINASTIA MACEDÔNICA (1025 D.C.).

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/ archive/a/a7/20120813164218%21Map_Byzantine_Empire_1025-en.svg>. Acesso em: 23 set. 2012.

NOTA

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Embora fosse menor do que sob Justiniano, o império da dinastia Macedônica, em parte justamente por isso, era mais forte. A região pontilhada no mapa foi alternadamente dominada por bizantinos e muçulmanos.

O domínio da marinha bizantina no Mar Mediterrâneo foi de extrema importância para a manutenção do comércio medieval e da prosperidade bizantina. As cidades italianas de Veneza e Gênova puderam, dessa maneira, adquirir artigos de luxo e especiarias: tecidos de seda e linho, perfumes, joias, porcelana, tapetes, objetos de marfim, pimenta, cravo, canela – da Índia e da China. As trocas mercantis só foram interrompidas, definitivamente, com a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos (muçulmanos) em 1453.

FIGURA 28 - MOEDA RETRATANDO O IMPERADOR BASÍLIO I, FUNDADOR DA DINASTIA MACEDÔNICA

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/66/Solidus-Basil_I_with_Constantine_ and_Eudoxia-sb1703.jpg>. Acesso em: 14 out. 2012.

3.1 A CRISTIANIZAÇÃO DA RÚSSIA

Muito importante para a história posterior foi o contato, que se iniciou durante a dinastia macedônica, entre o Império Bizantino e os povos russos. Esses povos, de origem eslava, estavam sendo organizados politicamente por uma elite comercial de varegues (povos de origem viking “russificados”), que havia estabelecido rotas comerciais na grande planície russa a partir do Mar Báltico.

A partir da planície, os varegues (chamados de Rus) expandiram seus domínios e entraram em conflito com magiares (húngaros), cazares (do atual Cazaquistão), búlgaros e bizantinos.

NOTA

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3.1 A CRISTIANIZAÇÃO DA RÚSSIA

Os cazares são um povo aparentado aos turcos (assim como os hunos e os mongóis) que ocupam, até hoje, as vastas planícies do Cazaquistão. Durante a Idade Média, sua organização militar e seu domínio sobre enormes extensões de terra os tornavam fundamentais como “fiéis da balança” do poder entre bizantinos, sassânidas e árabes. No século IX, os líderes cazares converteram-se ao judaísmo.

Logo, os bizantinos perceberam que, se deixassem de ser oponentes, os eslavos seriam excelentes aliados, e assim procuraram cristianizá-los. Foram auxiliados nisso pelo trabalho missionário dos irmãos Cirilo e Metódio (ca. 680), que introduziram a religião cristã entre os russos e traduziram a Bíblia para o idioma local (chamado de eslavônico).

A aliança militar, celebrada entre o Rei Vladimir I e o Imperador Basílio II, levou à cristianização da Rússia pelos ortodoxos, e abriu caminho para uma aliança que permitiu o desenvolvimento de ambas as regiões.

Quando Constantinopla entrou em decadência, a Rússia manteve-se como o grande centro do cristianismo ortodoxo, ainda que seguindo uma liturgia própria e em língua local.

FIGURA 29 - CATEDRAL DE SÃO BASÍLIO, EM MOSCOU, A MAIS CONHECIDA IGREJA ORTODOXA RUSSA

FONTE: Disponível em: <http://www.destination360.com/europe/russia/images/s/churches.jpg>. Acesso em: 14 out. 2012.

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4 A DECADÊNCIA

A Cruzada de 1204 foi financiada pela cidade comercial de Veneza, que disputava com Gênova o monopólio comercial na Europa. Portanto, a guerra posta em prática pelos cruzados ultrapassou a dimensão religiosa, vindo a funcionar fundamentalmente como uma luta pelo domínio das principais rotas comerciais controladas por Constantinopla. As cruzadas favoreceram o enriquecimento dos comerciantes que, aproveitando-se das viagens, foram criando novas oportunidades de comércio. Governar Constantinopla significou, acima de tudo, ter o controle sobre o comércio entre Ocidente e Oriente, entre Europa e Ásia.

4.1 MOTIVOS ECONÔMICOS E POLÍTICOS DO DECLÍNIO DE CONSTANTINOPLA

No texto que segue, retirado do livro “O Império Bizantino”, de Hilário Franco Jr. (1987, p. 55-57), são apresentados os principais motivos do declínio econômico e político de Constantinopla. Com a paulatina supremacia comercial dos venezianos e da tomada de poder da aristocracia rural, deu-se início à decadência de Bizâncio.

Já em 922, os venezianos recebiam de Basílio I liberdade de comércio no porto de Constantinopla, pagando uma taxa inferior à de outros estrangeiros. A verdadeira penetração latina, porém, começou mais tarde, quando, precisando de ajuda contra os normandos, Bizâncio chamou os venezianos, também temerosos de um crescente poder por parte daqueles.

Assim, em 1082, Veneza recebia isenção total de taxas alfandegárias, um bairro de Constantinopla e liberdade de trânsito em todo o império, com exceção do Mar Negro. Mas, para contrabalançar a crescente influência dos venezianos, Bizâncio precisou, no começo do século XII, conceder privilégios comerciais a Pisa. Como isso não se revelou suficiente, também os genoveses receberam vantagens para fazer frente ao poderio veneziano. Mas tudo o que Bizâncio conseguiu com essa política foi transferir para seu próprio território a rivalidade e as guerras que opunham Veneza e Gênova. O império tornava-se “o teatro e a vítima” (Diehl) daquelas disputas comerciais.

De fato, foi procurando apossar-se definitivamente e com exclusividade do comércio bizantino que Veneza soube explorar as divergências político-religiosas entre Ocidente e Bizâncio, de forma a fazer a Quarta Cruzada trabalhar a seu favor.

Desta maneira é que se estabeleceu o Império Latino de Constantinopla (1204-1261), que beneficiou fundamentalmente os interesses mercantis venezianos. Por causa disso, Gênova ajudou a reconstituição do Império Bizantino, que em troca lhe entregava praticamente o domínio sobre seu comércio. Chegou-se mesmo a cobrar uma taxa de todos os navios não genoveses

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4 A DECADÊNCIA – inclusive bizantinos – que se dirigissem ao Mar Negro. Bizâncio perdera o controle sobre seus próprios territórios. Portanto, à hegemonia econômica veneziana no Império Bizantino seguia-se a hegemonia genovesa.

Um cronista bizantino lamentava-se dizendo que “os latinos aumentavam continuamente seus benefícios e seu poderio no mar. Os gregos se debilitavam progressivamente, e cada dia somava uma desgraça a mais à calamidade dos dias anteriores”.

Paralelo ao declínio do comércio exterior e consequente à economia urbana, o triunfo da grande propriedade não só rompia o equilíbrio entre cidade e campo, como levava a aristocracia a cobrar sua decisiva participação nas estruturas do Império. Os grupos sociais intermediários, que nas cidades e no campo permitiram durante bom tempo uma fonte de ingressos essencial para a fazenda do império e possibilitaram a estabilidade do Estado, estavam agora esfacelados.

Os grandes proprietários que sempre se opuseram ao rígido centralismo e intervencionismo estatal, em sua luta pelo poder, acabaram – juntamente com o declínio comercial e financeiro – comprometendo de forma irreversível a capacidade de sobrevivência do Império.

AUTOATIVIDADE

A partir do que foi exposto no texto anterior, procure responder à seguinte questão: Por que os grandes proprietários rurais representaram uma ameaça ao poder do Basileus e, consequentemente, do Império Bizantino?

Prezado(a) acadêmico(a), para que possamos entender melhor o declínio de Bizâncio, devemos retornar até o período em que Heráclio governou o Império Bizantino, entre 610 e 641.

Foi durante o século VII que aquele imperador criou o regime denominado themas, que consistiu na divisão do território controlado pelos bizantinos. Os themas eram províncias controladas por um estratego, um chefe que reunia os poderes militar e civil e devia obediência ao imperador. As tropas por ele comandadas eram formadas por soldados-camponeses, soldados que se tornaram pequenos proprietários rurais. Este sistema teve um grande sucesso militar, pois cada soldado lutava pela proteção de sua família e pela manutenção de suas próprias terras.

Até o século IX, havia sete de themas, número que passou a 25 e, no século X, saltou para 31. Este sistema político foi criado a fim de proteger as terras do império dos ataques estrangeiros e, ao mesmo tempo, criar obstáculos para o

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surgimento de grandes extensões de terra. Com isso, Heráclio buscou assegurar as defesas imperiais dos agentes externos e impedir a formação de latifundiários que pudessem ameaçar a soberania do Basileus. Assim, o poder ficou centralizado em Constantinopla, diferente da sociedade feudal do Ocidente, que permaneceu fragmentada por diferentes reinos.

Segundo Perry Anderson (2004, p. 261):

A concentração de terras em mãos de oligarquias locais recebeu violenta resistência do Estado, porque ameaçava destruir suas reservas de abastecimento e o recolhimento de impostos, subtraindo a população agrária ao domínio da administração pública.

Podemos considerar, observando a atitude do Imperador Heráclio, o quanto a oligarquia (grupo de grandes proprietários de terra) ameaçava o sistema imperial bizantino, pois ela poderia desviar os recursos econômicos que o Estado arrecadava. Esperamos, caro(a) acadêmico(a), que estas informações possam complementar a resposta da questão que foi levantada anteriormente.

FIGURA 30 - CRUZADOS SAQUEIAM OS TESOUROS DE CONSTANTINOPLA NA 4ª CRUZADA (1204). FOI UM DURO GOLPE, DO QUAL A CIDADE NÃO CONSEGUIU SE RECUPERAR PLENAMENTE

FONTE: Disponível em: <http://western-civilisation.com/Images/uploaded/1204_crusade%20and%20sack1.jpg>. Acesso em: 14 out. 2012.

A partir do que foi exposto, podemos deduzir o que aconteceu no século XII para resultar no colapso do Império do Oriente. Se você pensou que o imperador começou a perder o poder e o prestígio a partir do momento em que a aristocracia, grupo formado por militares de alta patente, passou a dominar grandes extensões de terra, acertou. A combinação de latifúndio e privilégios políticos aos militares

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fez ruir por dentro a estrutura do grande Império Bizantino, que tinha se reerguido, nos séculos X e XI, sob a dinastia dos Macedônicos.

Os campesinos endividados acabaram vendendo ou alienando suas terras para ficar sob a proteção dos chefes militares senhores dos castelos. Portanto, o fortalecimento desses senhores resultou no enfraquecimento do Império e no consequente estabelecimento de uma espécie de “feudalismo” nos domínios bizantinos.

Este é um bom momento para refletirmos sobre a definição de Império: “Unidade política que abarca vasto território ou numerosos territórios ou povos, sob uma única autoridade soberana”. (HOUAISS, 2001, p. 1580) (grifo nosso).

A descentralização política, em função do fortalecimento da aristocracia, foi seguida pelo domínio ocidental (italiano) sobre a cidade-capital do Oriente, Constantinopla. Portanto, durante o Baixo Império (1261-1453), Bizâncio não pôde se sobrepor ao poder dos latifundiários e comerciantes de Gênova e Veneza. A divisão do Império de Constantino foi determinante para o triunfo militar dos árabes no Estreito de Bósforo.

AUTOATIVIDADE

Agora, sugerimos que você elabore uma pesquisa. Procure identificar em que momento da história ocidental o conflito em torno do uso litúrgico das imagens reapareceu. A seguir, elabore um texto relacionando a “Querela das Imagens” em Bizâncio e as disputas do uso das imagens nesse outro período histórico (aquele que você identificou). O texto deve ter no mínimo uma lauda (uma página).

Agora, sugerimos que você elabore uma pesquisa. Procure identificar em que momento da história ocidental o conflito em torno do uso litúrgico das imagens reapareceu. A seguir, elabore um texto relacionando a “Querela das Imagens” em Bizâncio e as disputas do uso das imagens nesse outro período histórico (aquele que você identificou). O texto deve ter no mínimo uma lauda (uma página).

NOTA

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UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

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LEITURA COMPLEMENTAR

HISTÓRIA DO IMPÉRIO BIZANTINO

Mário Curtis Giordani

Se Bizâncio devia sua força e segurança à eficiência dos seus serviços públicos, era o comércio que lhe permitia pagá-los. Sua história é fundamentalmente a história de sua política financeira e a do comércio da Idade Média.

Poucas cidades gozavam de uma localização comercial tão privilegiada quanto Constantinopla, situada que estava à margem do canal marítimo entre o Norte e o Sul e a ponte peninsular entre o Leste e o Oeste. E poucas raças foram tão aptas para o comércio quanto os gregos e armênios, que constituíam seus cidadãos. Não é surpresa o fato de ter sido Constantinopla, durante séculos, sinônimo de riqueza, uma cidade cujo tesouro “não tinha fim nem medida”. Mas esse tesouro não fora adquirido por acidente. Os desvelos e as circunstâncias é que enriqueceram a cidade.

Até Colombo e Vasco da Gama abrirem uma nova era, o principal comércio do mundo realizava-se do Extremo Oriente para o Mediterrâneo. A esfera mediterrânea podia abastecer-se de alimentos e suprir as próprias necessidades. Mas, sempre que se tornava próspera, punha-se a desejar os artigos de luxo que só o Oriente podia fornecer.

Nos primeiros séculos da era cristã, o comércio oriental era muito florescente. Roma importava largamente especiarias, ervas e madeira de sândalo das Índias e, acima de tudo, seda bruta da China. Tudo isso custava bom preço e as exportações de vidro, esmalte e artigos manufaturados do Mediterrâneo não eram suficientes para pagá-lo. Uma soma enorme de ouro ia anualmente para o Leste e essa drenagem conduziu à depressão que gradualmente envolveu o mundo romano. Mas a procura da seda continuava e a busca de uma rota menos dispendiosa para importá-la passou a constituir a preocupação das autoridades.

Várias rotas eram utilizadas pelo comércio oriental. Podiam seguir através do Turquestão até o Cáspio e daí, quer pelo norte até o Volga e o Mar Negro, no Quersoneso, quer pelo sul, através da Pérsia Setentrional até Nisibin, na fronteira imperial, ou através da Armênia, para Trebizonda. Podiam atravessar a Índia e o Afeganistão e o centro da Pérsia, até Nisbin ou a Síria; ou podiam seguir por mar até o Golfo Pérsico e então atravessar para a Síria; ou ainda, fazer todo o trajeto marítimo, Mar Vermelho acima até o Egito.

Apenas duas rotas evitavam a Pérsia, a do extremo norte, que dependia da rara estabilidade dos povos das Estepes, ou a do extremo sul, a rota marítima, que exigia uma frota mercante a leste de Suez. A Pérsia constituía uma ameaça ao comércio. Levantava altas barreiras tarifárias e, em tempo de guerra, cortava todo

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TÓPICO 2 | RELIGIÃO E OPULÊNCIA NO IMPÉRIO ROMANO ORIENTAL

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o abastecimento. Na realidade, restrições forçadas periódicas não eram más para o equilíbrio comercial do Império, mas provocavam o desemprego nas fábricas de seda.

A diplomacia imperial, durante todo o século V e especialmente o VI, procurou salvaguardar as duas rotas livres, negociando com os reinos dos hunos e turcos, nas Estepes, ou com os abissínios, cujo reino de Axum comandava o Mar Vermelho.

O século VI foi uma grande era do comércio oriental. O império, sob Anastásio e nos primeiros anos da casa de Justino, encontrava-se num estado de renovada prosperidade e o caminho para o Leste atravessava povos ordeiros. A seda ainda viajava principalmente por terra, através da Pérsia, para os postos alfandegários de Nisbin e Dara. Daí partia para as fábricas de Constantinopla ou de Tiro e Bérito. Mas alguns viajavam com todas as especiarias das Índias pela rota marítima. Um marítimo aposentado, Cosme, apelidado Indicopleustes, o Marinheiro das Índias, escreveu um livro para provar, com base na sua larga experiência, que a Terra era plana; e nele descreve o comércio com a Índia.

O centro distribuidor, ou empório, do Oriente, era o Ceilão. Ali, as mercadorias orientais – seda da China, seda, aloés, cravo e sândalo da Indochina, pimenta de Malabar, cobre da Caliana (perto de Bombaim) e almíscar e rícino de Sindu – eram reunidas, as joias de Ceilão. A seda era em geral adquirida pelos mercadores persas, que a levavam Golfo Pérsico acima.

As outras mercadorias eram transportadas principalmente por embarcações abissínias para Adulis, no Mar Vermelho, a capital do Axum, e daí, mais exclusivamente por navios imperiais, até o ponto alfandegário de Jotabe, na extremidade da península do Sinai e daí para Clisma, perto de Suez, onde residia um funcionário imperial, o Logóteta, que visitava anualmente a Índia.

Os navios imperiais não iam com frequência ao Ceilão, embora ali houvesse colônias cristãs nestorianas, e em Caliana, Malabar e Socotra muitos habitantes falassem o grego. Mas a moeda preferida pelos mercadores orientais de todas as raças era a imperial, o que constituía grande vantagem para o comércio imperial.

Os abissínios também mantinham relações comerciais com a África Central, muitas vezes acompanhados por mercadores imperiais. Cada dois anos, velejavam para o sul, depois marchavam a pé para o interior e, em troca de diversos artigos manufaturados, voltavam carregados de lingotes de ouro. O próprio Cosme, numa viagem para o sul, viu uma vez albatrozes. Através do mundo mediterrâneo, as mercadorias orientais eram distribuídas por mercadores sírios, que possuíam estações em cada porto e agiam incidentalmente como portadores de notícias. Um mercador sírio contou a São Simeão, o Estilita, a história de Santa Genoveva.

Durante o reinado de Justiniano, a situação começou a se alterar. As guerras persas interferiam no abastecimento da seda e a tentativa de manter baixo o preço desse produto serviu apenas para arruinar os fabricantes particulares, cujas fábricas

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UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

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então compraram, tornando assim a seda, quase incidentalmente, um monopólio imperial.

Justino II, encontrando o império ainda esfomeado por seda, devido às guerras pérsicas, tentou abrir, de maneira adequada, o caminho através das Estepes, mas a tarefa foi superior à diplomacia imperial. Nesse ínterim, porém, dois monges nestorianos tinham chegado a Constantinopla com o segredo do bicho-da-seda e alguns ovos em seus bordões ocos. Passou-se algum tempo antes que a criação do bicho-da-seda se espalhasse pelo império. Mas, daí por diante, a importação do Oriente começou a declinar.

FONTE: GIORDANI, Mário Curtis. História do Império Bizantino. Petrópolis: Vozes, 1968, p. 128-130.

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico você viu que:

O Império Bizantino foi palco de inúmeras controvérsias religiosas. As mais importantes foram: o Nestorianismo, a Iconoclastia e o Grande Cisma (1054).

A Iconoclastia era a destruição das imagens dos santos, consideradas blasfemas por alguns grupos religiosos. Apesar do fundo religioso, o movimento teve justificativas políticas e sociais.

O Grande Cisma separou a igreja cristã em ocidental (Católica) e oriental (Ortodoxa) e aprofundou definitivamente a divisão entre Ocidente e Oriente.

A dinastia Macedônica (867-1059) foi uma das eras de mais prosperidade da história do Império Romano do Oriente.

Durante a dinastia Macedônica, os contatos com a Rússia se intensificaram e a região foi cristianizada.

O declínio de Constantinopla e do Império Romano do Oriente aconteceu motivado, entre outros fatores, pela concorrência com as cidades italianas, especialmente após o saque da cidade na 4ª Cruzada (1204).

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AUTOATIVIDADE

1 Por que as controvérsias religiosas bizantinas constituíam uma ameaça tão séria à autoridade do Basileus?

2 Quais eram as motivações políticas do movimento iconoclasta?

Assista ao vídeo deresolução da questão 1

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TÓPICO 3

A EXPANSÃO MUÇULMANA E A “ERA DE

OURO” DO ISLAMISMO

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

O surgimento do Islã foi uma poderosa força social, política e religiosa, que transformou radicalmente a região atualmente conhecida como Oriente Médio e, a longo prazo, o mundo todo. Logo após a morte de Maomé, em 632 d.C. (10 AH pela contagem islâmica), seus seguidores expandiram as fronteiras do mundo muçulmano com uma rapidez espantosa. Cem anos após a morte do profeta, territórios sob o domínio do Islã iam do Oceano Atlântico (Marrocos e Portugal) até a Índia, e nos séculos seguintes esses limites se expandiriam ainda mais.

Juntamente com a expansão militar, a nova fé foi sendo incorporada às sociedades que conquistava e influenciada por elas, o que possibilitou uma riqueza e uma diversidade cultural impressionante para o mundo muçulmano. Essa imensa variedade, aliada à facilidade de comunicação e de comércio entre as regiões, gerou uma enorme prosperidade econômica e cultural, que ficou conhecida como a “Era de Ouro Islâmica”. Neste tópico, observaremos esse período em detalhes.

2 O AVANÇO MUÇULMANO

Impulsionados pela palavra de Deus revelada pelo profeta, e pela jihad, que pregava a propagação da fé, os muçulmanos deram início imediatamente a uma estratégia de conquista dos territórios vizinhos à Península Arábica.

A expansão militar muçulmana iniciou-se ainda durante a vida de Maomé. O avanço da religião foi impressionante. A partir da Hégira, em 622 d.C., o Islã começou a conquistar territórios (o primeiro alvo foi Meca) e a arregimentar fiéis em outras regiões ainda não sob seu domínio direto. Dez anos depois, o Islã controlava praticamente toda a vasta Península Arábica, desde os limites da Palestina até a Arábia Feliz (Yêmen).

E não parou por aí: da morte de Maomé, em 632, até cerca de 750, os domínios do Islã passaram do deserto da Arábia a todo o território entre o Oceano Atlântico, no Marrocos, ao vale do rio Indo, no atual Paquistão.

Nos séculos seguintes, a expansão seria ainda maior, mas o rápido avanço sobre um território tão extenso (muito superior ao território do Império Bizantino, e consideravelmente superior aos impérios anteriores já surgidos naquela parte

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UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

do mundo) faz do primeiro século do Islamismo um período de extraordinário sucesso militar.

Maomé erguera as bases do Império Arábico ao assumir os poderes de líder religioso e de legislador (poder teocrático). Após sua morte, esse papel passou a ser desempenhado pelos califas. O califa, sucessor do profeta, exercia um poder político supremo e tinha ingerência sobre os assuntos religiosos.

Após a morte de Maomé, em 632, três grupos disputaram a liderança da ummah (comunidade islâmica):

● o primeiro era constituído por seus seguidores iniciais (unidos por endogamia), que haviam participado da Hégira;

● o segundo, por homens importantes de Medina; e

● o terceiro, por membros das principais famílias de Meca. Nesta disputa, como já vimos, venceu Abu Bakr, integrante do primeiro grupo e um dos genros de Maomé.

A expansão do mundo muçulmano criou uma civilização própria, híbrida, que se formou da mescla de elementos árabes, persas, gregos, romanos e africanos.

Basta analisarmos o mapa que segue para termos uma ideia da expansão dos árabes sob o Islamismo.

FIGURA 31 – MAPA: A EXPANSÃO MUÇULMANA ENTRE 622 E 750 D.C.

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/72/Map_of_expansion_of_Caliphate.svg>. Acesso em: 15 fev. 2012.

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TÓPICO 3 | A EXPANSÃO MUÇULMANA E A “ERA DE OURO” DO ISLAMISMO

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No tom mais escuro (Península Arábica), a expansão sob Maomé (622-632); em tom escuro (da Líbia ao Afeganistão), as conquistas do Califado Rashidun (ou ortodoxo, 632-661); em tom intermediário (de Portugal ao Paquistão), as conquistas do Califado Umayyad (ou omíada, 661-750). Outras regiões (algumas das que estão em tom mais claro) se tornariam muçulmanas depois de 750: sul da Itália, Bálcãs, África ao sul do Saara, Turquia e Ásia Central (no extremo leste do mapa).

A expansão do Império Islâmico ultrapassou, a partir do século VII, as fronteiras do Império Bizantino. Os muçulmanos migraram para oeste, Maghreb (norte da África), criando o mundo árabe do Ocidente, e para o leste, Machrek, fundando o mundo árabe do Oriente.

2.1 O CALIFADO RASHIDUN

Como já vimos, após a morte de Maomé a sucessão ao poder foi objeto de disputas, que chegaram inclusive a dividir os fiéis entre xiitas e sunitas. Parte da dificuldade de se escolher o sucessor de Maomé vinha do fato de ele não ter tido filhos homens para sucedê-lo, nem ter deixado regras claras de sucessão.

A tradição árabe previa que o líder fosse escolhido por consenso entre os comandados e todos os primeiros califas (sucessores) foram escolhidos dessa forma. Mesmo após a escolha de Abu Bakr, seu genro, que tinha justificações militares e também familiares, o título de califa continuou a ser eletivo não hereditário.

Por esse motivo, os primeiros califas, embora não sejam diretamente aparentados, são reunidos conjuntamente em um califado, que ficou conhecido como Rashidun – os “califas bem guiados”. Foram quatro: Abu Bakr, Omar ibn al-Khattab, Othman ibn Affan e Ali ibn Abi Talib – ou, para facilitar, Abu Bakr, Omar, Omã (ou Osman) e Ali. Sob eles, o Islã avançou até a Líbia (na atual fronteira com a Tunísia) e a Bactriana (Afeganistão). Algumas tradições islâmicas reconhecem apenas os dois primeiros como bem guiados, outras incluem o quinto califa, Mu'awiya – que daria origem ao califado omíada.

O período dos califas Rashidun foi de organização política, social, militar e religiosa do Islã. Além da expansão das fronteiras e da organização político-administrativa dos novos territórios, os califas tinham diante de si um problema ainda maior e mais importante: organizar e sistematizar a própria religião.

NOTA

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Como vimos no tópico anterior, Maomé não escreveu o Alcorão; apenas recitou-o para seus discípulos, que o memorizaram. Temendo que o conteúdo do livro se perdesse, Abu Bakr ordenou a transcrição do livro pouco tempo após a morte de Maomé, e o conteúdo final foi posteriormente compilado sob o califa Omã.

Os califas Rashidun deram início também à expansão islâmica, conquistando inicialmente a Arábia e, logo em seguida, as regiões do Império Sassânida, a começar pela rica região da Mesopotâmia, renomeada Iraque.

Com uma estrutura militar bem organizada, os muçulmanos souberam aproveitar-se do desgaste militar, social e político dos impérios Bizantino e Sassânida, causado pela longa guerra que travavam entre si. Por conta das sucessivas vitórias contra os bizantinos e da relativa facilidade de conquista da vastidão do norte africano, os muçulmanos conseguiram expandir seus domínios com uma rapidez e uma facilidade impressionantes.

Os conflitos entre os árabes chegaram a um ponto crítico em 656, quando uma guerra civil levou ao poder Ali para um breve califado, do qual saiu, como seu antecessor, assassinado. Isso levou a uma guerra civil (Fitna) que deixou aberto o caminho para o surgimento do novo califado Omíada (Ummayad).

2.2 O CALIFADO OMÍADA

O quinto califa, Mu‘awiya (661-680), deu origem a uma nova forma de governo. Os omíadas continuaram a expandir o Islã, e consolidaram seus domínios. A sucessão passou a ser praticamente hereditária, e a capital do califado mudou de Medina para Damasco – cidade maior e mais bem situada, em um entroncamento muito antigo de rotas e no novo centro de gravidade do mundo islâmico: Egito, Levante, Mesopotâmia e Pérsia.

Naquela época, a Síria era a região mais importante do Império Islâmico, por estar localizada numa área mais próxima do lado oriental do Mediterrâneo (o Levante). Além de consolidar suas conquistas nessas regiões, os omíadas expandiram seus domínios para o Magrebe (região ocidental da costa mediterrânea africana) e a Península Ibérica, que foi quase inteiramente conquistada. O avanço árabe só foi barrado pelos soldados francos em Poitiers, em 732. Foi um período de intensa reorganização do mundo muçulmano e de aculturação das populações conquistadas.

A partir da década de 690, o mundo islâmico começou a passar por profundas transformações. A forma de administração de um império tão vasto também precisou passar por grandes modificações; para isso, foram muito úteis as seculares técnicas bizantinas e persas de burocracia.

Inicialmente, desprovidos de funcionários muçulmanos em quantidade suficiente, os califas omíadas utilizaram funcionários estrangeiros, e inicialmente

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TÓPICO 3 | A EXPANSÃO MUÇULMANA E A “ERA DE OURO” DO ISLAMISMO

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os documentos eram redigidos em grego ou persa. Com o tempo, a administração da burocracia passou a ser toda em árabe.

Como veremos mais adiante, os não muçulmanos tinham um papel social relativamente destacado – inferior, porém, ao dos muçulmanos, especialmente os árabes. As moedas passaram a ser cunhadas sem a figura humana, como determinava o Alcorão.

A população local adotava aos poucos a religião, a língua e os costumes árabes, e os próprios árabes começaram a migrar para as novas regiões. O mundo islâmico deixava de ser apenas um território e passava a desenvolver alguma identidade cultural.

Sob a dinastia omíada, o Islã expandiu-se em três frentes: Norte, em direção a Constantinopla e à Ásia Menor; Oeste, pelo norte da África (Ifriqia e Magrebe) e Península Ibérica (Al-Andalus); Leste, pela Ásia Central e Índia.

Podemos dizer que foi sob o governo omíada que a sociedade muçulmana ganhou contornos verdadeiramente multiculturais, alastrando-se pela Espanha, Ásia Central e norte da África e vindo a mesclar-se com outras civilizações.

Os omíadas talvez pareçam ter se assemelhado aos reis bárbaros do Império Romano do Ocidente, colonos nervosos num mundo estranho, cuja vida prosseguiu como antes, agora sob a proteção de seu poder. Mas há uma diferença. Os governantes do Ocidente tinham trazido pouco de seu que pudesse fazer frente à força da civilização latina cristã à qual eram atraídos. O grupo governante árabe trouxe uma coisa que ia reter em meio à alta cultura do Oriente Próximo, e que, modificada e desenvolvida por essa cultura, iria proporcionar um idioma por meio do qual pôde expressar-se daí em diante: a crença numa revelação enviada por Deus, em língua árabe, ao Profeta Maomé. (HOURANI, 2006, p. 50-51).

O califado omíada enfrentou grandes dificuldades para manter seu poder, principalmente em relação às suas políticas de arrecadação de impostos (entendidas como injustas e contrárias ao Alcorão). Pela lei islâmica, os povos de outras religiões sob o domínio muçulmano, embora sejam tolerados e, em certos casos, autorizados a manter suas crenças, devem pagar um imposto especial, do qual os muçulmanos estão isentos: a jizya.

Como você pode imaginar, esse imposto encorajava a conversão de muitas pessoas, mas era malvisto pelas populações árabes, que temiam justamente, por isso, perder seus privilégios e sua proeminência política.

Em um império que conquistava novos territórios em grande velocidade, isso logo se tornou um problema sério. A tensão levou a uma série de revoltas: a segunda Fitna (680-692), a revolta berbere (povo islamizado do norte da África) de 740-743, a terceira Fitna (744-747) e, finalmente, a revolução abássida (750), que colocou no poder a dinastia de mesmo nome.

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A sociedade muçulmana das primeiras décadas estava organizada hierarquicamente: a classe mais alta era a dos árabes, seguidos dos não árabes muçulmanos, depois dos não muçulmanos. Como é de se imaginar, essa estrutura ficava cada vez mais difícil de se sustentar em uma sociedade em que a terceira dessas classes e, depois, a segunda, tornavam-se cada dia mais numerosas.

2.3 O CALIFADO ABÁSSIDA

O domínio dos califas abássidas marcou o período de maior florescimento econômico, político e social dos muçulmanos, que ficou conhecido como “A Era de Ouro islâmica”. Embora tenham dominado por um período bastante longo (750-1258), os abássidas não tiveram, como seus antecessores, o controle de todo o mundo islâmico durante seus domínios. O período abássida marcou a época em que a unidade política deu lugar a diversos califados e sultanatos.

Uma das primeiras medidas dos abássidas foi transferir novamente a capital, de Damasco para Bagdá. A mudança trazia, como era de se imaginar, um sentido simbólico muito forte. Bagdá fica situada às margens dos rios Tigre e Eufrates, próxima à cidade bizantina e sassânida de Selêucia-Ctesifonte e não muito longe do local onde se situava a antiga Babilônia.

Portanto, era uma região de ocupação muito antiga e muito diversificada, entroncamento de rotas comerciais para o Levante, o Oriente e o Norte. A cidade representava com perfeição a dominação muçulmana sobre o mundo conhecido; o papel político e simbólico de Bagdá para os muçulmanos guarda semelhanças com o de Roma para os cristãos da época.

Em função dessa condição de entroncamento comercial de Bagdá, a cidade tornou-se um centro inigualável de cultura e riqueza, mas também de luxo e requinte. Uma das acusações mais frequentes aos abássidas era o abandono do modo de vida dos beduínos em favor de uma vida cortesã. Vêm dessa época as imagens, tão presentes no imaginário ocidental, das cortes dos xeques e sultões, rodeados de odaliscas e pajens eunucos em seus haréns. As odaliscas e os eunucos eram geralmente escravos, adquiridos das terras distantes com quem os muçulmanos passavam a ter contato - muitas vezes, até mesmo da África ao sul do Saara.

Essa não era, como já vimos, a única interferência estrangeira na corte. Muitos administradores, especialmente nos primeiros tempos, eram bizantinos ou persas e a influência desses últimos cresceu, compreensivamente, pela maior proximidade da capital com os antigos domínios sassânidas.

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Por outro lado, os abássidas tiveram que gerenciar províncias distantes, que, muitas vezes, sob dinastias e poderes locais, insubordinavam-se contra o califa. Durante o governo abássida, o império se expandiu, mas encontrou dificuldades para se manter unido. Sendo assim, o grande desafio dos califas abássidas era a unificação e a islamização dos povos conquistados; embora tenham falhado no primeiro objetivo, conseguiram êxito no segundo (e mais importante).

2.4 A PAX ISLAMICA E A QUEBRA DA UNIDADE

O Islã, sob a dinastia dos abássidas, passou por um momento de relativa paz. As fronteiras do império foram definidas e o comércio prosperou. As cidades se desenvolveram e se transformaram em verdadeiras metrópoles. Entre elas: Bagdá, Cairo, Damasco e Córdoba.

Segundo Fernand Braudel (1989), o Islã, no auge do império (entre os séculos VIII e XII), foi “a civilização mais brilhante de todo mundo velho”. Lá se desenvolveram, de modo espetacular, a arquitetura, a literatura, as ciências e a filosofia.

Prezado(a) acadêmico(a), você provavelmente já percebeu que esse conceito de Pax, assim como o conceito de “Era de Ouro”, são ficções criadas pelos historiadores. Então, não se deixe iludir pelo caráter fantasioso dos termos. Havia conflitos durante a Pax Islamica, como em qualquer outra, e esse não era um período de paz, fartura e felicidade para todos. O termo é uma simplificação adotada para finalidades didáticas.

Contudo, a unidade do Império do Islã foi ameaçada pelas dinastias provincianas, que, com o passar do tempo, fortaleceram-se e ficaram independentes do califado de Bagdá. Foi o que aconteceu, por exemplo, no Egito, com a dinastia dos fatímidas. Os fatímidas eram adeptos das ideias religiosas xiitas.

Nesse sentido, ao mesmo tempo em que se assentava a civilização árabe sob a dinastia dos abássidas, a unidade política imperial foi sendo rompida. Dentre as disputas travadas no interior do Islã, não podemos deixar de mencionar as querelas entre xiitas e sunitas, que, invariavelmente, ganharam contornos políticos separatistas.

NOTA

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Dentre as poderosas dinastias do Islã no século XI, destacaram-se a dos Almodávidas, na Península Ibérica, e a dos fatímidas, no Egito.

3 MAIS POVOS SE UNEM AO ISLÃ

3.1 A CONQUISTA DO MAGREBE E DE AL- ANDALUS

Mais importante para a história do mundo muçulmano como um todo foi o caminho separado, tomado pela Espanha, ou Andalus, para dar-lhe seu nome árabe. (HOURANI, 2006).

A ascensão dos abássidas está intimamente vinculada à quebra da unidade política do império árabe. É que na Península Ibérica instala-se um novo estado que não reconheceria a autoridade dos califas de Bagdá e cujos descendentes viriam a adotar também o título de califas. Este foi o primeiro passo para a desagregação do império árabe ocorrida ainda durante o período de expansão e conquista – desagregação que finalizaria séculos mais tarde com uma multiplicidade de dinastias e de capitais até o século XVI. (GIORDANI, 1985).

A história da Espanha muçulmana é, por sua vez, um capítulo à parte na própria história do Império Islâmico. Nesse sentido, o estudo do Islã em al-Andalus (nome árabe para se referir à Espanha), ajuda-nos a entender tanto as disputas internas do império, entre os governos de Bagdá e das províncias, quanto os conflitos externos, de fronteira, entre muçulmanos e povos germânicos.

Os muçulmanos criaram governos seculares na Península Ibérica, estados que perduraram por oito séculos. O Islã esteve presente no território espanhol entre o século VIII e o XV. Para ter o domínio da península, os árabes se uniram aos soldados berberes, do norte da África, e com as forças militares da Síria.

O primeiro governo islâmico espanhol surgiu em 710, com membros da família omíada, que lá se refugiaram. Os omíadas governaram por quase 300 anos, mas foi no século X que Abd al-Rahman III (912-961) fundou o califado, com capital em Córdoba, cidade abastecida pelo rio Guadalquivir. O governo de Rahman significou o apogeu do domínio muçulmano na Espanha, e a independência política em relação a Bagdá.

Segundo Giordani:

Abd al-Rahman embelezou a cidade de Córdoba, cujo esplendor os cronistas não se cansam de elogiar e descrever. Alguns calculam sua

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população em cerca de quinhentos mil habitantes. O número de suas mesquitas teria atingido, segundo uns, a casa dos três mil. Havia centenas de banhos públicos e setenta bibliotecas. (GIORDANI, 1985, p. 109).

Você se lembra de que os abássidas tomaram o poder no século VIII? Pois é, este fato fez com que a antiga dinastia, omíada, se retirasse de cena. E foi na longínqua província de Andalus que a família omíada encontrou refúgio e proteção.

A Espanha muçulmana foi um mundo de fronteiras entre a África islâmica e o Ocidente cristão. O domínio do Estreito de Gibraltar, entre o Mar Mediterrâneo e o Oceano Atlântico, proporcionou aos omíadas o monopólio comercial com a África através de Ceuta, no Marrocos. Incentivada pelo comércio, a mistura cultural entre árabes, espanhóis e africanos foi significativa. Esta mistura, por sua vez, só foi possível graças à tolerância dos muçulmanos em relação a outras religiões e culturas.

Segundo Albert Hourani, com o tempo:

Parte da população nativa converteu-se ao Islã, e no fim do século X é possível que a maioria do povo de Andalus fosse muçulmana. Mas ao lado deles viviam aqueles que não se converteram, cristãos e uma considerável população judia de artesãos e comerciantes. Os diferentes grupos mantiveram-se juntos graças à tolerância dos omíadas para com judeus e cristãos, e também à disseminação da língua árabe, que se tornara a da maioria, tanto para judeus e cristãos quanto para os muçulmanos, no século XI. A tolerância, uma língua comum e uma longa tradição de governo separado ajudaram a criar uma consciência e sociedade andaluzas distintas. (HOURANI, 2006, p. 70-71).

Como resultado desta sociedade híbrida (composta de diferentes elementos culturais), surgiram os “moçárabes”, que eram cristãos arabizadoso, ou seja, pessoas que adotaram o cristianismo como religião, mas por conviver em um mundo governado por muçulmanos, acabaram incorporando elementos da língua e dos costumes dos árabes, primeiros adeptos do Islã.

Contudo, os conflitos entre berberes e árabes foram constantes. Como ilustração destes conflitos, podemos destacar a formação do Império dos Almorávidas. Foi no século XI quando os almorávidas (al-murabitun), originários de Marrocos, tomaram o poder e passaram a dominar as regiões do Magreb e de Andalus. Assim, sob o domínio marroquino, a arte da Espanha foi levada para a África e se estreitaram os laços entre as civilizações andaluzas e berberes.

Para finalizar, prezado(a) acadêmico(a), podemos concluir que as lutas políticas, que se revestiam de caráter religioso na Espanha muçulmana, chegaram a seu auge no século XV, com a expulsão dos muçulmanos da Europa. Em 1492,

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UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

caía a última cidade sob jurisdição do Islã, Granada. Porém, a cultura islâmica permaneceria por mais tempo naquelas paragens europeias. O fim do domínio político muçulmano na Espanha representa, para nós, “fazedores de história”, um dos principais marcos do início da Idade Moderna.

Uma característica interessante do califado omíada de Al-Andalus foi sua integração com as regiões não apenas do Magrebe como da própria África ocidental ao sul do deserto do Saara. A proximidade da região e as intensas trocas comerciais levaram não apenas à islamização das casas reais da região do Sahel (ao sul do deserto), como a constantes interações culturais entre as regiões.

Os mouros - povos muçulmanos que viviam no norte da África - costumam ser retratados como negros, como no caso de Otelo, “o mouro de Veneza” da peça de William Shakespeare, e essa descrição pode ser mais próxima da realidade do que acreditamos.

O historiador tunisiano Mohamed Talbi descreve a cultura do Magrebe da seguinte forma:

A Espanha conquistou duplamente seus rudes conquistadores berberes – Almorávidas ou Almóadas – e, oferecendo‑lhes os tesouros seculares de suas tradições artísticas e culturais, fê‑los construtores de uma civilização. Também a civilização do Ocidente muçulmano foi, a partir do século XII, mais do que no passado, uma civilização ibero‑magrebina.

Em proporções difíceis de precisar, os negros originários de regiões situadas ao sul do Saara colaboraram para a formação dessa civilização. Havia grande número deles no Marrocos e em todo o Magreb. A mestiçagem, contra a qual não existia preconceito, era frequente e teve naturalmente alguma influência biocultural, difícil, no entanto, de se indicar com exatidão.

Também havia negros na Espanha, principalmente em Sevilha e Granada. Como escravos por um tempo, ou homens livres, tiveram participação considerável no exército e na vida econômica, introduzindo alguns costumes de seus países de origem.

Alguns deles, como João Latino, professor universitário na Espanha, atingiram o nível mais elevado da vida intelectual e deram à civilização ibero‑magrebina um sentido mais amplamente africano. (TALBI, 2010, p. 65-66).

3.2 OS TURCOS E OS MONGÓIS

Os povos turcos e mongóis são originários das estepes da Ásia Central, e eram constituídos originalmente de tribos nômades. Turcos e mongóis partilham, além de uma origem próxima, outra característica curiosa. Inicialmente ferrenhos

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adversários do Islã, terminaram por ser convertidos e transformaram-se, cada um a seu tempo, em poderosas forças militares e inovadoras da religião.

Por volta do ano 650, os turcos dominavam várias regiões próximas ao Curasão, na fronteira oriental do Império Sassânida. Com a invasão do império pelos árabes, os turcos passaram a combater os muçulmanos.

A luta estendeu-se por quatro séculos, até o momento em que a dinastia turca dos seljúcidas converteu-se e tornou-se uma das mais ferrenhas defensoras da jihad. A hostilidade dos turcos seljúcidas contra os não muçulmanos, especialmente os peregrinos cristãos da Palestina, é considerada um dos estopins das cruzadas.

O impacto dos turcos e dos mongóis ficará mais claro na Unidade 3, quando estudarmos as Cruzadas e as Invasões Mongólicas.

3.3 A AMPLITUDE DOS DOMÍNIOS MUÇULMANOS: DA ÁFRICA À CHINA

As conquistas muçulmanas foram expressivas nos dois primeiros séculos, mas não cessaram após esse período. Ao longo dos séculos, os muçulmanos gradualmente incorporaram novas regiões aos seus domínios, a ponto de chegarem à África ao sul do Saara, ao Himalaia e à Indonésia.

Na África, o reino de Gana, às margens do rio Níger, recebia influência indireta do Islã, e mercadores muçulmanos atravessavam o deserto em caravanas cameleiras para adquirir a noz de cola (fruto refrescante) e escravos. Seu sucessor no domínio político do Sahel, o Império do Mali, era ainda mais fortemente influenciado pelo Islamismo. Seus reis, chamados Mansa, eram muçulmanos, ainda que a população mantivesse as crenças tradicionais.

No subcontinente indiano, a presença islâmica data da época da expansão sobre a Pérsia. Posteriormente, os imperadores mongóis (muçulmanos de origem mongólica) espalharam ainda mais o Islã pela região, que hoje conta com uma expressiva maioria ao longo dos grandes rios Indo (Paquistão) e Ganges (Bangladesh).

Na China, o Islã também chegou muito cedo, levado pelos comerciantes e pelo contato com expedições militares; a influência dos mongóis sobre a China levaria a fé a uma quantidade expressiva de pessoas.

ESTUDOS FUTUROS

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UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

A expansão da fé muçulmana chegou até a Indonésia, que hoje é o país com a maior população muçulmana em todo o mundo. A religião chegou pelos comerciantes e espalhou-se progressivamente a partir do século XIII. Por volta de 1550, quando os europeus chegaram à região e estabeleceram entrepostos comerciais lucrativos, o Islã já dominava a região nas proporções de hoje.

4 A CULTURA MUÇULMANA

Toda essa diversidade étnica, aliada às características próprias da religião, permitiu que as regiões muçulmanas produzissem uma riqueza cultural de valor inestimável.

Veremos a seguir algumas de suas características principais.

4.1 AS ARTES

A percepção artística dos povos islâmicos está fortemente condicionada aos preceitos religiosos. Um dos mais importantes, nesse contexto, é a proibição da reprodução da figura humana, decretada no Alcorão. Com isso, algumas artes que se desenvolveram fortemente na Europa, como a pintura e a escultura, são muito menos expressivas entre os países muçulmanos. Por outro lado, algumas artes encontraram uma expressividade que não tem paralelo no Ocidente.

SUGESTÃO DE LEITURA!Prezado(a) acadêmico(a), se você tiver interesse em saber mais sobre a arte islâmica, ou se desejar encontrar imagens para ilustrar as aulas que ministrará sobre o assunto, sugerimos buscar com cuidado pela internet. É um repositório de informações riquíssimo. No entanto, é sempre bom verificar as informações antes de selecionar as imagens, especialmente para saber se elas são acuradas e não violam direitos autorais.Uma boa fonte de informação sobre a arte islâmica é a recente obra de: ● MANDEL, Gabriele. Como reconhecer a arte islâmica. Lisboa: Edições 70, 2010.

4.1.1 Os arabescos

Em parte para compensar a proibição de representar a figura humana, os povos muçulmanos desenvolveram uma técnica de entrelaçar símbolos, imagens e letras do flexível alfabeto árabe em figuras denominadas arabescos. Os arabescos podem ser pintados, gravados ou esculpidos, e são um elemento central da estética islâmica desde o início da religião.

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4.1 AS ARTES

4.1.1 Os arabescos

FIGURA 32 - DETALHE DOS ARABESCOS DE UM ARCO NO PALÁCIO DA ALHAMBRA, EM GRANADA (ESPANHA). AUTOR: YVES REMEDIOS

FONTE: Licença: Creative Commons Attribution 2.0 Generic Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/File:Atauriques.jpg#filelinks>. Acesso em: 15 fev. 2013.

FIGURA 33 - ARABESCOS NO PÓRTICO DO FORTE AGRA, CONSTRUÍDO DURANTE O IMPÉRIO MUGHAL NA ÍNDIA. AUTOR: HANS A. ROSBACH

FONTE: Licença: Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/File:RedFortAgra-Musamman-Burj-20080211-2.jpg>. Acesso em: 15 fev. 2013.

4.1.2 A caligrafia

Tirando proveito da beleza e flexibilidade do alfabeto árabe, os calígrafos refinaram a sua arte ao extremo. A caligrafia está presente em praticamente todos os lugares e situações. Os textos, muitas vezes, são dispostos de formas elegantes e engenhosas, formando figuras, arabescos ou belas imagens abstratas.

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FIGURA 34 - A FÓRMULA RELIGIOSA “BISMILLAH” (“EM NOME DE DEUS”), ESCRITA EM DIFERENTES FORMATOS

FONTE: Disponível em: <bit.ly/11sg2TZ>. Acesso em: 15 fev. 2013.

Sugestão de site. Para ver centenas de versões como essas, acesse: <bit.ly/11sg2TZ>.

4.1.3 A arquitetura

A arquitetura islâmica é bastante diversificada, refletindo as inúmeras culturas que fazem parte do mundo muçulmano. Embora grande parte dos monumentos arquitetônicos tenha finalidade religiosa (mesquitas e minaretes), as construções civis (palácios e edifícios em geral) também produziram obras de inestimável valor cultural.

Dada a facilidade com que os muçulmanos incorporavam as influências locais, muitas construções têm notável influência bizantina, persa, indiana ou berbere, conforme a região ou a época em que foram edificadas.

FIGURA 35 - DOMO DA MESQUITA DE KAIROUAN (TUNÍSIA, 670)

FONTE: Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Kairouan_Mosque_Cupola.jpg>. Acesso em: 15 fev. 2012.

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4.1.3 A arquitetura

FIGURA 36 - INTERIOR DA MESQUITA DO SHAH (1629), EM ISFAHAN (IRÃ

FONTE: Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Imam_Mosque_Isfahan>. Acesso em: 15 fev. 2013.

FIGURA 37 - O TAJ MAHAL, EM AGRA (ÍNDIA)

FONTE: Disponível em: <http://hr. wikipedia.org/wiki Datoteka:TajMahalbyAmalMongia.jpg>. Acesso em: 15 fev. 2013.

4.1.4 Literatura

Uma das mais conhecidas (no Ocidente) obras literárias da cultura islâmica é a famosa “As mil e uma noites”. A obra, escrita em árabe, é uma compilação de histórias populares de várias regiões do mundo islâmico, especialmente do Irã, Arábia e Índia. A obra, embora tenha fornecido uma grande quantidade de elementos para o imaginário ocidental sobre o Islã, não é uma das mais populares na região; curiosamente, é mais popular em outras regiões do mundo.

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UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

4.1.5 Outras artes

Outros belos exemplares da arte islâmica incluem a dança, a música, a cerâmica, a tapeçaria, a marchetaria (revestimento de superfícies com lascas de madeira), o entalhe em metais, marfim e outras substâncias. É importante observar que, assim como as demais artes, essas sofrem uma grande influência da região do mundo islâmico em que são cultivadas. O mundo muçulmano é muito vasto e diversificado, e isso se reflete claramente nas artes.

4.2 A FILOSOFIA E AS CIÊNCIAS

4.2.1 A Educação

O Alcorão e os Hadiths estão repletos de referências positivas à educação: “busque a educação do berço até o túmulo”; “a tinta do estudioso é mais sagrada do que o sangue do guerreiro”- estes são apenas dois exemplos da atitude islâmica em relação à educação. Os califas, seguindo o que ditava o profeta, foram grandes incentivadores da cultura e da instrução pública.

Em todas as grandes cidades, cópias dos livros islâmicos e de tratados científicos ou filosóficos antigos foram preservadas, traduzidas e recopiadas com frequência. O ambiente nas cidades e nas madrassas (escolas religiosas) era propício ao desenvolvimento da educação – e, com ela, da filosofia e das ciências.

A literatura muçulmana durante a Idade Média, geralmente, não estava desvinculada das ciências; diversos autores eram, simultaneamente, poetas, filósofos e/ou cientistas. Exemplos incluem Avicena, Omar Khayyam, Al-Farabi, Abubácer, Averróis, Ibn Khaldun e muitos outros. O mundo islâmico medieval foi pródigo em autores que são considerados polímatas, ou seja, que se dedicam a diversos assuntos; muitos deles influenciaram diretamente os pensadores do Renascimento europeu.

4.2.2 A Filosofia

A Filosofia e as ciências foram áreas de conhecimento que atingiram um alto grau de desenvolvimento e sofisticação no mundo islâmico medieval. A expansão muçulmana atingiu, em poucas décadas, algumas regiões do mundo em que essas áreas de conhecimento eram muito refinadas: o mundo helênico, a Pérsia, a Palestina, o Egito (já sob influência greco-romana) e a Índia.

As relações comerciais colocavam os árabes, ainda, em estreito contato com a Europa, a China e a África ao sul do Saara. As obras científicas e filosóficas dessas regiões foram traduzidas para o árabe e difundidas por escolas espalhadas por todo o mundo muçulmano, onde foram objeto de acurados estudos e comentários. Essa

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4.1.5 Outras artes

4.2 A FILOSOFIA E AS CIÊNCIAS

4.2.1 A Educação

4.2.2 A Filosofia

4.2.3 As ciências

preservação, difusão e interpretação propiciaram um extraordinário florescimento cultural no mundo islâmico e forneceram elementos para o Renascimento europeu posterior.

A separação entre ciência e filosofia, e entre os diversos campos da ciência, tal como a entendemos atualmente, não era bem definida entre os estudiosos do Islamismo medieval. As ciências eram entendidas de uma forma abrangente e os diversos campos em que as dividimos, hoje, eram vistos como temas a serem pesquisados. Isso levou ao surgimento de uma grande quantidade de polímatas entre os estudiosos muçulmanos, como mencionamos há pouco.

Dentre os campos da ciência mais estudados no mundo islâmico medieval, destacam-se: a Matemática, a Astronomia, a Medicina, a Física, a Alquimia, a Geografia, a História e a Psicologia.

Toda a base da Matemática Moderna foi desenvolvida pelos muçulmanos: os algarismos como os conhecemos (o termo vem do nome do matemático Al-Khwārizmī); a Álgebra (do árabe al-jebr, “reunião das partes separadas”); também foram eles responsáveis pela difusão de outros elementos fundamentais da matemática, como os próprios algarismos que utilizamos, originados da Índia (e por isso chamados indo-arábicos), e obras como a do matemático indiano Bhaskara (1114-1185), que descobriu a fórmula para a solução de equações de segundo grau que leva seu nome.

Também em Astronomia, Física e Química (Alquimia), os muçulmanos fizeram grandes progressos. As técnicas de navegação em alto-mar, tão louvadas nos livros escolares como conquistas portuguesas, há séculos já eram conhecidas dos árabes – que dominavam amplamente o comércio marítimo desde a costa da África (Zanzibar) até o Extremo Oriente (Indonésia).

Os instrumentos que possibilitavam essa navegação, como a bússola, haviam sido criados originalmente para ajudar o peregrino a localizar, no deserto, a direção de Meca. Práticas que, hoje, não têm status científico entre nós eram muito cultivadas e valorizadas pelos muçulmanos: alquimia e astrologia são dois exemplos.

Os conhecimentos de Geografia, História, Medicina e Psicologia dos muçulmanos não eram menos impressionantes. Em uma região pacificada e relativamente unificada pela religião, percorrida diariamente por comerciantes e peregrinos, não surpreende que muitos viajantes tenham deixado relatos de viagem detalhados.

Dois, especialmente – Ibn Khaldun e Ibn Battuta – nos permitem vislumbres bastante completos do mundo islâmico. A importância dada ao Alcorão para a

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higiene pessoal favoreceu, ainda, a difusão dos conhecimentos de medicina que, como os de psicologia, reuniam o que de mais avançado havia se criado no mundo antigo.

Prezado(a) acadêmico(a), você percebeu a quantidade de vezes a que fazemos referências ao Alcorão quando falamos da cultura e da sociedade islâmica? Isso pode parecer exagerado, mas é proposital, e inevitável. A sociedade islâmica está tão atrelada ao que diz o Alcorão e o livro tem uma importância tão fundamental na vida do fiel, que é impossível não mencioná-lo como base para a sociedade. Lembre-se: o significado de Islam é submissão (a Deus). Como você pode perceber, os fiéis levam isso extremamente a sério.

4.3 AS MULHERES E O ISLAMISMO

O texto a seguir, retirado do livro “Uma história dos povos árabes”, de Albert Hourani (2006, p. 166-169), nos apresenta a condição da mulher no mundo árabe. Veremos que, apesar das diferenças de poder entre marido e esposa, a mulher tinha seus direitos assegurados pela sharia, o sistema legal muçulmano extraído do Alcorão e dos Hadiths.

Até onde vai nossa informação, as mulheres desempenhavam um papel limitado na vida econômica da cidade. Eram empregadas domésticas, algumas podem ter ajudado aos maridos em seus negócios e ofícios e havia mulheres artistas de palco, dançarinas e cantoras. Em geral, porém, não participavam das atividades centrais das grandes cidades, da produção de bens de valor em larga escala para exportação. As francamente ativas eram mulheres de famílias pobres. Na medida em que uma família era rica, poderosa e respeitada, isolava as mulheres numa parte especial da casa, o harém, e atrás de um véu quando elas se aventuravam a sair de casa para as ruas e lugares públicos. [...].

A reclusão do harém não significava que a mulher era totalmente excluída da vida. Dentro dos aposentos femininos das grandes famílias, em visitas umas às outras, nas casas de banho públicas, que eram reservadas às mulheres em momentos especiais e nas celebrações de casamentos ou nascimentos de filhos, as mulheres encontravam-se e mantinham uma cultura própria.

Algumas delas tomavam parte ativa na administração de suas propriedades, através de intermediários, e há casos registrados de mulheres que recorreram ao tribunal do cádi para reivindicar seus direitos. Como no campo, quando uma mulher envelhecia, e se houvesse tido filhos homens, podia adquirir grande poder na família.

IMPORTANTE

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Apesar disso, a ordem social baseava-se no poder superior e nos direitos dos homens. O véu e o harém eram sinais visíveis disso. Uma opinião das relações entre homens e mulheres profundamente enraizada na cultura do Oriente Médio, que existia muitos anos antes do advento do Islã e preservada no campo por costume imemorial, foi fortalecida, mas também modificada na cidade pelo desenvolvimento da charia (lei islâmica).

O Corão afirmava em termos claros a igualdade essencial de homens e mulheres: “O justo, homem ou mulher, sendo um dos crentes, entrará no Jardim”. Também ordenava justiça e bondade no trato entre muçulmanos. Parece provável que suas cláusulas em relação ao casamento e à herança dessem às mulheres uma posição melhor que a que tinham na Arábia pré-islâmica (embora não necessariamente nas terras conquistadas pelos muçulmanos). O sistema de lei e moralidade social ideal, a charia, dava expressão formal aos direitos das mulheres, mas também estabelecia seus limites.

Segundo a charia, toda mulher devia ter um guardião homem – o pai, irmão ou algum membro da família. O casamento da mulher era um contrato social entre o noivo e o guardião dela. O pai, como guardião, podia dar a filha em casamento sem o consentimento dela, se ela não tivesse ainda alcançado a idade da puberdade. Se tivesse, seu consentimento era necessário, mas, se não tivesse sido casada anteriormente, o consentimento podia ser dado pelo silêncio. O contrato de casamento previa um dote (mahr) dado pelo noivo à noiva; isso era propriedade dela, e qualquer coisa que tivesse ou herdasse também continuava sendo sua propriedade. A esposa devia ao marido obediência, mas em troca tinha direito a roupas adequadas, casa e manutenção e a intercurso sexual com ele. Embora os autores legais aceitassem que a contracepção era permissível em certas circunstâncias, o marido não devia praticá-la sem o consentimento da esposa.

Havia, porém, várias maneiras em que as relações entre marido e mulher não eram de igual para igual. Embora a esposa só pudesse divorciar-se do marido por um bom motivo (impotência, loucura, negação dos direitos dela), e só recorrendo ao cádi, ou então por consentimento mútuo, o marido podia repudiar a esposa sem dar qualquer motivo, e por uma simples fórmula verbal na presença de testemunhas. [...].

O contrato de casamento podia oferecer alguma proteção contra isso, se estipulasse que parte do dote, a chamada parte “adiada” (mu'ajjal), seria paga pelo marido só e quando ele repudiasse a esposa. A esposa podia esperar o apoio e a defesa de seus parentes homens; se repudiada, podia voltar com seus bens para a casa da família paterna. Teria a custódia dos filhos do casamento e o dever de criá-los, até atingirem uma certa idade, definida diferentemente nos vários códigos legais; após isso, o pai ou a família dele ficariam com a custódia.

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A charia, baseando-se no Corão e no exemplo do Profeta, permitia ao homem ter mais de uma esposa, até um limite de quatro, contanto que pudesse tratá-las todas com justiça e não negligenciasse seu dever conjugal com nenhuma delas. Também podia ter concubinas escravas em qualquer número, sem que elas tivessem qualquer direito sobre ele. O contrato de casamento podia, no entanto, estipular que ele não tomaria nem outras esposas nem concubinas.

GLOSSÁRIO!cádi: s. m. Magistrado muçulmano, com funções civis e religiosas. FONTE: Disponível em: <www.priberam.pt/dlpo/Default.aspx?pal=cádi>. Acesso em: 23 mar. 2013 haria, chariá, xaria ou xariá (em árabe ةعيرش; transl.: sharīʿah, "legis-lação"), também grafada sharia, shariah, shari'a ou syariah: é o nome que se dá ao código de leis do Islamismo. Em várias sociedades islâmicas, ao contrário da maioria das sociedades ocidentais dos nossos tempos, não há separação entre a religião e o direito, todas as leis sendo religiosas e baseadas ou nas escrituras sagradas ou nas opiniões de líderes religiosos. FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Dicion%C3%A1rio_Aur%C3%A-9lio>. Acesso em: 23 mar. 2013.

4.4 O ISLÃ E OS “INFIÉIS”

Contrariamente ao que crê o senso comum ocidental a respeito do Islamismo, e diferentemente também ao que foi estabelecido em alguns países islâmicos atualmente, os que não seguem o Islamismo gozaram, durante a maior parte da história do Islã, de um tratamento bastante generoso.

Os muçulmanos dividem os infiéis em dois grupos: os dhimmis ou “povos do Livro” - judeus, cristãos e zoroastrianos – e os pagãos, politeístas. Os dhimmis eram aceitos nas regiões sob o domínio islâmico e tinham seus direitos assegurados de forma praticamente total: tinham direito a manter suas crenças e seus templos, receber julgamento, segundo suas leis (exceto no que ela conflitasse com o Alcorão) e, às vezes, eram designados mesmo para os cargos do funcionalismo. Não eram obrigados a se converterem, mas se desejassem manter sua fé, deveriam pagar um imposto especial, chamado jizya, do qual os muçulmanos são isentos.

Em diversos momentos da história islâmica, os governantes dedicaram especial atenção a dar um bom tratamento aos dhimmis, e algumas regiões se tornaram exemplos de tolerância religiosa em níveis raramente vistos.

A Espanha muçulmana (Al-Andalus) é um dos exemplos mais citados pelos historiadores: cristãos, muçulmanos e judeus (como o filósofo Maimônedes)

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conviviam ali de forma bastante harmoniosa, sobretudo se comparada à perseguição contra os demais, promovida séculos depois pelos reis católicos Fernando de Aragão e Isabel de Castela.

Prezado(a) acadêmico(a), a partir do que você pôde vislumbrar sobre a cultura islâmica, é possível imaginar como seriam suas cidades? Que tipos de atividades se desenvolviam, que tipo de pessoas as habitavam, que importância se dava, nelas, à educação, saneamento e segurança? A comparação com a sociedade feudal não fica sem nenhum sentido? Em primeiro lugar, na Idade Média europeia mal havia cidades, nessa época; quanto mais cidades limpas, organizadas e com bibliotecas e universidades, como as islâmicas. Até mesmo a comparação com épocas posteriores torna-se vantajosa aos muçulmanos. A tolerância religiosa que havia nessa época destoava muito da perseguição a judeus e muçulmanos na Espanha da Reconquista (Idade Moderna).

O mundo muçulmano dos primeiros séculos sofreu uma influência muito grande da cultura persa, cuja tradição literária já remontava a mais de mil anos. O poeta Omar Khayámm (1048-1131) foi um dos mais destacados poetas de sua época e soube tirar proveito como poucos da sonoridade da língua persa. Alguns de seus mais belos poemas foram reunidos por Edward Fitzgerald em 1859 em uma coletânea que ele denominou Rubaiyát.

Transcrevemos aqui alguns dos versos dessa obra:

LEITURA COMPLEMENTAR

5Busca a felicidade agora, não sabes de amanhã.Apanha um grande copo cheio de vinho,senta-te ao luar, e pensa:Talvez amanhã a lua me procure em vão.10Hoje os meus anos reflorescem.Quero o vinho que me dá calor.Dizes que é amargo? Vinho!Que seja amargo, como a vida.11É inútil a tua aflição;nada podes sobre o teu destino.Se és prudente, toma o que tens à mão.Amanhã... que sabes do amanhã?

IMPORTANTE

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UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

12Além da Terra, pelo Infinito,procurei, em vão, o Céu e o Inferno.Depois uma voz me disse:Céu e Inferno estão em ti.13Não vamos falar agora, dá-me vinho. Nesta noitea tua boca é a mais linda rosa, e me basta.Dá-me vinho, e que seja vermelho como os teus lábios;o meu remorso será leve como os teus cabelos.

FONTE: KHAYYAM, Omar. Os Rubayat. Versão em português de Alfredo Braga. 2003. Versão para eBook: eBooksBrasil. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/rubayat.html>. Acesso em: 15 fev. 2013.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você viu que:

Logo após a morte de Maomé, o Estado muçulmano começou a expandir-se e atingiu, em menos de cem anos, enormes proporções.

Os primeiros califas (sucessores de Maomé) foram eleitos e ficaram conhecidos como califas bem guiados (Rashidun).

Após os califas bem guiados, assumiu o poder o califado omíada.

Após uma revolta que depôs os omíadas, sucedeu-lhes o califado abássida. Embora tenha sido um longo califado (mais de 500 anos), o mundo muçulmano não teve mais, sob os abássidas, a unidade política de antes.

O período do califado abássida ficou conhecido como a Era de Ouro islâmica.

Os centros culturais do mundo islâmico sob os abássidas eram Bagdá (Iraque), Cairo (Egito), Damasco (Síria) e Córdoba (Al-Andalus – Espanha).

Nas grandes cidades, o conhecimento antigo foi preservado, sob a forma de traduções das obras antigas e comentários originais feitos a elas por filósofos e cientistas muçulmanos.

Nos domínios islâmicos, as artes, a ciência e a filosofia alcançaram patamares elevadíssimos, adaptadas às condições e características locais, e chegavam a um nível de sofisticação que não tinha paralelo no continente europeu da época.

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1 Qual a relação que se pode estabelecer entre religião e Estado para entender a expansão do Islã?

2 Selecione algum filósofo ou cientista do mundo muçulmano no período em questão e escreva uma biografia e uma breve descrição de seu pensamento ou descobertas.

3 De acordo com o texto “As mulheres na cidade”, quais os direitos e deveres da mulher muçulmana, segundo a charia?

AUTOATIVIDADE

Assista ao vídeo deresolução da questão 1

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TÓPICO 4

O FEUDALISMO

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

Prezado(a) acadêmico(a), estudaremos agora o que costuma ser entendido como o “carro-chefe” dos estudos sobre Idade Média: o feudalismo. Mas vamos fazer isso de uma forma como você provavelmente nunca viu antes.

Normalmente, as pessoas estão tão habituadas a pensar as duas coisas juntas que chegam a chamar a Idade Média de “era feudal”. Mas como você poderá perceber, os autores deste Caderno de Estudos consideram não apenas um reducionismo exagerado tomar esse aspecto importante, mas limitado da Idade Média e transformá-lo no foco central dos estudos, como também consideram um erro tomar esse conceito sem criticar sua validade.

Nossa forma simbólica de “recolher o feudalismo ao seu devido lugar” foi inseri-lo no final do contexto do “mundo das sociedades fragmentadas”, por ter sido esta a estrutura social que demorou mais para se consolidar. Realmente, a “sociedade feudal”, se é que tal coisa efetivamente existiu, tomou forma por volta do ano 1000, embora suas características já fossem prenunciadas havia pelo menos duzentos anos. Mesmo assim, isso é muito depois da formação do Império Bizantino e do mundo muçulmano. Além do mais, o próprio período de “auge” do feudalismo já corresponde, como veremos, ao momento em que ele começa, lentamente, a desfazer-se, pois as forças sociais que levariam à sua superação já estavam agindo silenciosamente.

Neste tópico, apresentaremos, ao mesmo tempo, uma descrição das origens, características e razões para o final do feudalismo e as críticas que se fazem atualmente a essa categoria. Consideramos importante que o futuro professor de História tenha acesso a todas as linhas de pensamento possíveis.

2 SOBRE O CONCEITO DE FEUDALISMO

Como você já percebeu, uma das tarefas fundamentais do historiador é questionar os conceitos, especialmente os conceitos que os próprios historiadores criaram. Não significa abandonar todos os conceitos, pura e simplesmente. Significa, isso sim, questionar-se para saber o que o conceito significa, quando foi criado, por que, por quem, e, se ainda tem validade para nós atualmente – e, se for o caso, quais alterações na sua formulação são necessárias. Já fizemos isso com o conceito de Idade Média; agora é a vez de criticarmos o conceito de feudalismo.

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UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

2.1 AS ORIGENS DO CONCEITO DE FEUDALISMO

O termo “feudalismo” não parece ter sido utilizado durante a Idade Média: o Libri feodorum, o mais importante documento sobre o feudalismo, menciona apenas “feudal” e “feudo”, mas não transforma esses termos em uma categoria política. “Feudalismo” como conceito é, portanto, da lavra de historiadores posteriores, principalmente Jacques Cujas e François Hotman, em meados do século XVI, e, como já dissemos, tem sido repetido acriticamente (ou quase) por séculos a fio.

O grande foco de interesse, na época de Cujas e Hotman, era o direito feudal e uma definição de feudo que pudesse ser aplicada, com algumas variações, a toda a Europa. Outro tema de interesse na época era a determinação da origem do sistema feudal: romana, germânica ou híbrida - uma discussão que tem implicações importantes no estudo do Direito Civil e do Direito Romano.

FIGURA 38 - A PERSPECTIVA POPULAR SOBRE O FEUDALISMO REDUZ ESSE FENÔMENO AO TRABALHO RURAL E À RELIGIOSIDADE

FONTE: Disponível em: <http://bit.ly/14NMiCH>. Acesso em: 14 out. 2012.

Do século XVIII ao XIX, o conceito foi amplamente utilizado para explicar a Idade Média, pois era simples o bastante para permitir ao historiador compreendê-la sob os pontos de vista econômico, jurídico e social.

Foi apenas com Karl Marx que uma perspectiva totalmente nova sobre o feudalismo foi elaborada, embora Marx tenha sido influenciado pela obra de outros economistas clássicos de sua época e não questionasse a validade do conceito.

Marx entendia o feudalismo como um sistema de organização social baseado em um modo de produção específico, em que a descentralização do Estado e a ruralização da economia eram ao mesmo tempo causa e consequência da baixa circulação de mercadorias e de dinheiro.

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2.1 AS ORIGENS DO CONCEITO DE FEUDALISMO O feudalismo, porém, carregaria em sua estrutura, como todos os demais modos de produção, as sementes de sua própria derrocada: crescimento populacional e a demanda por mercadorias que surgiu a partir do século XII geraram uma pressão dos comerciantes por liberdade de trânsito e de comércio que levaria ao fortalecimento da classe burguesa e enfraqueceria os senhores até destruir o sistema feudal.

Mesmo assim, Marx não questionou a validade do conceito de feudalismo do ponto de vista jurídico ou social; ao contrário, sua perspectiva teórica entendia que as características jurídicas, políticas, sociais, religiosas etc. do feudalismo (como de qualquer outro meio de produção) ficavam subordinadas aos seus pressupostos econômicos, e por eles eram justificadas. Ou seja, Marx consolidou a validade do conceito de feudalismo como categoria histórico-social.

2.2 CRÍTICAS AO CONCEITO DE FEUDALISMO

O termo foi utilizado sem maior critério até 1974, quando a historiadora britânica Elizabeth A.R. Brown demonstrou que o conceito não descrevia adequadamente a estrutura política, jurídica, econômica e social da Idade Média. Desde então, a crítica se difundiu aos poucos entre os medievalistas, mas ainda prevalece a visão tradicional nos livros de História. Vinte anos depois, Susan Reynolds propôs que o termo fosse simplesmente abandonado, uma vez que todas as características que ele descrevia estavam sujeitas a uma reinterpretação radical.

O que você pensa disso? Será que os “problemas epistemológicos” do termo “feudalismo” devem fazer os estudiosos abandonarem completamente o seu uso? Ou será possível utilizá-lo com reservas, para descrever um modo de produção, ou de organização social, ou de outra maneira, ressalvando, porém, que ele é uma aproximação e uma generalização que não podem ser levadas a extremos?

O conceito de feudalismo foi muito centrado nas relações de poder entre suseranos e vassalos e entre senhores e servos feudais. Grande parte da descrição do “sistema feudal” baseia-se em definições econômicas e jurídicas, e isso traz pelo menos três grandes limitações.

● de um lado, são perspectivas que se restringem a poucos aspectos da sociedade;

● de outro, é impossível abarcar mesmo nesses dois aspectos toda a Europa; e,

● por fim, definições precisas tendem a desconsiderar as transformações ao longo do tempo. Ou seja, o conceito de feudalismo é, pelo menos, muito limitado, e qualquer descrição que se faça desse sistema será parcial do ponto de vista metodológico, espacial e temporal.

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2.3 OS FEUDALISMOS: LOMBARDIA, GRÃ-BRETANHA E OUTROS LUGARES

O conceito de feudalismo que temos em mente corresponde, no máximo, a um período curto da Idade Média, e com um alcance conceitual e geográfico bastante limitado. Em outras palavras, muito do que se apresenta aos estudantes de História como sendo “feudalismo”, mesmo hoje em dia, é uma simplificação da forma de organização social, política, econômica e jurídica que existia na Lombardia (região do sul da França e norte da Itália), por volta do século XII. Ou para ser ainda mais preciso: “feudalismo” refere-se ao que chegou até nós sobre a forma como aquela sociedade se organizava, especialmente a partir de uma fonte em especial: os Libri feodorum, compilação de documentos e regulamentações daquela sociedade, obra que passou a ser tomada, generalizadamente, como representativa de um sistema feudal homogêneo e universal.

Outra vertente bem conhecida do feudalismo é britânica e a razão para isso é, igualmente, a disponibilidade de fontes: compilações de documentos análogas aos Libri feodorum existem na Grã-Bretanha. Porém, naquele país, as circunstâncias são bastante diferentes: a partir do século XIII, a Common Law começou a tomar forma, e isso certamente influenciou as características do feudalismo britânico.

A Common Law como sistema jurídico formou-se em um contexto de oposição direta entre os barões e o rei, no qual os primeiros conseguiram colocar no papel garantias de autonomia que nunca foram previstas em outras regiões. Isso não significa que eles tivessem soberania absoluta; significa apenas que sua maior autonomia permitia-lhes solucionar os conflitos a partir das noções de direito locais. Alguns preexistentes, outros criados por eles próprios, mas sujeitos ao crivo da população – o que os obrigava a conformar-se, em parte, à sociedade local.

Precisamos levar em conta que fontes jurídicas não necessariamente descrevem a sociedade tal como ela é, mas talvez tentem, recorrendo à autoridade do texto escrito, transformá-la ou conformá-la a determinados objetivos. Por exemplo: qualquer um que leia os primeiros artigos da Constituição Brasileira de 1988 sabe que ali está descrita uma sociedade que se deseja construir, não a que temos na realidade. Seria um equívoco muito grande descrever o Brasil do final século XX acreditando que aquelas intenções são o Brasil real.

IMPORTANTE

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3 OS MODELOS DE FEUDALISMO

O que é feudalismo? É a característica central da Idade Média? O crítico social estadunidense H.L. Mencken dizia, com ironia, que: “há sempre uma solução bem conhecida para cada problema – elegante, plausível, e errada”. Como veremos, a frase aplica-se como uma luva ao conceito de feudalismo. Ou, mais ainda, à tentativa de explicar a Idade Média ocidental a partir desse conceito.

Mesmo assim, precisamos compreender com clareza o que entendemos por feudalismo, se desejamos criticar a validade desse conceito. É o que vamos fazer nesta seção.

3.1 O MODELO CLÁSSICO DE FEUDALISMO

Já vimos que o termo feudalismo não existia durante a Idade Média: foi criado no século XIX para descrever as relações de poder e lealdade existentes entre os nobres: doador e donatário – dos feudos (esse termo já existia).

O historiador francês Marc Bloch (1982), em “A sociedade feudal”, estendeu o conceito para abarcar todas as relações de poder dentro daquela sociedade, o que implicava reconhecer que entre suseranos e seus servos as relações também seguiam essa lógica. Em outras palavras, a relação de servidão seria, também, regida por pressupostos feudais de lealdade mútua.

3.1.1 A homenagem

A definição clássica de feudalismo, em linhas gerais, implica uma relação de obrigações militares e legais mútuas entre duas pessoas. Em termos simples, existia um senhor (chamado suserano) que delegava a outra pessoa (o vassalo) uma porção de terra de seus domínios em troca de algum tipo de benefício: obrigações militares, trabalho, serviços etc. Portanto, era uma relação que beneficiava mutuamente os dois contratantes, e obrigava-os a respeitar determinadas obrigações. O suserano era de origem nobre, o vassalo não necessariamente.

Mas, é claro que um sistema tão frouxamente descrito sofria tremendas variações de uma região para outra, e é questionável mesmo se ele tenha, em algum lugar, chegado perto do que entendemos como “feudalismo típico”.

Em alguns lugares, a diferença para o feudalismo lombardo ou britânico era tão marcante que nem deveria ser usado o mesmo termo para descrever suas estruturas sociais. É o caso da Península Ibérica, onde os reis tinham uma grande importância, por centralizarem o poder e concederem, como desejassem, domínios aos cavaleiros. Isso contraria frontalmente a ideia de descentralização política do mundo feudal – uma ideia, aliás, que, como já vimos, era provavelmente mais equivocada do que parece.

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FIGURA 39 - VASSALO PRESTA HOMENAGEM A SEU SUSERANO E, EM TROCA DE SUA LEALDADE E DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS, PODE RECEBER FAVORES COMO TERRAS

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e5/Hommage_au_Moyen_Age_-_miniature.jpg>. Acesso em: 12 out. 2012.

A imagem está nos Archives Départamentales de Perpignan (França)

Tornar alguém um vassalo (homenagem) e delegar-lhe terras eram dois processos distintos, e precisavam acontecer nessa ordem. A lealdade que ambos deviam um ao outro tinha efeitos legais, e o vassalo poderia perder as terras que recebera, caso se insurgisse contra o suserano ou se recusasse a auxiliá-lo em caso de necessidade ou de obrigação.

3.1.2 O feudo

O feudo, como é tradicionalmente entendido, seria uma estrutura agrária autossuficiente, sob posse de um nobre (senhor). O terreno costumava ser dividido entre manso senhorial (terras de usufruto do senhor), manso servil (terras de usufruto do servo) e terras comunais (o terreno do castelo, da vila, mais os bosques, lagos, pântanos etc., que eram improdutivos ou de uso comum).

Os servos que ali trabalhavam diferenciavam-se dos escravos da Antiguidade por estarem presos à terra, em vez de serem considerados propriedade do senhor. Caso outro senhor conquistasse as terras em que o servo vivia, sua lealdade passaria ao novo senhor, pois era a ele que o servo passaria a dever sua proteção.

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3.1.3 As obrigações servis

Em troca da proteção oferecida, o servo devia obrigações em forma de trabalho. Havia dezenas de obrigações, e as mais comuns incluíam:

● Corveia: trabalho compulsório do servo nas terras do senhor durante um certo número de dias da semana.

● Banalidades: taxas devidas pelo servo pelo uso de algum tipo de facilidade do feudo – o moinho, o lagar, o forno etc., geralmente pagas com o produto final.

● Talha: valor pago pelo servo para o custeio das defesas do feudo. A talha era paga com uma porcentagem da produção do manso servil.

● Mão morta: taxa paga pela família de um servo falecido, para reafirmar a proteção.

● Dízimo: dez por cento da produção do manso servil, em tributo à Igreja.

3.2 A PERSPECTIVA MARXISTA

A visão tradicional sobre o feudalismo, fundado, como vimos, na lealdade entre iguais ou entre protetores e protegidos, foi contrabalançada pelos estudos de orientação marxista, que se preocuparam em denunciar as precaríssimas condições de vida a que estavam submetidos os servos feudais, causadas pela enorme carga de obrigações a que estavam sujeitos em troca da proteção senhorial.

Leo Huberman descreveu da seguinte forma a situação dos servos medievais:

O camponês vivia numa choça do tipo mais miserável. Trabalhando longa e arduamente em suas faixas de terra espalhadas (todas juntas tinham, em média, uma extensão de 6 a 12 hectares, na Inglaterra, e 15 a 20, na França), conseguia arrancar do solo apenas o suficiente para uma vida miserável.

Teria vivido melhor, não fora o fato de que, dois ou três dias por semana, tinha que trabalhar a terra do senhor, sem pagamento. Tampouco era esse o único trabalho a que estava obrigado. Quando havia pressa, como em época de colheita, tinha primeiro que segar o grão nas terras do senhor.

Esses "dias de dádiva" não faziam parte do trabalho normal. Mas isso ainda não era tudo. Jamais houve dúvida quanto à terra mais importante. A propriedade do senhor tinha que ser arada primeiro, semeada primeiro e ceifada primeiro. Uma tempestade ameaçava fazer perder a colheita? Então, era a plantação do senhor a primeira que deveria ser salva.

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Chegava o tempo da colheita, quando a ceifa tinha que ser rapidamente concluída? Então, o camponês deveria deixar seus campos e segar o campo do senhor. Havia qualquer produto posto de lado para ser vendido no pequeno mercado local? Então, deveriam ser o grão e vinho do senhor os que o camponês conduzia ao mercado e vendia - primeiro.

Uma estrada ou uma ponte necessitavam reparos? Então, o camponês deveria deixar seu trabalho e atender à nova tarefa. O camponês desejava que seu trigo fosse moído ou suas uvas esmagadas na prensa de lagar? Poderia fazê-lo - mas tratava-se do moinho ou prensa do senhor e exigia-se pagamento para sua utilização.

Eram quase ilimitadas as imposições do senhor feudal ao camponês. De acordo com um observador do século XII, o camponês "nunca bebe o produto de suas vinhas, nem prova uma migalha do bom alimento; muito feliz será se puder ter seu pão preto e um pouco de sua manteiga e queijo...” (HUBERMAN, 1986, p. 5-6).

A perspectiva marxista não questionou o conceito clássico de feudalismo, mas passou a observá-lo como um modo de produção, ou seja, um conjunto de estruturas materiais (base) e ideológicas (superestrutura) que permitiam a produção econômica de uma forma em particular.

A teoria marxista estabelece que cada modo de produção contém em si

próprio os elementos que viriam a causar sua derrocada. No caso do modo de produção feudal, esses elementos seriam a baixa circulação de dinheiro, compatível apenas com sociedades pequenas e fechadas - ou, como no caso feudal, milhares de sociedades fragmentadas, todas independentes entre si. Isso seria possível apenas em contextos conturbados, em que a população não é elevada. As transformações sociais e o crescimento populacional dos séculos XII-XIV gerariam uma crise no sistema, por não ser mais possível manter-se a estrutura política.

A luta de classes (conceito central do marxismo) entre senhores feudais e burgueses levaria, com a vitória desses últimos, à substituição do modo de produção feudal pelo capitalista.

Prezado(a) acadêmico(a), veremos a crise do feudalismo em mais detalhes na próxima unidade.

ESTUDOS FUTUROS

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4 AS ORIGENS DO FEUDALISMO

Existe uma grande polêmica entre os historiadores sobre quais fatores seriam responsáveis pelo aparecimento do feudalismo na Europa. Quase todos concordam, porém, que um dos principais destes fatores seria o fato de que entre os germanos invasores o Estado era entendido como propriedade privada do governante e não uma República, como entre os romanos.

Enquanto no sistema republicano a lei comum está acima de todos - inclusive os governantes - e o poder emana da soberania popular que delega poder aos magistrados eleitos para um mandato temporário, sempre renovado pelo voto, nos reinos estabelecidos pelos germanos - conhecidos como reinos bárbaros - o poder emana do rei e só por seu intermédio pode ser exercido.

Como o rei considera o Estado sua propriedade, a tendência, em longo prazo, é a fragmentação política, pois, com sua morte, o Estado é dividido entre seus filhos. Por mais que um rei amplie o território do Estado, com sua morte, a partilha é inevitável, se houver mais de um herdeiro.

4.1 A FRAGMENTAÇÃO DO IMPÉRIO CAROLÍNGIOFoi o que aconteceu com o Império Carolíngio. Um imenso território que

reunia as atuais França, Bélgica, Holanda, Alemanha, Áustria e Itália foi dividido – com a morte de Carlos Magno – entre os três herdeiros no Tratado de Verdun. Embora a tendência fragmentária tenha sido anulada pela adoção da primogenitura no século XI, o Estado continuou sendo propriedade do governante, na Europa continental, até a Revolução Francesa.

4.2 OUTROS FATORES

Evidentemente, outros fatores contribuíram para a fragmentação total do Estado a partir da implosão do Império Carolíngio no século IX. Numa análise bastante pertinente, Hilário Franco Jr. (2004, p. 55-56) apontou ainda mais quatro fatores para este profundo processo de fragmentação:

Em primeiro lugar, o fato de o Império [Carolíngio] não ter unidade orgânica, assentando-se sobre dois princípios contraditórios: o universalismo das tradições romanas e cristãs e o particularismo tribal germânico. A diversidade étnica era insuficientemente soldada pela autoridade real, muito sujeita a flutuações conforme a personalidade do soberano. Mais eficaz era a unidade espiritual, com o Império num certo sentido sendo tão somente “a expressão política de uma unidade religiosa”. No entanto, isso não bastou para garantir seu sucesso, pois levantou a questão que se estenderia por séculos: a Igreja deveria tutelar o Império ou vice-versa.

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Um segundo fator foi a difusão da vassalagem, por meio da qual Carlos Magno pretendeu unir a si todos os súditos importantes, num vínculo que manteria o predomínio imperial. A relação vassálica implicava, porém, a entrega por parte do soberano de terras e privilégios políticos que na verdade o enfraqueciam. Naquela economia essencialmente agrária, ao ceder terras para os nobres, o imperador precisava conquistar novas terras, mas para tanto dependia do serviço militar daqueles mesmos elementos. Surgia um círculo vicioso difícil de ser rompido. Ora, ao estabelecer novos laços de vassalagem para poder manter os já estabelecidos, debilitava-se o princípio monárquico, e o poder do soberano colocava-as noutras bases, contratuais.

Em terceiro lugar, revelou-se problemática a fusão entre o poder temporal e o poder espiritual na pessoa do Imperador. No seu papel militar, pela tradição germânica, ele deveria ser um chefe guerreiro e obtentor de pilhagens, e no seu papel religioso, pela tradição cristã, ele deveria ser o mantenedor da paz e da justiça. Frágil equilíbrio. Com Carlos Magno, rendeu-se mais para a primeira função; com seu filho Luís, o Pio, para a segunda. Esse Imperador fez, com sua opção, com que a expansão cristã fosse realizada por intermédio de missões religiosas e não mais de conquistas militares. O soberano ficou assim privado dos proventos de pilhagem, de forma que precisava remunerar os vassalos com suas próprias terras, esgotando a fortuna fundiária carolíngia, base inicial de seu poder.

Por fim, as novas invasões dos séculos IX e X contribuíram para mostrar a debilidade do sistema imperial. A rapidez dos vikings, que, descendo da Escandinávia penetravam pelos rios com seus barcos leves e ágeis, não permitia a defesa por parte daquele exército difícil de ser convocado e pesado nas manobras militares. A cavalaria dos magiares, sem as pesadas couraças ocidentais e aproveitando as planícies da Europa central, de onde saíam, causava pânico, e antes de qualquer contra-ataque retirava-se rapidamente para suas bases.

Os muçulmanos e eslavos, ainda que menos perigosos, também contribuíam para aumentar o sentimento generalizado de insegurança. Ficava patente a impotência dos soberanos, e cada região organizava sua própria defesa, em torno da nobreza local. Era a região, portanto, que passava a definir seu próprio destino. A Europa cobria-se de castelos. O poder se fragmentava.

A Importância deste processo de fragmentação foi assim sintetizada nas palavras de Roberto Lopez (apud FRANCO Júnior, 2004, p. 60):

Foi, sobretudo, devido à sua desorganização e à sua pobreza de raiz que a Europa invertebrada do século X pôde resistir melhor às invasões do que o Império Romano do século V. Em parte nenhuma havia centros vitais, artérias principais ou núcleos econômicos cuja perda pudesse levar ao desmoronamento de toda uma província. Para destruir uma a uma tantas células minúsculas, fora preciso um plano de ação e uma continuidade de desígnio que os agressores não possuíam.

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Assim, na visão de Hilário Franco Jr. (2004, p. 62), “o feudalismo, do ponto de vista político, representava uma pulverização do poder que respondia melhor às necessidades de uma sociedade saída do fracasso de uma tentativa unitária (Império Carolíngio) e pressionada por inimigos externos (vikings e magiares)”.

4.3 EM RESUMO

Em resumo, as explicações mais tradicionais atribuem sua origem a, pelo menos, três causas:

1. Durante a crise do Império Romano, o modelo de distribuição de terras aos colonos favorecia a concentração de terras nas mãos de poucos e forçava os despossuídos a buscarem a proteção deles para garantir sua segurança.

2. Os povos germânicos invasores recebiam terras dentro do Império Romano e dividiam-nas entre os descendentes quando da morte do chefe. Isso teria favorecido a desagregação dos territórios. Isso teria sido ligeiramente revertido nos reinados de Carlos Magno e de seus netos, mas, após suas mortes, o reino franco começou lentamente a se desagregar, também pelo costume de dividir as terras.

3. Novas invasões nos séculos VIII a X, especialmente dos normandos (vikings), aterrorizaram novamente os europeus, como havia acontecido no final do Império Romano, tanto pelo rastro de destruição que deixavam como pela necessidade de buscar proteção contra eles. Qualquer possível movimento de retorno às cidades teria sido revertido nesse momento, enquanto durassem as ameaças.

5 FUGINDO AO ESQUEMA

O modelo clássico de feudalismo usado para se pensar a Idade Média, juntamente com os complementos trazidos pela perspectiva marxista, ainda é o mais comum nos manuais escolares, especialmente no Brasil. Isso é lamentável, porque essa perspectiva tem sido contestada há muitas décadas na Europa, pelo menos desde Marc Bloch.

A contribuição dos historiadores da Escola dos Annales tem sido muito importante na criação de uma perspectiva inovadora sobre a Idade Média, um dos temas mais caros à historiografia francesa do século XX. Mas, se de um lado, esse “revisionismo histórico” tem progredido bastante nas últimas décadas, a ponto de se chegar, como já observamos, a questionar a própria validade do conceito de feudalismo, essas “novas” interpretações ainda precisam ser incorporadas pelos nossos sistemas de ensino. Infelizmente, não há motivos para crer que no centésimo aniversário do livro de Bloch a perspectiva sobre o feudalismo que ele desmonta seja já, em nossas escolas, coisa do passado.

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SUGESTÃO DE LEITURAA literatura sobre a Idade Média é vastíssima. Citamos aqui algumas das obras mais clássicas sobre o tema:

● ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 1985.

● DUBY, Georges. A Europa na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

● LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente. São Paulo: Estampa, 1993.

● PERNOUD, Régine. O Mito da Idade Média. Lisboa: Europa-América, 1990.

● WOLFF, Philippe. Outono da Idade Média ou Primavera dos Tempos Modernos? São Paulo: Martins Fontes, 1988.

Todos os autores relacionados são medievalistas, ou seja, fizeram suas carreiras acadêmicas estudando a Idade Média. Portanto, praticamente todas as suas obras são relacionadas ao tema, e são excepcionais fontes de consulta.

5.1 REVENDO CONCEITOS

A região que viu surgir o feudalismo era herdeira dos reinos germânicos que pulverizaram a autoridade do Estado após a queda do Império Romano do Ocidente. Não era uma sociedade de fartura, embora não fosse necessariamente inferior, em termos econômicos e sociais, à do final da Antiguidade.

A produção agrícola era ineficiente; as rudimentares técnicas de cultivo do campo disponíveis na época não permitiam uma produção em escala grande o suficiente. Uma das técnicas modernas mais eficientes para garantir a manutenção da fertilidade do solo – a rotação de culturas – limitava-se, na época, a deixar-se parte do terreno em abandono por um ano, e não havia uma rotação sistemática. Os campos eram deixados livres (em pousio) aleatoriamente, o que favorecia muito mais o crescimento das ervas daninhas do que dos alimentos.

5.2 AS COMUNICAÇÕES

“As comunicações também eram precárias: as estradas romanas – que não eram tão bem construídas como se costuma imaginar” (BLOCH, 1982, p. 61) careciam de manutenção há séculos e estavam interrompidas por trechos destruídos, pontes que se desfizeram e bandos de salteadores em todos os lugares.

Eram rotas lentas – até a criação do trem, no século XIX, o transporte aquático era várias vezes mais rápido – e inseguras, mas mantinham-se abertas

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5.1 REVENDO CONCEITOS

5.2 AS COMUNICAÇÕES

e eram constantemente usadas. Reis, príncipes e outros líderes políticos eram forçados a utilizá-las para visitar seus domínios: comerciantes precisavam delas para transportar suas mercadorias antes que estragassem, cavaleiros passavam por elas em busca de um senhor para honrar, um feudo vago para comandar ou atos de bravura que pudessem ser executados para elevar sua reputação. Peregrinos visitavam os lugares sagrados, correndo sérios riscos de serem mortos no caminho, e miseráveis fugiam da fome, das guerras ou das doenças migrando de uma região a outra.

AUTOATIVIDADE

Prezado(a) acadêmico(a), você não acha que fica bem mais fácil perceber, a partir dessa “visualização de dentro” da sociedade do início da Idade Média, as razões pelas quais o Estado era descentralizado e o comércio era fraco na Europa? A que você pode atribuir a diferença entre essa situação e os períodos posteriores (Idade Moderna) e, principalmente, anteriores (Idade Antiga)?

5.3 A ECONOMIA

É equivocado dizer que “não existia dinheiro na Europa feudal”; havia uma relativa quantidade, que era importante para manter o comércio irregular que existia por toda a parte. A ideia da autossuficiência dos feudos é ilusória; não era possível produzir, em todos os lugares, os cereais, vinho, laticínios e outros produtos em quantidade e qualidade suficiente para alimentar a todos.

Sal e ferro precisavam ser trazidos de fora na maior parte das regiões. Tudo isso requeria dinheiro ou trocas em espécie quando possível – o que não era tão frequente quanto se acredita.

Mas é justamente essa irregularidade o que impedia a formação de um

mercado dinâmico e com trocas significativas, como o que temos hoje; não havia motivação e, consequentemente, não se desenvolviam as condições técnicas - para produção em grande escala de produtos que pudessem ser vendidos.

Por esse motivo, mesmo os mais ricos não tinham recursos suficientes para conseguir planejar seus negócios e garantir sua segurança por longo tempo, e viviam pouco melhor do que os camponeses. Boa parte do ouro que existia escoava lentamente para os domínios bizantinos e muçulmanos, levados por comerciantes que traziam aos senhores alguns poucos luxos ou produtos necessários.

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REFLETINDO...- Quer dizer, então, que tudo o que estudamos sobre Idade Média está errado? Que essa não era uma época em que o comércio desapareceu, em que senhores ricos e poderosos só se preocupavam em fazer guerra e explorar seus servos, em que as pessoas nunca na vida saíam de seu pequeno feudo autossuficiente?- Sim e não. Digamos que essa visão é exagerada e esquemática. Havia comércio, transportes, comunicações, desenvolvimento técnico, poder real etc.; mas em escala dramaticamente menor do que temos hoje. Essa diferença de escala é fundamental: ao contrário do dinamismo econômico da Idade Moderna, a economia medieval era estagnada e irregular – o que é diferente de dizer que não existia nada.

5.4 A NATUREZA E O TEMPO MEDIEVAIS

As populações medievais tinham um contato mais direto com a natureza, em comparação a seus herdeiros modernos. Animais selvagens rondavam os feudos e, muitas vezes, circulavam em meio a eles. Eram, inclusive, fonte de alimento com frequência. Os abrigos e construções precárias tornavam as pessoas muito mais vulneráveis em caso de intempéries: sofria-se muito mais com a chuva, o calor e a neve. As noites, é claro, dependiam da fraca luminosidade da Lua; era certamente mais perigoso do que hoje enfrentar o ambiente em qualquer situação.

Em vista da elevada mortalidade infantil, das frequentes doenças, da limitada noção de higiene e das duras condições de vida em geral, 40 ou 50 anos era já uma idade avançada – e os raros afortunados que chegavam até lá certamente pareciam, inclusive fisicamente, respeitáveis anciãos.

Não que, na maioria dos casos, as pessoas fossem capazes de comemorar os próprios aniversários. O ritmo lento da Idade Média levava a uma imprecisão na contagem do tempo. Mesmo diante da necessidade de manter alguns registros, como a duração dos reinados, muitas vezes não era possível chegar-se a valores muito exatos.

O fato é que os equipamentos de medição precisa do tempo eram caros e, para uma sociedade que não se pautava pela produtividade industrial (mas pelos ciclos das estações), desnecessários em praticamente qualquer situação.

6 O AUGE DO FEUDALISMO

Apesar dos esforços de reis e papas para constituir domínios políticos, como o Império Carolíngio e o Sacro Império Romano-Germânico, a tendência era muito mais à desagregação política do que à unidade territorial. Os chefes locais, sustentados pela lealdade de seus vassalos, sentiam-se fortes o suficiente para recusar a autoridade real, e mantinham seus próprios domínios da forma como podiam.

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5.4 A NATUREZA E O TEMPO MEDIEVAIS

6 O AUGE DO FEUDALISMO

O comércio, embora existente em pequena escala, não era expressivo a ponto de se constituir em uma das atividades econômicas mais relevantes. Os servos não podiam esperar de seus senhores uma segurança muito efetiva contra os ataques de bárbaros e outros senhores, ainda que os laços feudais obrigassem os senhores a tal.

Se levarmos em consideração, ainda, as precaríssimas condições de vida de todos, servos em especial, podemos concluir que a vida no início da Idade Média era muito difícil.

Tudo isso começou a mudar por volta do ano 1000, ainda que lentamente e de forma desigual. A Europa ocidental do início do II Milênio era, certamente, uma sociedade em transformação. Após séculos de desordem política e econômica – causada, como já vimos, pela crise do escravismo e da produção agrícola no período pós-romano e pela interminável sucessão de invasões de povos nômades (“bárbaros”) –, a sociedade recuperava agora sua estabilidade e retomava o crescimento demográfico e econômico. Por volta do ano 1000, a Europa lentamente despertava suas forças vitais, após séculos de insegurança social, precariedade técnica e dogmatismo intelectual.

FIGURA 40 – CRESCIMENTO DA POPULAÇÃO DA EUROPA OCIDENTAL, 1000-1500.

FONTE: Adaptado de Franco Jr., Hilário (2004, p. 56)

O primeiro passo neste processo de reintegração político-econômica e sociocultural foi a recuperação demográfica do continente após a migração dos povos “bárbaros”. O fim das invasões dos vikings e de outros povos e sua incorporação ao próprio mundo feudal trouxe de volta segurança, mesmo que apenas contra invasores externos: internamente, o mundo feudal continuava assolado por conflitos intermináveis entre os senhores. Aos poucos, essa recuperação trouxe consequências sociais e econômicas profundas para toda a sociedade europeia ocidental, como veremos neste tópico.

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UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

6.1 O FIM DAS INVASÕES BÁRBARAS

O que se chama, geralmente, de “invasões bárbaras” foi um longo processo de migração dos povos germânicos e eslavos em direção ao Oeste, que se iniciou no século III (ou talvez ainda antes) e só terminou no século IX-X, com a sedentarização e cristianização dos últimos desses grupos “invasores”: os vikings e os magiares (húngaros).

Com o fim das invasões, as tensões do sistema feudal se estabilizaram. A guerra mudou de característica: já não envolvia grandes grupos de combatentes anônimos, mas sim pequenos grupos de guerreiros de elite.

Prevaleciam as ações individuais dos guerreiros, e não uma ação coletiva coordenada. Apesar dos laços de vassalagem e de parentesco, uma luta entre dois grupos de nobres feudais envolvia, geralmente, poucas dezenas de guerreiros, raramente algumas centenas, pois como lembra Hilário Franco Júnior (2004, p. 18.), “o objetivo deste tipo de confronto não era a aniquilação do adversário, mas sim a sua captura para cobrança de um resgate cujo rendimento era proporcional à importância do prisioneiro”.

Este processo de estabilização e pacificação funcionou também como diluidor e amenizador do deslocamento de bactérias, contribuindo assim para um considerável recuo das epidemias e pestes. Estes fatores combinados contribuíram para um paulatino, mas constante, aumento da população da Europa Ocidental a partir do século X.

As inovações agrícolas fizeram a população da Europa, que havia diminuído nos séculos de calamidade, voltar a crescer; isso gerou uma pressão populacional e social muito grande nos feudos. Já não era mais possível, em alguns casos, distribuir partes do feudo a cada filho; o mais velho passou a herdar sozinho a propriedade.

6.2 A PRIMOGENITURA

A pressão exercida por este aumento de população sobre a estrutura fundiária, já excessivamente fragmentada, levou alguns clãs senhoriais a adotar uma medida extrema para evitar uma descendênciamiserável: a escolha de apenas um dos filhos varões para herdar a propriedade. Adotada por todos os clãs em situação de análoga perda de prestígio, esta prática paulatinamente se generalizou, transformando-se por força do costume, na Lei Consuetudinária da primogenitura. A partir de então, os filhos não herdeiros dos diversos clãs que adotaram a primogenitura vieram a constituir-se num excesso social de população não absorvida por aquela estrutura fundiária.

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6.1 O FIM DAS INVASÕES BÁRBARAS

Direito de primogenitura significa que: apenas o primeiro filho herdaria a propriedade como um todo e seus irmãos não teriam direito a nada ou estariam submetidos ao mais velho. Essa prática contrariava a tradição germânica que, como você talvez se lembre, dividia os territórios entre todos os filhos. Foi, como você pode imaginar, uma medida desesperada que os senhores feudais tomaram para evitar que suas propriedades, já pequenas depois de séculos de fragmentação, se tornassem diminutas demais para sustentar até mesmo uma família senhorial e seus servos.

Com isso, surgiu uma enorme quantidade de nobres sem terra (ou seja, sem vassalos e, logo, sem poder nem meios de sustento), que tentavam encontrar alguma forma de se inserirem na sociedade, como: religiosos, vassalos de algum senhor mais poderoso ou pretendentes a ocupar algum feudo sem senhor. Isso gerou uma transformação radical na sociedade, pois colocou os nobres em posições sociais muito distintas. É por causa disso que surgiram os códigos de cavalaria, de comportamento (etiqueta), de amor cortês etc.

Estes nobres sem terra – filhos “segundogênitos” dos clãs mais empobrecidos – deviam permanecer celibatários, uma vez que, sem terras e sem vassalos, não podiam legar aos filhos uma descendência digna. Esta situação devia lhes parecer desonrosa, pois, como nobres herdeiros de uma longa genealogia, não podiam legar o nome da família aos filhos. A condição que lhes faltava era a terra.

A mesma pressão foi exercida sobre a população servil dos camponeses, que se viam sem condições de manter o crescente número de filhos com a pequena porção de terras que possuíam dentro dos velhos feudos. E como, entre os servos, a primogenitura não era adotada, a miséria e a fome eram uma ameaça sempre presente a empurrá-los em busca de novas oportunidades. Em vista disso, estes homens vão se constituir num exército de reserva, ávidos por conquistar para si novas glebas de terra onde pudessem dar continuidade às tradições familiares.

Caro(a) acadêmico(a), mais adiante você verá como estes nobres sem terra serão importantes para o processo conhecido como CRUZADAS. Você também verá como eles, constituindo-se em cavaleiros, serão imprescindíveis para a formação das CORTES MEDIEVAIS, após o término do período cruzadista.

NOTA

ESTUDOS FUTUROS

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UNIDADE 2 | O MUNDO DAS SOCIEDADES TEOCRÁTICAS

6.3 A PRESSÃO ECONÔMICA

O aumento populacional gerava, também, uma maior oferta de produtos agrícolas e também uma maior demanda por produtos vindos de fora. Você se lembra de que dissemos que eram raros os feudos em que se podia obter sal e ferro? Embora a grande maioria dos equipamentos agrícolas fosse mais rudimentar (os arados eram de madeira) e a comida não costumasse ser temperada, todos poderiam precisar, em maior ou menor medida, dessas substâncias. Isso abria a possibilidade do ressurgimento do comércio de larga escala, que exigia rotas seguras e alguma centralização política para prosperar. Por isso, os comerciantes financiavam os senhores mais poderosos e, em troca, recebiam as condições que desejavam para realizarem suas atividades.

6.4 A EXPANSÃO INTERNA DA SOCIEDADE

Este aumento da população provocou, entre outros fatores, um acentuado movimento migratório para o desbravamento de novas áreas de cultivo em terras antes improdutivas, florestas e pântanos. Já se observou que - por questão de logística - desde a antiguidade, fazendas, vilas e cidades fundadas por romanos margeavam rios, lagos ou mares. Esta tendência manteve-se na Idade Média. Contudo, com a interiorização verificada na sociedade medieval a partir do século X, uma pressão cada vez mais acentuada passou a ser exercida sobre a necessidade de transporte terrestre e outras formas de força motriz.

Por volta do século XI, já havia sido introduzido um sistema de atrelagem que permitiu um melhor aproveitamento da tração animal, aumentando o rendimento do trabalho. Tal inovação, que compreendia novos sistemas de arreios e a atrelagem de vários animais em linha, tornou possível também a utilização do cavalo, mais veloz que o boi, como animal de tração, para o transporte e atividades agrícolas.

Foi neste momento que surgiram a ferradura, a carroça, o arado com rodas, as estradas de cascalho e, finalmente, os moinhos (d’água e de vento) assumem a importância que não tinham na Antiguidade. Além disso, ao Ocidente medieval deve-se ainda a difusão e o aperfeiçoamento de uma série de mecanismos, tais como o parafuso, a roda, a catraca, a engrenagem e a polia. Por outro lado, a construção de igrejas e castelos levou ao desenvolvimento de roldanas e guindastes rudimentares.

Estes melhoramentos técnicos foram acompanhados de uma verdadeira revolução na agricultura: a introdução do sistema trienal de rotação de culturas. Esse sistema consistia, essencialmente, em dividir o terreno em três ou mais partes e cultivar cada parte com um produto diferente, deixando-se sempre uma das áreas em repouso.

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TÓPICO 4 | O FEUDALISMO

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No ano seguinte, as culturas seriam alternadas. A parte que ficara em repouso seria novamente cultivada e uma área que havia sido cultivada por alguns anos seria agora deixada “em pousio”. Tal sistema permitia ultrapassar o rápido esgotamento do solo, com considerável aumento da produtividade, pois, “ao se dividir a área cultivável em três partes, não só se ampliava a extensão efetivamente produtiva (66% contra 50% do sistema bienal), como ainda se tinha a segurança de duas colheitas anuais”. (FRANCO JÚNIOR, 2004, p. 34).

Recomendações de filmesCaro(a) acadêmico(a)! Sobre os assuntos tratados neste tópico, existem alguns bons filmes onde você poderá encontrar, além de diversão, conhecimento.● EL CID, de 1961, dirigido por Anthonny Mann, com Charlton Heston e Sophia Loren.● O Incrível Exército de Brancaleone, de 1966, dirigido por Mário Monicelli, com Vittorio Gassman.● Cruzada, de 2004, dirigido por Ridley Scott com Orlando Bloom, Jeremy Irons e Liam Neeson.

Em uma série de diálogos com o historiador Jean-Maurice de Montrémy, Jacques Le Goff descreveu, em linguagem informal, diversos aspectos de sua concepção sobre Idade Média. Transcrevemos, aqui, o trecho em que ele fala sobre o feudalismo e a “feudalidade”.

DICAS

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LEITURA COMPLEMENTAR

EM BUSCA DA IDADE MÉDIA

Jacques Le Goff

Entre as “redes que se vão constituindo”, o senhor citou a das senhorias. Raramente o senhor emprega a palavra feudal, entretanto tão comum.

Como você já viu, muitas palavras de que nos utilizamos para qualificar a Idade Média são de criação recente. Religião, no sentido em que a entendemos, aparece no século XIV, Feudalidade aparece no século XVII e Cruzada no século XVIII... Isso não me impede de usar essas palavras e de introduzir outras nesse contexto, também elas “anacrônicas”, como intelectuais, Senhoria, mais perto das concepções e da linguagem da época.

A Idade Média – Georges Duby o lembrou de modo magnífico – repousa sobre a terra. A Idade Média é rural. É sobre essa ruralidade que se articula o conjunto das outras redes.

No início, existia um conjunto de domínios romanos: as villae (vejam-se todos os nomes em ville da toponímia francesa). Por volta do ano mil, essas villae se estruturam de modo diferente. Fica clara a existência de duas entidades. Muitas casas de agricultores ou de artesãos ligados aos consertos e aos fornecimentos constituem, por um lado, uma cidade. Por outro lado, um lugar forte se especializa na proteção e nas pequenas formas de arbitragem: a senhoria.

A aldeia no século XI tem um centro: a igreja. Anexo a ela, o cemitério, uma vez que os mortos devem ficar o mais perto possível do ou dos santos padroeiros. Na aldeia, nem todos os habitantes são agricultores. Os artesãos nela representam uma força social importante. São os “galos da aldeia” ou, se preferir, os notáveis entre as pessoas menores, que deixaram sua marca nos nomes de família. Assim é em relação aos moleiros: Meunier, Müller, Miller... Ou quanto aos ferreiros: Le Faivre, Lefèvre, Faber, Smith, Schmidt, etc., ou Le Goff, no dialeto bretão!

Durante o século XI também se desenvolve um fenômeno a que Pierre Toubert denominou incastellamento (o encastelamento, se assim podemos dizer), tendo como referência a Itália, e que Robert Frossier descreve como o enclausuramento. A falência do modelo imperial, a ausência de poderes centralizadores fortes (as monarquias ainda são uma incerteza) favorecem o recurso aos superiores, sejam os que residem na cidade, como na Itália, sejam os que vivem no campo, como na França ou na Inglaterra.

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É em volta deles que se reúnem, em caso de necessidade, homens, animais, colheitas e instrumentos de trabalho. As cidades se fortificam. Os campos assistem ao aparecimento de pequenos outeiros naturais ou artificiais fortificados, depois torreões ou castelos fortes. Assim se firma a senhoria que exprime bem a função exercida: dominação, autoridade.

O senhor inferior, em contrapartida a serviços prestados a um superior, recebe um benefício, um feudo. Essa palavra, de origem germânica, designa a doação ou a contradoação que as partes trocam no termo de um conflito. Estão implícitos, portanto, pontos de troca. Sendo própria dos senhores a tendência, como entre os modernos chefes de empresa, de transmitir o feudo a seus filhos, o feudo se torna, progressivamente, sinônimo de domínio territorial ou de cobrança hereditária de foros. Os feudos se transformam em objeto de absorção ou partilha entre os senhores, o que supõe conflitos, eventualmente conflitos armados. Desenvolve-se a seguir em torno desses lugares sociais uma perfeita ideologia, até uma mística cavaleirosa entre os senhores e seus súditos, ou entre os senhores e os outros senhores vassalos.

Observemos apenas que o sistema de feudos, a feudalidade, não é, como se tem dito frequentemente, um fermento de destruição do poder. A feudalidade surge, ao contrário, para responder aos poderes vacantes. Forma a unidade de base de uma profunda reorganização dos sistemas de autoridade, o quadro indispensável ao aparecimento dos Estados. A feudalidade conhece seu grande período do século X ao século XIII. Ao contrário da senhoria – que a precede e que persiste depois dela –, a feudalidade, em sentido estrito, não se identifica com o conjunto da Idade Média.

FONTE: LE GOFF, Jacques. Em busca da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 156-159.

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RESUMO DO TÓPICO 4

Neste tópico você viu que:

O conceito de “feudalismo”, como sistema político, econômico e social, não existia na Idade Média; foi construído pelos historiadores, especialmente a partir do século XVI.

A interpretação clássica sobre o feudalismo foi mantida, com poucas modificações, até o século XX.

O marxismo ampliou a perspectiva sobre o feudalismo, ao percebê-lo como um modo de produção específico, mas não questionou o conceito em si.

Na década de 1970 surgiram críticas ao conceito, considerado então inadequado, para descrever a estrutura política, jurídica, social e econômica da Idade Média.

Na descrição do modelo clássico de feudalismo, os elementos mais importantes são a homenagem, a vassalagem, a servidão, as obrigações servis e a economia natural.

O feudalismo teria surgido a partir de elementos romanos e germânicos, e se consolidado após o esfacelamento do Império Carolíngio.

Ao estudarmos a Idade Média e o feudalismo, em particular, precisamos ter em mente que o conceito é uma simplificação, e que ele não dá conta de descrever adequadamente, por si só, o que foi esse período.

Depois do longo processo de invasões bárbaras (do século III ao século IX), as tensões do sistema feudal se estabilizaram.

Os níveis de violência diminuíram, a pacificação contribuiu para a diminuição da circulação de doenças e epidemias e a população começou a crescer rapidamente a partir do ano 1000.

O aumento da população exerceu pressão sobre a estrutura fundiária e a excessiva fragmentação das propriedades fez com que os clãs mais empobrecidos adotassem o costume da primogenitura.

A paulatina adoção da primogenitura lançou no desamparo os filhos “segundogênitos” de muitos clãs que, junto com o excesso de população servil, promoveram uma expansão interna da sociedade, em direção ao interior da Europa.

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Este processo de expansão criou novas necessidades que revolucionaram os métodos de trabalho e aumentaram a produtividade da economia medieval, sustentando, assim, o crescimento demográfico.

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Prezado(a) acadêmico(a)! Após você ter lido todo esse tópico, elaboramos algumas questões que servirão como uma espécie de roteiro para que você possa rever as principais ideias sobre o feudalismo e a expansão demográfica na Europa.

1 Explique o papel dos francos na formação do feudalismo.

2 Quais as causas da recuperação demográfica da Europa Ocidental a partir do século X?

3 Por que a primogenitura, como critério de sucessão, passou a ser adotada na Europa medieval?

4 O que foi a expansão interna da sociedade, e quais as suas consequências?

AUTOATIVIDADE

Assista ao vídeo deresolução da questão 3

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UNIDADE 3

A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir desta unidade você será capaz de:

• caracterizar o século XI como o início de um processo de profundas trans-formações na sociedade europeia, dos pontos de vista cultural, político e religioso;

• reconhecer a importância de eventos externos à Europa, como as invasões mongólicas, na transformação da sociedade europeia do final da Idade Média;

• identificar, na dinâmica do processo de feudalização e de seu refluxo, os fatores que levaram à expansão interna e externa da sociedade europeia a partir do século XI;

• compreender como ocorreu o renascimento comercial e urbano do final da Idade Média e sua importância como elemento transformador das rela-ções sociais e econômicas;

• entender o renascimento cultural do século XII e os fatores que propicia-ram seu surgimento e identificar a importância desse movimento para os períodos seguintes;

• perceber, nos conflitos entre as cortes medievais e os senhores feudais, entre o papado e o Sacro Império, e entre os estados nacionais e o poder da Igreja, os elementos de disputa política em curso na Europa do final da Idade Média.

Esta unidade está dividida em cinco tópicos. No decorrer e no final de cada um deles você encontrará atividades que contribuirão para sua reflexão e análise dos conteúdos adquiridos.

TÓPICO 1 – AS TRANSFORMAÇÕES DO SÉCULO XI E AS CRUZADAS

TÓPICO 2 – AS CONQUISTAS MONGÓLICAS

TÓPICO 3 – A IGREJA E A CULTURA NA BAIXA IDADE MÉDIA

TÓPICO 4 – O RENASCIMENTO COMERCIAL E URBANO

TÓPICO 5 – AS CORTES MEDIEVAIS

Assista ao vídeo desta unidade.

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TÓPICO 1

AS TRANSFORMAÇÕES DO SÉCULO XI E AS

CRUZADAS

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Como vimos, quando terminaram as invasões, a Europa foi envolvida por um período de relativa tranquilidade militar, e a pouca mobilidade serviu como inibidor da propagação de epidemias. Nestas circunstâncias, houve um grande aumento populacional no continente. Como a estrutura do sistema feudal não incorporava essa nova população, houve uma expansão interna da sociedade em direção a áreas antes improdutivas, como pântanos e florestas.

Mas a pressão populacional e social ameaçava tornar-se insuportável. Ao mesmo tempo, um misto de controvérsias religiosas, “demagogia” política, oportunismo comercial e fervor religioso da população concorreram para dar origem a um dos movimentos mais intrigantes da história: as Cruzadas.

2 AS ORIGENS HISTÓRICAS DAS CRUZADAS

2.1 O SÉCULO XI, PERÍODO DE CONQUISTAS

O período correspondente ao século XI foi de grande movimento expansionista, na Europa e na Ásia. Conquistas territoriais no ocidente e novas migrações de povos no oriente modificaram mais uma vez o panorama político mundial e opuseram diversas vezes cristãos e muçulmanos. Enquanto a sociedade medieval se interiorizava, outros processos paralelos faziam com que aquele excesso social de população se movesse em direção à conquista de terras além das fronteiras da Cristandade Latina. Embora as terras ocupadas pelo Islã na Europa fossem o alvo principal, este processo expansionista também atingiu a Inglaterra e as terras ocupadas por eslavos ortodoxos, a leste do Elba.

2.1.1 Os turcos seljúcidas

O primeiro dos grandes movimentos de conquista ocorreu na região da Anatólia (atual Turquia asiática), aonde os turcos chegaram após atravessarem o Irã. Em 1040, os turcos seljúcidas se estabelecem na Pérsia como mercenários a serviço do Califado Abássida de Bagdá. Assimilaram a religião muçulmana e conquistaram a hegemonia política quando, em 1058, reduziram as atribuições do Califa à liderança religiosa enquanto que o governo efetivo passou para as mãos do Sultão – título do monarca turco.

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UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

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FIGURA 41 - MAPA MOSTRANDO A EXTENSÃO DOS DOMÍNIOS DO CALIFADO FATÍMIDA (MAIS ESCURO), DOS TURCOS SELJÚCIDAS (TOM INTERMEDIÁRIO) E DO IMPÉRIO BIZANTINO (MAIS CLARO) EM 1100

FONTE: Disponível em: <http://www.ucalgary.ca/HIST/tutor/imageislam/seljuk1100.gif> Acesso em: 22 de out. 2012.

Com o fervor de povos recém-convertidos, os turcos lançaram uma ofensiva contra o Império Bizantino e, em 1071, conseguiram conquistar a Ásia Menor. A seguir, atacaram o Califado Fatímida do Cairo e se apoderaram dos Emirados da Síria e Alepo. Capturaram Jerusalém em 1078. Se os antigos Califas e Emires árabes mantinham a antiga tradição muçulmana de tolerância aos povos do Livro – Judeus e Cristãos – os neófilos turcos mostraram-se mais intransigentes na defesa da fé, proibiram as peregrinações cristãs em seu território recém-conquistado.

2.1.2 Os primeiros tempos da reconquista ibérica

Na Península Ibérica, desde o início da ocupação árabe, a resistência cristã buscava retomar o controle da região. As campanhas vitoriosas eram seguidas de um processo de colonização por cristãos, estendendo aos poucos os reinos ibéricos para o Sul. O Califado de Córdoba, sob a dinastia omíada, caiu com a morte do califa Al-Mansur em 1002, e deu lugar a dezenas de pequenos reinos (Taifas), cuja desunião facilitava o avanço cristão sobre Al-Andalus. Os cavaleiros cristãos, sob o comando de Alfonso VI, reconquistaram Toledo em 1085.

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TÓPICO 1 | AS TRANSFORMAÇÕES DO SÉCULO XI E AS CRUZADAS

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FIGURA 42 – A RECONQUISTA DA PENÍNSULA IBÉRICA

FONTE: Disponível em: <https://historia-no-vestibular.wikispaces.com/1.2+-+Forma%C3%A7%C3%A3o+dos+Estados+Nacionais>. Acesso em: 14 mar. 2013.

Para barrar o avanço cristão e unificar as taifas, a dinastia berbere dos Almorávidas, estabelecida no Marrocos, invadiu a região e ocupou o sul da península. Seus exércitos foram vitoriosos até 1094, quando os cristãos, sob o comando de El Cid, conquistaram Valência. No ano seguinte, o conde Henrique de Borgonha toma posse do condado de Portucale, na costa do Mar Oceano (Oceano Atlântico), e seus domínios darão origem a Portugal.

2.1.3 As conquistas normandas

Os normandos (palavra de origem escandinava que significa “homens do norte”) surgiram a partir das invasões dos temíveis vikings às regiões da França, onde se sedentarizaram e estabeleceram o ducado da Normandia (912). De lá,

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UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

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os normandos espalharam-se por diversas regiões da Europa com um ímpeto avassalador. Em 1066, o duque William II (Guilherme, o Conquistador) derrotou o rei anglo-saxão Harold e foi coroado rei da Inglaterra; iniciou-se assim a influência normanda da Grã-Bretanha. Na Itália, os normandos auxiliaram a reconquista das regiões da Sicília e do sul da península Itálica, então sob o comando muçulmano – Palermo finalmente caiu em 1072.

Repare você, caro(a) acadêmico(a), que todos estes eventos são anteriores à data oficial que tradicionalmente marca o início das Cruzadas no Concílio de Clermont-Ferrand em 1095. Na Europa, apenas o avanço a Leste dos cavaleiros teutônicos sobre os eslavos ortodoxos das planícies polonesas e das margens do Báltico pode ser considerado posterior, uma vez que apenas em 1193, a cruzada do Báltico foi legitimada pelo Papa Celestino III.

2.2 A CRISE NA IGREJA NO SÉCULO XI

Em fins do século XI, a Igreja Católica tinha atravessado um difícil momento. O Grande cisma de 1054 havia separado definitivamente o Culto Católico Latino do Ortodoxo Grego. Reagindo a esta tendência desagregadora, o Papa Gregório VII (1020-1085) procurou diminuir a autonomia dos bispos, centralizando em Roma todas as questões importantes da Igreja. Propôs a reforma do calendário, atacou a simonia (compra de cargos eclesiásticos) e o nicolaísmo (concubinato ou casamento dos padres). Na sua luta por reformar a cristandade latina e consolidar a supremacia papal sobre os poderes temporais, envolveu-se na questão das investiduras com Henrique IV – Imperador do Sacro Império. Embora tenha vencido moralmente Henrique IV, atraiu muitos inimigos na aristocracia romana e teve de fugir de Roma, morrendo no exílio em 1085. O trono papal permaneceu vago por quase três anos.

Analisaremos melhor a crise e as reformas da Igreja do século XI no Tópico 3 desta unidade.

NOTA

ESTUDOS FUTUROS

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TÓPICO 1 | AS TRANSFORMAÇÕES DO SÉCULO XI E AS CRUZADAS

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2.2 A CRISE NA IGREJA NO SÉCULO XI

2.3 A ECONOMIA EUROPEIA NO SÉCULO XI

O período por volta do ano 1000, como já vimos, marcou uma transformação econômica e social em boa parte da Europa ocidental. O fim das invasões e o desenvolvimento de tecnologias agrícolas mais eficientes permitiram uma melhoria da produtividade e um consequente aumento populacional. Os europeus do século XI desfrutavam, em geral, de condições de vida muito mais favoráveis do que seus ancestrais de duzentos anos antes.

Mas essa prosperidade continha, em si mesma, uma armadilha perigosa, que poderia abalar a própria estrutura feudal. A prática de dividir os bens entre todos os herdeiros geraria, a longo prazo, um de dois problemas sérios: ou as terras ficariam pequenas demais para poderem manter uma propriedade digna de um senhor feudal, ou as leis de sucessão deveriam ser alteradas para não mais dividirem-se os feudos, o que também geraria senhores sem terra. No século XI, esse dilema estava próximo de ser enfrentado.

2.4 O CONCÍLIO DE CLERMONT

Foi neste contexto de amplo processo expansionista da Europa Latina, que o Papa Urbano II, no concílio de Clermont em 1095, convocou os cavaleiros cristãos – que já estavam em movimento - para libertar a Terra Santa do domínio islâmico. Foi somente a partir deste momento que mundanas expedições militares e de conquistas de terras ganharam a aura de beatissima penitentia. Portanto, se a luta específica pela Terra Santa foi, sem dúvida, orientação da Igreja Romana, as Cruzadas – enquanto amplo movimento de expansão – não podem ser entendidas sem levarmos em consideração a pressão do excesso social de população na Europa Ocidental que analisamos neste tópico.

3 AS MOTIVAÇÕES PARA AS CRUZADAS

Além deste excesso social de população, outras motivações levaram os cristãos à Palestina para combater os muçulmanos.

3.1 MOTIVAÇÕES ECONÔMICAS

Como já vimos anteriormente, as regalias especiais do primogênito em matéria de herança (Lei da Primogenitura), deixavam os filhos mais moços dos senhores feudais no desamparo. Mesmo com a expansão interna e externa da sociedade, então em curso, não era nada fácil obter novos feudos ou conseguir altos cargos eclesiásticos – vendidos a custo por demais elevado para o empobrecido clã paterno. Esta multidão de nobres, desprovidos de fortuna, tendia a constituir-se numa súcia de desordeiros atentos a qualquer oportunidade de conquistar propriedades alheias. Não por acaso, ficaram na história da primeira cruzada nomes como Gautier Sans-Avoir (Gautier sem posses) e Walter Habenichts (Walter

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UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

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3.2 MOTIVAÇÕES RELIGIOSAS

Uma das principais características da religiosidade medieval era a de fazer peregrinações, principalmente aos lugares em que – pela tradição – acreditava-se que estivesse depositada alguma relíquia de santos e mártires da Igreja. Logicamente, a Palestina estava entre esses locais. As peregrinações iniciaram-se no século IV, mas se intensificaram no século XI. Em 1065, o Bispo de Bamberg conduziu aproximadamente 7 mil devotos bávaros até a Palestina, a fim de visitarem os lugares santos de Jerusalém e seus arredores.

Porém, a situação no Oriente Médio não era nada favorável aos cristãos no século XI. Em 1071, os turcos seljúcidas derrotaram o exército bizantino na batalha de Manzikert e conquistaram parte considerável do império. Dois anos depois, conquistaram a Palestina e, de acordo com as queixas dos cristãos, passaram a atacar os peregrinos e a dificultar a vida dos cristãos na região.

que nada tem). Eis porque, humilhados com esses problemas, estes nobres sem terra da Europa estavam dispostos a responder o apelo do Papa Urbano II.

3.3 MOTIVAÇÕES POLÍTICAS

Quando assumiu o trono, em 1088, Urbano II afirmou-se como fiel seguidor das ideias de seu antecessor: “tudo o que ele rejeitava, eu o rejeito, o que ele condenava, eu o condeno, o que ele amava, eu o abraço, o que ele considerava como verdadeiro, eu o confirmo e aprovo”. Contudo, o triste fim de Gregório VII deve ter alertado Urbano II para o perigo que significava, ante as intenções de supremacia do papado, a belicosa aristocracia europeia. Neste sentido, uma Sacra Bellum(“Guerra Santa”) contra os infiéis seria uma excelente oportunidade de concretizar a união de toda nobreza europeia, desviando sua ardente belicosidade de seus planos de supremacia. Em seu apelo à Primeira Cruzada, Urbano II prometia que “a todos aqueles que partirem para as Cruzadas e perecerem no caminho, seja por terra, seja por mar, ou que perderem a vida combatendo os pagãos, será concedida a remissão de seus pecados” (apud CINEECO, 2005, p. 190). Era a versão cristã da Jihad islâmica.

Com o objetivo de motivar os nobres europeus a se lançarem na temerária aventura de conquistar a Terra Santa, o Papa Urbano II proferiu as seguintes palavras no Concílio de Clermont:

Já que a terra que vós habitais, fechada de todos os lados pelo mar e circundada pelos picos das montanhas, é demasiadamente pequena para a vossa grande população e como a sua riqueza também não é abundante, uma vez que ela fornece apenas o alimento suficiente para seus cultivadores [...]. Entrai no caminho do Santo Sepulcro; arrebatai a terra da raça maldita e submetei-a a vós.

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TÓPICO 1 | AS TRANSFORMAÇÕES DO SÉCULO XI E AS CRUZADAS

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3.2 MOTIVAÇÕES RELIGIOSAS

3.3 MOTIVAÇÕES POLÍTICAS

Essa terra em que, como diz a escritura, ‘jorra leite e mel’, foi dada por Deus aos filhos de Israel. Jerusalém é o coração do Mundo; a terra é, mais do que todas, frutífera como um novo paraíso de prazeres (apud ESPINOSA, 1981, p. 17).

Quando olhamos um mapa, pode nos parecer ridículo ou até mesmo cínico o papa convocar os guerreiros europeus, que não tinham terras em seu continente de origem, para lutarem pela Palestina, que é semiárida e minúscula na comparação com a Europa. As terras lá seriam escassas e não resolveriam a pressão feudal. Isso pode nos fazer desconfiar de oportunismo e de manipulação, mas será que não podemos também considerar outra possibilidade? Não havia mapas precisos no século XI, e era bem possível que houvesse a ideia de que a “Terra Santa”, justamente por ser santa, fosse vastíssima e muito fértil.

4 AS CRUZADAS

Para os padrões da época, o Concílio de Clermont-Ferrand foi monumental: além dos nobres, 14 arcebispos, 200 bispos, 400 abades e uma multidão de fiéis. Empregando todos os requintes da eloquência para despertar a fúria e a cobiça dos seus ouvintes, Urbano II salientou particularmente as “horríveis atrocidades” que, segundo ele declarava, os turcos tinham cometido contra os cristãos. Ao terminar seu discurso, todos os presentes, numa frenética exaltação começaram a gritar: “Deus vult!” (Deus o quer!), ajoelhando-se para prestar o juramento do cruzado.

As Cruzadas são tradicionalmente classificadas da seguinte forma:

● Primeira Cruzada (1095-1101). Conclamada no Concílio de Clerment-Ferrand, pelo Papa Urbano II, em 1095. Foi liderada por Godofredo de Bulhões, Raimundo de Toulouse, Roberto de Flandres e Hugo de Vermandois, foi a chamada Cruzada Senhorial. Depois de três anos de lutas e sofrimentos, a Cruzada conseguiu tomar Jerusalém. Criou-se então o Reino Latino de Jerusalém, sob comando de Godofredo de Bulhões, que não aceitou o título de Rei, substituindo-o pelo de Defensor do Santo Sepulcro.

IMPORTANTE

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UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

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FIGURA 43 - KRAK DES CHEVALIERS, CASTELO CONSTRUÍDO PELOS CRUZADOS NA SÍRIA

FONTE: Disponível em: <http://www.doinitonline.com/images/krack.jpg>. Acesso em 2 nov. 2012.

● Segunda Cruzada (1145-1147). Tropas francesas comandadas por Luís VII e alemãs comandadas por Conrado III partiram em apoio ao Reino latino de Jerusalém. Os dois exércitos lutaram em separado e foram facilmente derrotados pelos turcos na Ásia Menor.

● Terceira Cruzada (1188-1192). Os muçulmanos, sob o comando de Saladino, sultão do Egito, tinham-se apoderado de Jerusalém (1187). A chamada Cruzada dos Reis foi comandada por Felipe Augusto (rei Felipe II da França), Frederico Barba-Ruiva (imperador alemão do Sacro-Império Romano Germânico) e Ricardo Coração de Leão (rei da Inglaterra). O Rei alemão morreu afogado, antes de chegar à Síria, Felipe Augusto regressou à França e Ricardo I “Coração de Leão”, sozinho, não conseguiu retomar Jerusalém. Após obter de Saladino o livre acesso dos peregrinos cristãos aos Lugares Santos, Ricardo também retornou à Inglaterra.

● Quarta Cruzada (1202-1204). Instigada pelos comerciantes da cidade de Veneza, os exércitos de nobres franceses por eles transportados atacaram Constantinopla. Saquearam a Capital do Império Bizantino e fundaram o Império Latino de Constantinopla (1204-1261), sob liderança de Balduíno de Flandres. A conquista custaria muito caro ao Império do Oriente: após a restauração bizantina, o Império recuperou-se apenas parcialmente e não conseguiu mais evitar a ascensão econômica e a concorrência das cidades marítimas italianas (Gênova e Veneza), nem o avanço muçulmano que culminaria na conquista de Constantinopla pelos turcos em 1453.

● Quinta Cruzada (1217-1221). Comandada por André II de Hungria e João de Briena contra o Egito. Conquistou a cidadela de Damieta, mas o resultado estratégico de tal feito foi praticamente nulo.

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TÓPICO 1 | AS TRANSFORMAÇÕES DO SÉCULO XI E AS CRUZADAS

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FIGURA 43 - KRAK DES CHEVALIERS, CASTELO CONSTRUÍDO PELOS CRUZADOS NA SÍRIA ● Sexta Cruzada (1228-1244). Dirigida por Frederico II de Hohenstauffen, que se achava excomungado. Em lugar de atacar os muçulmanos, negociou com eles. Embora tenha obtido algumas concessões, estas não foram duradouras.

● Sétima Cruzada (1248-1254). Liderada por São Luís (rei Luís XI da França), tinha por objetivo o Egito. Mas o rei e seus soldados foram feitos prisioneiros, tendo de pagar enorme resgate, a fim de obterem a liberdade.

● Oitava Cruzada (1270). Também liderada por São Luís. Durante o cerco a Túnis, Luís morreu vitimado pela peste. Esta foi a última cruzada.

4.1 OUTRAS CRUZADAS

Além destas oito cruzadas “oficiais”, também houve pelo menos duas outras dignas de menção, inclusive pelo fim melancólico que tiveram.

A “Cruzada Popular” dirigida por Pedro, o Eremita, e o cavaleiro Gauthier-Sans-Avoir, teve lamentável fim. Nela, uma caótica multidão de aproximadamente 50 mil pessoas – na maioria pobres camponeses: homens, mulheres, velhos e crianças – sem plano nem organização, conseguiram chegar a Constantinopla em agosto de 1096 – saqueando pelo caminho campos, aldeias e cidades para poderem se alimentar. O Imperador Bizantino Aleixo mandou-lhes emissários tentando dissuadi-los, com o argumento de que seriam dizimados pela força militar dos turcos seljúcidas. Mas ao verificar que os peregrinos começaram a depredar a própria Bizâncio, o Imperador ordenou que os transladassem para as costas da Ásia Menor, onde foram massacrados.

Houve ainda a “Cruzada das Crianças”, em 1212. Nela tomaram parte um variado e numeroso grupo proveniente da Alemanha e da França, arregimentado por um jovem pastor de nome Stephen de Cloyes. Na esperança de que o mar se abrisse para sua passagem, chegaram à Cidade de Genova e Marselha onde foram vendidos como escravos.

4.2 O FIM DAS CRUZADAS

Antes do fim do século XIII, estavam extintos todos os pequenos estados que os cruzados haviam fundado no Oriente Próximo. O Reino Latino de Jerusalém durou menos de um século (1099-1187). A razão deste fracasso deve-se a diversos fatores. As expedições eram geralmente muito mal organizadas, raramente tinham comando único e os comandantes rivais acabavam brigando entre si. Os exércitos, mesmo quando vitoriosos, achavam-se sempre cercados por enorme população estranha e hostil, o que aumentava a dificuldade em conservar os territórios conquistados. Além disso, à medida que, com o suceder das expedições, ficava cada vez mais claro o quão difícil era a conquista e manutenção de terras na Palestina, mais crescia o interesse comercial das cidades italianas em disputar o

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controle de Constantinopla e seu rico, mas frágil, Império. Nas últimas, ardorosas e desesperadas expedições, mais resistência encontraram não só dos muçulmanos, mas também de cristãos ortodoxos desiludidos com a truculência dos latinos.

Caro(a) acadêmico(a)! Você deve ter notado que as cruzadas tiveram múltiplas motivações e implicações e que elas, sendo algo inteiramente inédito, marcam uma ruptura com o passado feudal. Nos próximos tópicos, você estudará o mundo novo que começou a se instaurar na Europa a partir deste movimento.

4.3 AS CRUZADAS VISTAS PELOS ÁRABES

As Cruzadas costumam ser louvadas no Ocidente, especialmente a partir do século XIX, como um dos momentos fundantes da civilização ocidental, não apenas pelas consequências políticas e econômicas que trouxeram ao continente, mas nos discursos mais beligerantes, como o momento de triunfo militar dos europeus sobre os “infiéis”. O presidente dos EUA George W. Bush, ao dar início à sua “Guerra ao Terror” após os atentados de 11 de setembro de 2001, referiu-se à ofensiva (e foi muito criticado por isso) sobre o Oriente Médio como uma “Cruzada”.

Por mais que possamos, hoje, estabelecer motivações internas europeias - ou mesmo externas, como o tratamento dado pelos turcos aos peregrinos - para as Cruzadas, é certo que o ataque cristão às regiões da Palestina foi completamente inesperado. Essa foi, aliás, uma das razões de seu sucesso inicial: valendo-se do elemento surpresa, os cristãos conseguiram avançar rapidamente e com muito vigor.

No entanto, os relatos feitos pelos muçulmanos sobre as Cruzadas são assustadores: notícias de massacres sem precedentes, violações e muita crueldade eram comuns, e assustaram uma população que não tinha a menor ideia do que motivava esse tipo de agressão gratuita.

O escritor libanês Amin Maalouf nos traz um retrato vivo desses ataques a partir de uma biografia fictícia, mas baseada em histórias reais, em: “As Cruzadas vistas pelos árabes”. A seguir, um trecho do Prólogo da obra:

ESTUDOS FUTUROS

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TÓPICO 1 | AS TRANSFORMAÇÕES DO SÉCULO XI E AS CRUZADAS

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Foi, de fato, na sexta-feira 22 do tempo de Chaaban, do ano de 492 da Hégira, que os franj* se apossaram da Cidade Santa, após um sítio de quarenta dias. Os exilados ainda tremem cada vez que falam nisso. Seu olhar se esfria, como se eles ainda tivessem diante dos olhos aqueles guerreiros louros, protegidos de armaduras, que espalham pelas ruas o sabre cortante, desembainhado, degolando homens, mulheres e crianças, pilhando as casas, saqueando as mesquitas.

Dois dias depois de cessada a chacina não havia mais um só muçulmano do lado de dentro das cidades. Alguns se aproveitaram da confusão para fugir, pelas portas que os invasores haviam arrombado. Outros jaziam, aos milhares, em poças de sangue na soleira de suas casas ou nas proximidades das mesquitas. Entre eles, um grande número de imãs, ulemás e ascetas sufis que haviam deixado sua terra para viver um retiro piedoso, nesses santos lugares.

Os últimos sobreviventes forçados a cumprir a pior das tarefas: transportar os cadáveres dos seus, amontoando-os, sem sepultura, nos terrenos baldios para em seguida queimá-los. Os sobreviventes, por sua vez, deveriam proteger-se para não serem massacrados ou vendidos como escravos.

O destino dos judeus de Jerusalém foi igualmente atroz. Durante as primeiras horas da batalha, vários deles participaram da defesa de seu bairro, a Judiaria, situada no norte da cidade. Mas, quando a parte da muralha que delimitava suas casas desmoronou, os judeus se apavoraram, vendo que os louros cavaleiros começavam a invadir as ruas da cidade. A comunidade inteira, reproduzindo um gesto ancestral, reuniu-se na sinagoga principal para rezar. Os franj então bloquearam todos os acessos. Depois, empilhando feixes de lenha em torno, atearam fogo. Os que tentavam sair eram mortos nos becos vizinhos, os outros, queimados vivos.

FONTE: Maalouf (1988, p. 12)

SUGESTÃO DE LEITURA!

Para visões diferentes sobre as Cruzadas, do ponto de vista das maiores vítimas, recomendamos dois livros:● FALBEL, Nachman. Kidush Hashem: Crônicas hebraicas sobre as Cruzadas. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial de São Paulo, 2001.● MAALOUF, Amin. As Cruzadas vistas pelos árabes. São Paulo: Brasiliense, 1988.

Para que não reste nenhuma dúvida de que o termo Cruzada deve ser abolido do seu vocabulário quando se referir a uma ofensiva militar e/ou religiosa, transcrevemos aqui outro trecho da obra de Maalouf, que descreve atitudes ainda mais cruéis e truculentas dos cruzados sobre as populações locais.

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UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

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Prezado(a) acadêmico(a), as imagens descritas no último parágrafo do trecho a seguir são muito fortes, e podem ferir algumas sensibilidades. Use o seu discernimento para avaliar se é adequado ler esse trecho. Lembre-se, porém, de que a História está repleta de passagens como essa...

OS CANIBAIS DE MAARA

“Eu não sei se o domicílio onde nasci se trata de um pasto de bestas selvagens ou de minha casa!”

Esse grito de aflição de um poeta anônimo de Maara não é um simples recurso retórico. Temos, infelizmente, que tomar suas palavras ao pé da letra e perguntar-nos com ele: o que aconteceu de tão monstruoso na cidade síria de Maara nos finais do ano de 1098?

Até a chegada dos franj, os habitantes viviam pacificamente no abrigo de sua muralha circular. Seus vinhedos, bem como seus campos de oliveiras e pés de figos, forneciam-lhes uma modesta prosperidade. Quanto aos negócios de sua cidade, eram geridos por honrados notáveis sem ambição desmedida, sob a soberania nominal de Redwan, de Alepo. O orgulho de Maara era ser berço de uma das maiores figuras da literatura árabe, Abul-Ala al-Maari, morto em 1057.

Esse poeta cego, livre pensador, ousara atacar os costumes de sua época, sem se preocupar com as proibições estabelecidas. Era preciso audácia para escrever:

“Os habitantes da terra dividem-se em dois grupos, Os que têm cérebro, mas não tem religião,

E aqueles que têm religião, mas não têm cérebro”.

Quarenta anos após sua morte, um fanatismo vindo de longe viria, aparentemente, dar razão ao poeta de Maara, tanto à sua irreligião, quanto ao seu pessimismo legendário:

“O destino nos destrói como se fôssemos de vidro, E nossos cacos jamais se soldarão.”

Sua cidade será, com efeito, reduzida a um amontoado de ruínas e essa desconfiança, que o poeta expressa repetidas vezes, a respeito de seus semelhantes, encontrará ali sua cruel ilustração.

ATENCAO

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Nos primeiros meses de 1098, os habitantes de Maara acompanharam com preocupação a batalha de Antioquia que se desenrolava a três dias de caminhada a noroeste de sua cidade. Após sua vitória, os franj vieram saquear alguns vilarejos vizinhos e Maara fora poupada, mas algumas famílias preferiram trocá-la por lugares mais seguros como Alepo, Homs ou Hama.

Seus temores foram justificados quando, perto do final de novembro, milhares de guerreiros francos cercaram a cidade. Se alguns cidadãos ainda conseguem safar-se, a maioria não tem escapatória. Maara não possui exército, tem apenas uma simples milícia urbana à qual se juntam rapidamente centenas de jovens sem experiência militar. Durante duas semanas, eles resistem corajosamente aos temíveis cavaleiros, chegando a jogar sobre os sitiantes, de cima da muralha, colmeias cheias de abelhas.

Ao vê-los tão tenazes, contará Ibn-al-Athir, os franj construíram uma torre de madeira que atingia a altura da muralha. Alguns muçulmanos, tomados de pavor e desmoralizados, pensaram que poderiam se defender melhor protegendo-se nos edifícios mais altos da cidade. Deixaram então os muros, desguarnecendo assim seus postos. Outros seguiram seu exemplo e um outro ponto da muralha foi abandonado. Logo, a muralha toda ficou sem defensores. Os franj subiram por meio de escadas, e quando os muçulmanos os viram no topo da muralha, perderam toda sua coragem.

Chega a noite de 11 de dezembro. Está muito escuro e os franj ainda não ousam penetrar na cidade. Os notáveis de Maara entram em contato com Bohémod, o novo senhor de Antioquia, que se encontra à frente dos atacantes. O chefe franco promete garantias, se cessarem o combate, deixando para trás algumas construções. Agarrando-se desesperadamente à sua palavra, as famílias reúnem-se nas casas e porões da cidade e, a noite toda, esperam tremendo.

Na alvorada, chegam os franj. É uma carnificina. Durante três dias, eles matam mais de cem mil pessoas pela espada e fazem muitos prisioneiros. Os números de Ibn-al-Athir são evidentemente fantasiosos, pois a população da cidade, na véspera de sua queda, era provavelmente inferior a dez mil habitantes. Mas o horror está menos presente no número de vítimas do que no destino quase inimaginável que lhes foi reservado.

“Em Maara, os nossos faziam ferver os pagãos adultos em caldeira, fincavam as crianças em espetos e as devoravam grelhadas.” Essa confissão do cronista franco Raoul de Caen não foi lida pelos habitantes das localidades próximas a Maara, mas até o fim de suas vidas eles se lembrarão do que viram e ouviram. Pois, a lembrança dessas atrocidades propagadas pelos poetas locais, assim como pela tradição oral, fixará nos espíritos uma imagem dos franj difícil de ser apagada. [...] (MAALOUF, 1988, p. 45-47).

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UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

200

Por causa de episódios como esse, as Cruzadas aparecem, aos olhos dos muçulmanos, como um movimento de selvageria injustificada contra sua religião e seus povos. Mas é importante que se diga que, durante muito tempo, as Cruzadas não eram parte do imaginário muçulmano; essa visão tem sido incentivada atualmente por grupos políticos específicos, que desejam incitar os muçulmanos ao confronto direto com o Ocidente; mas, declarações como a de Bush (2001) e do Papa Bento XVI (2006) não ajudam em nada a melhorar a imagem ocidental.

4.4 AS PERSEGUIÇÕES AOS JUDEUS NAS CRUZADAS

Como nos relata Amin Maalouf no trecho do Prólogo citado há pouco, também os judeus sofreram com as hordas de cruzados. Mas a perseguição aos judeus não se iniciou ali: desde o momento em que saíram da Europa, os cruzados já atacavam os judeus por onde passassem.

Salomão Bar Sansão foi um dos cronistas que narrou o ocorrido, desse ponto de vista:

Naquele ano, caiu o Pessach na quinta-feira do mês de Yar [10 de abril] e na sexta-feira, véspera de sábado. E no oitavo dia de Yar [3 de maio], no dia de sábado, levantaram-se os inimigos contra a comunidade de Spira e mataram onze pessoas santas que haviam santificado o nome de seu Criador no sábado santo e não quiseram batizar-se.

Lá se encontrava uma mulher importante e piedosa e imolou a si mesma em seu Santo Nome. Ela foi a primeira dos que se sacrificaram e dos que foram sacrificados em todas as comunidades e os restantes foram salvos pelo bispo sem serem convertidos, como o descrevemos acima [é a fonte inicial que está faltando].

E em 23 de Yar [18 de maio], levantaram-se contra a comunidade de Worms e ela dividiu-se em duas partes. Um grupo permaneceu em suas casas e o outro foi refugiar-se no palácio do bispo. Porém, levantaram-se os lobos das estepes (Jr. 5:6) para atacar aqueles que ficaram em suas casas e assaltaram: homens, mulheres e crianças, jovens e velhos, derrubando os degraus que se encontravam defronte às casas, destruindo suas casas, pilhando e saqueando. Tomaram a Torá, jogaram-na no barro do chão e queimaram-na, e atacaram Israel como animais esfaimados (Is. 9:11). (FALBEL, 2001, p. 75).

NOTA

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201

4.4 AS PERSEGUIÇÕES AOS JUDEUS NAS CRUZADAS

Neste tópico você viu que:

● Depois do longo processo de invasões bárbaras (do século III ao século IX), as tensões do sistema feudal se estabilizaram.

● Os níveis de violência diminuíram, a pacificação contribuiu para a diminuição da circulação de doenças e epidemias e a população começou a crescer rapidamente a partir do ano 1000.

● O aumento da população exerceu pressão sobre a estrutura fundiária e a excessiva fragmentação das propriedades fez com que os clãs mais empobrecidos adotassem o costume da primogenitura.

● A paulatina adoção da primogenitura lançou no desamparo os filhos segundogênitos de muitos clãs que, junto com o excesso de população servil, promoveram uma expansão interna da sociedade, em direção ao interior da Europa.

● Este processo de expansão criou novas necessidades que revolucionaram os métodos de trabalho e aumentaram a produtividade da economia medieval, sustentando, assim, o crescimento demográfico.

Quanto ao movimento conhecido como Cruzadas (1095-1291), você também viu que:

● Resultou da carência de terras por parte da nobreza feudal que, num amplo movimento militar, expandiu-se em todas as direções.

● A partir de 1095, este processo expansionista ganhou o aval da Igreja, que orientou o movimento para a Palestina, com o objetivo de “libertar” os lugares santos do cristianismo do jugo islâmico.

● Apesar da ampla aceitação popular, o papado tinha interesses políticos no movimento.

● A partir da quarta cruzada (1202-1204), o interesse comercial passou a ser determinante ao destino do movimento.

RESUMO DO TÓPICO 1

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202

● Apesar dos êxitos passageiros, enquanto expedições de conquista de terras na Palestina, as cruzadas fracassaram; no entanto, foram importantíssimas para abrir, ao ocidente latino, as rotas do comércio oriental.

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1 Quais foram as origens sociais e as motivações econômicas e religiosas das Cruzadas?

2 Por que as Cruzadas podem ser consideradas um momento de ruptura que fez nascer um novo mundo para a cristandade ocidental?

3 Após ler o texto “Os canibais de Maara”, responda: Quem eram os franj? De que forma eles foram representados pelos habitantes de Maara?

AUTOATIVIDADE

Assista ao vídeo deresolução da questão 2

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204

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205

TÓPICO 2

AS CONQUISTAS MONGÓLICAS

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Prezado(a) acadêmico(a), iniciamos agora os estudos sobre o período final da Idade Média. Nesta unidade estudaremos o período do século XIII em diante, uma época fundamental para compreendermos como o mundo chegou a ser o que é hoje.

Alguns estudiosos, como Norbert Elias, consideram que o século XIII já contém características do que chamamos hoje modernidade. Esse é um conceito e uma discussão que deixaremos para outra oportunidade. O que importa, agora, é entendermos que o período em destaque foi de profundas transformações sociais, políticas e econômicas. A sociedade de 1400 pareceria irreconhecível a alguém que tivesse vivido no ano 1000.

Neste primeiro tópico estudaremos um assunto pouco explorado, mas que é fundamental para compreendermos a história da Europa e do mundo como um todo: uma parte da História da Ásia, especialmente as conquistas mongólicas e suas consequências.

SUGESTÃO DE LEITURAPrezado(a) acadêmico(a), este é o tópico em que discutiremos com mais intensidade uma história global, fugindo ao esquematismo da história medieval europeia fechada em si mesma. Há um livro muito interessante que observa a história dessa forma:

● WOLFF, Eric. Europa e os povos sem história. São Paulo: EDUSP, 2009.Se você souber inglês, há uma ótima coleção ainda não traduzida, que foge da tradicional visão da História “a partir de cá”, e percebe que nada do que existe hoje era uma “necessidade histórica”:● TIGNOR, Robert (ed.) Worlds together, worlds apart: A History of the Modern World (1300 to the Present). New York: Norton, 2002.

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UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

2 A ÁSIA CENTRAL ANTES DE GENGIS KHAN

O continente asiático foi o palco dos maiores impérios que a história humana já testemunhou. O maior de todos foi o Império Mongólico, mas algumas dinastias chinesas dominaram regiões quase tão vastas e muito mais populosas. Os impérios chineses tinham, além de uma grande extensão territorial sob seu domínio, uma população extremamente numerosa e culturalmente homogênea.

2.1 A CHINA DA DINASTIA TANG

Por volta do ano 1000, toda a região que hoje corresponde à China e algumas das regiões adjacentes estavam politicamente unificadas sob a dinastia Tang. Nessa época, a China já estava unida havia muitos séculos e era um país muito estável e homogêneo etnicamente.

A enorme população, praticamente toda da mesma etnia (Han) e falante de uma forma antiga do mandarim, vivia pacificamente, e a atividade comercial e produtiva era intensa. Algumas das inovações surgidas no período Tang incluem a invenção da pólvora, da xilogravura (entalhe em madeira de imagens ou texto) e o aperfeiçoamento da porcelana. A China Tang dominava o comércio marítimo no Pacífico e controlava a riquíssima rota da seda. Alguns estudiosos consideram o período Tang como a “Era de Ouro” da civilização chinesa.

No século IX, o império chinês da dinastia Tang tinha mais de 80 milhões de habitantes!

NOTA

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TÓPICO 2 | AS CONQUISTAS MONGÓLICAS

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2 A ÁSIA CENTRAL ANTES DE GENGIS KHAN

2.1 A CHINA DA DINASTIA TANG

FIGURA 44 - O IMPÉRIO TANG

FONTE: Disponível em: <http://totallyhistory.com/wp-content/uploads/2011/11/Map-of-Tang-Dynasty-in-663-AD.jpg>. Acesso em: 20 nov. 2012.

Explicação do mapa acima.Em tom mais escuro, o Império Tang em sua maior extensão (ca. 663 d.C.). As regiões mais ao norte do império (Mongólia), nordeste (Manchúria) e oeste (atual Uzbequistão e regiões próximas) fariam parte, nos séculos seguintes, do Império Mongólico. A sudoeste, mais claro, o Império Tibetano. No detalhe embaixo, o Império Tang no século IX. Pela região mais estreita passava a rota da seda.

A partir do século X, com a queda da dinastia Tang, a região ficou dividida em três reinos distintos: o reino Song, da fronteira sul chinesa até Beijing; o reino Xia, ao sul da Mongólia (na região chamada Mongólia Interior) e o reino Liao, ao norte de Beijing, ocupando regiões da Manchúria e Mongólia. Ao sul, o Império Tibetano em declínio e o subcontinente indiano politicamente fragmentado não ofereciam risco aos governantes e à população. A Oeste, diversas tribos nômades de etnia túrquica e mongólica espalhavam-se e representavam perigo constante à unidade dos reinos, mesmo com a barreira da Grande Muralha.

A antiga dinastia Tang, especialmente, buscava conter o ímpeto agressivo mongol, incitando as tribos a lutarem entre si. Os governantes Liao e seus sucessores Jin, apesar de terem origem mongólica, faziam o mesmo.

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UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

2.2 A ROTA DA SEDA

A rota da seda desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento de impérios na Ásia, Europa e África. Ligando a China, por diversos caminhos diferentes, à Europa, a rota proporcionou um enorme intercâmbio econômico, cultural e microbiano entre essas vastas regiões.

Como você pode imaginar, uma rota comercial de tamanha extensão tinha valor inestimável. Era muito difícil e perigoso viajar por longas distâncias, e por isso a grande maioria das pessoas não conhecia nada que não tivesse surgido no local onde viviam. Os comerciantes, por isso, desempenhavam um papel fundamental de difusão cultural, ao trazer novos produtos, novas línguas, novas doenças e novas ideias.

FIGURA 45 - A ROTA DA SEDA NO SÉCULO I D.C., MOSTRANDO OS CAMINHOS MARÍTIMOS E TERRESTRES

FONTE: Disponível em: <http://www.portogente.com.br/texto.php?cod=50245>. Acesso em: 20 dez. 2012.

O comércio da seda iniciou-se por volta de 200 a.C., mas as relações comerciais entre as regiões abrangidas pela rota são ainda mais antigas. A rota foi interrompida apenas por breves períodos desde seu estabelecimento, geralmente por causa de guerras de conquista. Mas os conquistadores logo perceberam a grande vantagem de manterem a rota em funcionamento.

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TÓPICO 2 | AS CONQUISTAS MONGÓLICAS

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FIGURA 46- AS LARVAS DA MARIPOSA BOMBYX MORI (À ESQUERDA) ALIMENTAM-SE DE FOLHAS DE AMOREIRA E, QUANDO SE ENCASULAM, PRODUZEM O FINÍSSIMO TECIDO CONHECIDO COMO SEDA (À DIREITA). A DIFICULDADE DE SUA PRODUÇÃO E A ALTA QUALIDADE FAZEM DA SEDA UM PRODUTO MUITO VALORIZADO. HÁ EVIDÊNCIAS DE QUE O BICHO-DA-SEDA SEJA CRIADO PARA A PRODUÇÃO DE SEDA HÁ MAIS DE CINCO MIL ANOS

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/c/cc/Bombyx_mori_001.JPG>; <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/df/Bombyx_mori_Cocon_02.jpg>. Acesso em: 23 nov. 2012.

Além da seda, eram transportados pela rota: tapetes persas, armas, tecidos, pedras preciosas, prata, especiarias do Oriente (canela, cravo, noz moscada, pimenta), produtos trazidos do sul do Saara pelas caravanas cameleiras etc. Em suma, tudo o que tivesse valor comercial era levado de uma ponta à outra do mundo conhecido. Como você pode perceber, falamos aqui de um verdadeiro comércio global, em pleno século XIII!

Prezado(a) acadêmico(a), você se lembra das primeiras aulas de História do Brasil, em que aprendemos que os portugueses buscavam especiarias na Índia? Agora você já sabe como eles sabiam da existência das especiarias antes de haverem chegado lá, e por que era tão interessante para eles procurarem um caminho para as Índias. Eles buscavam, essencialmente, controlar o comércio que antes era feito pela rota da seda!

As enormes distâncias e os perigos das viagens forçavam os comerciantes a recorrerem a redes de contatos, e fazerem acordos com os chefes locais mais poderosos. Em troca da segurança para a travessia da rota, os comerciantes pagavam tributos e pedágios, ou davam aos chefes locais a prioridade no comércio. Mas o mais vantajoso, para os comerciantes, era a existência de impérios vastos e centralizados, dentro dos quais fosse possível transitar sem precisar pagar tributos a dezenas ou centenas de chefes locais. Em parte por isso, a rota da seda desempenhou um papel muito importante na formação dos vastos impérios que existiram na Ásia.

NOTA

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UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

A maior parte dos impérios do Oriente Médio desenvolveu-se ao longo dessa rota, e foi por causa dela que eles puderam prosperar. Muitos dos povos que viviam no caminho da rota da seda, como os de origem persa, túrquica e mongólica, eram originalmente grupos tribais nômades que, em função do contato com os comerciantes, tornavam-se salteadores ou mercenários.

Essas habilidades possibilitaram a vários desses povos, eventualmente, a conquista de seus próprios domínios e a formação de impérios. É o caso dos impérios de origem persa, do mundo islâmico, do império cazar (ao norte do Cáucaso) e dos canatos túrquicos e mongólicos.

Canato é o nome que se dá ao território administrado por um khan – líder político e militar dos povos turcos, mongóis ou de algumas regiões da Ásia Central. Também se escreve às vezes khanato ou canado (especialmente em Portugal).

SUGESTÃO DE SITEPrezado(a) acadêmico(a), uma das melhores fontes de pesquisa de mapas históricos disponíveis hoje na internet é a extensa coleção de mapas produzidos e divulgados por Thomas Lessmann, em seu website:<http://www.worldhistorymaps.info/>.

3 GENGIS KHAN E AS CONQUISTAS MONGÓLICAS

Os mongóis ocupam as estepes e desertos da Ásia Central desde tempos imemoriais e durante séculos mantiveram-se frouxamente unidos em torno de líderes tribais. Alguns estudiosos apontam uma proximidade étnica entre mongóis e os povos túrquicos (turcos, uzbeques, cazaques, turcomenos e outros) e, possivelmente, também os hunos, mas essa proximidade é controversa. Sua religião tradicional era animista, mas eles tinham contato com diversas religiões: Cristianismo nestoriano, Zoroastrismo, Budismo, Islamismo, entre outras.

Como você pode ver, ao contrário do que costumamos imaginar, os mongóis não estavam isolados nos confins do mundo nem ignoravam o que acontecia ao seu redor; ao contrário, estavam muito bem inseridos na geopolítica asiática da época. As terras que ocupavam, nas estepes da Mongólia e nos desertos de Gobi e Ordos, eram atravessadas pela rota da seda e percorridas por comerciantes de todas as origens.

NOTA

UNI

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TÓPICO 2 | AS CONQUISTAS MONGÓLICAS

211

A falta de unidade entre as tribos era, como já vimos, incentivada pelas potências regionais. No início do século XIII, a região da Mongólia estava cercada pelo reino Jin, no norte da China, e pelo Canato Kara-Khitan a oeste. Ambos os domínios provinham do antigo reino Liao, e ambos temiam uma possível organização política dos mongóis.

3.1 A EXPANSÃO MONGOL

Em 1206, Gengis Khan fez o que os reinos vizinhos temiam: unificou as tribos mongólicas nômades e deu início à conquista de uma região tão vasta que seus domínios, até hoje, jamais foram superados por nenhum outro império na história. Em menos de um século, seus exércitos espalharam-se por quase toda a Ásia e chegaram à Europa, demonstrando um poder militar impressionante.

FIGURA 47 - GENGIS KHAN, LÍDER MONGOL E CRIADOR DO MAIS EXTENSO IMPÉRIO DA HISTÓRIA

FONTE: Disponível em: <http://lobusdaestepe.files.wordpress.com/2012/04/genghis_khan.jpg?w=500&h=475>. Acesso em: 17 nov. 2012.

Aonde iam, os exércitos mongóis arrasavam os povos que resistissem (geralmente as cidades) com uma violência implacável. Quando derrotados, sempre retornavam para buscar revanche. Eram especialistas não apenas em táticas de guerrilha e intimidação, mas também em sitiar cidades. Estima-se que cerca de 30 milhões de pessoas possam ter morrido vítimas das conquistas mongólicas.

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UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

FIGURA 48 - DOMÍNIOS MONGÓLICOS NO PERÍODO DE MÁXIMA EXPANSÃO (1279)

FONTE: Disponível em: <http://es.wikipedia.org/wiki/Archivo:Mongol_Empireaccuratefinal.png>. Acesso em: 14 mar; 2013.

3.2 SOB DOMÍNIO MONGÓLICO

Após a conquista de uma região, porém, os mongóis costumavam governar com justiça e equidade. Eram indiferentes às crenças dos povos conquistados, e por isso havia plena tolerância religiosa - exceto nos casos em que a religião entrasse em conflito com os interesses militares, como aconteceu com vários grupos muçulmanos. Apesar disso, em todas as suas campanhas militares, a destruição dos locais religiosos era parte das estratégias de intimidação psicológica.

FIGURA 49 - EXEMPLO DE ESCRITA MONGÓLICA, CONFORME FOI ESTABELECIDA DURANTE O REINADO DE GENGIS KHAN. A LEITURA É FEITA DE CIMA PARA BAIXO E DA ESQUERDA PARA A DIREITA

FONTE: Disponível em: <http://ministryoftype.co.uk/images/files/mongolian-bible-2.png>. Acesso em: 18 nov. 2012.

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TÓPICO 2 | AS CONQUISTAS MONGÓLICAS

213

3.2 SOB DOMÍNIO MONGÓLICO

A personalidade e o legado de Gengis Khan são muito controversos, especialmente porque as fontes disponíveis costumam vir dos povos que foram conquistados por seus exércitos. Ao mesmo tempo que foi um conquistador implacável e violento, Gengis Khan elaborou um código de leis unificado, civil e militar, que foi aplicado a todos os seus domínios. Analfabeto, percebeu a importância da educação e encomendou a criação de um alfabeto para a língua mongólica. Seus domínios, que incluíam uma vastíssima diversidade étnica e cultural, previam acesso aos postos mais altos por mérito, não por origem – exceção feita ao título de Khan, exclusivo de seus descendentes.

3.3 A PAX MONGOLICA

As conquistas mongólicas iniciaram-se com o domínio sobre as regiões chinesas mais próximas. Assim que unificou as tribos, Gengis Khan aproveitou-se do temor despertado por sua liderança para investir contra o reino Xia. Após a conquista, desviou seus exércitos para o Ocidente, capturou o canato Kara-Khitan (no atual Cazaquistão) e destruiu o poder dos governantes mamelucos do Irã.

Após sua morte (1227), seus filhos e netos deram continuidade à expansão e conquistaram vastos territórios em terras chinesas, islâmicas e russas (ver mapa). Mas as disputas entre eles levaram à fragmentação do império, que ficou dividido em canatos independentes.

A unidade militar e legal das regiões sob domínio mongólico trouxe grandes benefícios para o comércio. A rota da seda voltou a ser muito lucrativa e as comunicações entre as diversas regiões, fundamentais para a administração de um império desse tamanho, eram eficientes. Pelo código de Gengis Khan, era crime ferir um mensageiro. A unificação política de tantas regiões e o consequente incentivo econômico costumam ser referidos pelos estudiosos como Pax Mongolica.

A Pax Mongolica encerrou-se no final do século XIV, em parte pelas mudanças estruturais nos domínios mongólicos durante o século. As disputas entre os herdeiros de Gengis Khan e a adaptação dos mongóis às condições locais de cada região levaram à criação de canatos independentes. Muitos deles adotaram a religião e a cultura locais, de modo que em poucas décadas não havia nada mais a uni-los, exceto a herança mongólica.

Outro motivo apontado para o fim do período de paz foi a Grande Peste. A peste surgiu em algum lugar do Império Mongol e foi rapidamente transportada para regiões que antes tinham pouca comunicação. A peste foi noticiada na China em 1331 e na Crimeia (no Mar Negro) em 1346, de onde se espalhou rapidamente pela Europa. A peste causou uma reviravolta demográfica e política em toda a Eurásia: enfraqueceu os mongóis e, na Europa, o sistema feudal.

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UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

4 CONSEQUÊNCIAS DAS INVASÕES MONGÓLICAS

Por onde passaram, os mongóis deixaram um legado ambíguo, ao mesmo tempo de destruição e de reconstrução. Se, de um lado, arrasaram várias das terras e das populações conquistadas, por outro a Pax Mongolica possibilitou o florescimento do comércio em uma vasta região. Se, de um lado, Gengis Khan e seus sucessores incentivaram a cultura, de outro a destruição da Grande Biblioteca de Bagdá (1258) trouxe um prejuízo cultural incalculável e é considerada um dos marcos do final da Era de Ouro islâmica.

As transformações causadas pelas conquistas mongólicas podem ser resumidas, para cada região, da seguinte forma:

4.1 NA CHINA

Os mongóis unificaram toda a China e regiões adjacentes (mapa a seguir) sob a dinastia Yuan. Seu fundador foi Kublai Khan, neto de Gengis Khan. Após conquistar o poder (1260), conteve as revoltas dos antigos grupos dominantes e iniciou um período de paz e tolerância religiosa. Kublai era um entusiasta da cultura chinesa e um grande incentivador das artes e da cultura. Durante seu reinado, a China abriu-se para o mundo, favorecida pela rota da seda, e mercadores europeus, como Marco Polo, visitaram o reino, possibilitando o intercâmbio cultural.

Os sucessores de Kublai Khan, porém, consideravam-no demasiadamente adaptado à cultura chinesa e foram mais hostis à cultura local. As tentativas posteriores de isolar-se da cultura e da população chinesa e transformar os mongóis em elite política chinesa levaram a uma série de revoltas que derrubaram a dinastia Yuang em 1368 e deram início à dinastia Ming. Os governantes Ming iniciaram uma política xenofóbica, que manteria a China isolada até o século XVII.

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TÓPICO 2 | AS CONQUISTAS MONGÓLICAS

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4.1 NA CHINA

FIGURA 50 - DINASTIA YUAN, SOB O COMANDO DE KUBLAI KHAN (1294)

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/7d/Yuen_Dynasty_1294.png>. Acesso em: 14 mar. 2013.

4.2 NO MUNDO MUÇULMANO

As regiões persas do Irã, Cazaquistão e Afeganistão (que formavam na época um império chamado Khwarezmia ou Corásmia) foram, logo após a China, as primeiras a serem conquistadas pelos mongóis. Entre 1219 e 1221, os mongóis ocuparam toda a região e criaram o Ilcanato, que se estendia da Anatólia (Turquia) até o atual Afeganistão. O Ilcanato era herdeiro de toda a tradição e cultura persa, e os contatos com a China (o governante do reino, Hulagu Khan, era irmão de Kublai Khan) favoreciam enormemente o comércio de ambos os países.

A conquista da região foi, como era costume entre os mongóis, brutal. A cidade de Bagdá foi sitiada e saqueada em 1258, e a Grande Biblioteca, a maior do mundo na época, foi destruída. O impacto do prejuízo cultural causado por essa destruição foi tão grande que os estudiosos utilizam esse episódio como referência para o final da Era de Ouro islâmica.

Os governantes do Ilcanato inicialmente adotaram uma política de tolerância religiosa que favorecia a presença de cristãos nestorianos e budistas. Isso, na realidade, destoava da realidade da população, quase toda muçulmana. Esse aparente descompasso entre os governantes e a população era visto com interesse pelos reis da Europa Ocidental, que consideravam uma aliança com os mongóis para combaterem o Islã nas regiões da Palestina e, assim, reavivarem as Cruzadas. Mas a aliança nunca se efetivou.

Após a morte de Hulagu Khan, seus herdeiros começaram progressivamente a adotar o modo de vida, a cultura e a religião locais. Com isso, o Islamismo

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UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

manteve-se poderoso em seus domínios anteriores e incorporou uma força militar temível.

No século XIV, Timur (conhecido no Ocidente como Tamerlão) tentou recriar o império de Gengis Khan. Atacou o Império Otomano e envolveu-se em enfrentamentos e negociações com os reinos cristãos, que o consideravam o mais ferrenho adversário muçulmano desde Saladino. Morreu em 1405, durante sua tentativa de invadir a China Ming.

4.3 NA EUROPA

A expansão pelas estepes da Rússia não era a prioridade dos mongóis; muito mais importante era a conquista da China e do Oriente Médio, regiões muito mais ricas. Mesmo assim, os mongóis invadiram as estepes russas e destruíram as grandes cidades da região: Kiev, Moscou, Rostov e outras.

Na região, fundaram o Canato da Horda Dourada, que pressionou os estados do Leste Europeu, especialmente o Principado de Novgorod, e favoreceu o surgimento de outros estados, como o Grão-Ducado de Moscou, ancestral da Rússia czarista e o canato da Crimeia.

Em seguida, os mongóis invadiram a Polônia e os Bálcãs, onde provocaram nova devastação. A combinação de cavalaria leve e ágil com a pólvora trazida da China provou-se devastadora.

FIGURA 51 - O CANATO DA HORDA DOURADA, UMA DAS DIVISÕES DO IMPÉRIO MONGÓLICO, EM 1389

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d5/Golden_Horde_1389.svg>. Acesso em: 17 nov. 2012.

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TÓPICO 2 | AS CONQUISTAS MONGÓLICAS

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Como se pode ver, a presença mongólica teve grande importância para a história dos povos eslavos: está na origem da divisão entre Rússia, Ucrânia e Belarus, e interferiu em toda a organização política da região pelos séculos seguintes.

Indiretamente, também, teve influência na história da Europa Ocidental, não apenas como veículo difusor da Peste Negra, como pelo reativamento das rotas comerciais transcontinentais. Esses dois eventos, como veremos, foram cruciais para a dissolução do feudalismo e para o renascimento comercial europeu. Junte-se a isso o impacto sobre o imaginário europeu das descrições do Oriente, feitas por Marco Polo em seu “Descrição do Mundo”, e estão dadas as condições básicas para a criação do expansionismo mercantil do século XV em diante.

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Neste tópico você viu que:

● A Dinastia Tang, que governou a China entre os séculos VIII e IX, foi uma das mais poderosas da história do país. Nessa época foram desenvolvidas tecnologias como: a pólvora, a xilogravura e a porcelana.

● A rota da seda foi um longo caminho que ia da China até o Mar Mediterrâneo e pelo qual eram transportados todos os tipos de produtos de uma região a outra da Ásia.

● A enorme importância econômica da rota da seda propiciou a formação de diversos impérios ao longo de seus caminhos, em todas as épocas.

● No início do século XIII, as tribos mongólicas do interior da Ásia foram unificadas sob o comando de Gengis Khan.

● Gengis Khan, liderando seu poderoso exército, iniciou um século de conquistas mongólicas, que criaria o mais extenso império jamais surgido na História.

● A expansão mongólica favoreceu o comércio pela rota da seda e trouxe paz para vastas regiões da Ásia. O período ficou conhecido com Pax Mongolica.

● As invasões mongólicas trouxeram enormes consequências políticas para todas as regiões afetadas, desde a China, com a instalação de uma dinastia mongol sob o comando de Kublai Khan, até a Rússia.

● Uma das consequências mais drásticas das conquistas mongólicas foi a invasão do mundo muçulmano, encerrando a Era de Ouro Islâmica.

RESUMO DO TÓPICO 2

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AUTOATIVIDADE

1 Relacione alguns dos impérios que prosperaram ao longo da rota da seda, desde o século I d.C. até o século XV.

2 Alguns estudiosos afirmam que as invasões mongólicas teriam originado ou, pelo menos, acelerado o surgimento da Era Moderna. Que elementos podem ser encontrados para corroborar essa ideia?

Assista ao vídeo deresolução da questão 2

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TÓPICO 3

A IGREJA E A CULTURA NA IDADE MÉDIA

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

As transformações econômicas, sociais e políticas analisadas nos tópicos anteriores nos ajudarão a entender, agora, a grande revolução intelectual que alterou a mentalidade e o espírito do Ocidente e preparou o caminho para o Renascimento.

Como considerar obscura uma época que construiu as catedrais góticas, com sua nova e luminosa arte de vitrais, que reintroduziu os afrescos, que inventou a música polifônica, que transformou a investigação da natureza num caminho para o conhecimento de Deus?

A partir do século XII, as cidades buscaram e conquistaram a autonomia comunal e as cortes concentraram o poder territorial e político, imprimindo um novo padrão de comportamento cortês. A Igreja encontrou, em terras islâmicas e bizantinas, a antiga sabedoria há muito esquecida. Então, a religião pôde libertar-se dos dogmas e construiu uma ética baseada na filosofia. Nas cidades, fundaram-se universidades, nas cortes, produziram-se os primeiros exemplares do que seria mais tarde a moderna literatura ocidental.

Neste tópico procuramos fazer uma análise de como surgiram e quais foram as características mais marcantes deste novo mundo da religião, da cultura, das artes e do pensamento.

Boa leitura!

2 A REFORMA ECLESIÁSTICA DO SÉCULO XI

O período por volta do ano 1000, como já vimos, marcou uma transformação econômica e social em boa parte da Europa Ocidental. O fim das invasões e o desenvolvimento de tecnologias agrícolas mais eficientes permitiram uma melhoria da produtividade e um consequente aumento populacional. Os europeus do século XI desfrutavam, em geral, de condições de vida muito mais favoráveis do que seus ancestrais de duzentos anos antes.

Não era apenas do ponto de vista econômico que as mudanças se faziam sentir. Inquietações e insatisfações com os rumos da Igreja entre os membros do clero levaram a profundas modificações na própria estrutura eclesiástica e na relação da Igreja com os fiéis e os próprios religiosos. A busca por uma

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UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

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espiritualidade mais pura levou muitas pessoas a adotarem uma vida monástica, ou a auxiliarem, com seu sacerdócio, os mais pobres. A religiosidade estava trilhando novos caminhos, e eles seriam decisivos para o futuro da Igreja.

2.1 O QUE SIGNIFICAVAM “REFORMA” E “IGREJA”?

Antes de prosseguirmos, vamos estabelecer rapidamente o que se entenderia, na época, por “reforma da Igreja”. Essa conceituação não será feita por um “vício” de se delimitar todos os conceitos de que se fala (embora seja uma atitude saudável para um historiador), mas porque os próprios sentidos atuais desses dois termos dependem, em certa medida, dessa reforma em especial.

O termo “reforma” se utiliza hoje como referência a qualquer mudança estrutural, embora, supostamente, para melhor. Tem, portanto, um sentido de melhoria. Até o século XI, o termo não existia ou era muito pouco utilizado; foi justamente nesse momento que ele se tornou popular. No entanto, o foco principal dos “reformadores” da Igreja do século XI não era a melhoria: era o retorno ao que eles entendiam como sendo a pureza original do Cristianismo, que os séculos teriam corrompido. “Reforma” era, portanto, um “retorno à forma original”. Foi a partir daí que esse termo ganhou o sentido adicional de “transformação para melhor” que utilizamos hoje.

Do mesmo modo, o termo “Igreja” tinha uma definição bastante ampla, que ainda prevalece na liturgia, mas que se perdeu um pouco no senso comum. “Igreja” era, ao mesmo tempo, o edifício onde se realizavam as missas, os religiosos e os fiéis associados a ela ou toda a comunidade cristã espalhada pelo mundo.

Dessa forma, a “reforma da Igreja” era uma tentativa de recriar a religião católica, com base nos ensinamentos originais do Cristianismo, de modo que isso transformasse o clero, os fiéis e a relação entre ambos.

2.2 A IGREJA NO SÉCULO XI

Mas reformar o quê? Quais eram os problemas que a Igreja do século XI enfrentava e que era tão necessário combater? A principal queixa dentro do alto clero era a interferência exagerada dos leigos nos assuntos eclesiásticos. A interferência mundana era apontada como a causa da simonia, do casamento clerical e da dissipação do patrimônio da Igreja.

Vejamos em detalhes:

● Simonia: significa a compra de cargos eclesiásticos. O termo vem do personagem bíblico Simão Mago, que teria tentado subornar os apóstolos para conseguir seus poderes de cura e de salvação (Atos 8:18-20). Era simonia comprar diretamente os cargos ou usar de influência para consegui-los.

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TÓPICO 3 | A IGREJA E A CULTURA NA BAIXA IDADE MÉDIA

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2.1 O QUE SIGNIFICAVAM “REFORMA” E “IGREJA”?

● Casamento clerical: até o século V, os religiosos, embora pudessem se casar, deveriam viver castos após a ordenação. No período Carolíngio, no entanto, já era impossível controlar. O casamento de religiosos era problemático para a Igreja por dois motivos: por profanar a santidade da vocação e por acarretar a divisão das terras da Igreja entre os descendentes dos padres.

● Patrimônio da Igreja: não devemos pensar que “a Igreja”, como instituição, tivesse muitas propriedades; no século XI não havia base legal para isso. Mas cada paróquia tinha seus domínios eclesiásticos e territoriais, e esses domínios estariam ameaçados se fossem divididos entre os herdeiros de um membro do clero, mesmo se fossem transferidos a um herdeiro de cada vez. Com o tempo, esse herdeiro poderia vir a considerar-se o dono do território.

AUTOATIVIDADE

Prezado (a) acadêmico(a), todos esses problemas eram atribuídos à interferência leiga na Igreja. Mas, será que era realmente assim? Você consegue perceber o quanto há de questões internas da Igreja em todas essas questões? Dentre esses três problemas (simonia, casamento clerical e possível divisão do patrimônio), qual lhe parece o que mais preocupava os líderes da Igreja da época? E por qual motivo? Algum deles lhe parece pouco importante, do ponto de vista político ou doutrinário? Explique.

2.3 O MOVIMENTO REFORMISTA

De todo modo, observar essas questões e apontá-las como problemas a serem resolvidos era um indicativo de que elas incomodavam os membros do clero e que eles entendiam que seria necessário removê-las do pensamento cristão para aproximar os fiéis de Deus. Em todas as partes da cristandade, as reivindicações eram semelhantes, e geralmente envolviam os seguintes pontos:

2.3.1 O celibato clerical

O religioso deveria ser casto e eximir-se de qualquer atividade sexual por toda a sua vida. O argumento religioso para isso dizia que o pecado capital da luxúria corrompia a missão evangelizadora. Estudiosos apontaram o celibato clerical como uma forma de preservar intacta a propriedade da Igreja e de defendê-la contra a sanha conquistadora dos reis, senhores feudais e imperadores. Mas o reverso também é verdadeiro: o celibato clerical servia aos propósitos da Igreja ao permitir o acúmulo cada vez maior de propriedades. Estima-se que a Igreja, como um todo, fosse proprietária de um terço da metade das terras europeias.

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UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

224

2.3.2 O Monasticismo

Os movimentos que desejavam um retorno à pureza original da Igreja eram comuns na Europa desde o século IX. O objetivo dos reformadores era retornar a uma vida de simplicidade, cultivando as artes, o silêncio e a devoção aos mais pobres. Os movimentos reformistas tornaram-se muito prestigiados a partir de 950, e durante todo o século XI. Inicialmente, a reforma monástica estava concentrada na Abadia de Cluny (atual França) e baseava-se no retorno a uma obediência estrita da Regra de São Bento.

FIGURA 52 - DETALHE DA ABADIA DE CLUNY, NA FRANÇA, ONDE SE ORIGINOU O MONASTICISMO CIRTERCENSE

FONTE: Disponível em: <http://theredlist.fr/media/database/architecture/history/architecture-europeene/art-roman/abbaye-de-cluny/011_abbaye-de-cluny_theredlist.jpg>. Acesso em: 19 dez. 2012.

O principal líder da Abadia de Cluny foi o monge cisterciano Bernardo de Clairvaux (1090-1153). Clairvaux aplicou os princípios cistercianos até mesmo à arquitetura das igrejas, que passaram a ser desprovidas de ornamentos supérfluos, que atrapalhassem sua verdadeira função – a devoção a Deus. O estilo arquitetônico que melhor se prestou a essa finalidade previa igrejas com naves amplas, janelas largas e arcos ogivais. Esse estilo daria origem, posteriormente, ao gótico.

Outra figura muito relevante no processo de reforma monástica foi São Francisco de Assis (1181-1226). Francisco era membro de uma família abastada da cidade italiana de Assis e abandonou tudo para viver na pobreza. Em 1210, o Papa

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TÓPICO 3 | A IGREJA E A CULTURA NA BAIXA IDADE MÉDIA

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Inocêncio III autorizou a criação de sua ordem religiosa, que ficaria conhecida como Franciscana. Os franciscanos têm por objetivo viver da forma mais simples possível e seguir os passos de Jesus Cristo.

FIGURA 53 - SÃO FRANCISCO DE ASSIS TERIA SIDO A PRIMEIRA PESSOA DE QUE SE TEM NOTÍCIA A MANIFESTAR AS CHAGAS DE CRISTO (STIGMATA). FALECEU EM 1226 E FOI CANONIZADO DOIS ANOS DEPOIS

FONTE: Disponível em: <http://1.bp.blogspot.com/_a4Viwbn0HoY/SOY8FG3ITfI/AAAAAAAABpY/0X29jQZpMmA/s400/dia-de-sao-francisco-de-assis-25.jpg>. Acesso em: 18 dez. 2012.

Stigmata é um termo latino de origem grega que significa marcas corporais ou manchas. No vocabulário cristão, refere-se a uma manifestação de ferimentos no corpo, similares às Chagas de Cristo (cf. Jo 19,34; Jo 20, 24-27) e, portanto, entendidas como sinal de santidade e de extrema devoção. Muitas vezes vêm acompanhadas de êxtase religioso.

Os franciscanos teriam muita importância no desenvolvimento das universidades. Embora seu objetivo original não fosse a busca do conhecimento, logo havia mais franciscanos nas universidades europeias do que membros de outras congregações.

NOTA

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UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

226

2.3.3 Os cátaros e a Inquisição

No sul do atual território francês, na região chamada Languedoc, surgiu no final do século XII um movimento religioso que buscava uma religiosidade mais simples, mais de acordo com o que seus seguidores acreditavam ser o cristianismo original. Intitulavam-se cátaros (puros, em grego), e ficaram conhecidos também por albigenses – referência à proximidade com a cidade de Albi. Embora sua religiosidade se aproximasse em muitos pontos da busca por uma simplicidade religiosa tão frequente na época, suas ideias eram fundamentalmente diferentes dos dogmas da Igreja Católica. Eram dualistas, ou seja, acreditavam que havia um princípio do Bem e um princípio do Mal.

O mundo que conhecemos teria sido criação não de Deus, mas do Demônio, pois é instável, corrupto e decadente. Jesus Cristo teria sido enviado por Deus para a salvação, mas não como homem: seria apenas um anjo que assumiu a aparência humana.

Essa doutrina era potencialmente destrutiva para a Igreja, pois questionava os principais fundamentos do cristianismo: a criação do mundo, a natureza humana de Cristo, a Trindade e, segundo determinada interpretação, o próprio monoteísmo.

Havia pontos de convergência entre o pensamento dos cátaros e doutrinas orientais, como: o maniqueísmo, o zoroastrismo, o budismo e outras. Os cátaros adotavam uma vida simples, abstinham-se dos prazeres carnais e recusavam-se a comer carne - exceto peixes. Graças à sua postura moral rígida, os seguidores do movimento passaram a gozar de grande respeito em suas comunidades, especialmente nas cidades de Toulouse, Montpelier, Perpignan e Montségur.

A doutrina dos cátaros foi duramente combatida pela Igreja Católica com o apoio dos reis franceses, entre 1209 e 1244, em um movimento que ficou conhecido como Cruzada Albigense. Inquirido sobre como diferenciar os cátaros dos católicos, já que eles estavam plenamente integrados à sociedade local, o legado papal encarregado de sufocar o movimento teria ordenado, segundo relatos, que se matassem a todos: “Deus se encarregará dos seus”.

O massacre dos cátaros (e dos não cátaros) não foi suficiente para destruir o movimento. No século seguinte, a Igreja Católica procurou nova abordagem para o problema e instituiu uma forma de investigação baseada na observação, inquérito e determinação de responsabilidades. Estava instituída a Inquisição, que tinha poderes para confiscar bens e condenar os hereges, assim que fossem identificados.

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TÓPICO 3 | A IGREJA E A CULTURA NA BAIXA IDADE MÉDIA

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2.3.3 Os cátaros e a Inquisição

A Inquisição, como você pode perceber, é a forma de investigação que deu origem aos nossos tribunais.

3 AS UNIVERSIDADES

As universidades se desenvolveram a partir das escolas das catedrais que ensinavam os candidatos ao clero regular. Nascidas no meio urbano, seus integrantes - professores e alunos - formavam uma corporação destinada ao ensino e à aprendizagem e cuja mercadoria era o conhecimento.

Dependendo da catedral, que também era parte integrante das cidades medievais, as escolas eram mais acessíveis aos leigos. E, quanto mais as cidades se desenvolviam e mais catedrais eram construídas, mais proliferavam essas escolas através da Europa. Quem eram os alunos? Uma imensa e variada fauna urbana, proveniente de todas as camadas da sociedade: baixo clero, nobres sem terra, burgueses, artesãos, aprendizes e servos.

FIGURA 54 - A UNIVERSIDADE DE BOLONHA, FUNDADA EM 1088, É A MAIS ANTIGA DO MUNDO OCIDENTAL

FONTE: Disponível em: <http://www.inbologna.it/guida_i00006c.jpg>. Acesso em: 19 dez. 2012.

NOTA

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228

DEBATE EM SALA

— Professor, como assim? As universidades nasciam nas cidades, no século XI? Esse não era o período do auge do feudalismo e as cidades não surgiram alguns séculos mais tarde?— As coisas não são tão esquemáticas e estanques como estamos acostumados a pensar. Primeiro que o “feudalismo” é um conceito problemático, como já discutimos. Depois, não é porque havia feudalismo que não podia haver cidades. Muito ao contrário: as cidades e os comerciantes eram fundamentais para garantir aos feudos alguns tipos de produtos. Ainda, as universidades iniciaram seu funcionamento no século XI, o que não quer dizer que elas já fossem muito fortes. Algumas das maiores universidades europeias foram criadas lá pelos séculos XIII ou XIV. Mas as condições para seu surgimento apareceram com a reforma religiosa do século XI.

Nas escolas das catedrais ensinavam-se as sete artes liberais, divididas em Trivium – gramática, retórica e dialética (lógica) - e o Quadrivium – aritmética, geometria, astronomia e música. O conteúdo das matérias era mais amplo do que pareciam indicar os seus nomes.

A gramática incluía noções de latim e de literatura; a aritmética abrangia o estudo da teoria dos números; a geometria acrescentava o estudo da geografia e da história natural; na astronomia, incluíam-se noções de química e de física. O trivium estudava-se por quatro ou cinco anos e dava o título de bacharel em Artes, que pelas leis corporativas correspondia ao oficial e não conferia a seu portador habilitação alguma. O Quadrivium requeria mais três ou quatro anos de estudo, após os quais se obtinha o título de “Mestre em Artes”.

FIGURA 55 - O QUADRIVIUM ERA PARTE DO CURRÍCULO DE FORMAÇÃO DO ESTUDANTE MEDIEVAL

FONTE: Disponível em: <http://www.lisakaborycha.com/drupal/sites/default/files/quadrivium_0.jpg>. Acesso em: 19 dez. 2012.

IMPORTANTE

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Poucos eram os autores estudados e a maioria tinha vivido no começo da Idade Média.

● Cassiodoro (490-581 d.C.), “Manual do Ensino Sagrado e Secular”.

● Boécio (480-525 d.C.), “Consolação da Filosofia”.

● Isidoro de Sevilha (560-636 d.C.), “Etimologiae”.

Estes autores, ao lado de Santo Agostinho (354-430 d.C.) – autor da “Cidade de Deus”, do Papa Gregório Magno (540-604 d.C.) e de outros padres da Igreja, eram conhecidos como auctores ou “autoridades”, cujas palavras o estudante deveria decorar e jamais atrever-se a contradizer.

Tal era a situação até que começaram a ser introduzidos os livros traduzidos do árabe e do grego nas fronteiras da cristandade. Aos professores e alunos cristãos eram apresentados os tesouros da ciência e filosofia greco-romanas e os saberes de árabes e judeus. A paixão que despertaram estas novas obras levou muitos professores e estudantes aos locais das traduções (Sicília, Espanha e Constantinopla), a fim de se aprofundarem nas obras em sua língua original. Enfim, as escolas das catedrais passaram a ter alimento para o espírito.

Este espírito frutificou e produziu grandes professores. Gerberto di Aurillac (950-1003 d.C.), que antes de se tornar o Papa Silvestre II era mestre da escola da Catedral de Rheims e viajou à Espanha para estudar com os mouros os segredos de sua matemática, de lá voltou anunciando que não mais bastava a compilação dos auctores reconhecidos pela Igreja. Seus alunos tinham que estudar os clássicos latinos no original. E, para isso, iniciou uma importante biblioteca.

Fulberto de Chartres (960-1028 d.C.), na qualidade de bispo da catedral de Chartres e professor da escola, inspirou, em seus alunos, o grande amor à dialética, ensinando-os a criar raciocínio através de argumentos. A partir de então, o espírito das escolas em geral, e de Chartres em particular, era animado não somente pelo fornecimento de informações à inteligência dos alunos. Além disso, pretendia-se que exprimissem as suas ideias com suas próprias palavras.

Neste ambiente de debates, de torneio de ideias, surgiu o mais importante professor do século XII: o famoso mestre Pedro Abelardo (1079-1142). Um espírito inquieto e arguto, conhecido mais popularmente por seu trágico amor por Heloísa. Em sua obra de lógica “Sic et Non”, Abelardo propôs 158 questões relativas aos dogmas cristãos e as respondeu mediante conflitantes citações das Escrituras, dos Padres da Igreja e dos clássicos pagãos. Dizia ele que: “a primeira chave para a sabedoria é uma assídua e frequente indagação [...], pois que da dúvida nós chegamos à procura, e da procura à verdade”.

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UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

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FIGURA 56 - PEDRO ABELARDO (1079-1142), UM DOS REPRESENTANTES DA CORRENTE DE INTELECTUAIS CHAMADOS GOLIARDOS, FICOU CÉLEBRE PELAS IDEIAS TRANSFORMADORAS E POR SEU ENVOLVIMENTO COM HELOÍSA, SUA PUPILA

FONTE: Disponível em: <http://www.schillerinstitute.org/graphics/photos/hist_other/abelard.jpg>. Acesso em: 15 dez. 2012.

Condenado ao silêncio pelo Concílio de Soissons em 1121, Abelardo não se calou. Voltou a lecionar, enfrentou debates calorosos, assistidos por uma multidão de alunos, com o Abade Bernardo de Clairvaux, a quem humilhou intelectualmente. Abelardo defendia que o pecado não era inerente à natureza humana, mas sim uma opção negativa. Pecamos contra nossa consciência, quando fizemos algo que sabemos que é errado ou quando não fizemos quando deveria ser feito. Abelardo foi condenado por heresia no Concílio de Sens em 1140. Suas obras foram queimadas e ele viveu em reclusão pelos dois últimos anos de sua vida.

FIGURA 57 - BERNARDO DE CLAIRVAUX, QUE TRAVOU DISPUTAS TEOLÓGICAS COM PEDRO ABELARDO

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e6/Bernard_of_Clairvaux_-_Gutenburg_-_13206.jpg>. Acesso em: 15 dez. 2012.

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Foi reunindo as contribuições de todos estes professores versados no saber greco-árabe que, no século XIII, São Tomás de Aquino escreveu a sua “Summa Theologica”, que você teve oportunidade de conhecer anteriormente. Enfim, o livre-arbítrio, uma ideia tão comum aos gregos, mas odiada pela hierarquia da Igreja, voltou a soprar no Ocidente cristão.

4 O RENASCIMENTO DO SÉCULO XII

Religião e filosofia sempre estiveram ligadas. De certa forma, a religião é, antes de tudo, um sistema filosófico e, muitas vezes, filósofos escreveram sobre religião. Na Idade Média, especialmente, tanto no Ocidente como no mundo muçulmano, a filosofia estava muito vinculada à religião. A partir do final do século XI, e especialmente no século XII, essa vinculação levou a uma notável transformação da forma de se pensar filosoficamente a religião cristã, com o desenvolvimento de ferramentas teóricas que dariam, também, origem ao método científico moderno.

Esse movimento foi, curiosamente, consequência de todas as grandes transformações pelas quais a sociedade europeia passava naquele período: as conquistas de regiões sob o domínio islâmico, a reforma religiosa do século XI, o surgimento das universidades, tudo contribuiu para essa mudança de perspectiva. Vejamos como isso aconteceu.

4.1 A CONTRIBUIÇÃO GRECO-ÁRABE

O cristianismo dogmático do início da Idade Média considerava o mundo terreno um lugar de pecados e tentações, onde reinavam a confusão, a desordem, onde a maior parte dos fenômenos físicos era interpretada como intervenção das forças transcendentes do Bem ou do Mal. Disso resultou que, por quase mil anos, os estudiosos cristãos deixaram de lado a observação da natureza e as experimentações científicas. Preferiam ocupar-se com a vida além-túmulo e aterem-se ao conhecimento das Sagradas Escrituras, às quais atribuíam uma autoridade infalível.

O grande precursor desse dogmatismo, Santo Agostinho (354-430), autor de “A Cidade de Deus”, considerava que “discutir a natureza e a posição da Terra no universo em nada nos auxilia na esperança de vida eterna” e que “os seguidores de Eratóstenes [matemático, geógrafo e astrônomo grego, 276 a.C.-194 a.C.] perderam de vista o céu enquanto tentavam medir a circunferência da Terra”. E, assim, o mundo cristão latino passou a desprezar a ciência e a filosofia dos antigos.

Enquanto permaneceram disponíveis, os livros dos autores gregos e romanos eram aceitos como grande autoridade em teoria científica, tendo essa aceitação permanecido até o século VI, quando - por força da ortodoxia agostiniana que se impunha - estas obras deixaram de ser lidas ou se perderam, e apenas abreviados comentários citados por outros autores sobreviveram.

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UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

232

Desde Santo Agostinho, grande parcela do conhecimento produzido ou traduzido para o latim – filosofia, astronomia, astrologia, geometria, matemática, química, medicina, enfim, tudo o que os antigos consideravam ciência – foi relegado a segundo plano e esquecido, pois não era considerado importante para a formação do fiel e para a salvação de sua alma.

Costuma-se pensar o latim eclesiástico da Idade Média como uma evolução da língua da antiga Roma. Em parte, isto é verdade. Porém, o desprezo do antigo cristianismo pela arte, ciência e pensamento pagãos empobreceu o latim e criou um ambiente desfavorável às inquietudes intelectuais.

Prezado(a) acadêmico(a), você consegue perceber que na Alta Idade Média, especialmente após Santo Agostinho, havia uma disputa ideológica entre ciência e religião? Que essa disputa era vista como impossível de se conciliar, porque os objetivos das duas, as formas de perceberem o mundo, as respostas que davam às próprias perguntas eram completamente diferentes?Não será possível perceber, hoje em dia, uma rivalidade semelhante? Não vivemos hoje em uma sociedade em que ciência e religião parecem estar em dois lados opostos, prontos para se enfrentarem? Na Idade Média, a religião parecia estar vencendo a batalha. Como estamos hoje?

4.2 A REDESCOBERTA DOS CLÁSSICOS NOS ÁRABES

Curiosamente, por uma dessas ironias da história, quando este dogmatismo cristão mostrava sua face mais terrível promovendo as Cruzadas, o Ocidente redescobriu os clássicos. A centelha vital da explosão cultural do Ocidente se deu em meio à reconquista de terras islâmicas das penínsulas Ibérica e Itálica pelos guerreiros cristãos. Quando entraram nas grandes cidades muçulmanas, como Toledo ou Palermo, os cristãos depararam-se com muitas maravilhas: saneamento, iluminação noturna, banhos públicos, mercados com produtos requintados. Contudo, nada superou o impacto de suas grandes bibliotecas.

O que fazer com tal patrimônio? Foi aí, em meio à cruel guerra religiosa que foram as Cruzadas, que os cristãos decidiram não destruir aqueles livros mantidos pelos “infiéis”, mas decifrá-los. Em parte para melhor compreenderem o inimigo, a fim de derrotá-lo mais facilmente, em parte por reverência àqueles acervos, em parte por curiosidade, os estudiosos cristãos puseram-se a ler aquelas obras. Ao fazerem isso, a grande surpresa: perceberam que nelas estavam preservadas a antiga ciência e a filosofia de gregos e romanos, inclusive obras há séculos perdidas no Ocidente e que se julgavam perdidas para sempre, enriquecidas por séculos de reflexões muçulmanas e judaicas.

IMPORTANTE

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FIGURA 58 - POR SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A DIFUSÃO DA FILOSOFIA CLÁSSICA E SUA INTERPRETAÇÃO ORIGINAL DE ARISTÓTELES, O FILÓSOFO MUÇULMANO AVERRÓIS (IBN RUSHD - 1126-1198) FIGURA NA CÉLEBRE PINTURA A ESCOLA DE ATENAS, DE RAFAELLO SANZIO

FONTE: Disponível em: <http://gabrielbcn.files.wordpress.com/2007/07/ibn_rushd.jpg?w=455>. Acesso em: 17 dez. 2012.

Através das traduções que se realizaram, a partir do século XII, o Ocidente (re)encontrou-se com obras da Antiguidade, como os tratados filosóficos e científicos de Plotino, Próclo, Eratóstenes, Ptolomeu, Euclides, Arquimedes e Galeno. Como já vimos, a civilização islâmica havia assimilado sistematicamente conhecimentos científicos das civilizações que viviam sob seu império.

Algumas cidades importantes, como Alexandria e Antioquia, contavam com grandes bibliotecas, em grego, siríaco ou aramaico, que foram sistematicamente traduzidas para o árabe, copiadas e multiplicadas para bibliotecas espalhadas pelo mundo islâmico - Córdoba e Bagdá eram duas das cidades que abrigaram grandes bibliotecas na chamada Era de Ouro Islâmica.

Também havia ali tratados escritos originalmente em árabe ou persa, com contribuições especificamente islâmicas à ciência e à filosofia, como os de al-Kindi, al-Farabi, al-Ghazali, Ibn Khaldun – ou judaicas, como os de Maimônides. O matemático, filósofo e poeta persa al-Kwarizmi (ca. 780- ca. 850) introduziu o conceito de “zero” na notação decimal posicional dos algarismos (termo criado em referência a ele) em uso no Islã.

Seus textos, vertidos para o latim, trouxeram ao Ocidente seu sistema numérico decimal posicional, em uso até nossos dias. Nesse contexto, merecem destaque também os textos do médico e filósofo árabe Avicena (Ibn Sina, 979-1037), cujo tratado de medicina tornou-se referência para a medicina ocidental. Contudo,

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nada parece ter sido tão significativo para o pensamento do Ocidente do que as traduções da obra de Aristóteles feitas e enriquecidas com comentários próprios pelo filósofo Averróis (Ibn Rushd, 1126-1198).

4.3 A ESCOLÁSTICA

Quando estes novos conhecimentos, advindos das traduções que se faziam nas fronteiras da cristandade, começaram a ser absorvidos pelos intelectuais da época, provocaram uma verdadeira revolução na Teologia (conhecimento de Deus e da religião) e na Filosofia (conhecimento do mundo e dos homens) ocidentais.

O conhecimento dos antigos, de natureza racional, parecia ameaçar e até mesmo negar as verdades da religião cristã. A partir de então, uma série de filósofos, dentre os quais se destacam Santo Anselmo, Pedro Abelardo, São Alberto Magno, Robert Grosseteste e, principalmente, São Tomás de Aquino, propuseram-se uma árdua tarefa: demonstrar que existia a possibilidade de conciliar os postulados da fé cristã com as normas da razão humana, conciliar a teologia cristã e a filosofia antiga, harmonizar a fé e a razão, duas tendências que, até então, pareciam irreconciliáveis.

Em comum, tinham esses estudiosos o fato de serem sacerdotes e estarem vinculados a universidades ou a centros de estudo mantidos pela Igreja. Por esse motivo, seu movimento filosófico tornou-se conhecido como “Escolástica”.

Prezado(a) acadêmico(a), perceba que, apesar de a filosofia recém-descoberta ameaçar os conhecimentos teológicos há séculos arraigados na Europa, havia uma tentativa, nesse período, de conciliar as duas áreas de conhecimento. Os estudiosos talvez pudessem ter simplesmente rejeitado essa filosofia como sendo “blasfêmia de pagãos e infiéis”, mas não fizeram isso.Perceba, também, que o esforço para conciliar religião e razão talvez fosse, principalmente, uma preocupação dos religiosos, que eram provavelmente os únicos naquela sociedade que sabiam ler, sabiam latim e grego e tinham tempo e recursos suficientes para dedicarem-se a estudos tão abstratos. Talvez, a preocupação com os fundamentos da religião não fosse tão grande entre os demais membros da sociedade; mas, como a grande maioria das fontes disponíveis para nós foi deixada pelos religiosos, temos muita dificuldade de saber o quanto a população da época era, de fato, sensível a tais questões.

Recolhendo os esforços de seus antecessores, o grande nome dessa época foi São Tomás de Aquino (1225-1274), que escreveu a “Summa Theologica”, onde expôs racionalmente sua interpretação dos dogmas cristãos. Aquino desenvolveu 631 problemas teológicos diferentes e respondeu a exatas 10.000 possíveis objeções. Reconhecia duas fontes de conhecimento: a fé cristã, transmitida pelas Escrituras e pela tradição da Igreja, e as verdades adquiridas pela razão e pelos sentidos humanos, tais como apresentadas por Platão, Aristóteles e os demais filósofos.

UNI

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Para São Tomás, as duas fontes tinham necessariamente que concordar, pois ambas provinham da mesma fonte: Deus. Sendo assim, os objetivos primordiais de sua filosofia eram demonstrar que a razão teria sempre preferência e que o Universo era racionalmente constituído.

Baseado na ciência antiga, afirmava que o mundo era um todo ordenado, dirigido por uma finalidade inteligente. E, se o universo possuía leis naturais, regularidades dadas por Deus no momento da Criação, o mesmo Deus dotara o homem da capacidade racional de compreender essas leis e intervir no mundo terreno. Isto significou uma verdadeira revolução, pois praticamente eliminou a dicotomia entre o mundo espiritual e o mundo físico.

Dentre os vários pensadores do período, outro nome merece ser citado: o franciscano inglês Roger Bacon (1214-1294). Bacon preconizava a experimentação e a observação criteriosa como os únicos meios de conhecer a verdade. Tendo redigido uma gramática grega, Bacon afirmava que o desconhecimento das línguas originais causava os erros dos filósofos e teólogos. Criticava os sábios que se amparavam em autoridades falíveis ou no valor da tradição “e que dissimulam sua ignorância com argumentos verbosos”. Matemático, inventor, precursor de Leonardo da Vinci como projetista de máquinas engenhosas, químico, óptico, geógrafo, astrônomo, Roger Bacon foi o primeiro a observar a inexatidão do Calendário Juliano e a pedir sua revisão ao Papa Clemente IV.

Não confunda o franciscano Roger Bacon com o filósofo Francis Bacon, que nasceu no século XVI e também trouxe contribuições fundamentais para a filosofia e a ciência.

FIGURA 59 - ROGER BACON FOI UM DOS PRECURSORES DO MÉTODO CIENTÍFICO MODERNO

FONTE: Disponível em: <http://3.bp.blogspot.com/-fUqjJxooHoQ/UO2cqfL6XDI/AAAAAAAABa0/QESBPBy0ca8/s1600/frases-do-filosofo-roger-bacon.jpg>. Acesso em: 14 dez. 2012.

ATENCAO

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Outros filósofos importantes dessa época incluem o judeu Moisés Maimônides (1138-1204) e os franciscanos ingleses Duns Scotus (1265–1308) e Guilherme de Occam (1288-1348). Todos desenvolveram uma ideia central no método científico: o Princípio da Parcimônia. A menos que algum elemento interfira na interpretação de um fenômeno, a explicação mais simples deve ser considerada a mais correta. Assim, não há necessidade de introduzir elementos estranhos na explicação. Esse princípio é conhecido, desde o século XVIII, como Navalha de Occam.

LEITURA COMPLEMENTAR 1

AS ESCOLAS DE TOLEDO NO SÉCULO XII

Jacques Le Goff

Entre as cidades que no século XII se distinguiram pela atividade das suas escolas, contava-se Toledo, graças ao concurso de sábios e tradutores árabes e judeus. Aí se desenvolveram, sobretudo, as ciências e a filosofia, esta conhecida através de manuscritos gregos trazidos pelos muçulmanos. Um curioso relato feito por um erudito inglês, Daniel de Morley (século XII), mostra-nos como Toledo atraía então estudantes vindos de todos os pontos.

A paixão do estudo tinha-me levado a deixar a Inglaterra. Fiquei algum tempo em Paris. Só aí vi selvagens instalados com uma grave autoridade nos seus bancos escolares, com dois ou três escabelos à frente carregados de enormes obras, reproduzindo as lições de Ulpiano em letras de ouro, com penas de chumbo na mão pintando gravemente nos livros asteriscos e óbelos. A ignorância obrigava-os a manterem-se numa atitude de estátua, mas pretendiam mostrar sabedoria pelo próprio silêncio. Logo que tentavam abrir a boca não se ouvia senão um balbuciar infantil.

Tendo compreendido a situação, refleti sobre a maneira de escapar a estes riscos e de aprender as “artes” que iluminam as Escrituras, de preferência a saudá-las de passagem ou evitá-las por meio de resumos. Por isso, como nos nossos dias é em Toledo que o ensino dos árabes, o qual consiste quase inteiramente nas artes do quadrivium, é transmitido às massas, apressei-me em ir para lá para ouvir as lições dos filósofos mais sábios do mundo.

Tendo-me alguns amigos chamado e convidado a deixar a Espanha, voltei para Inglaterra com uma preciosa quantidade de livros. Dizem-me que nestas regiões o ensino das artes liberais era desconhecido de Aristóteles e de Platão, voltados ao mais profundo esquecimento em proveito de Tito e Seio. A minha dor foi grande e, para não ser o único grego entre os romanos, pus-me a caminho para encontrar um sítio onde ensinar a fazer florescer este gênero de estudos [...].

FONTE: Adaptado de: LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. Lisboa: Estúdios Cor, 1973, p. 92.

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LEITURA COMPLEMENTAR 2

INTELIGÊNCIA E GRAÇA (SÉCULO XIII)

São Tomás de Aquino

Perante o problema da origem e possibilidade do conhecimento, S. Tomás (1225-1274) seguiu o intelectualismo realista de Aristóteles. No entanto, admitiu que utilizando as suas capacidades naturais o homem nunca poderia atingir o grau de conhecimento a que chegaria com o auxílio da graça divina. Deste modo, conciliou o aristotelismo e o pensamento cristão, a razão e a fé.

O objeto da faculdade de conhecer é aquilo que é. [...] Muitas coisas até as quais o intelecto do homem deverá penetrar permanecem escondidas. Por trás do acidente está escondida a natureza substancial da coisa; por trás das palavras estão os seus significados; por trás dos símiles e figuras está a verdade figurada, porque as coisas inteligíveis estão, como se estivessem, dentro das coisas sensíveis; e nas causas estão ocultos os efeitos, e inversamente.

Portanto, visto que o conhecimento humano começa com os sentidos e a partir de fora, é claro que quanto mais forte for a luz do intelecto, tanto mais longe penetrará no interior das coisas. Mas a luz do nosso intelecto natural é de virtude finita e pode alcançar apenas o que é limitado. Por esta razão, o homem precisa da luz sobrenatural a fim de atingir o conhecimento que não pode conhecer por meio da luz natural; e essa luz sobrenatural dada ao homem é chamada donun intelectus.

FONTE: Adaptado de: AQUINO, São Tomás de. Summa Theologiae, q. VIII, art. I.

LEITURA COMPLEMENTAR 3

DAS VANTAGENS DA CIÊNCIA EXPERIMENTAL (SÉCULO XIII)

Rogério Bacon

Roger Bacon (1214-1294), franciscano professor em Oxford, profundamente marcado pelo pensamento judaico e árabe, foi um dos primeiros espíritos “modernos” na maneira como considerou o valor da experiência e do conhecimento em geral. Mal compreendido pelos seus superiores, morreu na prisão.

Desejo agora esclarecer os princípios da ciência experimental, visto que sem experiência nada pode ser suficientemente conhecido. Porque há duas maneiras de adquirir conhecimento, nomeadamente, pelo raciocínio e pela experiência.

O raciocínio arrasta consigo uma conclusão e faz-nos aceitar a conclusão, mas não torna a conclusão certa, nem afasta a dúvida de maneira a que o espírito possa descansar na intuição da verdade enquanto o mesmo espírito não a descobrir

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pelo caminho da experiência; como tal, muitos têm argumentos dizendo respeito ao que pode ser conhecido, mas porque têm falta de experiência, desprezam os argumentos e nunca evitam o que é prejudicial, nem seguem o que é bom. Porque, se um homem que nunca tivesse visto fogo quisesse provar por raciocínios adequados que o fogo queima, injuria e destrói as coisas, o seu espírito não se daria por satisfeito desta maneira, nem ele evitaria o fogo até que nele colocasse a mão ou qualquer substância combustível, de forma a provar pela experiência o que o raciocínio tinha ensinado. Mas quando tivesse feito a presente experiência da combustão, o seu espírito adquiriria uma certeza e descansaria na plena luz da verdade. Por esta razão, o raciocínio não é suficiente, mas o é a experiência.

FONTE: BACON, Rogério. Opus Majus. In: ROSS, J. Bruce; MCLAUGHLIN, M. Martins. The Portable Medieval Reader. 8. ed. New York, 1958, p. 626.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico você viu que:

● Por considerar a salvação da alma como missão prioritária, o cristianismo da Alta Idade Média desprezou a filosofia e a ciência da antiguidade, que caíram no esquecimento por vários séculos.

● A partir das Cruzadas, o Ocidente voltou a se encontrar com a cultura antiga, através dos árabes contra os quais lutava.

● Os muçulmanos preservaram, em suas bibliotecas, grande parcela da cultura antiga e seus filósofos. Além de comentar as obras, fizeram importantes contribuições em todas as áreas do conhecimento.

● A tradução destes textos, para o latim medieval, significou uma verdadeira revolução no pensamento ocidental.

● Conciliar a teologia cristã e a filosofia antiga, a fé e a razão, foi a grande tarefa dos pensadores cristãos a partir do século XII.

● Na Summa Theologica, de São Tomás de Aquino, reconciliam-se as duas fontes de conhecimento: a fé cristã, transmitida pelas escrituras e pela Igreja, e as verdades adquiridas pela razão e pelos sentidos humanos.

● A partir de então, o mundo terreno deixou de ser desprezado, pois com a ciência antiga e árabe, os pensadores ocidentais puderam ver que o universo possuía leis naturais, regularidades dadas por Deus no momento da criação. O mesmo Deus dotará o homem de capacidade racional para compreender estas leis e intervir no mundo terreno.

● Esse racionalismo, aliado a um empirismo cada vez mais metódico, possibilitou o renascimento intelectual do Ocidente.

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AUTOATIVIDADE

1 São Francisco de Assis foi recebido pelo Papa Inocêncio III em Roma e dele recebeu autorização para a criação de suas ordens religiosas. O mesmo Inocêncio III ordenou a “cruzada” contra os cátaros albigenses do sul da França. É possível traçar uma relação entre os dois eventos? De que forma eles se vinculam ao movimento reformista da Igreja que estava em curso desde o século XI?

2 Sintetize os principais embates religiosos e sociais do período entre os séculos XI a XIII na Europa ocidental.

3 A partir do que você pôde apreender da leitura deste tópico, qual lhe parece ter sido o alcance das transformações na Igreja e na sociedade europeias a partir do século XI? Foram profundas, consideráveis, superficiais ou ilusórias? Justifique seu ponto de vista.

4 Escreva um pequeno texto no qual você, caro(a) acadêmico(a), estabeleça relações entre algum dos textos das leituras complementares e o conteúdo tratado ao longo do tópico

Assista ao vídeo deresolução da questão 1

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TÓPICO 4

O RENASCIMENTO COMERCIAL E URBANO

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

A partir das cruzadas, depois de séculos de isolamento, a sociedade cristã ocidental finalmente voltou a se integrar às grandes rotas do comércio mundial. Tal fato propiciou um renascimento do comércio local no interior da Europa, fomentando o aparecimento e crescimento do mundo urbano. Neste tópico veremos como se deu este processo de renascimento comercial e urbano e como este processo alterou o jogo de forças dentro do mundo feudal. Veremos também como se estruturou a vida urbana na Baixa Idade Média e como as cidades se constituíram em um elemento dinâmico que criou as condições para o grande despertar econômico, social, cultural e político que culminou no Estado Nacional Absolutista e no capitalismo comercial da era moderna.

Então, boa leitura!

2 A ERA DO PREDOMÍNIO ISLÂMICO DO COMÉRCIO

O mundo islâmico do século XII que os cruzados encontraram era, além de sofisticado social e culturalmente, muito vasto e muito rico. Ao contrário do cristianismo latino, que menosprezava o apego às coisas materiais e às práticas mercantis, a religião do mercador Maomé valorizava a atividade comercial e o conforto relacionado à sua prática. Quando conquistaram seu vasto império, as trocas comerciais conheceram um desenvolvimento considerável. Desde o fim do século VIII, Bagdá se tornou uma das principais praças do comércio mundial, para onde convergiam os principais itinerários. Por terra, a rota da seda a ligava à distante China e, por mar, através do Golfo Pérsico, afluíam os produtos da Índia e do sudoeste asiático. Desde a Península Ibérica até o Extremo Oriente, os mercadores muçulmanos sulcavam seu imenso império controlando as rotas das especiarias, da porcelana e da seda.

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UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

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Caro(a) acadêmico(a), você já deve ter percebido que a língua portuguesa tem dezenas de palavras de origem árabe. Certamente, esta contribuição foi fruto da dominação muçulmana na Península Ibérica. Mas um dado interessante é que muitas destas palavras designam mercadorias ou prazeres relacionados à vida econômica. Vejamos alguns exemplos: açúcar, açougue, aduana, alambique, álcool, alfândega, almoxarifado, cheque, cifra, café, elixir, garrafa, laranja, limão, safra etc.

FIGURA 60 - NAVIO NO GOLFO PÉRSICO

Composta de indianos e negros, a tripulação deste barco no Golfo Pérsico enfrenta alguma agitação no convés, enquanto os passageiros assistem pelas portinholas. Pelo Mediterrâneo, pelo Mar Vermelho e pelo Golfo Pérsico, os itinerários marítimos uniam África, Índia e China à Europa.

FONTE: Disponível em: <http://www.superluminal.com/cookbook/images/boat_large.jpg>. Acesso em: 15 fev. 2013.

No século X, com o estabelecimento dos Fatímidas no Egito e sua dominação sobre a Síria, o Cairo passou a disputar a posição predominante de Bagdá, através da rota do Mar Vermelho. A posição privilegiada da capital egípcia favorecia os contatos com todo o mundo islâmico: pelo Mar Vermelho havia o acesso à Arábia, Pérsia, Índia e sudeste asiático; pelo Mar Mediterrâneo era possível chegar à Turquia, Constantinopla e Al-Andalus (Península Ibérica); pelo deserto do Saara, caravanas cameleiras traziam produtos exóticos (pimenta, noz de cola), escravos e ouro. O Cairo e Bagdá eram, dessa forma, os dois maiores pilares que sustentavam a riqueza do mundo islâmico.

IMPORTANTE

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TÓPICO 4 | O RENASCIMENTO COMERCIAL E URBANO

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É importante, porém, observar que essa escravidão tinha muito pouca semelhança com a escravidão que os europeus estabeleceriam, na Idade Moderna, no Continente Americano. Não apenas o tipo de trabalho executado era muito diferente, mas a dependência econômica que a sociedade tinha dele era muito menor. Além do mais, o escravo era tratado de forma muito distinta e tinha acesso muito mais facilitado à libertação.

2.1 O EFEITO DAS CONQUISTAS MONGÓLICAS

Mas a hegemonia econômica e comercial do mundo islâmico estava com os dias contados. No século XIII, uma nova força militar surgida do Leste atacou com força avassaladora: sob o comando de Gengis Khan, os mongóis invadiram o mundo islâmico e promoveram uma total reorganização do mundo conhecido. Quando a fúria conquistadora mongólica refreou, e os mongóis foram incorporados às regiões que conquistaram, o saldo foi um mundo transformado.

Nas primeiras décadas de dominação mongólica, o Islã perdeu um pouco da força política na Ásia, por não ser esta, inicialmente, a religião dos mongóis. Muito ao contrário, os mongóis eram, como já vimos, indiferentes às crenças locais e abriam espaço, muitas vezes, a grupos religiosos minoritários, como era o caso dos cristãos nestorianos ou dos zoroastrianos. A política mongólica de tolerância religiosa favoreceu, assim, o trânsito de mercadores de diversas religiões e etnias ao longo das rotas comerciais do Leste, enfraquecendo o predomínio islâmico na rota da seda. Após a morte de Gengis Khan, com a fragmentação do Império mongol, o trânsito de comerciantes entre regiões muito distantes tornou-se mais difícil.

Mas no final do século XIII, os mongóis já estavam, em sua quase totalidade, convertidos ao Islã, e o predomínio muçulmano poderia ser retomado. No entanto, o rastro de destruição que haviam deixado (a Grande Biblioteca de Bagdá é um exemplo concreto disso) abalara profundamente a estabilidade política e econômica do mundo islâmico. Especialistas apontam esse período como o final da Era de Ouro Islâmica.

Do ponto de vista comercial, a relativa perda de poder foi compensada pela entrada em cena de comerciantes de outras origens. A dinastia chinesa Yuan, de origem mongol, assumiu a hegemonia comercial no Oceano Índico após uma série de expedições que chegaram até o Chifre da África (Somália). Os comerciantes do subcontinente indiano e da Indonésia – região que se convertia naquela época ao Islã – eram por vezes seus parceiros, por vezes seus rivais. Na África, o comércio transaariano mantinha-se sob o controle muçulmano, embora cada vez mais comandado pelos reinos do Sahel, como o do Mali.

IMPORTANTE

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UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

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No entorno do Mar Mediterrâneo, a transformação não foi menos dramática, ainda que os mongóis não tenham atingido a região diretamente. Com o refluxo militar do Islã, na Europa e ilhas mediterrânicas, somado à submissão de Constantinopla – a partir da Quarta Cruzada –, as cidades portuárias italianas de Veneza, Pisa e Gênova se impuseram progressivamente no comércio oriental. Instalando-se em feitorias nas ilhas e margens do Mediterrâneo e Mar Negro, as cidades italianas entraram definitivamente na disputa com os muçulmanos no comércio de cerâmicas, tecidos, especiarias e temperos aromáticos.

3 O COMÉRCIO NA EUROPA

No momento em que as cidades italianas começaram a fazer concorrência aos comerciantes muçulmanos no Mediterrâneo, os produtos adquiridos passaram a ser negociados no continente europeu. Mercadores italianos e de outras origens transportavam esses produtos continente adentro, por rotas fluviais ou terrestres, e favoreciam a troca comercial com produtos das próprias regiões atravessadas.

Assim, entre as cidades do sul da Europa e os mares do Norte, constituiu-se uma rede de rotas terrestres e fluviais. E, enquanto as cidades italianas traziam sedas e especiarias do Oriente e exportavam seus tecidos e vidrarias, as cidades do Norte prosperavam, comercializando couros e madeiras da Rússia, cereais e peixes do Báltico, têxteis de Flandres, lã da Inglaterra, sal da Polônia, ferro da Alemanha, vinhos, mel e caviar, além de uma infinidade de outros produtos.

Mercadores escandinavos e eslavos encontravam, ali, a competição da Liga

Hanseática – que agrupava centenas de cidades alemãs – e controlava, a partir de Veneza, a distribuição no Báltico e no Mar do Norte, além de possuir entrepostos em Lisboa, Londres, Kiev e Novgorod. Mas a competição representava, em muitos casos, oportunidades de trocas comerciais vantajosas aos dois lados e, do ponto de vista do incentivo ao comércio, era sempre vantajosa.

FIGURA 61 - MAPA SOBRE O COMÉRCIO EUROPEU

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e1/Late_Medieval_Trade_Routes.jpg>. Acesso em: 14 mar. 2013.

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3.1 AS FEIRAS MEDIEVAIS

Além das ligas, a penetração da economia monetária pelo interior feudal se fez através da realização de feiras periódicas, entre as quais ficaram famosas as de Champagne, Flandres e Lyon. Uma grande feira francesa durava várias semanas e atraía mercadores da Escócia, Inglaterra, Alemanha, Espanha, Constantinopla, Síria, Egito e até da distante Armênia. A variedade de produtos correspondia a uma igual variedade de moedas: marcos ingleses, angevinos da Normandia, escudos saboianos, groats da Vestfália, florins de Florença, ducados venezianos, hyperperos de ouro de Constantinopla, dinares muçulmanos.

Todas essas moedas passavam pelas mãos ágeis dos cambistas, que as pesavam, tocavam e lhes determinavam o valor. Da bancada onde eles realizavam esse ritual proveio o banco moderno e até mesmo as práticas bancárias como a carta de crédito, a letra de câmbio, o penhor mercantil e o seguro marítimo. Enfim, caro(a) acadêmico(a), apesar das restrições do Direito Canônico, com o maior encontro entre os povos, com as crescentes necessidades econômicas, desenvolveu-se um importante setor monetarizado no interior feudal da Europa.

Neste processo de multiplicação de trocas, os viajantes aprenderam a se

conhecer uns aos outros. Descobriam não apenas os gêneros que poderiam adquirir, mas também os processos de produção ou fabricação destes gêneros. Do Oriente vinham os métodos da fabricação de vidros e dos tecidos de seda, os segredos da tinturaria, da metalurgia, da química; vinham também o trigo sarraceno, o arroz, a cana-de-açúcar, além de uma infinidade de novas espécies vegetais de alto valor artesanal e comercial. Com a multiplicação de produtos e técnicas, aperfeiçoaram-se a agricultura, o artesanato e a manufatura europeias, e a região se tornou menos dependente do comércio transcontinental.

FIGURA 62 - AS FEIRAS MEDIEVAIS ERAM O PONTO DE ENCONTRO DE CULTURAS E PRODUTOS DE TODO O MUNDO, E REPRESENTAVAM O RESSURGIMENTO DO COMÉRCIO EM LARGA ESCALA NA EUROPA

FONTE: Disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/-I9w7GVnMXPY/UGm3293pCQI/AAAAAAAAAes/Nl1LkIE1JKM/s320/medieval+fair.jpg>. Acesso em: 3 dez. 2012.

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Como locais de comércio, as feiras apresentavam condições especialíssimas. Os senhores feudais, que as protegiam e cobravam impostos sobre as vendas, garantiam o salvo-conduto dos mercadores através de seus domínios com a imposição de uma “paz da feira”. No mesmo sentido, e com o mesmo objetivo, proclamava-se a “paz de Deus” nos territórios da Igreja. Apesar destas solenes ordenações, viajar pelo interior feudal da Europa – ainda mais carregando produtos de alto valor comercial – ainda era muito perigoso. O ataque armado e pilhagem de caravanas era uma das únicas oportunidades que estavam abertas à imensa maioria dos senhores feudais que ainda dependiam da corveia de seus próprios campos para sobreviver. E, quanto mais miseravelmente viviam, mais dependentes se tornavam da rapinagem como fonte de receita complementar.

3.2 A FORMAÇÃO DOS BURGOS

A necessidade prática impunha que as feiras se situassem onde fossem convenientes ao comércio – quer na orla de uma via fluvial ou marítima, quer no cruzamento de grandes rotas comerciais. Mas devido ao banditismo e às constantes guerras feudais, uma feira deveria ser também confortavelmente protegida por fortificações, tais como um castelo, um mosteiro ou uma sede episcopal. Onde quer que se reunissem essas condições, os mercadores se enraizavam. Aos poucos, juntavam-se a eles outras pessoas deslocadas ou marginalizadas nos quadros da estrutura feudal: servos que fugiam da gleba familiar demasiada exígua, filhos da nobreza que não tinham esperança de herdar patrimônio por primogenitura, artífices que procuravam um melhor mercado para seu artesanato, judeus e ciganos que não se enraizavam em parte nenhuma, preferindo considerar suas comunidades, espalhadas pela Europa, como sua pátria. Esta nova classe urbana – diferenciada pela sua libertação da dependência da gleba – começou então a depender cada dia menos do antigo castelo senhorial fortificado, que inicialmente lhe dera proteção.

FIGURA 63 - CENTRO HISTÓRICO DE DUBROVNIK, NA CROÁCIA (RAGUSA, EM ITALIANO), IMPORTANTE CENTRO DA REPÚBLICA DE VENEZA. A CIDADE GUARDA OS TRAÇOS MEDIEVAIS PLENAMENTE PRESERVADOS

FONTE: Disponível em: <http://olharcurioso.com/wp-content/uploads/2011/12/dubrovnik.jpg>. Acesso em: 2 dez. 2012.

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3.2 A FORMAÇÃO DOS BURGOS

Nas cidades do sul da Europa, nomeadamente na Itália, já havia, desde os tempos romanos, uma tradição urbana, que fazia com que nobres, artífices e comerciantes vivessem por trás dos mesmos muros. Já no interior do continente e mais ao norte, as muralhas, quando existiam, não eram tão amplas quanto as das cidades mediterrâneas. Nesses locais, essa massa de desenraizados criou o “burgo de fora” (Forisburgus) que, na maioria das vezes – pagando-se os impostos ao senhorio feudal – se rodeou de novas muralhas. Assim, ao longo das rotas comerciais, formaram-se, no interior da Europa feudal, dois novos polos de atração para o excesso social de população: as cortes e as cidades.

Caro(a) acadêmico(a), no próximo tópico estudaremos as cortes medievais e sua importância para a desagregação do mundo feudal. Agora, vejamos as cidades.

4 A VIDA URBANA NA BAIXA IDADE MÉDIA

A seguir, apresentamos algumas características da vida urbana na Baixa Idade Média.

4.1 DEMOGRAFIA E URBANISMO

A maioria das cidades medievais estava rodeada por muralhas servidas de grandes portas que se fechavam ao anoitecer. Com o crescimento vertiginoso da população urbana, o espaço dentro das muralhas – que inicialmente parecia amplo – tornou-se exíguo. Quando havia condições, outros muros de maior extensão eram construídos – às vezes, mantendo-se os anteriores. E, assim, a cidade crescia em anéis concêntricos, tal qual o tronco de uma árvore. Comprimida pelas muralhas, a cidade crescia para o alto. Algumas estabeleceram limites a esta tendência de verticalização. Em Rheims, por exemplo, nenhum edifício poderia exceder a altura das goteiras da catedral. A partir de uma janela situada na mesma altura da beira do telhado, verificava-se que nenhuma construção em andamento ultrapassasse o nível do olhar.

ESTUDOS FUTUROS

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FIGURA 64 - A CIDADE DE CARCASSONE, NA FRANÇA, COM SUAS MURALHAS

FONTE: Disponível em: <http://www.viajenodetalhe.com.br/wp-content/uploads/2011/09/carcassonne-1_fran%C3%A7a.jpg>. Acesso em: 2 dez. 2012.

As cidades mais antigas da Europa foram fundadas ainda nos tempos do Império Romano. Algumas desapareceram, e as que sobreviveram sofreram um refluxo populacional considerável no decorrer da Alta Idade Média. Contudo, entre os anos de 1100 e 1250, o mundo urbano ganhou vida nova. Muitas cidades importantes da Europa, tais como Hamburgo, Frankfurt, Innsbruck, Bruges, Gand, Oxford e Cambridge, começaram do nada a partir do século XII, enquanto cidades já existentes, como Londres, Paris, Colônia, Veneza, Gênova, Milão e Florença, cresceram numa proporção espantosa. Uma cidade comum deveria ter uns 2.500 habitantes, uma cidade importante 20 mil. Londres e Gênova gabavam-se de ter 50 mil cada; Paris, Veneza e Milão, mais de 100 mil habitantes.

Crescimento tão vertiginoso causou uma urbanização caótica. Eram casas de dois a quatro andares, geralmente de madeira sem tratamento especial, espremidas umas contra as outras em vielas estreitas e sinuosas, que tinham muito pouco do encanto que nos fascina atualmente. As vias públicas eram simples travessas, de até três metros de largura. Tal aglomeração representava uma caixa de lenha em potencial para incêndios, que destruíam periodicamente cidades inteiras. Não havia esgotos, nem depósitos de lixo. Todos os resíduos eram atirados na rua, onde as chuvas e os porcos, ratos e baratas se encarregavam da limpeza. O uso de calçamento iniciou-se na Itália em fins do século XI, difundindo-se gradativamente para as cidades do norte dos Alpes. Mesmo assim, numa cidade importante, como Paris, nenhuma rua tinha calçamento até 1183, quando Felipe Augusto mandou pavimentar a Estrada Real, diante do Louvre.

Com a falta de espaço dentro dos muros, os terrenos atingiam preços astronômicos e os poucos que tinham condições de comprá-los construíam para locação a uma multidão que mal podia arcar com o aluguel. A superpopulação e os altos preços dos aluguéis faziam com que, muitas vezes, cinco ou mais pessoas

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tivessem que dividir o mesmo quarto. Tal concentração de pessoas – em contato com animais pestilentos que se alimentavam da sujeira geral – teve consequências nefastas quando, a partir de 1347, a Peste Negra dizimou um terço da população da Europa.

4.2 O SISTEMA CORPORATIVO

Podemos definir a corporação medieval como um conjunto de indivíduos da mesma profissão, reunidos em corpo institucional, com seus regulamentos próprios, seus privilégios. Nas cidades medievais, todos os artesãos, comerciantes e mercadores agrupavam-se em Guildas ou Corporações de Ofício. As guildas originaram-se dos mercadores que empreendiam longas jornadas reunidos em caravanas, a fim de se garantirem contra os perigos do caminho. Viajando em conjunto, podiam não apenas manter longe os bandoleiros, como obter redução nos impostos de trânsito cobrados pelos nobres proprietários das terras por eles atravessadas. Essas vantagens palpáveis da ação coletiva eram mantidas no local de residência dos mercadores, pois, através das guildas, detinham o monopólio do mercado local e garantiam um sistema econômico estável, fixo, sem concorrência. Estabeleciam preços uniformes e puniam severamente os que sonegavam mercadorias ou abusavam dos preços.

Com o tempo, enquanto os ofícios especializados se multiplicavam, as guildas de mercadores foram sendo suplantadas pelas guildas de ofício (também denominadas Corporações de ofício). Cada ofício mantinha, orgulhosamente, sua própria guilda. Só o ramo têxtil, por exemplo, comportava as guildas dos mercadores de lã, dos mercadores de linho, de cânhamo, cardadores, fiadores, duas espécies de fiadores de seda, sete espécies de tecelões, tintureiros, tosquiadores e alfaiates. Suas práticas também visavam à proteção de mercado. Nenhum habitante da cidade poderia praticar um ofício se não pertencesse à respectiva guilda. Somente os produtos de seus membros poderiam ser vendidos no mercado. Por outro lado, em troca desta proteção, deveria o artesão submeter-se ao rigoroso regulamento que regia os diversos graus do artesanato.

Em cada guilda ou corporação de ofício havia três graus ou classes: aprendizes, oficiais e mestres. Por seu trabalho, o aprendiz não recebia, do Mestre que o instruía, nenhuma remuneração, apenas alojamento, alimentação e vestuário. Após um período de aprendizado, que variava de dois a 10 anos, tornava-se Oficial Diarista e podia alugar seu trabalho por jornada. Mas, ainda assim, só podia trabalhar com seu Mestre, a quem devia obediência incondicional. Para atingir a cúpula – o mestrado – tinha o Oficial que se submeter a um exame perante a direção da guilda. Em geral, exigiam-lhe que produzisse a sua “obra de mestre” - um produto que fosse a prova visível de sua capacidade no ofício. O novo mestre podia então confeccionar seus produtos e ter seus próprios aprendizes. Mas não era ainda um profissional autônomo. Era preciso esperar uma vaga de artesão-mestre, pagar determinada quantia à corporação para, aí sim, ter sua própria oficina. Até que isso acontecesse, continuaria a expor seus produtos na loja do antigo Mestre.

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Essencial na sociedade medieval, a oficina do artesão-alfaiate trabalha tanto sob medida para as classes altas, como em “prêt-à-porter” para as pessoas comuns. Com a ajuda do mestre-alfaiate, o cliente experimenta a nova roupa na oficina aberta para a rua. Ao fundo, um oficial e um aprendiz trabalham numa nova peça.

FIGURA - 65 OFICINA DO ARTESÃO-ALFAIATE

Essencial na sociedade medieval, a oficina do artesão-alfaiate trabalha tanto sob medida para as classes altas, como em “prêt-à-porter” para as pessoas comuns. Com a ajuda do mestre-alfaiate, o cliente experimenta a nova roupa na oficina aberta para a rua. Ao fundo, um oficial e um aprendiz trabalham numa nova peça.

FONTE: Disponível em: <http://classes.bnf.fr/ema/images/3/040.jpg>. Acesso em: 15 fev. 2013.

A excelência da mão de obra do artesanato medieval - visível ainda hoje nos edifícios, vitrais e iluminuras daquela época – em parte se deve a estas severas restrições comentadas anteriormente. O selo de “boa qualidade” - hallmark – era uma exigência e os inspetores da guilda estavam sempre à cata de contraventores e maus profissionais, os quais eram multados ou expulsos. O ideal da corporação era proporcionar oportunidades iguais a todos os seus membros, a competição entre eles era inadmissível. A jornada de trabalho, o número de aprendizes e os salários pagos aos oficiais eram rigorosamente os mesmos para todos os mestres. Esta necessidade de vigilância mútua fazia com que os mestres de um mesmo ofício quase sempre se congregassem num mesmo local: na rua dos mercadores, no beco dos ferreiros, dos padeiros, dos açougueiros etc.

Embora tivessem como propósito básico a proteção econômica, as guildas criaram uma forte união entre os seus membros, que excedia de muito o interesse econômico. Eram também uma irmandade de ajuda mútua. Se um homem adoecia, irmãos da guilda eram designados para tratá-lo. Se caía em necessidade ou invalidez, a irmandade mandava visitá-lo regularmente, levando-lhe alimentos

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e roupas comprados com recursos do fundo comum. Quando preso, pagavam-lhe a fiança ou resgate. Quando morria, todos os companheiros tinham que rezar por sua alma e os fundos comuns financiavam-lhe os funerais, sustentavam-lhe a viúva, saldavam-lhe as dívidas, dotavam-lhe a filha. Claro que todos os membros contribuíam com quotas para este fundo comum, o que, em certos aspectos, lembra os nossos atuais institutos de previdência privada. Além de sociedade beneficente, a guilda era também associação religiosa e clube social que lhe proporcionava vida social: banquetes na sala da associação, festas de santos, cortejos de procissões.

4.3 A FORMAÇÃO DA BURGUESIA

Com base nas informações obtidas até agora, podemos dizer que as guildas eram instituições rigidamente estratificadas. Limitando-se a admissão de aprendizes, estabeleceu-se o número mínimo daqueles que poderiam chegar a oficiais e, em seguida, a mestres. Os mestres transformaram-se, assim, numa casta superior aos demais trabalhadores. Contudo, com o passar do tempo, alguns mestres mais empreendedores começaram a infringir os regulamentos das guildas. Empregavam tantos aprendizes quantos achassem necessários, determinavam seu próprio ritmo e horário de trabalho e, desrespeitando o “preço justo” (tabelamento fixado pela guilda), cobravam os preços mais altos que podiam obter. Adquirindo assim reservas de capital, tornaram-se banqueiros e financiadores de empresas alheias. E, com o crescimento das fortunas, esta classe rica se apossou do título de burgueses, que antes era aplicado a todos os habitantes do burgo.

A partir de então, uma nova realidade se estabeleceu: o moderno ideal de riqueza e de conforto material. Um ideal que era o oposto daquele pregado pela Igreja, de desapego às coisas materiais. Esta contradição ficava mais visível na necessidade dos comerciantes e artesãos de fazerem empréstimos para financiar seus empreendimentos e, naturalmente, a aceitação de se pagar juros por este empréstimo. Atualmente, a palavra usura designa juros exorbitantes, mas na Idade Média chamava-se usura a cobrança de juros de qualquer espécie. Prática esta que a Igreja considerava como pecado mortal. Naturalmente, o tráfico de dinheiro entre credores e devedores cristãos também existia, mas exigia uma série de estratégias para camuflar a atividade. Os únicos que estavam livres de qualquer interdição da lei eclesiástica eram os judeus, que, se podiam praticar a usura, estavam impedidos de ingressar nas guildas e praticar qualquer ofício. Contudo, a partir do século XIII, a disseminação da prática também entre os cristãos levou a Igreja a aceitar a prática como inevitável, embora a condenação moral tenha permanecido até a reforma protestante do século XVI.

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FIGURA 66 - A MORTE E O AVARENTO

Neste quadro de Hieronymus Bosch podemos vislumbrar os perigos transcendentais das práticas burguesas. Tendo passado a vida preocupado em acumular capital – primeiro plano –, o burguês acamado enfrenta a morte inevitável. Em vão um anjo tenta lhe mostrar a luz proveniente do crucifixo preso na elevada janela. Dentro do confortável quarto com ampla cama de dossel, o moribundo agarra-se a um saco de dinheiro enquanto diversos diabos aguardam o momento decisivo.

FONTE: Disponível em: <http://1.bp.blogspot.com/-_ANDKqx0D6c/TlgTTSTNzTI/AAAAAAAAATA/EL8qneLJCa4/s1600/bosch_a_morte_ e_o_avarento.jpg>. Acesso em: 15 fev. 2013.

Aos poucos, a força desta nova classe burguesa foi se tornando cada vez mais considerável, a ponto de rivalizar com os dois outros estados privilegiados do mundo feudal: a nobreza e o clero. O burguês desprezava o ócio do cavaleiro e do monge e fazia do trabalho e do acúmulo de riquezas seu próprio ideal de vida. Não por acaso, desde a literatura cavalheiresca da nobreza – os romances de cavalaria –, a palavra “vilão” (habitante da cidade) passou a carregar todos os estigmas da mesquinharia e da avareza, da “falta de nobreza” de sentimentos. Independente de detalhes pitorescos, a força econômica destes burgueses transformou-se em força política. Dependentes de financiamento, os senhores de território davam aos burgueses voz em seus conselhos. Por sua vez, os comerciantes apoiavam os senhores de território na sua luta pela monopolização do poder contra os senhores feudais, estimulando assim o nascimento dos estados nacionais absolutistas.

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Caro(a) acadêmico(a), como você já sabe, no próximo tópico veremos o papel das Cortes medievais no surgimento dos Estados Absolutistas.

5 O MOVIMENTO COMUNAL E AS CIDADES LIVRES

Como vimos, no início do renascimento urbano na Europa, as cidades estavam sujeitas ao poder do senhor feudal, que administrava a justiça e impunha toda uma série de tributos, multas e condenações. Para sujeitar a cidade à sua autoridade, muitos senhores construíam castelos no meio urbano, que eram mais um local de poder militar, de controle, do que residência. Contudo, ainda no século XI, algumas cidades começaram uma luta, sempre renovada, para conseguir cartas e forais de seus senhores locais. Estes documentos garantiam oficialmente certa autonomia da cidade em relação ao castelo que controlava a região; autonomia configurada em alguns direitos, tais como: governo próprio, promulgação de suas próprias leis e lançamentos de impostos. Os elementos urbanos desejavam libertar-se da participação compulsória nas aventuras militares do senhor feudal. Queriam ter os seus próprios tribunais e as suas próprias leis. O ordálio pelo fogo ou pela água, ou o julgamento em combate singular, pareciam-lhes inadequados para resolver questões comerciais.

Nascida das aspirações dos mercadores e artesãos pela liberdade econômica, esta luta recebeu o nome de movimento comunal. Muitas vezes esta luta fez-se de modo bastante violento, como em Lâon, no norte da França, onde a cidade rebelada esquartejou o senhor. Compreende-se assim a função das muralhas nestas lutas pela autonomia política. Outras vezes, o processo se fez de modo mais pacífico. Em todo caso, quando uma cidade arrancava do senhor feudal uma carta de liberdade, ela se transformava numa comuna, uma forma inédita de organização coletiva.

FIGURA 67 - CIDADE DE LUCIGNANO D’ASSO, NA TOSCANA (ITÁLIA)

FONTE: Disponível em: <http://www.borgolucignanello.com/images/borgo-lucignanello.jpg> Acesso em: 17 out. 2012.

ESTUDOS FUTUROS

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Uma vez conquistada esta autonomia, a cidade medieval transformou-se num campo propício para experiências sociais e políticas. A forma de governo da maioria das cidades era uma espécie de República oligárquica. Geralmente, cada guilda da cidade escolhia seus representantes para um Conselho Urbano. Este Conselho lançava taxas e impostos que cuidavam dos reparos nas muralhas e nas ruas, fundava serviços de caridade, fiscalizava os mercados, mantinha uma milícia urbana, além de legislar sobre questões de urbanismo e higiene pública. O ideal do “bom governo”, tema fundamental da ideologia política medieval, tinha duas grandes palavras de ordem: Paz e Justiça. A paz consistia em evitar discórdias, evitar que se formassem grupos hegemônicos de famílias que podiam tomar a dimensão de gangues aristocráticas urbanas, e também fazer reinar a segurança. A justiça era fundamentalmente a ordenação de uma tributação justa, que pesava de modo proporcional aos recursos dos citadinos e não muito severa com os pobres. Enfim, o bom governo deveria fazer funcionar instituições relativamente democráticas, relativamente igualitárias, impedindo, assim, que qualquer pessoa ou família confiscasse os poderes e se tornasse um tirano urbano.

FIGURA 68 – OS EFEITOS DO BOM GOVERNO NA CIDADE

Trabalhos e diversão, riqueza e beleza, harmonia e bem-estar da comunidade é o ideal do bom governo urbano.

FONTE: Disponível em:http://www.ricardocosta.com/sites/default/files/ambrogio/ambrogio1.jpg>. Acesso em: 15 fev. 2013.

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SUGESTÃO DE LEITURASe você quiser obter uma boa análise desta obra, leia o artigo: COSTA, Ricardo da. “Um espelho de príncipes artístico e profano: a representação das virtudes do Bom Governo e os vícios do Mau Governo nos afrescos de Ambrogio Lorenzetti (c.1290-1348) - análise iconográfica”. Utopía y Praxis Latinoamericana. Revista Internacional de Filosofìa Iberoamericana y Teoría Social. Maracaibo (Venezuela): Universidad del Zulia, v. 8, n. 23, octubre de 2003, p. 55-71. O artigo pode ser encontrado nesta página: <http://www.ricardocosta.com/pub/lorenzetti.htm>.

Apesar do ideal de bom governo, o nivelamento social conseguido por detrás das muralhas da cidade com o movimento comunal não durou muito tempo. Os dirigentes das mais ricas corporações de ofício e os grandes mercadores monopolizaram o governo comunal, constituindo-se numa classe privilegiada, protegida por um sistema oligárquico fechado, contra o qual se levantaram os menos favorecidos, ou seja, a sempre crescente população urbana não representada pelas guildas. O século XIV, em particular, foi um período de revoltas urbanas em toda a cristandade. Elas aconteceram em Castela, na Inglaterra, na Itália, na Alemanha e na França. Destas revoltas urbanas ganharam notoriedade a de Etienne Marcel, em Paris, a de Cola di Rienzi, em Roma, e a de Savonarola, em Florença. Apesar do fim trágico de todas estas revoltas, cruelmente esmagadas, elas demonstraram que foi nas cidades medievais que se esboçou pela primeira vez a ideia igualitária. Coincidentemente, o fracasso das revoltas “democráticas” situa-se no limiar da centralização monárquica que, por fim, com uso de infantaria e de canhões, engoliu a independência das cidades, assaltando e derrubando suas muralhas.

A partir de então, a cidade e seu governo republicano sucumbem à forte hierarquia, aos privilégios do Estado Absolutista. Somente a partir das revoluções burguesas do século XVII, na Inglaterra, e do século XVIII, na França, as cidades voltariam à cena política, desta vez, definitivamente.

UNI

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LEITURA COMPLEMENTAR 1

A FORMAÇÃO DE UM MERCADOR

Godric de Finchale, que veio a ser santificado, começou a sua vida como mercador. Nasceu de pais lavradores, no Lincolnshire, em fins do século XI. A narrativa de sua primeira atividade ajuda-nos a entender como se deu o aparecimento de um novo tipo de mentalidade e profissão.

Quando rapaz, depois de ter passado os anos da infância sossegadamente em casa, chegou à idade varonil, principiou a seguir meios de vida mais prudentes e a aprender com cuidado e persistência o que ensina a experiência do mundo. Para isso, decidiu não seguir a vida de lavrador, mas antes estudar, aprender e exercer os rudimentos de concepções mais sutis. Por essa razão, aspirando à profissão de mercador, começou a seguir o modo de vida do vendedor ambulante, aprendendo primeiro como ganhar em pequenos negócios e coisas de preço insignificante e então, sendo ainda um jovem, o seu espírito ousou a pouco e pouco comprar, vender e ganhar com coisas de maior preço. [...].

Primeiro viveu como um mercador ambulante por quatro anos no Lincolnshire, andando a pé e carregando fardos muito pequenos; depois viajou para longe, primeiramente até Saint Andrews, na Escócia, e depois pela primeira vez até Roma. No retorno, tendo feito uma amizade familiar com certos outros jovens que ambicionavam mercadejar, começou a lançar-se em viagens mais atrevidas e a ir por mar, junto à costa, até as terras estrangeiras que ficavam à volta. Assim, navegando muitas vezes entre a Escócia e a Bretanha, negociou em mercadorias variadas e no meio destas ocupações aprendeu muito da sabedoria do mundo. [...] Porque trabalhava não apenas como mercador, mas também como marinheiro [...] para a Dinamarca, a Flandres e a Escócia; nas terras onde encontrava certas mercadorias raras e por isso mais preciosas, transportava-as para outras partes onde sabia que eram menos familiares e cobiçadas pelos habitantes a preço de ouro. Fez desta maneira muitos lucros com todas as suas vendas e reuniu avultados bens com o suor do seu rosto, visto que vendia caro num lugar as mercadorias que tinha comprado noutro por um preço inferior.

FONTE: Adaptado de: Reginald of Durham, Libellus de Vita et Miraculis S. Godrici, Heremitae de

Finchale, Ed. Stewenson, Londres, 1847. In: ESPINOSA, Fernanda. Antologia de textos

medievais. Lisboa: Sá da Costa, 1981, p. 198.

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TÓPICO 4 | O RENASCIMENTO COMERCIAL E URBANO

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LEITURA COMPLEMENTAR 2

AS FEIRAS DA CHAMPAGNE

As feiras da Champagne foram essencialmente o ponto de encontro do artesanato europeu – principalmente flamengo – e do comércio italiano. Daí os tecidos nórdicos demandavam as terras mediterrânicas, enquanto as especiarias entradas pelo sul se encaminhavam para os portos dos mares do Norte e Báltico. Tendo-se desenvolvido sobretudo no século XII, estas feiras atingiram seu auge no século XIII. O fato de nelas se encontrarem mercadores de toda a Europa permitiu que aí se realizassem grandes operações de câmbio e se desenvolvessem as técnicas de crédito, como se vê nesta carta a um importante mercador da cidade de Siena:

Troyes, 29 de novembro de 1265.

A Messer Tolomeu e aos outros sócios:

Andrea envia-vos saudações. E deveis saber que os sieneses que aqui estão despacharam [as suas cartas] por um mensageiro comum depois da última feira de Saint-Ayoul, como habitualmente. Envio-vos um rolo de cartas por Balza, um correio de Siena. Se as não receberdes, tentai alcançá-las [...].

Aqui as mercadorias vendem-se tão mal que parece mesmo impossível vender alguma coisa; e há imensa quantidade delas. A pimenta vale aqui [...] libras a carga e não se vende bem. O gengibre, de 22 a 23 dinheiros, dependendo da qualidade. O açafrão tem sido muito procurado, vendendo-se a 25 soldos a libra e já não há nenhum no mercado. A cera de Veneza, a 23 dinheiros a libra. A cera de Túnis a 21 dinheiros e meio. O sócio de Scotto tem uma quantidade de mercadorias e não consegue transformá-las em dinheiro; está tentando enviá-las para a Inglaterra a fim de aí as vender. O câmbio do esterlino faz-se a 59 soldos o marco. A boa moeda de Freiburg a 57 soldos e 6 dinheiros o marco. [...].

Se não haveis pago 10 libras pequenas sienesas a mulher de Giacomino del Carnaiuolo, como vos comuniquei da passada feira de Saint-Ayoul, pagai-as, porque são pelas 3 libras provinesas que recebi do dito Giacomino. E lançai-as no

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UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

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meu débito em relação à passada feira de Saint-Ayoul, pois assentei-as em relação à dita feira e esqueci-me de o escrever na carta que vos enviei da dita Saint-Ayoul. [...].

FONTE: Adaptado de: Paolo e Piecolomini, carta comum cit. Em Louis Gothier et Albert Trous,

Recueills. De textes d’ histoire pour l’ ensseignement secondaire. In: ESPINOSA,

Fernanda. Antologia de textos medievais. Lisboa: Sá da Costa, 1981. p. 206.

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RESUMO DO TÓPICO 4

Neste tópico você viu que:

● Com as cruzadas, a Europa voltou a se integrar às rotas de comércio a longa distância. A dispersão do comércio, pelo interior da Europa, desenvolveu um sistema de trocas locais que interagiam com o comércio a longa distância.

● O aumento do sistema de trocas fez aumentar a produção e o consumo de produtos entre a população. Criou-se, assim, um local permanente de venda e compra de produtos: as feiras. Estes locais eram determinados por duas variantes: proteção e facilidades de comunicação.

● O estabelecimento das rotas e feiras comerciais alterou o equilíbrio de forças no mundo feudal em favor dos senhores ligados ao setor monetarizado e em detrimento dos senhores que dependiam apenas da economia natural para sobreviver.

● A atração exercida pelos locais de feira sobre o excesso social de população fez com que elas se transformassem no forisburgo, que também se cercou de muralhas de proteção, fazendo nascer a cidade medieval.

E, sobre a vida urbana, você também viu que:

● Por força da pressão demográfica e da necessidade de proteção, as cidades medievais tinham um urbanismo caótico, sendo a verticalização uma tendência arquitetônica, devido à falta de espaço entre as muralhas.

● Com muitas pessoas vivendo no mesmo espaço, aumentavam os preços dos imóveis e dos aluguéis, os riscos de incêndio e de contágio de doenças.

● A economia urbana era corporativa. As guildas de comerciantes e artesãos tinham por objetivo garantir o monopólio do comércio e controlar os preços das mercadorias. As guildas de artesãos tinham a função de controlar a produção, juntamente com a qualidade dos produtos comercializados nas cidades, e garantir o monopólio das atividades profissionais.

● Havia uma forte estratificação hierárquica na produção artesanal em três estágios. Na base, o aprendiz trabalhava sem remuneração para aprender o ofício. Após alguns anos, o aprendiz transformava-se em Oficial diarista, recebendo então um salário por jornada de trabalho. No topo da escala estava o mestre artesão ou mestre de ofício. Este era o proprietário de tudo: ferramentas, matéria-prima e o produto final. Ele tinha o conhecimento de todo o processo da produção.

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● A partir do século XI, o aumento da riqueza e do prestígio das cidades fez nascer o chamado movimento comunal, que buscava, por todos os meios, conquistar a autonomia política e administrativa, em relação ao senhor de território.

● Conquistada a autonomia, as cidades livres, ou comunas, começaram a planejar uma forma de governo - geralmente uma república oligárquica comandada por um conselho de representantes eleitos por todas as guildas da cidade. O Conselho encarregava-se de administrar e defender a cidade.

● Ao fim do medievo, os estatutos e laços comunais desagregaram-se por força de um duplo movimento: por um lado, os burgueses de maior riqueza e poder, na busca de maior lucratividade, passaram a burlar o sistema do justo preço; e por outro, a maioria da população excluída do sistema de guildas tentou tomar o poder através de inúmeras revoltas urbanas.

● Neste mesmo período, a força das monarquias, em vias de centralização, fez-se sentir sobre as cidades, através da infantaria e da artilharia, e as comunas perderam a sua liberdade.

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AUTOATIVIDADE

As perguntas que motivaram o desenvolvimento deste tópico agora servirão para que você organize uma síntese deste conteúdo.

1 Como se deu e qual o significado do renascimento comercial da Europa Cristã?

2 Quais os fatores que levaram a Europa Cristã a ter um incremento dos centros urbanos a partir do século XII?

3 O que eram as guildas ou corporações de ofício?

4 Como era a forma de governo mais característica das cidades medievais?

5 O que foi o movimento comunal?

6 Por que as cidades perderam sua liberdade em fins da Idade Média?

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TÓPICO 5

AS CORTES MEDIEVAIS

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Quando lançamos uma visão panorâmica nos mil anos de Idade Média, podemos perceber um duplo movimento, a saber: 1) Na Alta Idade Média, um processo de desintegração total da autoridade, dos direitos, das oportunidades de governar, culminou num sistema de posições fechadas, conhecido como Feudalismo. 2) Na Baixa Idade Média, com a reintrodução da economia monetária, verificam-se as primeiras formas de reintegração política, econômica, social e cultural, culminando num processo de monopolização do poder, conhecido como Estado Nacional Absolutista.

Estas primeiras formas de reorganização do Estado são conhecidas como Cortes Medievais. E elas são o tema deste tópico.

2 AS PRIMEIRAS FORMAS DE REINTEGRAÇÃO POLÍTICA

Como já vimos, o aumento da população havia criado um excesso social de população e – com a lei da primogenitura - grande parcela da população nobre ficou sem propriedades. Estes nobres sem terra promoveram então uma expansão interna da sociedade – desmatamento de florestas e drenagem de pântanos – e, também, uma expansão externa sobre as áreas dominadas pelo Islã e eslavos na Europa oriental. A partir de 1095, convocados pelo Papado, essa massa de cavaleiros, que já estava em movimento de conquista de novas terras, foi orientada para a conquista da Terra Santa. Vimos também que as Cruzadas haviam fracassado enquanto empreendimento militar de conquista, mas haviam reintroduzido a Europa no comércio internacional.

Findas as Cruzadas, as oportunidades novamente se fecharam para esta crescente classe de nobres sem terra. Muitos procuraram comprar cargos na Igreja, outros se dirigiram às nascentes cidades, mas a maioria foi absorvida pelas Cortes Medievais. A partir de agora, vamos tentar entender qual a importância destas instituições para a consolidação do processo de monopolização territorial que culminou no Estado Nacional Absolutista.

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UNIDADE 3 | A ERA DAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES

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2.1 OS EFEITOS DO COMÉRCIO

Você já sabe que o crescimento do comércio e da circulação de riquezas provocou profundas mudanças nas relações de vassalagem no interior da sociedade feudal. Este setor monetário beneficiou alguns poucos senhores, que tinham suas terras por onde passavam as rotas comerciais ou onde se localizavam as feiras, em detrimento da imensa maioria de senhores secundários que ainda permaneciam ligados à economia natural. Isto provocou um desequilíbrio nas antigas relações feudais.

Enquanto aos clãs menores faltavam terras para permitir que todos os filhos fossem herdeiros, aqueles grandes senhores podiam agora absorver esse excesso de população de nobres sem terra, que encontravam abrigo, vestuário e alimento nos castelos dos grandes senhores pela prestação de algum serviço. Já estes grandes senhores – servidos agora por este novo exército de vassalos – puderam impor sua autoridade a todos os outros senhores menores. Como contavam agora com uma fonte de renda quase inesgotável – o comércio e as cidades situadas em seu território –, estes senhores conseguiam escapar do círculo perpétuo de distribuição de terra em troca de serviços e da subsequente apropriação da terra pelos vassalos, constituindo-se, assim, numa nova força detentora de poder territorial e político.

2.2 OS TIPOS DE NOBREZA FEUDAL

Então, podemos dizer que a partir do século XII distinguem-se claramente três formas de existência na nobreza feudal:

1) As grandes e médias cortes – senhores de territórios – ligadas ao setor monetarizado das rotas comerciais, que exerciam um controle militar e fiscal sobre terras que se espalhavam por diferentes regiões, obtidas por conquista, herança, doação ou casamento.

2) Os senhores feudais propriamente ditos, que continuavam ligados à economia natural, sobrevivendo da corveia de seus próprios campos e que, quanto mais miseravelmente viviam, mais eram atraídos para a esfera de influência das grandes cortes.

3) Os cavaleiros menores que, em consequência da excessiva fragmentação do feudo paterno e da lei da primogenitura, não dispunham de terra e, assim, permaneciam celibatários, pois não podiam legar aos filhos uma descendência andrajosa. Para poder sobreviver, estes últimos geralmente se colocavam a serviço das grandes cortes, armando-se como cavaleiros.

Através de uma grande cavalaria, estes grandes senhores tornaram-se hegemônicos sobre territórios cada vez mais amplos, que se espalhavam por diferentes regiões (obtidas por conquista, herança, doação ou casamento), nas quais exerciam um controle militar e fiscal. Convertendo-se em centros políticos, estas cortes transformam-se também em centros potenciais de patrocínio literário

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TÓPICO 5 | AS CORTES MEDIEVAIS

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2.1 OS EFEITOS DO COMÉRCIO

2.2 OS TIPOS DE NOBREZA FEUDAL

e historiográfico, em locais para exibir o poder e a riqueza dos senhores. Na concorrência com outras cortes e na busca de prestígio, estes senhores de território tinham também a seu serviço artistas e intelectuais, músicos, cantores, ourives, pintores, bufões, palhaços, trovadores, cronistas e poetas. Um ditado da época ilustra bem esta busca de prestígio. “Quanto mais importante é o Senhor, mais inspirado é o poeta”.

FIGURA 69 - O CÓDIGO DE CAVALARIA EXIGIA QUE O CAVALEIRO FOSSE LEAL E DEFENDESSE A TODOS

FONTE: Disponível em: <http://www.gregology.net/library/images/Gregsguidetochivalry/index.1.jpg>. Acesso em: 6 nov. 2012.

Na imagem, a perspectiva romântica da cavalaria, por Sir Frank Dicksee.

Na França, por exemplo, o clã dos Capetos (987-1328) tinha seu núcleo original na região de Île-de-France. Mas soube bem utilizar os recursos advindos do controle do rio Sena – importantíssimo para as redes de rotas comerciais que cruzavam a Europa –, assim como seu controle sobre as cidades de Paris e Orléans. Por confisco, casamento, doação e, principalmente, pela força de sua cavalaria,

UNI

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os reis dessa dinastia estenderam seus domínios sobre um território que ia do Canal da Mancha até os Pirineus. Na Inglaterra, a monarquia foi fundada por Guilherme (William), Duque da Normandia, que, em 1066, conquistou o país aos anglo-saxões. Começou Guilherme por exigir de cada nobre senhor anglo-saxão um juramento de vassalagem, confiscando as propriedades de todos que lhe recusavam esse juramento. Os descendentes de Guilherme continuaram o processo de centralização, transformando as terras conquistadas em domínio real e estabelecendo, através da Curia Regis (Conselho do Rei), uma regulamentação jurídica e um aparato administrativo que obrigava seus vassalos a cumprirem as suas ordens.

3 AS DISPUTAS ENTRE PODERES PARTICULARES E UNIVERSAIS

Se a constituição das Cortes Medievais significava a vitória dos senhores de território sobre os poderes locais dos senhores feudais isolados, para Hilário Franco Jr. (2004) estas cortes medievais e os Estados-Nações delas advindos foram também resultado da vitória dos poderes particularistas (nação, língua vulgar, laços tribais germanos) sobre os poderes universalistas (o Papado e o Sacro Império). Sabemos que os poderes universalistas estavam em choque constante, porque pela própria natureza do que reivindicavam – a herança do Império Romano – somente um deles poderia ter sucesso. É exemplo desta disputa, em primeiro lugar, a questão das Investiduras, que envolveu o Papado e o Imperador do Sacro Império, para definir quem tinha a supremacia: se o poder temporal ou o poder espiritual (o imperador ou o papa). A Concordata de Worms definiu a vitória do Papado, mas o episódio do Cativeiro do Papado, em Avignon, por ordem de Felipe IV – Rei da França, demonstrou que tanto o Império como o Papado tinham sucumbido a uma nova força: o Estado nacional absolutista.

A questão das Investiduras foi um conflito entre a Igreja Católica e o Sacro Império Romano pela hegemonia política e religiosa na Europa Medieval. Começou quando Hildebrando da Toscania, um dos primeiros papas eleitos pelo Colégio de Cardeais, tornou-se chefe da Igreja no ano de 1073 com o nome de Gregório VII. Gregório empreendeu uma série de reformas, condenando a simonia e o nicolaísmo, sendo que uma das mais importantes foi a que retirou do Imperador do Sacro Império Romano Germânico o direito de nomear bispos e outros clérigos em seu território. Henrique IV, da Germânia, então imperador do Sacro Império, continuou a exercer a investidura leiga e, por isso, foi excomungado pelo papa. Com a excomunhão, seu posto correu perigo, pois seus vassalos não mais se sentiam obrigados a lhe dever obediência. Diante disso, Henrique pediu perdão ao papa. Após uma série de reviravoltas, a Concordata de Worms (1122) pôs fim à questão, marcando o início da sobreposição da autoridade papal sobre a imperial.

O cativeiro de Avignon (1305-1377), conflito entre Filipe IV e o Papa Bonifácio VIII, que buscavam afirmar seu direito sobre o reino. Filipe IV expulsou os coletores de impostos papais e transferiu a sede do papado para a cidade de Avignon, submetendo o papa à monarquia francesa. O Cisma do Ocidente (1378-

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1415) ocorreu quando constituíram dois papados na Europa Ocidental: um em Roma (apoiado pelos italianos) e outro em Avignon (sustentado pelo rei da França). A restauração do papado na Itália se deu com o Concílio de Constança, quando a autoridade papal já não representava uma ameaça ao poder nacional.

FIGURA 70 - O PALÁCIO PAPAL EM AVIGNON, LOCAL DA SEDE DO PAPADO DURANTE O CISMA DO OCIDENTE

FONTE: Disponível em: <http://soa111.files.wordpress.com/2011/02/avignonpapalpalace1.jpg>. Acesso em: 5 dez. 2012.

A vitória dos Estados-Nação sobre os poderes universalistas teve profundas consequências para o futuro político da Europa. A Inglaterra e a França – exemplos típicos de modernas Monarquias Nacionais Absolutistas – centralizaram-se e, ao longo de toda a Idade Moderna, disputaram entre si a supremacia política e econômica, - que só foi vencida, finalmente, pela Inglaterra, quando da queda de Napoleão (Waterloo,1815). Alemanha e Itália, com suas – bases nacionais debilitadas pelas lutas entre o Império (Alemanha) e o Papado (Itália) – perderam a oportunidade histórica de se organizar como Estados centralizados. Desta forma, por muito tempo, Alemanha e Itália permaneceram apenas realidades geográficas e não realidades políticas.

Hilário Franco Jr. (2004, p. 65) faz a seguinte afirmação sobre o fracasso do nacionalismo alemão e italiano:

Perdidas as chances de obter colônias no Novo Mundo dos séculos XVI-XVII, atrasadas na industrialização dos séculos XVIII-XIX, secundarizadas na partilha da África e da Ásia no século XIX, aquelas nacionalidades sentiam cada vez mais a necessidade de se corporificar politicamente. Tal ocorreu em 1870-1871, mas como o atraso relativo já existia, aqueles novos Estados precisaram adotar uma política agressiva, que esteve nas raízes das duas Grandes Guerras do século

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XX. O fracasso do nacionalismo alemão e italiano na Idade Média foi fator essencial para explicar sua virulência nas últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX.

4 A GUERRA DOS CEM ANOS E O NASCIMENTO DA MONARQUIA ABSOLUTISTA

Curiosamente, e não por acaso, as duas monarquias mais importantes da Europa Moderna (França e Inglaterra) se consolidaram a partir de uma guerra dinástica que durou cem anos. Já falamos que as Cortes Medievais foram mecanismo de monopolização de poder político e territorial. Neste processo, elas foram eliminando ou absorvendo os adversários menores até que, em um dado momento, elas próprias tiveram que se enfrentar. O ápice deste processo ocorreu quando os dois últimos concorrentes se enfrentaram na Guerra dos Cem Anos: os Capetos e os Plantagenetas.

Enquanto os Capetos, a partir de Paris, consolidavam seu poder no norte da França, Godofredo - o Plantageneta -, conde de Anjou, consolidava seu poder no sul da França. Em 1128, Godofredo casou-se com Matilde I, bisneta de Guilherme, o Conquistador, e herdeira do trono da Inglaterra. O filho nascido deste casamento, Henrique II, tornou-se rei da Inglaterra e, como se casou com Leonor da Aquitânia, tornou-se também senhor deste território do sul da França. Henrique II era, portanto, Rei da Inglaterra, Duque da Normandia, Conde de Anjou e Conde da Aquitânia e Gasconha. E a disposição destes territórios cercava os domínios dos Capetos por todos os lados, impedindo sua futura expansão.

Desde então, as relações entre os clãs Capeto e Plantageneta foram marcadas por conflitos políticos e militares. Isto culminou na questão da soberania da Gasconha. Pelo Tratado de Paris (1259), Henrique II da Inglaterra abandonara suas pretensões sobre a Normandia, Maine, Anjou, Touraine e Pointou, conservando apenas a Gasconha. Os constantes conflitos resultavam do fato de o rei inglês, que era Duque da Gasconha, ressentir-se de ter de pagar tributo pela região aos reis franceses e de os vassalos gascões frequentemente apelarem ao soberano Capeto contra as decisões tomadas pelas autoridades inglesas na região. Além desses litígios no Norte e no Sul, as influências de Capetos e Plantagenetas eram também opostas na região de Flandres (atuais Bélgica e Holanda).

A nobreza destes territórios era formada por vassalos dos Capetos e devia-lhes lealdade; por sua vez, a burguesia desta importante região manufatureira estava ligada economicamente à Inglaterra.

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TÓPICO 5 | AS CORTES MEDIEVAIS

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4 A GUERRA DOS CEM ANOS E O NASCIMENTO DA MONARQUIA ABSOLUTISTA

Além do intenso comércio estabelecido na região, Flandres era importante centro manufatureiro de tecidos, e dependia enormemente da lã produzida na Inglaterra. Essa camada urbana vinculada à produção de tecidos e ao comércio posicionava-se a favor dos interesses ingleses e, portanto, contra os interesses políticos dos Capetos na região. Resolveram, flamengos e ingleses, estabelecer uma aliança, que irritou profundamente o rei da França, também interessado na região.

FONTE: Disponível em: <http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/guerra-dos-cem-anos/guerra-dos-cem-anos-4.php>. Acesso em: 3 mar. 2013.

FIGURA 71- JOANA D’ARC, UMA JOVEM DA LORENA, GUIADA POR UMA VISÃO DIVINA, COMANDOU OS EXÉRCITOS FRANCESES NA DERROTA DOS BRITÂNICOS. CAPTURADA, FOI ACUSADA DE HERESIA PELOS INGLESES E QUEIMADA NA FOGUEIRA

FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/9/96/Joan_of_arc_burning_at_stake.jpg/220px-Joan_of_arc_burning_at_stake.jpg>. Acesso em: 13 dez. 2012.

O estopim dos conflitos se deu com o problema sucessório resultante da morte de Carlos IV – terceiro e último filho de Filipe IV, em 1328. Coincidentemente, entre os possíveis sucessores do último Capeto estava o Plantageneta Eduardo III, que, na qualidade de sobrinho do falecido monarca Capeto, era detentor dos títulos de Duque de Guyenne e Conde de Pontieu. Embora o Plantageneta apresentasse melhores credenciais ao trono vago do que Filipe de Valois – membro de um ramo secundário da familia real –, uma assembleia de nobres franceses aclamou como Rei Felipe de Valois.

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Ao assumir o trono, Felipe VI estava ciente do perigo que representava a política expansionista dos Plantagenetas e da grave ameaça que representava para seus domínios a existência de um ducado leal àquela casa. Assim, em 24 de maio de 1337, Felipe VI invadiu o Ducado de Guyenne, pertencente aos Plantagenetas, que revidaram desembarcando um exército inglês na região de Flandres. Estava iniciada uma guerra que duraria mais de cem anos e que, terminando com a vitória dos Valois franceses, marcou o fim da Idade Média, com a consolidação dos Estados Nacionais Absolutistas da França e da Inglaterra.

5 AS MULHERES E A SOCIEDADE

Foram as mulheres que viviam nas cortes as primeiras a serem liberadas para o desenvolvimento intelectual, para a leitura. As riquezas das grandes cortesãs davam às mulheres a possibilidade de preencher seu tempo de ócio e dedicar-se a interesses de luxo e lúdicos passatempos.

Claro que a dominação masculina não foi quebrada, mas as mulheres da fina camada da elite cortês ganharam importância destacada a partir do século XII. Não por acaso, alguns autores destacam que foi nessa mesma época que o culto da Virgem Maria ganhou importância e adeptos. Além do mais, em todas as grandes civilizações, as pressões sobre a vida sexual das mulheres foram consideravelmente mais fortes do que as exercidas sobre homens de igual nascimento. Apenas na sociedade cristã ocidental elas conseguiram ter liberdades que chocavam muçulmanos e chocariam hindus e chineses contemporâneos.

O que tornou possível esta liberdade foram as relações estabelecidas nas cortes medievais, pois nelas acontecia o relacionamento de um homem socialmente inferior e dependente com uma mulher de classe mais alta. Era isso que dava origem à contenção dos impulsos dos machos, a renúncia ao assalto sexual e a consequente transformação do comportamento. Foi exatamente isso que aconteceu nas cortes medievais. As mulheres que as frequentam eram superiores aos homens. Elas, ou são membros do clã senhorial ou são herdeiras e estão ali aos cuidados destes mesmos senhores. Já os Juniores (cavaleiros) não recebem esta denominação porque são necessariamente jovens, mas sim, porque, não tendo terras, não podem se casar e, portanto, não podem ser sênior.

Assim, da forma como as cortes se organizaram socialmente, surgiram contatos entre homens e mulheres que tornaram impossível o homem simplesmente tomar a mulher quando ela lhe agradasse. O que tornava a mulher inacessível ou acessível apenas após duras provações e, talvez porque ela fosse de classe mais alta e difícil de conquistar, especialmente desejável. Tal foi a situação, o evento social, no qual se originou a poesia lírica dos trovadores. Da mesma forma, foi através dessa poesia que se produziu uma forma de prazer sublimada, uma nuança de emoções, um refinamento de sentimentos que chamamos de Amor Cortês.

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5 AS MULHERES E A SOCIEDADE

No texto que segue temos um exemplo da disputa entre as casas dos Plantagenetas e dos Capetos pela centralização política. João, rei plantageneta da Inglaterra, era também conde de Anjou e duque da Aquitânia. Estes últimos territórios também eram cobiçados por Felipe Augusto, rei Capeto da França, que, aproveitando o descontentamento dos nobres destas regiões, confiscou estes territórios. Apenas mais um incidente que levaria à Guerra dos Cem Anos entre as duas casas reais.

LEITURA COMPLEMENTAR

O rei Filipe tinha ordenado muitas vezes ao rei da Inglaterra que terminasse o ataque aos condes franceses e fizesse a paz com os seus homens. Mas quando o rei de Inglaterra se recusou a dar ouvidos às alegações e ordens do rei de França, foi intimado pelos barões do reino da França, na qualidade de Conde de Anjou e Duque da Aquitânia, a vir à corte do seu senhor, o rei de França, em Paris, e aceitar o julgamento da corte. [...].

O rei de Inglaterra, todavia, replicou que, como duque da Normandia, não era obrigado a vir a Paris [...]. O rei Filipe, em resposta, disse que era de justiça que ele perdesse os seus direitos sobre a Aquitânia, porque o duque da Normandia e o duque da Aquitânia eram a mesma pessoa. [...] Finalmente, a corte do rei de França decidiu que o rei de Inglaterra perdesse todas as terras que tinha recebido do rei de França, visto que por um longo período havia deixado quase por completo de prestar os serviços devidos por estas terras e porque não obedecia a quaisquer ordens de seu senhor. [...].

FONTE: Adaptado de: Ralph of Coggeshall. Chronicon Anglicanun. In: ESPINOSA, Fernanda. Antologia de textos medievais. Lisboa: Sá da Costa, 1981, p. 319-320.

NOTA

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Neste tópico você viu que:

● As forças descentralizadoras que levaram à fragmentação política da Alta Idade Média, que culminou no feudalismo, foram: a patrimonialidade do Reino; a vassalagem; a fusão do poder temporal e espiritual; a falta de unidade política do Império Carolíngio e, finalmente, as invasões dos séculos IX e X.

● Foi devido à profunda fragmentação feudal que a Europa cristã pôde resistir às invasões dos séculos IX e X.

● A reintrodução da economia monetária, na Baixa Idade Média, produziu as primeiras formas de organização política e territorial.

● As cortes medievais foram os agentes deste processo de centralização política, pois:

- atraíam e absorviam o excesso social de população através da instituição da cavalaria de Juniores;

- contavam com uma fonte de receita que tornava possível a construção de uma organização estatal sem a distribuição de terras aos colaboradores;

- na competição entre elas, a busca por prestígio fazia com que fossem centros de patrocínio literário e artístico.

● A Guerra dos Cem Anos foi o duelo final entre os dois últimos competidores deste processo de centralização: os Capetos e os Plantagenetas; a definição desta guerra consolidou as duas monarquias absolutas mais importantes da era moderna: Inglaterra e França.

● A constituição de Monarquias Nacionais Absolutistas significou a vitória dos elementos particularistas (nação, língua vernácula, laços tribais e regionais) sobre os elementos universalistas da Idade Média (Igreja e Império).

● A derrota do Império e da Igreja significou um atraso considerável para as suas bases nacionais (Alemanha e Itália), e suas consequências foram sentidas em pleno século XX.

● Nas cortes medievais, pelo aumento da interdependência entre as pessoas de diferentes clãs numa ordem hierárquica, forjaram-se as primeiras normas de conduta ditas corteses. Através destas normas, refinou-se o comportamento dos homens e elevou-se a condição social das mulheres.

RESUMO DO TÓPICO 5

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AUTOATIVIDADE

Prezado(a) acadêmico(a)! Após ler e estudar este tópico, responda às seguintes questões:

1 Que fatores contribuíram para a constituição das cortes medievais a partir do século XII?

2 Por que as cortes medievais podem ser consideradas como mecanismos monopolistas de poder político e por que se atribui à competição entre elas o aparecimento do Estado Nacional Absolutista?

3 Por que a emergência dos Estados Nacionais Absolutistas significou uma derrota dos elementos universalistas da Europa Medieval? Qual a consequência, em longo prazo, desta derrota?

4 Por que e em que medida as cortes medievais contribuíram para refinar o comportamento dos machos e promover a condição feminina na Baixa Idade Média?

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REFERÊNCIAS

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