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RICK DALTON – Já teve a sua própria série de televisão, mas agora não passa do «vilão da semana» que afoga as mágoas em whisky sours. Um telefonema de Roma será a sua salvação ou a sua perdição? CLIFF BOOTH – É o duplo de Rick e o homem mais infame em qualquer filmagem, porque é o único que pode ter cometido um homicídio e escapado impune… SHARON TATE – Deixou o Texas para seguir o sonho de ser uma estrela de cinema, e conseguiu. Agora, Sharon passa os dias em Cielo Drive, no alto de Hollywood Hills. CHARLES MANSON – O ex-presidiário convenceu um grupo de hippies todos pedrados de que é o seu líder espiritual, mas trocaria tudo isso para ser uma estrela de rock. HOLLYWOOD, 1969 CONTADO NINGUÉM ACREDITA

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RICK DALTON – Já teve a sua própria série de televisão, mas agora não passa do «vilão da semana» que afoga as mágoas em whisky sours. Um telefonema de Roma será a sua salvação ou a sua perdição?

CLIFF BOOTH – É o duplo de Rick e o homem mais infame em qualquer filmagem, porque é o único que pode ter cometido um homicídio e escapado impune…

SHARON TATE – Deixou o Texas para seguir o sonho de ser uma estrela de cinema, e conseguiu. Agora, Sharon passa os dias em Cielo Drive, no alto de Hollywood Hills.

CHARLES MANSON – O ex-presidiário convenceu um grupo de hippies todos pedrados de que é o seu líder espiritual, mas trocaria tudo isso para ser uma estrela de rock.

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Capítulo Um

«Trate-me por Marvin»

A  campainha do intercomunicador na secretária de Marvin Schwarz solta um zumbido. O dedo do agente da William Morris mantém a tecla da caixa premida.

– É por causa da marcação das dez e meia, Menina Himmelsteen?– É, sim, Sr. Schwarz – responde a voz da assistente pelo pequeno

altifalante. – O Sr. Dalton está aqui fora à espera.Marvin volta a premir a tecla.– Ele que entre, Menina Himmelsteen.Quando a porta do gabinete de Marvin se abre, entra primeiro

a  jovem assistente, a  Menina Himmelsteen. É  uma hippie de 21 anos. Traz uma minissaia branca que mostra as pernas compridas e bronzeadas e usa o  cabelo castanho comprido em duas tranças à  Pocahontas, uma de cada lado da cabeça. Rick Dalton, o  ator bem-parecido de 42 anos, com o cabelo castanho numa poupa relu-zente a rigor, entra atrás dela.

Marvin abre um sorriso ao levantar-se da cadeira atrás da se-cretária. A Menina Himmelsteen tenta fazer as apresentações, mas Marvin corta-lhe a palavra.

– Menina Himmelsteen, dado que acabei de ver um festival de filmes de Rick Dalton, não preciso que me apresente este senhor.

Marvin atravessa a  distância entre eles e  estende a  mão para o ator de westerns.

– Dê cá esses ossos, Rick.Rick sorri e dá um aperto de mão vigoroso ao agente.

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– Rick Dalton. Muito obrigado, Sr. Schwartz, por aceitar rece-ber-me.

– É Schwarz, não Schwartz – corrige Marvin.Foda-se, já estou a dar cabo desta merda toda, pensa Rick.– Raios partam… Desculpe lá… Sr. Sch-WARZ.– Trate-me por Marvin – diz o Sr. Schwarz com um último sa-

cudir das mãos.– Marvin, trate-me por Rick.– Rick…E largam a mão um do outro.– Quer que a Menina Himmelsteen lhe traga uma bebida refres-

cante?Rick faz um gesto de recusa.– Não, obrigado.– Tem a certeza, não quer nada? – insiste Marvin. – Café, Coca-

-Cola, Pepsi, Simba…– Está bem, pode ser um café.– Ótimo – diz Marvin, dando-lhe uma palmada no ombro.Entretanto, vira-se para a assistente.– Menina Himmelsteen, faça a gentileza de trazer um café para

o meu amigo Rick; eu também tomo um.A jovem assente e atravessa o gabinete.– Ah, e nada daquela mistela da Maxwell House que têm no re-

feitório! – grita Marvin quando a assistente começa a fechar a porta. – Vá ao gabinete do Rex – instrui Marvin. – Ele tem sempre do me-lhor café… mas nada daquela merda turca.

– Sim, senhor  – responde a  Menina Himmelsteen, virando-se para Rick. – Como toma o café, Sr. Dalton?

Rick vira-se para ela.– Nunca ouviu dizer? Preto é bonito.Marvin solta uma gargalhada estridente, enquanto a  Menina

Himmelsteen tapa a boca com a mão e solta uma risadinha. Antes que a assistente consiga fechar a porta, Marvin volta a gritar.

– Ah, Menina Himmelsteen! A menos que liguem a dizer que a  minha mulher e  os meus filhos morreram num acidente, não passe nenhuma chamada. Aliás, se a minha mulher e os meus filhos

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morrerem, bom… não vão estar menos mortos daqui a 30 minutos, por isso não passe nenhuma chamada.

O agente convida o ator a sentar-se num de dois sofás de couro, um diante do outro, com uma mesinha de vidro no meio, e Rick põe-se à vontade.

– Antes de mais – diz o agente –, cumprimentos da minha esposa, Mary Alice Schwarz! Ontem à noite fizemos uma sessão dupla de Rick Dalton na nossa sala de projeção.

– Uau! Isso é tão elogioso como embaraçoso – diz Rick. – Que filmes viram?

– Tanner e The Fourteen Fists of McCluskey.– Bom, são dois dos melhores  – diz Rick. –  O  McCluskey foi

realizado pelo Paul Wendkos. Dos realizadores com quem traba-lhei, é o meu preferido. Foi ele que fez o Gidget. Eu ia entrar nesse. O Tommy Laughlin ficou com o meu papel.

Mas então põe isso de lado com um gesto magnânimo.– Tudo bem, eu gosto do Tommy. Foi ele que me arranjou um

papel na primeira grande peça que fiz.– A sério? – pergunta Marvin. – Fez muito teatro?– Não muito – responde Rick. – Ter de dizer a mesma merda

vezes sem conta aborrece-me.– Então o Paul Wendkos é o seu realizador preferido, hã?– Sim, comecei a trabalhar com ele no início da minha carreira.

Entrei no filme dele com o Cliff Robertson, Battle of the Coral Sea. Lá estou eu e o Tommy Laughlin ao fundo, no submarino, durante o raio do filme todo.

Marvin faz uma das suas declarações sobre a  indústria do cinema:

– O cabrão do Paul Wendkos. Especialista de ação subestimado.– Bem verdade – concorda Rick. – E quando fiquei com Bounty

Law, ele veio realizar uns sete ou oito episódios.» E então – continua Rick, à caça de elogios –, espero que a ses-

são dupla de Rick Dalton não tenha sido demasiado penosa para si e para a esposa.

Marvin solta uma risada.– Penoso? Deixe-se disso. Maravilhoso, maravilhoso, maravilhoso.

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E continua.– Então, eu e  a Mary Alice vimos o  Tanner. A  Mary Alice

não gosta desta violência dos filmes modernos, por isso deixei o McCluskey para ver sozinho, depois de ela se ir deitar.

Ouve-se um bater suave à porta e a Menina Himmelsteen entra de minissaia, trazendo duas chávenas de café fumegante para Rick e Marvin. Com cuidado, estende as bebidas aos dois cavalheiros.

– Isto é do gabinete do Rex, certo?– O Rex diz que fica a dever-lhe um dos seus charutos.O agente solta um resmungo.– Sacana do judeu sovina, a  única coisa que devo é  chatear o

gajo.Todos se riem.– Obrigado, Menina Himmelsteen, por agora é tudo.A assistente sai, deixando-os a discutir a indústria do entreteni-

mento, a carreira de Rick Dalton e, mais importante, o seu futuro.– Onde é que eu ia? – pergunta Marvin. – Ah, sim… a violência

nos filmes modernos. A Mary Alice não gosta. Mas adora westerns. Sempre adorou. Vimos westerns durante todo o  nosso namoro. Ver westerns juntos é uma das nossas coisas preferidas e gostámos imenso do Tanner.

– Oh, que bom – diz Rick.– Bom, quando fazemos estas sessões duplas – explica Marvin –,

lá para as três últimas bobinas do primeiro filme a Mary Alice ador-mece no meu colo. Com o Tanner, aguentou quase até à última bo-bina, por volta das nove e meia, o que é excelente para a Mary Alice.

Enquanto Marvin explica os hábitos de ver filmes do casal feliz, Rick sorve o café quente.

Ei, é mesmo bom, pensa o ator. Este tal Rex tem mesmo café de primeira.

– Quando o  filme acaba, ela vai deitar-se  – continua Marvin. – Eu abro uma caixa de Havana, sirvo-me de um conhaque e vejo o segundo filme sozinho.

Rick volta a sorver o café delicioso de Rex.– Do melhor, não é? – comenta Marvin, a apontar para a chávena.– Quê – pergunta Rick –, o café?

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– Não, o pastrami – riposta Marvin, a rasgar. – O café, claro.– É sensacional, caramba – concorda Rick. – Onde é que ele o

arranja?– Numa loja fina qualquer em Beverly Hills, mas ele não diz

qual  – responde Marvin, continuando a  explicar os hábitos de ver filmes de Mary Alice. – Hoje de manhã, depois do pequeno--almoço e depois de eu sair para trabalhar, o Greg, o projecionista, volta lá a casa e projeta a última bobina para ela ver como o filme acaba. É  assim a  nossa rotina de ver filmes. Gostamos bastante. E ela queria mesmo ver como acaba o Tanner. Mas ela já percebeu que o Rick vai ter de matar o pai, o Ralph Meeker, antes do fim do filme – acrescenta.

– Pois, é o problema desse filme – diz Rick. – A questão não é se eu mato o patriarca controlador, mas sim quando. E não é se a flor-zinha do irmão, o Michael Callan, me mata… mas quando.

– É verdade – concorda Marvin. – Mas achámos que o Rick e o Ralph Meeker combinavam mesmo bem.

– Sim, também achei – responde Rick. – Nós fazíamos uma boa parelha pai-filho. Aquele caralho do Michael Callan parecia ado-tado; olhando para mim, dava para acreditar que o Ralph era o meu velhote.

– Pois, combinavam tão bem porque tinham um sotaque parecido.– Especialmente ao lado do caralho do Michael Callan – riu-se

Rick –, que mais parecia que devia estar a surfar em Malibu.OK, pensa Marvin, é a segunda vez que Rick diz mal do Michael

Callan, o  coprotagonista em Tanner. Não é  um bom sinal. Parece mesquinho. Parece alguém que deita as culpas para os outros. Mas Marvin guarda esses pensamentos para si.

– Achei o Ralph Meeker sensacional – diz Rick ao agente. – O me-lhor ator com quem já trabalhei, e eu trabalhei com o Edward G. Robin-son! Também entrou em dois dos melhores episódios de Bounty Law.

Marvin continua a  recontar a  sessão dupla de Rick Dalton na noite anterior.

– O que nos traz ao The Fourteen Fists of McCluskey! Que filmaço! Tão divertido.  – Marvin imita uma metralhadora. –  Tantos  tiros!

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Tantas mortes! Quantos cabrões nazis matou nesse filme? Cem? Cento e cinquenta?

Rick solta uma risada.– Nunca contei, mas 150 parece-me bem.– Cabrões dos nazis … – pragueja Marvin entre dentes. – É o

Rick a manejar o lança-chamas, não é?– Ah pois sou – diz Rick. – E é uma arma do caralho para quem

está do lado errado, ui, ui, deixe que lhe diga. Treinei com aquele dragão três horas por dia durante duas semanas. Não só para ficar bem no filme, mas porque me borrava de medo do raio da arma, para dizer a verdade.

– Extraordinário – diz o agente, impressionado.– Sabe, eu consegui o papel por pura sorte – conta Rick a Mar-

vin. – Inicialmente, era o Fabian que tinha o meu papel. Então, oito dias antes de começarem a filmar, ele parte o ombro num episódio do Virginian. O Sr. Wendkos lembrou-se de mim e  falou com os chefões dos estúdios Columbia para fazerem com que a Universal me emprestasse para fazer o McCluskey.

Rick termina a história como sempre faz:– Assim, fiz cinco filmes durante o  meu contrato com a  Uni-

versal. E qual é o meu maior sucesso? O filme que fiz emprestado à Columbia.

Marvin tira do bolso interior do casaco uma cigarreira dourada e abre-a com um tinido.

– Quer um Kent?Rick tira um cigarro.– Gosta da cigarreira?– É muito bonita.– Foi um presente. Do Joseph Cotten. Um dos meus mais queri-

dos clientes.Rick brinda Marvin com a expressão impressionada que o agente

parece exigir.– Recentemente, consegui-lhe um filme do Sergio Corbucci

e um do Ishirō Honda. A cigarreira foi uma maneira de mostrar a sua gratidão.

Os nomes não dizem nada a Rick.

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Enquanto o  Sr. Schwarz volta a  pôr a  cigarreira dourada no bolso interior do casaco, Rick tira rapidamente o isqueiro do bolso das calças, abre a tampa do Zippo prateado e acende os dois cigar-ros no seu jeito estiloso. A seguir, fecha a tampa do Zippo com um floreado sonoro. Marvin solta uma risada com o gesto de machão e inala a nicotina.

– O que fuma? – pergunta Marvin.– Capitol W Lights – responde Rick. – Mas também Chesterfields,

Red Apples e, não se ria, Virginia Slims.Marvin ri-se na mesma.– Ei, eu gosto do sabor – defende-se Rick.– Estou a rir-me por fumar Red Apples – explica Marvin. – Esses

cigarros são um atentado contra a nicotina.– Eram os patrocinadores de Bounty Law, acabei por me habi-

tuar. Também achei que seria boa ideia se fosse visto a fumá-los em público.

– Bem visto – diz Marvin. – Ora bem, Rick, o Sid é o seu agente habitual. E ele perguntou se eu o podia receber.

Rick assente com a cabeça.– Sabe porque é que o Sid me pediu para me reunir consigo?– Para ver se queria trabalhar comigo?Marvin solta uma risada.– Bom, é essencialmente isso. Mas o que quero dizer é: o Rick sabe

o que faço aqui na William Morris?– Claro. É agente.– Sim, mas o Rick já tem um agente, o Sid. Se eu fosse apenas um

agente, não estávamos aqui.– Sim, o senhor é um agente especial.– Sou mesmo – diz Marvin, apontando para Rick com o cigarro

aceso. – Mas quero que seja o Rick a dizer-me o que acha que eu faço.– Bom – começa Rick –, o que me disseram foi que o senhor põe

americanos famosos em filmes estrangeiros.– Nada mau – diz Marvin.Agora que os dois cavalheiros estão alinhados, inalam fumo dos

seus Kent. Marvin sopra uma longa baforada de fumo e lança-se na sua apresentação habitual.

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– Ora bem, Rick, quando nos conhecermos melhor, uma das coisas que vai ficar a saber sobre mim é que nada… e quero mesmo dizer nada, é mais importante para mim do que a minha lista de clientes. A razão pela qual tenho contactos no cinema italiano, e no cinema alemão, e no cinema japonês, e no cinema filipino, são os clientes que represento e o que a minha lista de clientes representa. Ao contrário de outros, não estou no negócio de estrelas decadentes. Eu estou no negócio da realeza de Hollywood. Van Johnson, Joseph Cotten, Farley Granger, Russ Tamblyn, Mel Ferrer.

O agente diz cada um dos nomes como se estivesse a nomear os rostos esculpidos no Monte Rushmore de Hollywood.

– Realeza de Hollywood com uma filmografia marcada por grandes clássicos!

E dá um exemplo lendário:– Quando um Lee Marvin embriagado desistiu do papel de co-

ronel Mortimer em For a Few Dollars More, três semanas antes de começarem a filmar, fui eu quem convenceu o Sergio Leone a levar aquele rabo gordo até ao Sportsmen’s Lodge para tomar café com um Lee Van Cleef acabadinho de desintoxicar.

O agente deixou que a magnitude da história assentasse. A se-guir, inalando relaxadamente o  seu Kent, sopra o  fumo e profere mais uma das suas afirmações sobre a indústria do cinema:

– E o resto, como se diz, é história do western italiano.Marvin foca-se no ator de westerns do outro lado da mesa de

vidro.– Ora bem, Rick, Bounty Law foi uma boa série e o Rick esteve

muito bem. Muita gente vem para cá e fica famosa sem fazer um corno. Olhe o Gardner McKay.

Rick ri-se da alfinetada a Gardner McKay.– Mas Bounty Law foi uma série de cowboys bastante boa – con-

tinua Marvin. – O Rick tem isso e pode orgulhar-se disso. Agora, quanto ao futuro… Mas antes de falarmos do futuro, vamos falar um pouco do seu passado.

Enquanto fumam, Marvin começa a disparar perguntas como se Rick estivesse num concurso de televisão ou num interrogatório do FBI.

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– Ora bem, Bounty Law… isso foi na NBC, certo?– Sim. Na NBC.– Quanto tempo?– Quanto tempo o quê?– Qual era a duração da série?– Bom, era um programa de 30 minutos, por isso, 23 minutos,

com publicidade.– E quanto tempo esteve no ar?– Começámos na grelha de outono de 59-60.– E quando saiu do ar?– A meio da grelha de 63-64.– Chegaram a filmar a cores?– Nunca filmámos a cores.– Como foi escolhido para a série? Era novo no ramo ou foi pre-

parado pela cadeia televisiva?– Entrei num episódio de Tales of Wells Fargo. Fiz de Jesse James.– Foi aí que lhes chamou a atenção?– Sim. Ainda tinha de fazer a merda do teste de imagem. E tinha

de ser bom. Mas sim.– Fale-me dos filmes que fez durante o seu hiato.– Bom, o primeiro – começa Rick – foi o Comanche Uprising, com

um Robert Taylor muito velho e muito feio. Mas isso tornou-se um tema em quase todos os meus filmes – explica Rick. – Tipo velho ao lado do tipo novo. Eu e o Robert Taylor. Eu e o Stewart Granger. Eu e o Glenn Ford. Nunca houve um filme comigo sozinho – diz o ator, frustrado. – Era sempre eu e um cota qualquer.

– Quem realizou o Comanche Uprising? – pergunta Marvin.– O Bud Springsteen.Marvin faz uma observação:– Reparei no seu currículo que trabalhou com uma carrada da-

queles realizadores de westerns da Republic Pictures… Springsteen, William Witney, Harmon Jones, John English…

Rick solta uma risada.– Os tipos dos filmes para ontem. – Então clarifica: – Mas o Bud

Springsteen não era só mais um tipo dos filmes para ontem. O Bud não se limitava a filmar rápido. O Bud era diferente.

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Marvin fica interessado.– Qual era a diferença?– Hã? – pergunta Rick.– O Bud e os outros dos filmes para ontem – pergunta Marvin.

– Qual era a diferença?Rick não tem de pensar na resposta, porque percebeu isso anos

antes, quando entrou num episódio de Whirlybirds com Craig Hill, realizado por Bud.

– O Bud tinha o mesmo tempo para filmar que todos esses outros realizadores da treta – diz Rick com propriedade. – Nem mais um dia, nem mais uma hora, nem mais um pôr do sol do que todos os ou-tros. Mas era o que ele fazia com esse tempo que o tornava tão bom.

E acrescenta, com sinceridade:– Uma pessoa sentia orgulho de trabalhar com o Bud.Marvin gosta disso.– E  o sacana do Wild Bill Witney lançou a  minha carreira  –

diz Rick. – Deu-me o meu primeiro papel a sério. Sabe, uma per-sonagem com nome. E  depois deu-me o  meu primeiro papel de protagonista.

– Em que filme? – pergunta Marvin.– Oh, num daqueles filmes de jovens delinquentes da Republic.– Qual era o título?– Drag Race, No Stop – responde Rick. – E no ano passado entrei

num episódio do Tarzan com o Ron Ely, realizado por ele.Marvin solta uma risada.– Então já se conhecem há muito tempo?– Eu e o Bill? – diz Rick. – Pode crer.Rick começa a embrenhar-se nas reminiscências. Como vê que

está a correr bem, decide forçar a nota.– Deixe-me dizer-lhe uma coisa sobre o sacana do Bill Witney.

É o realizador de ação mais subestimado da cidade. O Bill Witney não se limitava a realizar filmes de ação, ele inventou os filmes de ação. Disse que gostava de westerns; está a ver aquela cena de ação com o Yakima Canutt em que ele salta de cavalo em cavalo e depois cai para o meio dos cascos, no Stagecoach do John Ford?

Marvin assente com a cabeça.

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– O William Witney fez essa merda primeiro, e fez isso um ano antes do John Ford, com o Yakima Canutt!

– Não sabia – diz Marvin. – Em que filme?– Ele nem sequer tinha feito filmes ainda – responde Rick. – Ele

fez essa cena numa série. Deixe-me dizer-lhe como é ter o William Witney como realizador. O Bill Witney partia do princípio de que não havia nenhuma cena que não pudesse ser melhorada por uma troca de socos.

Marvin solta uma risada.– Então, estou eu a  fazer um episódio de Riverboat, realizado

pelo Bill. Estamos numa cena comigo e com o Burt Reynolds. Eu e o Burt estamos a fazer a cena, a dizer as falas, e o Bill grita: «Corta, corta, corta! Vocês vão pôr-me a dormir. Burt, quando ele te diz isso, tu dás-lhe um murro. E Rick, quando ele te dá um murro, tu ficas furioso e dás-lhe um murro também. Entenderam? OK, ação!» E nós fazemos isso. Quando acabamos, ele grita: «Corta! É assim mesmo, rapazes, a cena está feita!»

Riem-se no meio da nuvem de fumo que começa a encher o ga-binete. Marvin começa a apreciar a postura de Rick, um certo sen-timento de experiência de Hollywood conseguida com esforço.

– Então fale-me desse filme do Stewart Granger que mencio-nou – pede Marvin.

– Big Game – diz Rick. – Uma treta qualquer sobre um caçador branco em África. As pessoas saíam do cinema em debandada.

Marvin solta uma gargalhada.– O Stewart Granger foi o maior cabrão com quem já trabalhei –

informa Rick. – E já trabalhei com o Jack Lord!Riem-se sobre a boca a Jack Lord.– E fez um filme com o George Cukor? – pergunta Marvin.– Sim  – responde Rick  –, uma valente porcaria chamada The

Chapman Report. Grande realizador, filme terrível.– Como é que se deu com o Cukor?– Está a gozar? – pergunta Rick. – O George adorava-me!Rick debruça-se sobre a mesinha de café e fala numa voz baixa

e insinuante.– Quero dizer, adorava-me mesmo.

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O agente sorri, deixando o ator saber que percebeu a insinuação.– Acho que é uma coisa que o George faz – especula Rick. – Es-

colhe um moço em cada filme e perde a cabeça. E nesse filme era eu ou o Efrem Zimbalist Jr., por isso acho que ganhei.

Rick continua a elaborar.– Então, nesse filme todas as minhas cenas são com a  Glynis

Johns. E vamos para uma piscina. Ora, a Glynis está de fato de banho. Só dá para ver as pernas e os braços, tudo o resto está tapado. Mas eu estou a usar os calções mais curtos que os censores deixam pas-sar. Calções castanho-claros. Na porra de um filme a preto e branco, parece que estou todo nu! E não é só a minha imagem a saltar para a piscina. Tenho de usar aqueles calções mínimos em longas cenas de diálogo, com o rabo à mostra, durante dez minutos do raio do filme. A sério, porra… agora sou a Betty Grable, querem ver?

Voltam a rir. Marvin leva a mão ao interior do casaco, do lado oposto ao que contém a cigarreira dourada de Joseph Cotten, e tira um pequeno bloco de notas encadernado a couro.

– Pedi a uma das subsidiárias para ver as suas estatísticas na Eu-ropa. E como se costuma dizer, até agora, tudo bem.

Marvin procura nas notas do bloco e pergunta em voz alta:– Bounty Law teve sucesso na Europa? – Quando encontra a pá-

gina que procurava, olha para Rick. – Sim, teve. Ótimo.Rick sorri.Marvin volta a olhar para o bloco.– Onde? – Marvin procura na página e encontra a informação

que procura. – Itália, bom. Inglaterra, bom. Alemanha, bom. Em França, não.

Olha para Rick e diz, em jeito de consolação:– Mas sim na Bélgica. Ora bem, o Rick é conhecido em Itália,

Inglaterra, Alemanha e Bélgica – conclui Marvin. – Isso é a série de televisão. Mas também fez uns filmes; como é que se saíram?

Marvin volta a olhar para o bloco que tem nas mãos, folheando as pequenas páginas, vasculhando o conteúdo.

– Na verdade… – diz quando encontra o que procura. – Os três westerns que fez, Comanche Uprising, Hellfire, Texas e Tanner, saí-ram-se bem em Itália, França e Alemanha.

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Volta a olhar para Rick.– O Tanner saiu-se mesmo bem em França. Sabe francês?– Não – responde Rick.– É pena – diz Marvin ao tirar do bloco uma fotocópia dobrada

e estendendo-a para Rick por cima da mesinha de café. – Isto é uma crítica que o Cahiers du Cinéma fez do Tanner. É uma boa crítica, muito bem escrita. O Rick devia mandar traduzi-la.

Rick pega na fotocópia e toma nota da sugestão do agente, ape-sar de saber perfeitamente que nunca fará tal coisa.

Mas então Marvin ergue o olhar e  fita Rick nos olhos, subita-mente entusiasmado.

– Mas a melhor notícia do bloco é The Fourteen Fists of McCluskey.Rick fica animado enquanto Marvin continua.– Ora bem, na América, o  filme deu um dinheirinho jeitoso

à Columbia quando foi lançado, mas na Europa, porra!Marvin volta a baixar a cabeça para ler a informação à sua frente.– Diz aqui que The Fourteen Fists of McCluskey foi um sucesso

em toda a Europa! Estreou em todo o lado e esteve nas salas uma porrada de tempo!

Marvin olha para cima e fecha o bloco.– Ou seja, na Europa sabem quem o Rick é – conclui. – Conhe-

cem a  sua série de televisão. Mas mais do que o  tipo de Bounty Law, na Europa, o Rick é o tipo radical com uma pala e um lança--chamas que mata 150 nazis em The Fourteen Fists of McCluskey.

Depois de fazer aquela declaração bombástica, Marvin esmaga o Kent no cinzeiro.

– Qual foi a sua última estreia nos ecrãs?Agora é a vez de Rick esmagar o cigarro no cinzeiro.– Um filme horrível para crianças chamado Salty, the Talking

Sea Otter.– Presumo que não era o protagonista – sorri Marvin.Rick lá esboça um sorriso com a graça do agente, mas não há nada

nesse filme a que ache piada.– Foi o filme que a Universal me impingiu para terminar o con-

trato de quatro filmes  – explica Rick. –  O  que mostra o  quanto a Universal se estava a cagar para mim. Lembro-me daquele cabrão,

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o Jennings Lang, a vender-me uma história da carochinha. A atrair--me para a Universal com um contrato de quatro filmes. Eu tinha a Avco Embassy a fazer-me uma oferta. A National General Pictu-res a fazer-me uma oferta. A Irving Allen Productions a fazer-me uma oferta. Recusei tudo e fui para a Universal porque a Universal era a maior. E porque o Jennings Lang me disse: «A Universal quer fazer parte do negócio Rick Dalton». Depois de assinar o contrato, não voltei a ver aquele cabrão.

Então, Rick fez referência ao incidente quando Walter Wanger, produtor de Invasion of the Body Snatchers, deu um tiro na viri-lha de Jennings Lang por dormir com Joan Bennett, a mulher de Wanger.

– Se alguém merece levar um tiro nos tomates, é o cabrão do Jennings Lang. A Universal nunca fez parte do negócio Rick Dal-ton – acrescentou amargamente.

Rick pega na chávena de café e dá um sorvo. O café está frio. Volta a pousar a chávena com um suspiro.

– Então nos últimos dois anos tem andado a participar noutras séries? – continua Marvin.

Rick confirma com um aceno de cabeça.– Sim, agora estou a fazer um piloto para a CBS chamado Lancer.

Sou o vilão. Entrei no Green Hornet. Em Land of the Giants. Num episódio do Tarzan do Ron Ely, aquele de que falei que foi realizado pelo William Witney. E fiz aquela série, Bingo Martin, com aquele miúdo, o Scott Brown.

Rick não gosta de Scott Brown e assume inconscientemente um ar desdenhoso ao mencionar o nome dele.

– E acabei agora um episódio do FBI para o Quinn Martin.Marvin sorve o café, apesar de já estar frio.– Então está a safar-se bem?– Tenho trabalho – clarificou Rick.– E fez de vilão em todas essas séries?– Em Land of the Giants, não, nas outras, sim.– E os episódios acabaram com cenas de luta?– Mais uma vez, não em Land of the Giants, e no FBI também

não, mas no resto, sim.

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– E  agora a  pergunta de 64 mil dólares  – pergunta Marvin. – O Rick perde a luta?

– Claro – responde Rick. – Sou o vilão.Marvin solta um longo «ahhhhh» para ilustrar o  que queria

dizer.– É um truque antigo das cadeias televisivas. Veja o Bingo Martin,

por exemplo. A cadeia tem um tipo novo como o Scott Brown e quer dar-lhe boa reputação. Contratam um tipo de uma série cancelada para fazer de vilão. Então, no final do episódio, quando lutam, o herói derrota o vilão.

Marvin continua a explicar:– No entanto, o que o público vê é o Bingo Martin a dar uma

tareia no tipo de Bounty Law.Au, pensa Rick. Essa doeu, porra.Mas Marvin ainda não acabou.– Na semana seguinte, é o Ron Ely vestido de tanga. Na semana

a seguir, é o Bob Conrad com as suas calças justas a dar-lhe uma coça.Marvin bate com o punho direito na palma da mão esquerda

para reforçar a ideia.– Mais alguns anos a servir de saco de pancada para cada gara-

nhão novo na cadeia televisiva – explica Marvin – acabam por ter um efeito psicológico na maneira como o público vê o Rick.

A humilhação masculina do que Marvin sugere, mesmo estando apenas a falar de representar, deixa a testa de Rick coberta de suor. Eu sou um saco de pancada? A  minha carreira agora é  isto? Per-der lutas para o garanhão novo da temporada? Foi assim que o Tris Coffin, estrela de 26 Men, se sentiu quando perdeu a luta comigo em Bounty Law? Ou o Kent Taylor?

Enquanto Rick remoía nisto, Marvin muda de assunto.– Ora bem, ouvi pelo menos quatro pessoas contarem uma his-

tória sobre si – começa Schwarz –, mas nenhuma delas sabia a his-tória toda, por isso quero que seja o Rick a contar-ma. Que história é essa de quase ficar com o papel do McQueen em The Great Escape?

Oh, foda-se, outra vez esta história, pensa Rick. Apesar de não se sentir nada divertido, faz pouco do assunto para animar Marvin.

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– É só uma boa história para o pessoal do Sportsmen’s Lodge – ri-se Rick. – Sabe, o papel que quase conseguimos. O peixe que es-capou do anzol.

– São as minhas histórias preferidas – diz o agente. – Conte-me.Rick já teve de contar tantas vezes aquela história de azar que

a reduziu aos elementos mais básicos. Engolindo o ressentimento, de-sempenha um papel ligeiramente fora do habitual: o de ator humilde.

– Bom – começa Rick –, pelos vistos, na altura em que o John Sturges ofereceu ao McQueen o papel principal de Hilts, o Rei da Solitária, em The Great Escape, o Carl Foreman – referindo-se ao dinâmico argumentista-produtor de The Guns of Navarone e The Bridge on the River Kwai – ia estrear-se como realizador num filme chamado The Victors e ofereceu ao McQueen um dos papéis princi-pais. Pelos vistos, o McQueen hesitou tanto que o Sturges se viu for-çado a fazer uma lista de possíveis substitutos para a personagem. E pelos vistos, eu estava na lista.

– Quem mais estava na lista?– A  lista tinha quatro nomes  – responde Rick. –  Eu e  os três

Georges: Peppard, Maharis e Chakiris.– Bom – insiste Marvin com entusiasmo –, dessa lista, consigo

bem ver o Rick a ficar com o papel. Se o Paul Newman estivesse na lista, talvez não, mas os três Georges?

– Bom, o McQueen ficou com o papel – diz Rick com um enco-lher de ombros. – O que importa isso agora?

– Não  – insiste Marvin  –, é  uma boa história. Já estou a  ver o Rick no papel. Os italianos vão adorar!

Então, Marvin Schwarz explica a  Rick Dalton como funciona a indústria do cinema italiano.

– O  McQueen não trabalha com os italianos, por nada deste mundo. Os italianos que se vão foder, é o que diz o Steve. Eles que falem com o Bobby Darin, é o que diz o cabrão do Steve. É capaz de trabalhar nove meses na Indochina com o Robert Wise, mas não trabalha dois meses na Cinecittà com o Guido Spaghetti por todo o dinheiro do mundo.

Se eu estivesse no lugar do McQueen, também não desperdiçava o meu tempo num western spaghetti de merda, pensa Rick.

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– O Dino De Laurentiis ofereceu-se para lhe comprar uma villa em Florença – continua Marvin. – Os produtores italianos oferece-ram-lhe meio milhão de dólares e um Ferrari novo por dez dias de trabalho num filme com a Gina Lollobrigida. – E acrescenta num aparte: – Para não falar do pito da Lollobrigida quase garantido.

Rick e Marvin riram-se. Bom, isso é outra história, pensa Rick. Eu fazia qualquer filme da história do cinema se achasse que podia comer a Anita Ekberg.

– Mas isso só faz os italianos quererem-no ainda mais. Por isso, apesar de o  Steve dizer sempre não, e  de o  Brando dizer sempre não, e de o Warren Beatty dizer sempre não, os italianos continuam a tentar. E quando não conseguem, ajustam as expectativas.

– Ajustam as expectativas? – repete Rick.Marvin continua a elucidar:– Eles querem o  Marlon Brando; conseguem o  Burt Reynolds.

Querem o Warren Beatty; conseguem o George Hamilton.Enquanto seguia o obituário da sua carreira na voz de Marvin,

Rick conseguia sentir a sensação ardente de lágrimas a formarem--se nos seus olhos.

– Não estou a dizer que os italianos não querem o Rick – ter-mina Marvin, sem dar conta da angústia do ator. – Estou a dizer que os italianos o  vão querer. Mas a  razão pela qual eles querem o  Rick é  porque querem o  McQueen, mas não conseguem o  Mc-Queen. E  quando finalmente perceberem que não vão conseguir o McQueen, vão querer um McQueen que conseguem ter. E esse é o Rick.

A honestidade brutal das palavras do agente choca Rick Dalton como se Marvin lhe tivesse dado uma estalada com toda a força.

Contudo, do ponto de vista de Marvin, tudo aquilo são boas no-tícias. Se Rick Dalton fosse um protagonista popular nos filmes dos estúdios, não estaria numa reunião com Marvin Schwarz.

Além disso, foi Rick quem pediu para se encontrar com Mar-vin. É Rick quem quer prolongar a sua carreira de protagonista no cinema em vez de desempenhar o vilão do dia na televisão. E o tra-balho de Marvin é explicar-lhe as realidades e possíveis oportuni-dades de uma indústria de cinema acerca da qual Rick não sabe

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um corno. Uma indústria sobre a qual Marvin é um perito reco-nhecido. E, na opinião de perito de Marvin, o facto de Rick Dalton ser parecido com uma das maiores estrelas de cinema do mundo é uma oportunidade magnífica para um agente que coloca atores americanos famosos em filmes italianos. Assim, fica compreen-sivelmente perplexo quando repara nas lágrimas a  correrem pelo rosto de Rick Dalton.

– Então, rapaz?  – pergunta o  agente, surpreendido. –  Está a chorar?

Um Rick Dalton perturbado e embaraçado limpa os olhos com as costas da mão.

– Desculpe, Sr. Schwarz, peço desculpa.Marvin pega numa caixa de lenços de papel pousada na secretá-

ria e estende-a a Rick, consolando o ator choroso.– Não tem de pedir desculpas. Todos ficamos abalados de vez

em quando. A vida é dura.Rick tira dois lenços da caixa com um sacão brusco. Com o má-

ximo de virilidade que consegue reunir naquelas circunstâncias, limpa os olhos com o lenço de papel.

– Já estou bem, só um pouco envergonhado. Peço desculpa por esta cena humilhante.

– Que cena? – desdenha Marvin. – De que está a falar? Somos seres humanos; os seres humanos choram. Isso é bom.

Rick acaba de secar o rosto e põe um sorriso fingido.– Olhe, já estou bem. Desculpe.– Não há nada para desculpar – admoestou Marvin. – O Rick

é ator. Os atores precisam de ser capazes de aceder às suas emoções. Precisamos que os nossos atores chorem. Às vezes, essa capacidade vem com um preço. Agora diga-me: o que se passa?

Rick compõe-se e respira fundo antes de falar.– Já faço isto há dez anos, Sr. Schwarz, e é um pouco difícil ficar

aqui sentado depois de todo esse tempo e encarar o falhado em que me tornei. Perceber como arruinei a minha carreira.

Marvin não entende.– Falhado? O que quer dizer?Rick olha para o agente do outro lado da mesinha de café.

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– Sabe, Sr. Schwarz, eu já tive potencial – diz Rick com sinceri-dade. – Dá para ver em alguns dos meus trabalhos. Dá para ver em Bounty Law. Especialmente quando tinha bons atores convidados. Quando era eu e o Bronson, ou eu e o Coburn, ou eu e o Meeker, ou eu e o Vic Morrow. Eu tinha um je ne sais quoi! Mas o estúdio estava sempre a pôr-me em filmes com velhos acabados. Mas eu e o Chuck Heston? Isso teria sido diferente. Eu e o Richard Widmark, eu e o Mitchum, eu e o Hank Fonda, isso teria sido diferente! E em alguns dos filmes está lá. Eu e  o Meeker no Tanner. Eu e  o Rod Taylor no McCluskey. Merda, até eu e  o Glenn Ford no Hellfire, Texas. Por essa altura, o Ford já não se marimbava, mas ainda pare-cia forte como o diabo e nós ficávamos bem juntos. Por isso, sim, eu tinha potencial. Mas qualquer potencial que eu tivesse, o cabrão do Jennings Lang, da Universal, fodeu tudo.

Então, solta uma exalação derrotada e dramática.– Foda-se, até eu fodi tudo – diz Rick a olhar para o chão.Levanta o olhar e fita o agente nos olhos.– Eu fodi completamente a  quarta temporada de Bounty Law.

Porque estava farto da televisão. Queria ser uma estrela de cinema. Queria apanhar o  Steve McQueen. Se ele conseguia, eu também conseguia. Se durante toda a terceira temporada eu não tivesse sido um cabrão pouco cooperante, tínhamos feito a quarta temporada sem problemas. E podíamos ter tido sucesso e ter-nos separado com amizade. Agora a Screen Gems detesta-me. O raio dos produtores de Bounty Law vão odiar-me para o resto das vidas deles. E eu me-reço! Fui um merdoso naquela última temporada. A minha postura era de alguém que tinha coisas melhores para fazer do que aquela série de merda.

Rick começa a ficar de novo com lágrimas nos olhos.– Quando filmei a série Bingo Martin, detestei o cabrão do Scott

Brown. Nunca fui tão mau como ele. Pode perguntar aos atores com quem trabalhei, aos realizadores com quem trabalhei, eu nunca fui tão mau como ele. E olhe que já trabalhei com cabrões merdosos. Porque é que aquele cabrão me incomodou? Porque vi como ele era ingrato. E quando vi isso, vi-me a mim.

Volta a olhar para o chão.

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– Talvez levar uma tareia do garanhão novo de cada temporada seja o que mereço – diz Rick com genuína autocomiseração.

Marvin ouve com a boca fechada e os ouvidos abertos o desa-bafo que explode pelos lábios de Rick Dalton.

– Sr. Dalton – diz o agente passado um momento –, não é o pri-meiro ator a ter sucesso numa série e a deixar que isso lhe suba à ca-beça. Aliás, é um mal comum por estes lados. E… olhe para mim…

Rick ergue o olhar para os olhos do agente.– É perdoável – termina Marvin.Marvin sorri para o ator. O ator sorri de volta.– Mas – acrescenta o agente – isso requer um pouco de reinvenção.– E no que tenho de me reinventar?– Em alguém humilde.

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