Hoffmann - O Reflexo Perdido

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  • MA TARDE de inverno, vspera do l-timo dia do ano, senti de repente o san-gue queimar-me nas veias e o coraogelar-se-me no peito. L fora, rafadas de

    tempestade agitavam a noite sem estrlas. Esta crise do clltransmitia-me descargas eltricas ao corpo; meu crebro fer-via como metal em fuso. Quando todos os meus nervos fi-caram saturados dsse fluido desconhecido, a que se d onome de febre ou delrio, segundo a .fra dos acessos, nopude mais ficar em casa e corri para fora, sem manto, oscabelos ao vento. Os cata-ventos das casas guinc}J.avamcomogatos enfurecidos e parecia-me distinguir, entre as vozes con-fusas da tempestade, o tiquetaquear do relgio que assinalaa queda das horas no abismo da eternidade.

    Coisa bizarra I A vspera do Ano-Novo, que , para tdagente, uma data alegre, encontrava-me prsa de. fundas

  • dores morais. Seria porque, a cada festa de Natal, contandoos dias que haviam decorrido e sentindo-me envelhecer, euentrevisse mais de perto a longnqua aproximao do fim?Pressentia-o apenas e no podia evitar que um terror mis-terioso de mim se apoderasse; tanto mais quanto o diabo sem-pre teve o cuidado de reservar-me, para o So Silvestre,qualquer nova desventura.

    Ontem, por exemplo, ao entrar num salo, deparei, sen-tada em companhia de um grupo de damas, com uma fi-gura de feies angelicais... Sim, era Ela! Ela, a quemeu no via h cinco anos!... "Deus seja bendito!", ex-clamei do fundo da alma; "Ela voltou para mim". Fiquei in-terdito, como se a varinha de um mgico me houvesse to-cado. Nesse instante, o dono da casa tocou-me levementeo ombro:

    - Ento, carssimo Hoffmann - disse-me le - em quepensas?

    Voltei a mim, muito envergonhado da minha inpcia, eaproximei-me da mesa de ch para sair do embarao.

    Nesse momento, Ela me viu, levantou-se e veio dizer-me, num tom de voz cheio de indiferena:

    - Tu aqui? Encantada de ver-te. Como tens passado?Depois, sem esperar resposta nem dar-se conta de mi-

    nha comoo, sentou-se novamente, dirigindo sua vizinhaestas palavras, que me trespassaram o corao:

    - Teremos ento, na semana que. vem, um belo concr-to no palcio? ..

    Um raio, caindo a meus ps, no me teria perturbadotanto. Figurai-vos o que experimentaria um bomexnque, aoaproximar-se de uma rosa cultivada com amor, para respi-rar-lhe o perfume, sentisse uma vespa sair do clice da flore picar-lhe o .nariz. Recuei de modo to brusco, 06 olhosturvados pelo sangue que me subira cabea, que derrubeiao cho uma travessa Cheia de sorvetes e doces. Rolou tudosbre o tapte; nesse instante, desejaria estar enterrado acem toesas de profundidade. Por sorte, um artista clebre aca-bava de sentar-se ao clavicmbalo. Fui esquecido e pudecontemplar Ela, JIia, em todo o esplendor de sua beleza.

    Pareceu-me mais alta, mais cheia de formas, mais sedu-tora do que nunca. Suas vestes, de imacuIadabrancura, on-deavam, em pregas, sbre seu corpo. Suas espduas e seu

    pescoo se destacavam, como um bloco de neve, contra odecote enfeitado de rendas maravilhosamente bordadas; seuscabelos, de um negro de bano, desatavam-se em cachoscambiantes, que lhe davam face um carter serfico. Aopassar perto de mim, voltou-se e acreditei ter lido, no seuolhar de um azul to doce, no sei que expresso zombe-teira.

    Minha pobm razo desfaleceria se o maestro, que acaba-ra de dar incio a uma cantata, no me houvesse refrescadoa alma com uma cascata de harmonias. Apenas terminou aexecuo, o auditrio, encantado, cumulou-o de felicitaes.Mas, nesse turbilho de diletantes, vi-me separado de Jliapor alguns instantes. Reencontramo-nos, pouco depois, dian-te de uma poncheira. Ento, ventura inaudita! ela ofere-ceu-me um copo de ponche, sorrindo celestiaImente e dizen-do-me, com uma voz cuja lembrana nada poder jamaisapagar de minha memria:

    - Quer aceit-lo de minhas mos, como antigamente?Ao receb-Ia, rocei-lhe os dedos delicados; mil fascas

    eltricas abrasaram-me o sangue. Bebi o licor dourado ata ltima gta e pareceu-me que chamas azuladas voavamsbre meus lbios ardentes. Meus sentidos nadavam numaembriaguez deliciosa e quando voltei a mim, estvamos, eue Ela, lado a lado, sbre os coxins de um div rosa, ao fundode um gabinete iluminado pela luz sonhadora de uma lm-pada de alabastro, suspensa ao teto por cadeias de prata.

    Jlia a t;neu lado, Jlia sorridente, afetuosa como outro-ra: no seria tudo um sonho? Ail sonho ou realidade, a leme entregava inteiramente. Parecia-me ouvi-Ia dizer aspalavras mgicas:

    - Meu Teodoro, amo-te, no vivo seno por ti. ts aminha poesia e a minha felicidade!

    E eu, eu lhe respondia:- Deus nos reuniu e nem t

  • Jlia levantou-se e despertou-me atrozmente com estas;palavras:

    - Ento, no achas que devemos voltar festa? C~mo.'vs, meu marido est minha procura. ~s bem dIvertIdo, ,~tanto quanto outrora, meu caro Teodoro; entretanto, nodeves oeber tanto ponche.

    Soltei um grito de desespro:- Perdida para tda a etemidadell!- ~ como diz, meu bravo senhor - respondeu o odioso:

    animal, a quem ela chamava seu marido.Era demais para as minhas fras. Sentia-me enlouque-

    cer. Num timo, vi-me fora do salo, correndo pela escada;abaixo. Na rua, a chuva que tombava em cascatas molha~iva-me o rosto. Eu corria desabaladamente, sem direo nem]{conscincia. E teria continuado a correr se a tavema de'~mestre Thiermann no me detivesse a fuga com suas portas/;.llbertas. Por elas adentro me precipitei, caindo como um,;furaco sbre os bebedores, a respirao ofegante, a goe1a.;;sca e os olhos dilatados. Julgaram-me bbado; no h fre- .....'.'..gus melhor do que um bbado. Dessarte, malgrado a fal~;,ta de chapu e casaco, o hosJ?edeiro, ao ver-me ~1egantemen.,\;.te trajado, perguntou-me polldamente que desejava eu./

    - Um caneco de cerveja ingls a e um cachimbo de:;bom tabaco!

    Fui servido imediatamente.Os freqentadores da tave~a me olhavam pelo canto"

    dos olhos e o hospedeiro ia talvez me interrogar sbre a aven-tura, que a minha visita, em semelhante desalinho de trajes,fazia suspeitar, quando trs batidas nas vidraas da tavema'fseguidas de um grito: "Abra depressa, sou eu!", desviou-lhe;a ateno. ~le acorreu porta, com um castial em cada;mo, e, logo depois, um homem alto, 'descamado como um'esq.eleto; entrou na sala e encaminhou-se, andando de lado,;com as costas voltadas para a parede, para uma pequena,mesa, onde se sentou, depois de ter feito com que fssem ...colocadas diante dle as duas luzes.

    Esta personagem tinha. aparncia distinta, mas pe~sati-:va. Pediu, como eu, cerveja e tabaco; encheu o cachimbo com impacincia e envolveu-se em seguida numa esJ>ssa'nuvem de fumaa. Em meio fumaceira, tirou o chapu de

    fltro e o casaco; pude ento notar, com surprsa, que sbreas ~otas trazi~ chinelas. Continuando a fumar, passou emreVISta uma pIlha de ervas, que retirou de uma caixa de me-tal sen,telhante s usadas pelos botnicos quando saem paraherbonzar.

    Atrevi-me, para iniciar conversa, a fazer-lhe algumasperguntas sbre as ervas que pareciam interess-Io tanto.

    O sen~or no mui~o fort~ em. botnica - respondeu-me ele, ~ meIa voz. - Senao, terIa VIsto logo que so plan-t~s exohcas; estas foram colhidas na Amrica, nas cerca-mas do famoso vulco Chimborazo.

    A. entonao de. voz dste p_ersonage~ singular produziuem mIm uma espcIe de comoao magnetica. Senti que aspalavras ~orriam-me flor dos lbios e pareceu-me que, pordescon~ecIdos que fssem, os traos dste homem haviamaparecIdo nos sonhos de minhas noites agitadas.

    Minha preocupao foi interrompida pelo rudo de novogolpear ansioso nas vidraas da tavema. O hospedeiro abriua porta, mas o recm-chegado gritou de fora, antes de entrar:

    - No se esquea de cobrir bem o espelho!- Be~,. bem - disse o hospedeiro, prendendo uma toa-

    lha ao caIXIlho do espelho - eis que chega o general Su-warow.

    O general Suwarow nada tinha de belicoso. Entrou sal-titante, com passos pesados, descrevendo uma srie de zigue-zagues. Era um homem baixinho, todo envolto num capotepardo de mangas largas, dentro do qual parecia no obs-tante, tremer e frio. Veio sentar-se nossa m,es~, colocan-do-se entre o botnico de Chimborazo e eu. Mas as nossascachimbadas o incomodavam e, voltando-se altemadamenteJ?ara cada um de n6s,. queixou-se da horrvel fumaa por queeramos os responsveIs e lamentou ter esquecido seu rap.

    Eu tr~ia comigo uma tabaqueira de ao \>.olido,.muitonova e brilhante. Apressei-me a ofere-Ia a ele delicada-mente. Apenas a viu, cobriu o rosto com ambas 'as mos egritou:

    - Com todos os diabos! Esconda sse maldito es-pelho! ...

    Sua voz era convulsa e todo o seu corpo tremia. Jul-guei-o louco. Serviram-lhe vinho do norte. Eu o espiavafurtivamente quando, de sbito, vi seu rosto mudar de ex-

  • presso e cr, como as imagens de umaDesta vez, um suor gelado inundou-me amdo terrvel, no me pejo de confess-lo.

    - "~ste general Suwarow - disse comigono ser Sat disfarado, que vem me tentar?"

    Enquanto eu dava curso s suposies mais fantstio ilustre personagem das ervas passava o seu tempo avitar a candeia com extremo cuidado e o pequeno se levtara para arrumar melhor o pano que velava o espelho.sa. bizarria no era de molde a tranqilizar-me quantosuas faculdades mentais. Ambos se puseram em seguidaconversar sbre um jovem pintor que expusera recentementum magnfico retrato de mulher.

    - Sem dvida alguma - dizia o magricela - uobra maravilhosa: pode-se dizer que o retrato o reflexomodlo.

    - Reflexo? Reflexo? Que animal estpido poderiaapoderar de um reflexo, a no ser o diabo em pessoa?gritou o general Suwarow, dando um pulo na cadeira.Mbstre-me um reflexo roubado a um espelho - desafio-ofaz-Io - e darei um pulo de quinhentas toesas de aI

    Nesse instante, o magricela, pouco lisonjeado com arada de seu interlocutor, levantou-se, tranqilamente e,sando-Ihe a mo sob o queixo, com familiaridade desdenhodisse-lhe, com um sorriso amargo:

    - Calma, meu pequeno, no te faas de violento.movimentos muito bruscos me impacientam fcilmente e epoderia atirar-te pela janela a fora! ...

    O general Suwarow, pestanejante, apanhouergueu-se e recuou at a port;a.

    - Peste de homem! - disse, fazendo reverncias etitlUldo de manira Cmica - diabo raivoso, passa bem.no posso ver-me ao espelho, conservarei, pelo menos, mi-:nha sombra, enquanto que tu, meu caro... Bem, aqui fi_ccam meus cumprimentos! ...

    Dito isso, desapareceu, deixando o botnicode consternao difcil de descrever.

    A idia de um homem sem sombra me causava espcie.Vi-o partir tambm em seguida. Ao atravessar a sala, seu cor-po no projetava sombra alguma. Lembrando-me ento do

    famoso Peter Schlemihl, sse Judeu Errante da Alemanhacorri atx:s dle. Mas apenas atravessara a porta quando ~hospedeIro me deu um empurro, gritando-me:

    - Que o. diabo leve todos .os fregueses de vossa espciee Deus permIta que nunca maIS vos veja!

    Quanto ao magricela, no consegui alcan-Io. Com trspassadas, desaparecera pela rua abaixo.

    Eu havia esquecido minha chave no blso do casacoE~a-me, pois, impossvel entrar em casa. Decidi-me a pedU:asIlo a um de .meus_ amigos,A o proprietrio do Aguia deOUro. O porteIro nao me fez esperar e fui conduzido aum belssimo aposento,. enfeitado. com um grande espelhorecobe!to por ~ma cortina de sarja verde. No sei porqueme velO o caprIcho de levantar a cortina. Vi-me refletido noespelho, to pl~do e to desfeito, que mal consegui reco-nhe~er-me; depoIS, par~ceu-me que, do fundo do espao re-~letId? pelo espelho, vmha avanando para mim uma formamdeclsa e vaporosa.

    Ao fixar os olhos nessa apario, acreditei ver... sim,era Elo. mesma, a figura adorada de Jlial. - O, ~inha querida, voltas para aqule que no pode

    VIver sem tI?

    Um profundo suspiro me respondeu. Tal suspiro saiu dasd~bras do cortinado que escondia a alcova. Corri para oleIto e deixo ~ossa imaginao ~ tarefa de figurar o queeu devo ter sentido ao encontrar, nele deitado, o homenzinhoa quem o hospedeiro da taverna chamara general Suwarow.

    . 1!:ssebiza~ro personagem sonhava em voz alta e' seuslbIOS, contraldos por uma emoo penosa, pronunciavamum nome que me fz bater o corao mais depressa:

    - Giulietta!. . . Giulietta!

    Sacudi vivamente o homenzinho at acord-Io.- ~om quantos diabos resolveu ocupar _ disse-lhe

    o quarto que me havia sido destinado?- Ah! senhor - retorquiu, abrindo os olhos e estirando

    os braos - como lhe sou grato por haver interrompido opesadelo que me oprimia!

    yma rpida e,,?licao foi quanto bastou para eu des-cobrIr que o porterro havia-se enganado ao levar-me para

  • aqule aposento. Pedi desculpas ao general e pusemo-nos aconversar.

    - Devo ter-lhe parecido - disse o desconhecido -bem inconveniente ou bem louco esta noite, na tavema. Maso senhor ser indulgente para comigo se alguma vez lheaconteceu experimentar sensaes inexplicveis.

    - Ah! meu caro senhor - repliquei - poder-se-ia dizetde mim outro tanto; pois, olhe, no faz muito tempo que,revendo Jlia ...

    - Jlia! Que nome acaba o senhor de pronunciar! -gritou o homenzinho, jogando-se sbre o travesseiro. - Ohlcale-se, pelo amor de Deus, deixe-me dormir e no se es-quea de cobrir o espelho.

    - Mas como - continuei eu - o nome de uma mulheque o senhor certamente no conhece pode impression~tanto? Quer-me parecer que a expresso de seu rosto altra-se a cada instante. Vamos, acalme-se e consinta que eu rpouse, at o amanhecer, ao seu lado. Tratarei de no in"

    l); comod-Io.- No, pode ficar com o quarto todo para o senhor. V

    que para mim no existe nem calma nem repouso possveis. O senhor pronunciou o nome de Jlia... Jlia! Ciulietta! . . . ];: muito estranho. Estaremos unidos pela fatalidade, sem sab-Io, no mesmo infortnio?.. Embora eu t .nha talvez de afligi-Io mortalmente, no posso evit-Io. Devconfessar-lhe a causa do meu infortnio. Acho que isso maliviar.

    O homenzinho deslizou para fora do leito, envolvendo-snum roupo branco e dirigiu-se lentamente para o espelhdo qual retirou a cobertura. Todos os objetos e luzesquarto, assim, como minha figura, nle se refletiram nltidamente. Mas o reflexo do general Suwarow nle no aparecia.

    - Veja - continuou le com voz plngente - se soou no muito infeliz? Pedro Schlemihl venaeu sua sombao Diabo; pois bem, eu, eu dei meu reflexo a GiuHetta, qununca mais mo devolver! Meu Deus! meu Deusl que fa.talidade!

    Fiquei estupefato com a narrativa. Em meutranstornado, o horror se misturava piedade.

    O home~zinho, entt:egue completamente sua dor, jo-gara-se no leIto ~onvulsIvamente; mas, dali a pouco, estavaroncando. O ~Id~ q?e ~az,iaacabou por fazer-me mergu-l~ar numa sonolencIa IrreSIstIvel. Apaguei as luzes e esten-dI-me ao seu lado, sem despir-me, decidido a esperar o ama-nhecer.

    A ~c~tao ~o meu sistema nervoso atingira o mximo;meu ~samt~ ~~bIlhonava num labirinto povoado de fantas-~as. m, escntIveIS. Pareceu-me, de repente, que o mundodImmUla como alJuelas. l~jas de bonecas que, na festa deNata~ a~rem-se a cunosIdade das crianas. Vi todos osmeu~ amIgos, todo,Sos meus conhecidos metamorfoseados emhomunculos de aucaro Depois, tdas essas figuras cresceramdesme~uradamente e, no meio delas, apareceu Jlia, que meestendIa um copo cheio de ponche, dizendo:

    - Bebe, meu anjo, bebe ste licor divino!Vi pequenas chamas azuladas tremularem borda do

    co~o. Est~va prestes a agarr-Io, quando uma voz gritouatras de mIm:

    - No beba! No beba! :e: o veneno de Sat!Volt~i-me ~ruscamente e reconheci o general Suwarow,

    que se n~ debaIXOdo meu nariz. Jlia continuava com suasprovocaoes; ~eu olhar me queimava, o timbre de sua vozme dava vertIgens.

    - Por que tens mdo? - dizia-me ela. - No nascemosum para o outro por tda a eternidade? No me deste teureflexo em trqca de um beijo? ..

    Eu, ~e sentia morrer e estendi o brao para receber ataa magIca no fundo da qual desejava afogar minha alma.Mas o pequeno Suwarow gritava em voz mais forte ainda:

    -. No beba! No beba! Essa bela ma que lhe sorri ~ dIabo em pessoa; se tocar com os lbios a taa, o sorti-lgIO desaparecer, restando somente a realidade da perda.

    J~lia ~n~uava a .~sistire a embriagar-me com suaseduao; n~o seI o que, ma me acontecer quando, qe sbito,t?das as fIg;uras de aucar cndi se puseram a danar emtomo de mIm, com uma tal rapidez que no discerni maisnada. Esse pesadelo no terminou seno s onze horas damanh, quando um criado do Aguia de Ouro veio desper-tar-me para avisar que o desjejum estava servido. O gene-

  • ral Suwarow se levantara muito cedo, pagara sua despesa edeixara, endereado a mim, um pac~t; lacrado ?~~tro d?ual havia um manuscrito, de letra mIUda e de diflCIl decI-

    6-ao, no qual se narrava a singular histria que se segue.Era, talvez, a sua histria.

    Numa bela manh mestre Erasmo Spickherr viu-se, pelaprimeira vez, em condies de ~atisfazer mais ardente pai-xo de sua vida. Acabara de Juntar uma pequena herana,da qual retirou uma soma suficiente para: cobrir ?s gastosde uma viagem Itlia. Na h?ra da partIda, sua Jovem es-psa acompanhou-o, com o fIlho nos braos, at a car-ruagem: . , .

    - Adeus! - gritou ela, os olhos umede~Idos de ~agn:mas - querido Erasmo! Pensa sempre em m~m, que ~Icarelem casa e tem cuidado para no perder a bOIna de VIagem,dormindo com a cabea para fora da janela da carruagem.

    Em Florena, Erasmo travou conhec~ento co~ ~malegre grupo de compatriotas seus, que Jogavam dInh~lrfora levando a vida mais desvairada que qualquer artisou filho-famlia jamais viveu sob. o tpido s?l da Itl"Eram festas e banquetes, noite e dIa, em man~oes es~lendrosas, com mulheres trajando costumes fantsticos, cUJa e1gncia e riqueza de Cres em.?restav~m-lhes, a essas volutuosas sereias o aspecto de flores ammadas. Somente Ermo, fiel le~brana de sua espsa legtima, no se arris _va, malgrado seus vinte ~ sete anos, a nenhuma excursaalm do crculo da f conjugal.

    Certa "noite, quando sses pnde~os. estava~ reunidnuma orgia generosamente regada a VInhOde Sllacusa,dles,Frederico, o mais fogoso do grupo, rodeando combrao o talhe esguio de sua amante, e erguendo. seu .coonde brilhava um lquido dourado, ergueu um bnnde Indlndescente beleza das rainhas da noite, acrescentando:

    - Quanto a ti, meu pobre Erasmo - disse a Spickherrentristece--nos profundamente com essa fisionomia fnebBebes e cantas como um coveiro e portas-te de modo lametvel para com nossas damas.

    - Juro-te. meu caro - respondeu Erasmo - que meudever permanecer indiferente ao encanto destas damas. Dei-xei na ptria minha digna espsa e, quando se como eupai de famlia. . . "

    ~ estas palavras, ditas pelo pobre Erasmo com solenegravIdade, os presentes caram num frouxo de riso inextin-guvel. A amante de Frederico, depois de lhe terem expli-cado em italiano o que dissera Erasmo, voltou-se para o moalemo e disse-lhe:

    - Toma cuidado. Se visses Giulietta, a neve do teucorao se fundiria como glo ao s01l

    No mesmo instante, um ligeiro roagar de sdas porentre a folhagem anunciou a apario de uma jovem de es-plendorosa beleza. Um vestido branco, que lhe punha a des-coberto as espduas nveas e a garganta magnfica, caa emdobras sedutoras sbre o seu talhe de fada. Sua cabeleiraperfumada, de,snastrada em ondas de bano, enquadrava.com encanto Inefvel, o oval admirvel de um rosto demadona. Pedrarias cintilantes adornavam-lhe os braos eo colo.

    - : Giulietta! - exclamaram tdas as raparigas.- Si~, sou eu - ?~sse, com um sorriso anglico, a bela

    ?esconheclda. - PermItis que vos faa companhia por umInstante? Bem, vou sentar-me ao lado dste alemo carran-cudo que no diz uma palavra. "

    Em meio aos Sussurros das suas rivais em beleza, a re-cm:chegada tomou lugar ao lado de Erasmo, que estava in-terdito. O pobre SpiclCherrpensava sonhar. vista de tan-tos encantos, sentia o corao pular-lhe no peito, em movi-mentos convulsivos; seu olhar se fixava em Giulietta comoque aterrorizado. A bela florentina apanhou da mesa umataa cheia e entregou-a a le, dizendo-lhe, com um riso ar-gentino:

    - Aprazer-te-ia, severo estrangeiro, que eu fsse a se-nhora de seus pensamentos?

    Erasmo enrubesceu e empalideceu.; todo o seu ser vibra-~a; ergueu-se como que impelido por uma mola e caiu deJoelhos diante de Giulietta, numa postura de entusisticaadorao.

    -:- Sim! - exclamou - a ti que eu amo, anjo dos cusITua Imagem morava nos meus sonhos' tu me trazes a feli-cidade dos eleitos!... '

  • Esta exploso fz crer aos presentes que Erasmo enlou-quecera completamente. Giulietta ergueu-o, pedindo quese acalmasse, e a alegre conversa que sua chegada interrom-pera recomeou mais animada. Solicitada a cantar, ela anuiucom graa esquisita. Sua voz magntica provocava sensaesinditas. As horas dessa noite passaram como se fssemminutos.

    Ao amanhecer, Giulietta decidiu retirar-se. Erasmo que-ria acompanh-Ia, mas ela recusou e, indicando-lhe os lu-gares onde le poderia reencontr-Ia, desapareceu como umaslfide. O pobre apaixonado no OUSOusegui-Ia e di-rigia-se tristemente para casa quando, a uma esquina, en-controu-se frente a frente com um personagem alto e magro, trajando um costume escarlate pontilIiado de botesde ao.

    - Ohl Ohl - fz o desconhecido - que cara descon-solada tem o senhor Spickherr esta manh1 Os moleque~da cidade vo correr atrs do senhor! Trate de esconder-se.

    - Ehl quem s tu, imbecil, para me falares dessa ma.neira? Segue teu caminho! - respondeu-lhe Erasmo.

    - Devagar, meu valente - continuou o homem de escarlate. - Mesmo que tivesses asas de guia, no alcanariaGiulietta esta manhl

    - Giulietta! Que quer dizer? - retorquiu Erasmo, fa-zendo meia volta para agarrar pelo colte seu interlocutor.

    Este, porm, desembaraando-se com uma pirueta, eclip-sou-se como um fogo ftuo.

    Erasmo viu novamente Giulietta. A bela rapariga o recebeu de bom grado, mas sem lhe permitir quaisquer liberdades.Entretanto, quando le lhe falava, fogoso e apaixonado, ela lhe lanava, s furtadelas, olhares cheios de facnio. Ele abandonou a companhia ru~dosa dos amigos pasegtIi-Ia por tda a parte, como se no pudesse viver sen-no mesmo ar que ela respirava. Certo dia, reencontrou Frderico; no pae escapar-lhe, e ste lhe disse: .._

    - Meu caro Spickherr, eis-te enfeitiado pelos filtrode uma nova Circel Ainda no compreendeste que Giulietta a mais dissoluta das criaturas? Ignoras ento a. fieira dhistrias que se contam sbre ela? ];; preciso que sejas muito tresloucado para esqueceres to depre,ssa aquela boa espsa de quem falavas com tanta ternura.

    Erasmo escondeu o rosto entre as mos Adconter as lgrimas. e no po e

    - Vamos - continuou Frederico - deixa . _J~e te~/oirde e vem comigo; deixemos Florena e;~~ ~ae~d~

    - Sim, sim, imediatamente e I Eesta cidade ainda me trar desgr;a'Xc;:tOU rahs~o - pois

    . r amos oJe mesmoOs dois amigos cam' h .

    homem de escarlate cruZ;~_I~~:~eaPs~ebs.stadamente.quando o, u 10, o cammho'

    -:- Vamos, belo senhor - disse a S ickhe .carreIra - apresse-se pois a b I G' I'P rr em voz cho-siedade! ' e a lUIetta espera-o com an-

    - V para o diabo anim I' IEste o signor Da ertut .a. - exc amou Frederico. -milagres; um charla~o m~I~~Ito uconheegdo cO,?o.doutor eminfernais. . . q e ven e a GlUlIetta drogas

    - Qu! - interrompeu Spickherr - A .freqenta a casa de G' I' tt , - entao este ImbecillU Ie a ..

    Antes que seu amigo d lisarem sob um baI - pu esse ~ep car, ouviu, ao pas-convidava a subir. cao, a v~z a:gentm~ de Giulietta que oIuo de Erasmo MA.magb .desdseapelo perturbou a reso-xo, deixou-se de' aIS em naga o do que nunca pela pai-panhou a bela cortr:~oaP~:derlea amor~sa algema e acom-dirigia em busca de a VIa e ~ecrelOpara onde ela semente feio de rosto lr~~~~:~o~m Jove~ italiano, notveI~perseguia .Giulietta COmgseus I ~aneIras, se achava l eas serpentes do cime d ga antelOS. Eras~o sentiu tdascom ar sombrio Giulie~or erem-Ihe ,0 coraao 'e afastou-se

    . a correu atras dle:s todoV~~~~,.. :uerido - disse-lhe ela Inguidamente - no

    Ao mesmo tempo em que falava a' Aou-Ihe a face Com um beijo. ' proXImou-sedele e ro-

    - Para sempre' - excIa EfIamado de amor. . meu .. rasmo, abraando-a in-

    lh A fI?rentina escapou-se-lhe hbilmente e ~ lho ar cUJa expresso quase o fz d nou- e umque lhe restava. Voltaram b per er o pouco de razo'tali h am os para a festa O'1 ano avia-os acompanhado . Jovemrival ofendido vingou-se com os olhos e, fazendo-se de

    , com amargos sarcasmos contra os

  • Erasmo que se irritava fcilmente, amenhaouIoNi~a-alemes. , _ Este fz brilhar um pu a. aoliano de rud.e correao. E asmo saltou-lhe garganta, der-podendo mais se conter, t r lh cabea um pontap torubou-o por terra e asses ou- de ti'dos Mas o estu-d ado per eu os sen .violento C}ueo esgr~ t lhe causou deu-lhe tambm ver-por que esse aconteclmen o

    tigens. no boudoir de Giu-Quando voltou. a si, estava deitado

    Iietta: d' . bela rapa-Meu pobre e querido alemo - lZlaba d FI- , iso que a an ones 0-

    riga - quero salvar-te, mas, el pre~ . o que me deixes. d pressa posslve .r.. preclsrena o malS e . 'N- nos vere-para sempre, a mim que te amo tantO. aomos mais. d

    _ Ah! _ exclamou Spickherr - antes morrer emortes! Mesmo que eu devesse perder a alma, sou teutodo o sempre! a es-

    Oh! _ continuou Giulietta - voltars para tuD.sa~a quem tambm amas, e, ao lado dela, me esquece-

    fs logo! . ficoAmbos se achavam sentados diante de um magnd tlh . o A florentina prendeu Erasmo en roespe o veneZlan .

    de seus braos ebrneos. , .dAh! se ao menos - disse ela com olhos uml os -

    a; menos me deixasses teu reflexo, enquanto espersse-se ue o amor nos reunisse novame~te!mos q Meu reflexo! que queres dizer? ., Meu refle~!.: ._ balbuciou Eras~~,' desconcertado: - Mas como po enas

    guard-Io se le inseparvel de mim? . f ndo-? d' s ela com um susprro u ._ Recusas, entao - lS e , fu ti a_ Nada me restar da lembrana, nem lliejmo esta gl v'ma em ue me sorri do fundo do espe o ...1 gE a;lgrimas t~mbavam, como gotas de fogo, sbre orosto do jovem alemao. I Ah!

    G r tt minha adorada! - exc amou. -- Choras, lUle a, btr' me desgraa que nos sepa-j preciso dfugirp~rdasu earra-omenos eu te possa deixar,

    . t a a Vl a qu, , d tu;~: r:emidade, ss~ reflexo cuja presena a oar as

    recordaes!. . . lanando um olharA~nas acabara de falar,. quando, A mesma Giulietta,

    ao espelho, no mais viu sua rmagem.

    que le apertava ao corao, esvaneceu-se como nuvem.Vozes fantsticas ressoavam no silncio do apartamento de-serto. Erasmo, transido de espanto, sentiu um vu geladodescer-lhe sbre os olhos; procurou a porta aos tateios, comoum homem embriagado, abriu-a com dificuldade e desceu aescada num silncio cheio de horror. Apenas alcanara arua, quando braos robustos o agarraram no meio das tre-vas e o meteram numa carruagem, que partiu velozmente.

    - No tenha mdo - disse-lhe uma voz. - Giuliettaconfiou-o aos nossos cuidados. Sabe que aqule estpidoitaliano recebeu uma de que jamais se esquecer? Esseacidente me entristece, pois Giulietta amava o senhor. Nomomento, no lhe resta outra alternativa seno escapar sgarras da justia e, se realmente insistir em no deixar Flo-rena, sei de um meio de escond-Io de todos os olhares...

    - Oh! caro senhor - respondeu Erasmo, soluante -como poderia faz-Io?

    - Nada mais fcil - continuou o desconhecido. - Te-nho um segrdo para tornar as pessoas irreconhecveis, alte-rando-Ihes os traos fisionmicos. Quando amanhecer, fare-mos uma tentativa e, olhando-se ao espelho, o senhor mesmoser o juiz ...

    - - Deus! - exclamou Erasmo - que horrorl- No vejo nisso nada de horrvel - replicou o homem

    oculto. - Arranjar-Ihe-ei um reflexo muito delicado.- Ahl Devo confessar que... que ...- Que houve?.. Ter, por acaso, esquecido seu re-

    flexo em casa de Giulietta? Se assim fr, no h outra, alter-nativa seno voltar para a sua ptria. Creio que sua queridaespsa se importar pouco com o que perdeu, desde queo tenha de volta em carne e osso.

    A certa altura do caminho, a carruagem cruzou comum bando de. alegres convivas, que voltavam para casa luz de tochas. Erasmo olhou para o seu companheiro deviagem e reconheceu nle, com um anepio de horror, o h-mem de escarlate, a quem seu amigo Frederico chamavaDapertuto. Num timo, saltou do veculo e correu a tdavelocidade atrs dos condutores de tochas, entre os quaisencontrou Frederico.

    - Salva-mel - disse-lhe ao ouvido, com voz opressa -fiz uma loucura! .

  • Mas no acrescentou que perdera seu reflexo. Fredericolevou-o para casa e, sem perda de tempo, arranjou-lhe meiosde deixar Florena a cavalo, ao amanhecer.

    O infortunado Spickherr escreveu a histria ~essa tristeviagem. Suas aventuras so comoventes. Certo dia. em que,morto de fadiga, desejava repousar numa hospedana, come-teu a imprudncia de se colocar diante de um espe~ho.O garo que servi!! ~esa, o~hando por acaso ~ara o vIdr?e no vendo refletido nele a Imagem do forasteiro, comum-cOu sse fato surpreendente a um vizinho; ste contou-oa um outro e logo vrios dos presentes comearam a gritar:

    - Quem ste homem sem reflexo? um maldito, umenfeitiado, ou o Diabo em pessoa!

    Erasmo salvou-se fechando-se no quarto onde contavapoder passar a noite. Todavia, logo depois. vieram agent~sde polIcia dizer-lhe que, em nome dos magIstrados, devenaou mostrar seu reflexo ou deixar a cidade sem perda detempo.

    Forado a fugir atravs dos campos, para evitar as cara-vanas de viajantes que lhe cruzavam o caminho, le no en-trava, nos albergue~ seno ao cair ~a noit~; pedia ao pro-prietario para cobnr os espelhos; fOI por ISSOque recebeua alcunha de general Suwarow porque, ao que se dizia, stegeneral tinha a mesma mania.

    Chegou, por fim, sua cidade natal. A espsa o rece-beu de braos abertos e le acreditou, por um momento,que sua desgraa chegara ao fim. Tomando tda sorte deprecaues, conseguiu dissimu.la~ a perda de seu ~eflexo.Conseguiu mesmo esque~r. GlUh~tta. Mas, c:rta nOite :mque brincava com se';lfilhmho, :ste tendo. s~Jado as maosde fuligem na chamm do fogao, compnmIU-as contra orosto do pai, gritando alegremente:

    - Veja, papai, como senhor ficou lambzado!Depois, escapando-se dos braos d~ pai, ap~nhou um

    pequeno espelho, colocando-o diante dele e espIando .porcima do seu ombro. Antes que Spickherr pudesse se erguer,o pequeno, no vendo no vidro o reflexo do pai, deixo~ cairo espelho e fugiu, chorando. Ao rudo, apareceu a mae.

    - Que que me diz a criana? - perguntou ela.- Eh! ~or Deus - respondeu Spickherr, com ~m riso

    forado - ele te diz que no tenho reflexo. POIS beml

    que importa? Um reflexo no mais que uma iluso, mi-nha querida; quem se olha ao espelho, peca por vaidade;Deus me livre dsse pecadot

    A pobre mulher agarrou o marido pela mo arrastou-ocomo se arrasta um ,culpado, at diante do esp~lho e, dan~do-se c~nta da homvel verdade, transformou-se numa me-gera funosa.

    -: Vai embora! - gritou - vai para bem longe, daqui,maldIto; deves ter feito algum pacto com o Demnio! Outalvez nem sejas meu Erasmo: s um esprito do inferno1

    Persignou-se inmeras vzes. Erasmo, desesperado aban-donou a ca.sa a correr e foi se refugiar numa distant~ e de-s~rt~ campl~a. Enquanto errava ao azar, rodo de mil an-gus.tIaS, a Imagem de Giulietta lhe apareceu de repentemaIS bela do que nunca. '. - Ai! - disse le - que te fiz eu para que me persigas?

    Mm~a mulher me abandonou, no tenho mais nenhum afe-to. sobre a terra; tem piedade, Giulietta, tem piedade demIml Onde te reencontrarei agora? ..

    - B~m perto daqui, meu caro, pois ela est ansiosapar~ reve-l~ - respondeu uma voz atrs dle. Voltou-se,

    ~mUIt.osurpreso, e deu com a cara do odioso Dapertuto, queo mIrava com um oJh.ar sardnico.

    - Sou seu humilde servidor - continuou o homem deescarlate - e afirmo-lhe que, to logo Ciulietta esteja certad,e poder possu-Io em pesso~, ter imenso prazer em devol-ver':lhe o reflexo que, eVIdentemente, no pode saciarseu amor.

    Erasmo estava fora de si.- Leve-me at ela - exclamou - e lhe pertencerei sem

    qualquer reserva ...

    . - Perdo - disse Dapertuto - isso exige, antes, o cum-prImento de uma pequena formalidade. O senhor est com.p~o~etido por liga~es que devem ser rompidas, visto que

  • nos. lJ:stes no faro, garanto-lhe, sequer uma c~reta. Tome,meu caro: isto exala um ligeiro perfume de amendoas amar-gas, que provoca um sono... um sono definitivo. _

    - Miservel! - urrou Erasmo. - Ousas entao pro-por-me tal crime? ..

    - Ehl quem fala de crime? - replicou Dapertu~o. -O senhor deseja rever Giulietta e eu lhe ofereo o ~elo desatisfazer seu desejo, eis tudo. Tome logo o frasco e nao ban-que a mulherinha.

    Erasmo, prsa de vertigens, achou-se, de sbito, com ?frasco na mo e diante do leito no qual sua mulher se agI-tava nas aflies de um pesadelo sinistro, rezando com vozdelirante e entrecortada e soluos. O pobre marido s~ntiuo corao partir-se-lhe no peito ante ss~ espetculo. Abriua janela, jogou o frasco bem longe e fOI-se fechar no qu~r-to vizinho, para a chorar seu destino. A lembrana de Gm-lietta veio atorment-Io.

    - Anjo ou demnio - gritou le - causa da min~a des-graa! Pois bem, aceito o meu destino: aparece mais umavez diante dos meus olhos; quero morrer revendo-a!

    Nesse instante, soou meia-noite. ltima pancada dorelgio, Giulietta apareceu diante dle.

    - Meu bem-amado - disse-lhe ela - guardei fielmenteo reflexo: ei-Iol

    O vu que cobria o espelho to~bou e Erasmo viu suaimagem enlaada da bela florentina.

    - Ohl se me amas, devolve-me o reflexo; devolve-me oreflexo, por piedadel - disse le, c~do de j~~lhos. - Masno posso compr-Io ao preo do cnme que exIJe Dapertuto!

    - Escuta - continuou Giulietta - no poderemos nosunir seno quando teus laos estejam t;.ompidos. '::m ladreos atou; somente tu podes renunciar a eles. M9;.snao ~re-ciso que faas pessoalmen.te; toma ap~?~s este pape eescreve em cima que renuncias tua faml1la terrestre parame pertencer eternamente ..

    Erasmo tremia por todo o corpo. Giulietta o cob_riadebeijos ardeates. Subitamente, viu erguer-se de trs dela afigura de Dapertuto, .que lhe apres~ntava uma ~ena de fer~ro. Nesse mesmo instante, uma veia de sua mao esquerdarebentou e o sangue comeou a jorrar.

    - Escreve! Escrevel - dizia Dapertuto,. com voz estri-dente e metlica.

    - E~creve, ,meu bem-amado! - dizia Giulietta, cujosvus haViam caldo para oferecer aos olhares fascinados deErasmo todos os tesouros da mais voluptuosa das belezas.

    Ele tomou da pena, molhou-a no sangue e ia assinar,quando um fantasma plido entrou no quarto e pronun-ciou estas palavras com voz sepulcral:

    - Erasmol Erasmol queres dar tua alma ao Diabo?Em nome de Jesus, pra ...

    Erasmo reconheceu a voz de sua es~sa.Ao ser pronunciado o nome sagrado, Giulietta, mudou

    de aspecto e transformou-se num espectro de fogo.- Para trs, Satl - gritou Spickherr - volta ao inferno

    de onde sastel

    Logo em seguida, um tremor de fazer mdo estremeceua casa; o cho se abriu e Giulietta e Dapertuto desaparece-ram t;'-umanuvem de vapor sulfuroso, que apagou as luzes.DepOIS, tudo voltou ao silncio e obscuridade.

    Quand? Erasmo, aturdido, conseguiu coordenar as idias,a luz do dia .penetrava no quarto. Voltou para junto da es-psa. Esta J estava desperta e seu filhinho brincava COmela na cama.

    - Meu amigo disse-lhe ela com doura - sei agorada terrvel aventura que tiveste na Itlia. Estou contrista-da; v como so astutas as partidas pregadas pelo Dem-nio, qu~ te roubou .0 belo reflexo que eu tanto gostava de. ver sorrm~o par~ mim, no espelho! De hoje em diante, no~odes mais .continuar a ser um respeitvel chefe de fam-lia: todos te apontaro com o dedo. Sugiro que te ponhasa caminho e comeces a viajar em busca do teu reflexo. Tologo o encontres, conforme espero, apressa-te em voltar.'~sperar-te-ei com impacincia e te reverei com alegria. Bei-Ja-me e parte com Deus. Lembra-te de enviar, e vez emquando, algum confeito ou algum brinquedo de Nurembergao teu filho, para que le no te esquea.

    Spickherr, o _corao opresso, beijou a espsa e o filho,a~anhou o bordao e ps-se a caminho. Encontrou, certodia, o famo~o Pedro Schlemihl, que havia perdido a som-br~. Os doIS desafortunados propuseram-se a viajar juntos:SplCkherr entrava com a sua sombra e Schlemihl com seureflexo. Mas no conseguiram chegar a nenhum acrdo e,at hoje, ningum sabe o que lhes aconteceu.