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    LEGALIZANDO O ILEGAL:

    propriedade e usurpao no Brasil(*)

    James Holston

    Como podemos pensar o direito se o sistema jurdico no objetiva resolver os

    conflitos, se um meio de perpetuar e obscurecer as disputas em vez de resolv-las?Neste ensaio, revelarei o poder de uma tradio desestabilizadora: o sistema jurdicobrasileiro no objetiva nem resolver os conflitos de terra de maneira justa, nem decidirsobre seus mritos legais atravs de procedimentos judiciais. Meus argumentos enfatizama norma e a inteno pelas quais, no Brasil, a lei da terra, nos seus prprios termos, toconfusa, indecisa e disfuncional. E possvel suspeitar que as causas dessas caractersticasno sejam somente incompetncia e corrupo, mas a fora de um conjunto de intenessubjacentes s suas construo e aplicao, intenes essas bem diferentes daquelas

    voltadas para as resolues das disputas. Assim, argumento que a lei brasileira produzregularmente, nos conflitos de terra, procedimentos e confuso irresolveis; que essairresoluo jurdico-burocrtica s vezes d incio a solues extrajudiciais; e que essasimposies polticas, inevitavelmente, terminam por legalizar algum tipo de usurpao.Em suma, a lei de terra no Brasil promove conflito, e no solues, porque estabelece ostermos atravs dos quais a grilagem legalizada de maneira consistente. , por isso, uminstrumento de desordem calculada, atravs do qual prticas ilegais produzem lei, esolues extralegais so introduzidas clandestinamente no processo judicial. Nessecontexto repleto de paradoxos, a lei um instrumento de manipulao, complicao,estratagema e violncia, atravs do qual todas as partes envolvidas - dominadoras ousubalternas, o pblico e o privado - fazem valer seus interesses. A lei define, portanto,uma arena de conflito na qual as distines entre o legal e o ilegal so temporrias e suarelao instvel.

    Para clarear essas questes, analisarei um caso de fraude de terra na formao daperiferia de So Paulo.(1) Meus objetivos nessa anlise so, em primeiro lugar, ofereceruma etnografia de um conflito de terra notvel por suas muitas dimenses; em segundo

    lugar, entender a relao entre a lei e a sociedade que ele revela; e, em terceiro lugar,tecer consideraes a respeito de aspectos da antropologia da lei que ele problematiza.

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    Esse caso ilustra o significado fundamental da ilegalidade nas ocupaes de terras noBrasil, bem como os caminhos que ligam as complicaes legais legitimao dosdireitos sobre a terra usurpada. Ele tambm nos mostra as razes histricas dessas

    prticas, j que sua complexidade, titnica mas singular, nos leva atravs de nada menos

    que 400 anos de histria que do sentido s disputas atuais. Desse modo, encontramos asrelaes estruturantes entre terra e lei, que sustentam os conflitos, desde odesenvolvimento da poltica fundiria portuguesa, pensada para ser um instrumento decolonizao, at as tentativas imperiais e republicanas de utilizar a reforma da

    propriedade da terra para trazer imigrantes europeus livres para o Brasil.(2) Essainvestigao tambm revela que as grilagens de terras atuais repetem velhos esquemas,com uma diferena: os pobres hoje competem regularmente nas arenas legais das quaiseles tinham sido excludos-no porque a lei est agora mais preocupada com a justia ou

    com solues, mas porque eles aprenderam, muito em funo das disputas de terra, a usaras complicaes da lei para obter vantagens extralegais.

    A razo para desenterrar essa histria complexa no somente analtica. Osconflitos de terra so tambm, explicitamente, disputas sobre o sentido da histria, porqueopem interpretaes divergentes a respeito da origem dos direitos de propriedade. Ocentro nevrlgico desses casos a busca por um ttulo, a busca pelas origens que

    justificam ou desqualificam alegaes. Assim, logo descobri que a disputa em questono fazia sentido a menos que fosse retraada ao longo do tempo. Litigantes, advogados,

    juzes, moradores e grileiros: todos estudam a genealogia do conflito para basear seusargumentos atuais sobre a autoridade da histria - que, neste caso, comea em 1580. Elesoperam segundo uma premissa, bsica para os direitos de propriedade em muitassociedades, que diz o seguinte: precedentes histricos conferem legitimidade. Todavia,no necessariamente. Uma posio alternativa, adotada, por exemplo, por muitosmilitantes da Igreja Catlica nas disputas de terra, argumenta que a necessidade presentedesqualifica precedentes. No entanto, como veremos, as partes em disputa adotam maiscomumente uma estratgia historicizante: elas se utilizam da lei para conferir s suas

    alegaes origens histricas crveis. Na maioria das vezes, contudo, elas emergem demaneira altamente ambgua, e muitas so deliberadamente falsas.

    Se a procura por origens tem o objetivo de descobrir precedentes capazes dejustificar um conjunto de alegaes que subvertem um outro conjunto de alegaes, entominha pesquisa sobre origens tambm tem l suas intenes corrosivas. Mostro o quantoesto tomados por uma fico jurdica, no somente para desqualificar o apelo histriaque neles feito, mas tambm para questionar aquilo que ainda um princpio, naantropologia jurdica, e que rege a idia de lei e sua explicao como funo: a lei, comoinstituio, est baseada na sua funo de manter as condies necessrias vida social.

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    Seja considerando-a em termos de coeso, como consta na literatura mais antiga, seja, poroutro lado, em termos de hegemonia e resistncia, como aparece nos escritos maisrecentes, a lei responde a necessidades sociais principalmente resolvendo conflitos ereforando a conformidade s normas, no mais das vezes segundo noes do que

    direito, justo e bom; e sua inaptido para tanto o resultado de algum fator estranho suanatureza, como incompetncia, corrupo ou poltica.(3) Neste ensaio, estouespecialmente atento a esse ltimo ponto e s conseqncias tericas implicadas naexcluso de tudo o que desagregador do modelo explicativo.

    Para lembrar um exemplo clssico, Schapera (1985: xxv) explica por que eleexclui, de seu manual da lei de Tswana, as violaes, abusos, e "muitos subterfgiosutilizados para evitar a lei", alegando que os nativos talvez ficassem ressentidos com "a

    incluso daquilo que constitui, no final, abusos e no partes da lei". claro queantroplogos das mais diversas filiaes tericas tm descrito esses aspectos dos sistemasjurdicos chamados extrnsecos ou latentes (ver Nader 1965, pp.18-21 para exemplos deum tipo de etnografia mais antiga). No entanto, numa observao sagaz, vlida at hoje,

    Nader (1965, p. 21) escreve: "Na maior parte das vezes, a incluso dessas funesextralegais na literatura antropolgica tem sido meramente anedtica. (Essas funesextralegais) no devem ser tomadas como sendo ilustrativas da lei; mais que isso, elas soexemplo do que deve ser includo em qualquer estudo etnogrfico da lei que merea essenome".(4) Estudos antropolgicos mais recentes rejeitam essas vises essencialistas e

    funcionalistas da lei e focalizam conflitos, a poltica e os discursos.(5) Todavia, apesardesses estudos acertarem na nfase dada maneira pela qual o poder move os sistemas

    jurdicos, eles no problematizaram a prpria idia de lei atravs de uma reflexo sobre oseu lado mais obscuro, qual seja, a sua. relao com os fatores utpicos contidos nasidias de justia, harmonia e resistncia. Assim, numa discusso sobre a lei brasileira,Shirley (1987, p. 89) atribui suas disfunes a um "fosso entre a lei formal e a leiaplicada". Tal dicotomizao no privilgio da antropologia, e tem conseqnciasimportantes. O ensino brasileiro do direito geralmente atribui o caos da lei, evidente e

    paralisador, ao fosso que Shirley elevou condio de conceito analtico. Estudantes dedireito so ensinados a considerar a lei formal do Brasil como sendo baseada em valorestranscendentais, prprios de uma cultura jurdica liberal, corrompidos por interessesconcretos, de classe e do Estado. No que segue, no ponho em dvida o fato de que

    princpios utpicos possam existir na lei, ou mesmo que eles sejam desejveis. Minhadvida recai sobre o carter externo dos percalos da lei com relao sua prpriaestrutura.

    A periferia fora da lei

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    Desde a dcada de 40 deste sculo, a maioria dos trabalhadores de So Pauloenfrenta um duplo dilema de moradia. Por falta de opes, eles tm que construir suas

    prprias casas; mas, para encontrar um lote que seja acessvel, eles precisam ir cada vezmais para a periferia - "para dentro do mato", como dizem -, onde a nica infra-estrutura

    a estrada de terra que especuladores das imobilirias e companhias de transporte queatuam na rea construram para vender as terras. Na medida que os especuladores abrem a

    periferia para milhes de trabalhadores, a fora dessa dupla necessidade eleva a taxasaltssimas a expanso da periferia urbana.(6) No esquema clssico de autoconstruo, osmoradores primeiro levantam barracos de blocos de concreto ou madeira, e ento, durantedcadas, vo transformando-os em casas acabadas, decoradas e mobiliadas (ver Holston,1991). Como resultado desse processo, a casa prpria quase uma norma na periferia,sendo uma realidade para 60 por cento das famlias, ao passo que 30 por cento delas

    alugam suas moradas, e 10 por cento vivem em casas emprestadas pelos proprietrios -muitas vezes, seus parentes (Metr 1990, p. 30). Salvo raras excees, as pessoas iniciama autoconstruo de duas maneiras: comprando ou simplesmente invadindo os lotes. Noentanto, ambas as opes acabam, quase que invariavelmente, levando a alguma forma deresidncia ilegal.(7) Aqueles que ocupam um terreno invadido no tm direitos sobre ele,embora haja na Justia uma tendncia em reconhecer a propriedade da construo neleerguida. Aqueles que compram os lotes, e que teriam assim suas propriedades assentadassobre alguma base legal, normalmente constatam que os mtodos ilegais de venda dosempreendedores imobilirios - desde a grilagem at a no instalao, obrigatria por lei,dos servios urbanos - terminam por prejudicar o reconhecimento jurdico do contrato. Defato, a Secretaria de Planejamento de So Paulo recentemente estimou que nada menos doque 65 por cento do total da populao residem violando seja leis de propriedade, seja leisde moradia (Rolnik et al, 1990, p. 95)! Invadindo ou comprando a terra, a maioria das

    pessoas parece entender o paradoxo central de sua situao: a ilegalidade de seus lotes fazcom que a terra seja acessvel queles que no tm como pagar pelos preos mais altos,de aluguel ou venda, das residncias legais. Mais significativo ainda, essa ilegalidade,eventualmente, incita confrontao com autoridades legtimas, em meio qual, depois

    de uma longa batalha, os moradores normalmente conseguem legalizar as suas precriasreivindicaes pela propriedade. A moradia ilegal uma maneira comum e segura atravsda qual a classe trabalhadora pode ganhar o acesso legal terra e moradia, acesso esseque, de outro modo, no seria possvel. Assim, uma relao fundamental entre usurpaoe legalizao caracteriza o desenvolvimento da periferia: a usurpao inicia o

    povoamento e desencadeia o processo de legalizao da propriedade da terra.

    importante acrescentar que essa relao se cristalizou no comeo da colonizao

    brasileira como uma estratgia das elites fundirias e dos especuladores imobilirios, quedela se serviram para arrancar ganhos incalculveis. Durante sculos eles a usaram no

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    somente para ampliar seus negcios comerciais, mas tambm para consolidar umaenorme concentrao de propriedades. Na verdade, um dos objetivos deste ensaio demonstrar que a lei da terra brasileira foi montada para ser cmplice dessa prtica, e noum obstculo a ela. Assim, por toda parte no Brasil, e especialmente entre as melhores

    famlias, encontramos propriedades que, apesar de serem legalmente assentes, so, nofundo, usurpaes legalizadas.

    O carter legal da propriedade depende, inicialmente, de como ela foi alienada ouadquirida, o que quer dizer, basicamente, atravs de venda ou de invaso. Segundo a lei,

    parcelas do territrio urbano s podem ser legalmente definidas depois de subdivididasem lotes. As legislaes Federal e Municipal regulam os loteamentos urbanos(especialmente a Lei Federal 6766/1979), estabelecendo caractersticas fsicas, as quais

    incluem o tamanho mnimo do lote, ligaes com servios pblicos, e espaos livres paraa circulao do trfico e para atividades comunitrias. Estabelecem tambm normasburocrticas, que estipulam os procedimentos para o registro das subdivises e alienaesda terra. Essas normas, por sua vez, esto fundadas numa dinmica de aquisio da terraque envolve, necessariamente, uma srie de procedimentos burocrticos, estabelecidos noCdigo Civil Brasileiro (Cdigo Civil, 1990, art. 530), atravs do qual a propriedade adquirida "pelo registro do ttulo de transferncia no Cartrio de Imveis". Desse modo,todas as transaes relacionadas com a propriedade devem ser registradas a fim de seremobtidos os direitos legais relevantes. Esses registros so regulados pela Lei dos Registros

    Pblicos (6015/1973), a qual define as formalidades que constituem o sistema brasileirode cartrios - sistema privado, labirntico e corrupto.(8)Seu enorme poder burocrticovem do Cdigo Civil (art. 533), o qual afirma que as transaes envolvendo bens imveisno transferem a propriedade, ou os direitos sobre ela, a no ser a partir da data na qualso registradas nos livros dos cartrios; ou seja, como diz o ditado, "quem no registra,no possui". A posse definitiva da terra urbana, portanto, depende de um documentolegalmente registrado - a escritura - de um lote num loteamento legalmente registrado.Qualquer coisa a menos compromete a posse.

    As pessoas compram lotes em quatro tipos de loteamentos, que geralmenteaparecem lado a lado na mesma vizinhana: o legal, o irregular, o clandestino, e o grilado.O mais raro dos quatro tipos, o loteamento legal, est de acordo com todas asespecificaes fsicas e burocrticas. O loteamento irregular - ou melhor, parece ser-legitimamente adquirido e registrado por seu empreendedor imobilirio, mas viola, dealguma maneira, as regras de parcelamento da terra. O loteamento clandestino no registrado no cartrio de imveis, apesar de a terra poder ser de posse legtima de seuempreendedor. J o loteamento grilado vendido por um grileiro, que se diz o titular daterra, e o faz atravs de uma srie de artimanhas. A negociata envolvendo a terra, nessa

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    situao, chamada de grilagem, e a terra, dessa maneira vendida ou adquirida, umgrilo(9) Apesar do loteamento ilegal freqentemente combinar vrios desses aspectos, ele classificado segundo a sua mais grave infrao. Assim, enquanto todos os outros tiposde loteamento esto provavelmente violando os cdigos de planejamento urbano, o

    loteamento grilado enfrenta problemas a mais porque no s negociado, mas atregistrado, na base de documentos fraudados.

    As pessoas que compram um terreno num loteamento clandestino no podem obtero registro legal enquanto a infrao no for solucionada. Contudo, a descoberta dos

    problemas pode levar dcadas, j que o pedido da escritura definitiva - outra formalidadeburocrtica que favorece muitos grileiros - s pode ser feito depois da quitao dasprestaes. Quando os moradores finalmente percebem as complicaes jurdicas, eles

    tambm ficam sabendo que todo seu investimento est correndo perigo, que seusprocessos no conseguem romper as ,teias burocrticas, e que suas famlias podem serdespejadas. Em 1979, Caldeira (1984, p. 70) constatou que, entre as famlias que haviamcomprado terrenos no Jardim das Camlias - o bairro da periferia de So Paulo quetambm estudei -, 57 por cento tinham completado o pagamento, embora somente 16 porcento declararam possuir o registro definitivo de seus lotes. Todavia, mesmo essasdeclaraes no podem ser tomadas como reflexo perfeito dos fatos, j que um bomnmero de moradores simplesmente se recusa a admitir que suas propriedades, adquiridascom tanto sacrifcio, no esto em dia com a Justia. Ouvi muitas vezes dessas pessoas

    que "havia alguns-problemas por perto, mas com o meu lote tudo est em ordem", o queera confirmado com documentos que me eram apresentados. A dificuldade est no fato deo grileiro sempre fornecer calhamaos de documentos genunos s suas vtimas - porexemplo, recibos de venda, impostos, especificaes do lote, protocolos de registro. Elesresultam de transaes baseadas em irregularidades ainda no resolvidas, que por sua vez

    podem se transformar na base de documentos que, por isso mesmo, no solegtimos.(10)

    Esses subterfgios exemplificam a estratgia fundamental utilizada por todo tipode grileiro de terra: complicar para enganar. Inspirados nasintrincadas formalidades dasleis nos seus desdobramentos burocrticos - assinaturas, carimbos, selos ereconhecimentos de firma -, eles modelam seus truques a partir das mesmas leis queviolam. Tentam dar s suas operaes todo tipo de fachada burocrtica e jurdica noobjetivo de conferir-lhes um ar de legalidade, e isto s vezes to bem feito que, semesmo advogados e juzes so enganados, o mesmo ocorre com os mais humildes, muitasvezes intimidados com documentos de aspecto oficial. O resultado disso que,geralmente, fica muito difcil determinar o carter legal da terra comprada na periferia, oua distribuio das propriedades num dado bairro, sem uma exaustiva pesquisa sobre todo

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    e qualquer ttulo de lote. Os grileiros contam com essa dificuldade, e sabem que no s aspessoas so facilmente enganadas e as informaes sobre as terras pouco confiveis, mastambm que a maior parte das pesquisas sobre os ttulos no chega a nada porque - e scomo um exemplo - um documento legalmente registrado em um cartrio pode, ele

    mesmo, estar baseado em documentos falsos e irregulares de um outro cartrio.

    O caso a seguir ilustra esse estratagema. Invasores h muito ocupam uma rea de29 hectares ao longo de uma margem do rio Tiet, na periferia do norte de So Paulo. Em1987, y vendeu a terra para z, que registrou a transao no 7 Cartrio de Notas de SoPaulo. Esse cartrio lavrou a escritura de transferncia com base no registro de

    propriedade feito naquele mesmo ms no 17 Cartrio de Imveis de So Paulo. Esseltimo registro afirma que a terra pertenceu a um casal nascido na dcada de 1860, casado

    em 1890 em Santos, que morava em 1986 em Guarulhos, e que a vendeu naquele mesmoano, atravs de procurao judicial, para y. O problema que, em 1986, o casal j estavamorto havia muitas dcadas, de acordo com as certides de bito. Cavando mais fundo,encontramos a fraude original: 0 17 Cartrio baseou seu registro num documentolavrado em 1986 no cartrio de uma pequena cidade do estado do. Paran, o qual atestaque um certo x apresentou-se como portador de uma procurao judicial do casal paravender a terra para y - que era, por sinal, um advogado. Creio que os processos levaromuitos anos para concluir que z e a herana do casal foram fraudados porx e y, que comisso ganharam muito dinheiro; tudo isso, claro, contanto que z no fizesse parte da

    fraude ou que as alegaes do velho casal no se revelem ilegtimas - as quais, devodizer, no configuram possibilidades muito remotas. Em todo caso, aposto que, dadas ascomplicaes jurdicas embutidas em todas essas possibilidades, os invasores terminarocom a posse da rea - isto se puderem mobilizar-se em torno do pedido de legalizao daocupao alegando "interesses sociais", como previsto na Constituio.

    Mesmo que o intrpido pesquisador sobreviva caa dos papis, muitas vezesdifcil determinar, em meio s muitas camadas de complicaes, quem o proprietrio do

    que. por isso que, como aparece no prximo exemplo, essas disputas so impossveisde serem resolvidas nos Tribunais. Ao contrrio, ficam circulando sem parar atravs dosistema burocrtico, esperando impossveis evidncias mais conclusivas. No precisorepetir: a confuso vai ao encontro dos interesses dos grileiros, j que esses casos somuitas vezes resolvidos atravs de manobras polticas e extrajudiciais - como acordos

    peridicos - atravs das quais as instituies executivas ou legislativas do governointervm para declarar que o sistema jurdico est em cheque e, assim, desqualificamcertas alegaes de propriedade em favor de outras. Essas intervenes terminaminevitavelmente legalizando usurpaes e, dessa forma, evidenciam prticas ilegais eextralegais nos prprios domnios da lei. Alm disso, sua ocorrncia por demais freqente

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    na histria dos povoamentos no Brasil vem inspirando muitas operaes de terras ilegais.Como um deputado da assemblia constituinte de So Paulo de 1935 lembrou aos seuscolegas, durante o debate em torno da emenda que daria ttulo legtimo queles quetivessem pago impostos da propriedade ao Estado, h uma velha correlao entre fazer e

    transgredir a lei: "A poltica de terras de So Paulo", alertou ele, "tem sempre sido a detentar evitar futuras grilagens legalizando grilagens anteriores" (Estado de So Paulo1935, 2, p. 228), apontando assim para o carter pouco conceitual, no-categrico etemporrio, da distino entre o legal e o ilegal nesse campo de muitas conseqnciassociais. Suas observaes, todavia, talvez porque simplesmente expunham o que era decostume, no tiveram qualquer efeito nas deliberaes do congresso.

    Um caso de grilagem

    Para compreender a vitalidade dessa poltica de terras e sua importncia naformao da periferia, analiso, a seguir, um exemplo de grilagem no Jardim das Camlias,

    bairro com cerca de 7 mil pessoas, situado no distrito de So Miguel Paulista, na periferiado extremo nordeste da cidade de So Paulo. Esse bairro, que s veio a se desenvolverintensamente depois de 1969, caso tpico das reas mais novas e pobres da periferiaurbana, nas quais os migrantes (ou os filhos dos migrantes), geralmente empregados nasocupaes mais mal-remuneradas dos setores de servios e comrcio, constroem suas

    prprias casas.(11) A partir de uma minuciosa pesquisa de domiclio realizada em 1979,

    Caldeira (1984, pp. 60-70) estimou. as seguintes condies de moradia para um total deaproximadamente 900 domiclios e 4.650 pessoas: 60 por cento desses domiclioserguiam-se em lotes comprados, 26 por cento alugavam suas acomodaes, 12 por centomoravam em casas emprestadas (geralmente por seus parentes), e 3 por cento ocupavamlotes cedidos. Os ltimos so geralmente os capangas das imobilirias, que recebemmaterial de construo e um terreno em troca de seus servios de segurana. Quando fizmeu trabalho de campo, quase dez anos depois, uma mudana significativa nas condiesde moradia tinha ocorrido: se em 1979 no havia qualquer terra invadida, em 1988

    centenas de pessoas tinham ocupado ilegalmente vrias reas no Jardim das Camlias.Essa "invaso" no bairro, como muitos a chamavam, desencadeou uma srie dehostilidades entre aqueles que compraram seus terrenos e aqueles que simplesmente osocuparam - conflitos que evidenciaram a importncia da titularidade da propriedade comocategoria de auto-estima, e cujas conseqncias polticas dividiram os pobres segundofaces antagnicas.

    O caso envolveu 207 famlias que compraram seus lotes entre 1969 e 1972 masnunca conseguiram seus ttulos legais definitivos porque esses lotes tinham sido vendidos

    de maneira fraudulenta. Isso constitui, nunca demais lembrar, apenas pequena parte de

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    toda grilagem e de suas complicaes legais que atormentam mais de meio milho defamlias da periferia da zona leste de So Paulo. Exponho, a seguir, a cronologia dadisputa de terras desde a poca em que os moradores se viram nela enleados, e depoisanaliso as vrias alegaes de propriedade, cujas contradies tornaram-nas judicialmente

    insolveis. As complicaes remontam ao sculo XVI.

    Em 1969, um homem chamado Rafael Garzouzi, "o turco", ou "o libans", comoera chamado pelos moradores, apareceu no ento pouco habitado Jardim das Camlias.Atravs de sua imobiliria, a Adis Administrao de Bens S.A., ele abriu uma srie deestradas de terra, construiu no local um escritrio, dividiu a terra em onze lotes de6+20m, e comeou a vend-los. Ele exibia aos interessados um plano de urbanizao do

    bairro e documentos que comprovavam o registro das terras no cartrio competente. Um

    contrato muito atraente era oferecido por ele aos compradores: estipulava prestaesmensais durante perodo que variava de dois a dez anos; obrigava a imobiliria a fornecer,alm de cada recibo das prestaes, documento de quitao depois do ltimo pagamento.Com esses recibos e o documento de quitao em mos, o comprador podia entoregistrar sua compra e transferir a titularidade do imvel para o seu nome. No entanto,uma das muitas coisas que a Adis no disse a seus clientes foi que, embora as assinaturasdo contrato fossem reconhecidas em tabelionato, seu plano de arruamento e loteamentono tinha sido aprovado pelas autoridades competentes - e nem poderia. O plano no sviolava as posturas municipais de planejamento, mas tambm - o que constitui fato mais

    grave - subvertia outro plano para a mesma rea, aprovado desde 1924 em nome de JosMiguel Ackel.

    No incio de 1970, os herdeiros de Nadime Miguel Ackel, irmo de Jos Miguel,moveram processo contra a Adis para reaver os lotes que a ltima dizia serem seus. AAdis contra-atacou com uma ao na qual afirmava que ela tinhas todos os direitoslegtimos de propriedade desde 1958, e seus predecessores, desde 1890, devido a umgrande tratado de terra que inclua os referidos lotes. A Adis entrou com pedido de

    indenizao, alegando que a empresa de Ackel tinha de fato usurpado seus direitos, nos ao se basear no plano de loteamento de 1924, como tambm ao vender cerca de 70lotes. Ardilosamente, a Adis jogou com a burocracia judiciria, tanto que as acusaes eas contra-acusaes ficaram circulando pelo sistema jurdico por muitos anos semqualquer resultado. Todo esse tempo, no entanto, no foi desperdiado: a empresaapropriou-se do restante da rea e ainda vendeu 233 lotes, parte dos quais rebatizou como nome de Vila Tirol. E no parou nisso. A Adis tambm vendeu duas grandes reas parascios que, por sua vez, as subdividiram para a venda sob o nome de Jardim Oriental eJardim Eliane. A rea tinha agora quatro nomes e quatro planos de loteamento diferentes,os quais desdobravam-se em distintos planos de localizao de lotes, ruas irregulares e

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    tamanhos de lote abaixo do padro - tudo isso facilitando a venda do mesmo terreno amais de um interessado. O plano de 1924 j estava completamente desfigurado.Coexistiam muitas camadas de planejamentos contraditrios entre si, alm de um nmerocrescente de terceiros que reivindicavam a mesma propriedade. E havia mais. Para fazer

    frente s queixas de Ackel, a Adis e seus associados deflagraram campanha deintimidao: capangas foram contratados, no s para demolir construes, desmancharcercas e remarcar os lotes segundo suas medidas, mas tambm para desencorajar o acessodaqueles que no tinham negociado com seus patres.

    Os moradores reagiram de muitas maneiras. Muitos contrataram advogados queestavam no bairro oferecendo seus servios e que, no raro, desapareciam assim querecebiam o adiantamento. Alguns foram enganados por ambulantes que se diziam

    representantes das imobilirias ou mesmo da Prefeitura. Outros simplesmente ignorarama situao, acreditando que seus lotes estavam em dia com a lei. E, finalmente, haviacerca de oitenta pessoas que, percebendo as muitas irregularidades por todo lado,organizaram em 1972 a Sociedade Amigos de Bairro para coletivamente defender seusdireitos. Um grupo de advogados da Universidade de So Paulo, a Igreja Catlica e

    partidos polticos de esquerda, todos conhecidos por suas atuaes junto a organizaespopulares, foram procurados pela associao para darem suas orientaes. Essa aoconjunta mostrou-se duradoura, como o atesta o fato de um desses advogados estar, athoje, envolvido com o caso.

    A partir do momento em que a disputa se tornou jurdica, o estado de So Paulointerveio, afirmando que a terra era de fato sua, e com base nisso exigiu, em 1972, adevoluo dos onze lotes seqestrados. Com isso, Ackel moveu em 1973 novo processo,desta vez contra a Adis e o Estado, exigindo todos os 207 lotes sobre os quais julgava terdireito. A resposta do Estado veio em 1975, quando simplesmente os seqestrou.Segundo essa mesma ao de seqestro, e at que fosse resolvida a disputa sobre as

    propriedades, os moradores eram obrigados a depositar o restante das prestaes em

    juzo. Isso implicava que, ao final das prestaes, no lhes era dado qualquercomprovante de propriedade, o que, alm de os impedir de vender legalmente seusterrenos, tambm impedia a regularizao dos loteamentos e das construes. No entanto,no tive notcia de qualquer morador que tivesse interrompido o pagamento de suas

    prestaes.(12)Muito pelo contrrio, todos aqueles que conheci pessoalmente saldaramsuas dvidas em juzo.

    Em conseqncia da ao do Estado, a Adis no estava mais recebendo asprestaes. No entanto, como a ao de seqestro de maneira alguma a restringia, a Adis

    comeou a mandar avisos de despejo aos moradores, numa tentativa de receber deles

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    grandes somas de dinheiro vista. Foi nesse perodo que a associao dos moradores eseus representantes aprenderam a manipular o sistema jurdico, antecipando-se s aesde despejo e mesmo complicando as atividades da Adis no Jardim das Camlias,chegando ao ponto de anular suas iniciativas. At ento nenhum advogado representando

    os moradores tinha conseguido vencer os grileiros. No melhor dos casos, elesencontravam sadas extralegais atravs das quais seus clientes, tomados pelo pnico,

    pagavam para cancelar as aes de despejo; no pior dos casos seus clientes eram de fatodespejados. Contrastando com essa situao, o advogado da associao tinha convencidoseus membros a conter seus receios at o dia de seu comparecimento no Tribunal. Eento, em cada audincia, ele desafiava a Adis a provar definitivamente a propriedade dasterras, o que era impossvel de ser feito em qualquer instncia. Ele tambm argumentavaque os moradores no tinham desonrado seus contratos ou invadido as terras, mas eram

    compradores bem-intencionados, que estavam em dia com suas dvidas, e que, mesmo emjuzo, pagavam suas prestaes. O resultado dessa e de outras tticas foi que a Adis se viuforada a adiar e at mesmo a retirar seus processos. No fim, e depois de gastar umaconsidervel quantia de dinheiro com taxas judiciais, ela foi derrotada em todos os casos.Ademais, em 1983, a associao denunciou a Adis Prefeitura por ter deturpado o planode loteamento de 1924; a administrao municipal ento exigiu da empresa que custeasseum novo levantamento da rea e um plano de regularizao da mesma. Como previsto

    pela associao, o novo plano foi regularizado, mas no pde ser registrado em nome daAdis. Esse fato comprometeu publicamente os argumentos de propriedade da Adis. Almdisso, a regularizao desmembrou, para efeito de cobrana de impostos, cada lotesegundo suas mais precisas medidas e localizao - o que constituiu importantereconhecimento dos direitos e deveres dos moradores. Resultou desses priplos jurdicosque a associao aprendeu no s a desarmar seus inimigos atravs de manobras legaiscomo tambm a construir um impressionante dossi com documentos oficiais quesustentam suas reivindicaes.

    Essa habilidade com as regras do jogo foi, para aqueles protagonistas vindos das

    classes mais baixas, conquista fundamental. Serviu para contrariar a norma segundo aqual, mesmo quando bem representados, os pobres perdem as disputas com especuladoresimobilirios e com os bares da terra. O sucesso da associao, nesse caso, deveu-semuito s habilidades de seu presidente e de seu advogado, sobretudo de sua inovadoraconcepo tanto da lei - como uma fonte de estratgias -quaneo do sistema legal-tomadocomo um jogo de tticas a ser dominado e explorado. A partir dessa abordagem, elesconseguiram superar uma srie de posturas essencialistas que vm, h muito,caracterizando a atitude reverente, alienada e subordinada dos pobres diante da lei. Essas

    posturas aceitam a evidente explorao do sistema legal, praticada pelas elites e pelaburocracia, como algo acidental, deturpao daquilo que , em si mesmo, um corpo de

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    princpios de justia a ser venerado, de procedimentos definidos e de relaessacramentadas que devem ser seguidos risca, de um conhecimento complexo e deaxiomas morais feitos para as elites letradas e compreendidas somente por elas, oumesmo - no caso de movimentos revolucionrios ou milenaristas - de ideologias polticas

    a serem prontamente rejeitadas.(13) Apesar de no constituir uma vitria definitiva, osucesso da associao at aqui conseguido denota uma nova relao perante a lei daquelassuas vtimas tradicionais, uma relao que podemos definir como oportunismoestratgico, j que considera a justia um recurso que funciona, no de acordo com

    princpios fixos, mas segundo as circunstncias. De fato, esse inovao redistribui para asclasses mais baixas a estratgia jurdica utilizada pela elite brasileira durante o perodocolonial.

    A interveno do governo federal no Jardim das Camlias completou o imbrgliojurdico da disputa. Ele tambm se dizia o proprietrio das terras, que consideravapatrimnio federal, alm de no reconhecer a legitimidade das transaes e dosprocedimentos judiciais relativos rea nos quais no tivera participao. O governofederal, dessa maneira, negava a maior parte da histria do conflito ao longo dos ltimossculos. Sua interveno obstruiu e tornou confusa toda a ao judicial anterior queobjetivava deixar clara a titularidade das terras: seguindo suas deliberaes, foraminterrompidas as demarcaes e todos os processos jurdicos em andamento, alm de

    proibida toda expropriao, legalizao e regularizao das terras atravs das

    administraes municipal e estadual. At que, em 1975, o caso chegou ao SupremoTribunal Federal (STF), o nico tribunal com poderes para julgar o conflito entre osgoverno federal e estadual. Para iniciar o processo, todavia, o STF tinha que, antes demais nada, avaliar cada alegao separando os interesses de propriedade pblicosdaqueles privados. O fato que, com isso, o caso ainda hoje se arrasta no STF por faltade evidncias, fontes e, provavelmente, iniciativa para decidir qual, entre as muitasalegaes de propriedade, a mais fundamentada.

    Com o passar dos anos, as partes envolvidas optaram por estratgias extrajudiciais.Em 1983, a Adis e a empresa de Nadime Miguel Ackel assinaram um acordo para aanulao dos processos em que se acusavam. Ackel concedeu os 207 lotes em disputa

    para a Adis, a qual, por sua vez, concedeu um nmero equivalente para Ackel em outrasreas do Jardim das Camlias. As lideranas do bairro consideram o acordo nada maisque um pacto de ladres, que visa estabelecer uma frente unida contra as cada vez maisintensas atividades dos invasores na rea. Mesmo assim, e um ano depois, a SociedadeAmigos de Bairro assinou um acordo com ambos. Ela aceitava os termos de seu acordode 1983 se, em troca, a Adis e Ackel suspendessem as ameaas de "despejo",

    prometessem no mais processar os membros da associao, concordassem que aqueles

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    que tinham completado seus pagamentos em juzo haviam cumprido seu contrato, eaceitassem uma srie de outras exigncias que asseguravam um mnimo de tranqilidadeaos moradores. Baseadas nessas concesses, as trs partes concordaram sobre aviabilidade da sada extrajudicial, a chamada soluo amigvel. E por que cada parte

    aceitou o acordo? A Adis e Ackel queriam o mximo possvel de reconhecimento de suasalegaes de propriedade, enquanto que os moradores queriam definir, de maneirainequvoca, os donos da terra para os quais pudessem pagar suas prestaes e, em troca,receber o ttulo de propriedade definitivo. Os moradores queriam pagar; de fato, suamoralidade assim exigia e, para eles, os distinguia dos invasores. A questo era: pagar

    para quem?

    O acordo reconhecia que a soluo amigvel implicava que tanto o governo do

    Estado quanto 0 Federal renunciassem aos seus interesses de propriedade na disputa.Todavia, o Estado negou o pedido e aproveitou a oportunidade para instruir o procuradorgeral a formar uma comisso como objetivo de analisar o problema das disputas de terraem toda a periferia da zona leste da cidade. Essa comisso de procuradores do Estadoreuniu-se periodicamente durante todo o ano de 1986, concluindo, segundo os dizeres do

    procurador geral, que "a j catica situao jurdica da rea, abandonada por tantos anosaos mpetos dos "grileiros", tornou-se praticamente insolvel dada a sua complexidade

    processual, caracterizada pelo simples fato de que um nmero enorme de antigosreivindicantes e seus descendentes alegam ter as evidncias jurdicas que comprovam

    suas alegaes". Dada a impossibilidade da sada judicial, a comisso props uma soluoatravs de "aes poltico-administrativas" regidas por um decreto presidencial, no qual ogoverno federal renunciaria aos seus interesses em favor do Estado de So Paulo. OEstado, por sua vez, e quando possvel, renunciaria aos seus direitos em favor dos"acordos amigveis", como aqueles do Jardim das Camlias; e, quando tal atitude nofosse possvel, desapropriaria a terra em disputa e a concederia aos seus moradores.(14)

    Apesar dos governadores Montoro e Qurcia terem assinado o compromisso de

    formar uma comisso estadual e federal para tratar dos detalhes dessa proposta, nohouve qualquer ao, partindo de qualquer instncia, no sentido de implement-la.Quando perguntados a esse respeito, os moradores lamentam a falta de vontade poltica ea corrupo. No entanto, no parecem muito surpresos, sobretudo depois de vinte anos deconfuso. A associao dos moradores continua tentando acordos amigveis entre novosgrileiros e novos habitantes da regio, alm, claro, de lanar mo de outras estratgias.Enquanto isso, por toda So Paulo, e de fato por todo o pas, as transaes fraudulentassobrevivem sob a proteo das complexidades processuais, o que implica dizer, sob a

    proteo da lei.

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    Uma histria de origens dbias

    Casos similares a esse sugerem que a lei brasileira est carregada de muitasirresolues. Apesar de focalizar, neste ensaio, a lei de terra e sua burocracia, minha

    experincia no Brasil mostra que essa uma caracterstica fundamental de todo o sistemajurdico. Infelizmente, no encontrei pesquisas sobre esse problema conceituai em outrasreas do direito, apesar da insistncia de DaMatta sobre a importncia crucial que tem aambigidade na sociedade brasileira.(15) Em todo caso, quero deixar claro o seguinte:apesar de estar tratando de questes advindas especificamente de conflitos de terrasconcretos, pretendo dar um carter mais amplo s minhas concluses.

    O sistema jurdico brasileiro apresenta irresolues ad hoc atravs das quais todotipo de pessoa, das mais diversas reputaes, procura vantagens utilizando-se deestratagemas para interferir na burocracia que facilmente manipulvel. Todavia, comouma construo do direito, esse sistema, em seus prprios termos, por demaisinoperante, contraditrio e confuso para ser fruto somente da corrupo, incompetncia emanipulaes individuais. Essas disfunes previsveis, a meu ver, indicam um modo deirresoluo mais sistmico. Isso nos sugere que o sistema jurdico incorpora habilmenteintenes de perpetuar as irresolues judicirias atravs de complicaes legais. poressa razo que a lei facilita os estratagemas e a fraudulncia. No entanto, como j vimos,no somente o mau uso, ou a utilizao inescrupulosa da lei, que gera essa complicao.

    O uso correto da lei tambm cria "complexidade processual praticamente insolvel" e defato invariavelmente o faz em conflitos importantes.

    Apesar dessa irresoluo jurdica certamente promover e beneficiar a corrupo,creio que ela traz conseqncias mais profundas para a sociedade brasileira: a irresoluo tambm um instrumento de dominao atualizado pelo sistema jurdico; ou seja, os

    princpios da lei no Brasil produzem, sistematicamente, irresolues para uma sociedadena qual a irresoluo um princpio de ordem. Claro que essa ambigidade jurdica noleva necessariamente incerteza administrativa. H pases mais ou menos bemgovernados que tambm tm sistemas jurdicos - como so os casos da cornnzonlaw americana e britnica - que produzem irresolues.(l6) Alm disso, h no Brasiloutros meios de dominao e as solues judiciais no so de todo desconhecidas.Todavia, no caso brasileiro, quanto mais importante a disputa, especialmente quando hterras envolvidas, menor a possibilidade de tais solues. As classes dominantesutilizam-se da lei para evitar as decises dos tribunais, sempre sujeitas s incertezas da

    justia. Seu procedimento segue o caminho das manobras jurdico-burocratas, as quaisso elaboradas no sentido de manter os conflitos sob o controle das teias da burocracia at

    que uma soluo extrajudicial, poltica e oportuna possa ser garantida. O julgamento, no

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    Tribunal, de um impasse entre elites, seria considerado um ato de desespero, deconseqncias muito temidas por elas, j que significa que suas redes de poderes efavores se esgotaram - ou seja, que no foi possvel dar um jeitinho - e, sendo assim,estariam sujeitos derrota. No entanto, a ida ao Tribunal contra aqueles que a elite

    domina uma oportunidade para esta mostrar seu poder de controle sobre o processojudicial, que, geralmente, humilha os pobres ao for-los a aceitar julgamentos ouprocedimentos orquestrados de antemo. O fato de os moradores do Jardim das Camliase seu advogado terem aprendido a manipular esse processo, a fim de evitar decises edesenvolver sadas extrajudiciais, significa nada mais, nada menos, que eles estoredefinindo a arena jurdica. No esto mudando as regras do jogo, mas simplesmenteutilizando-as para fazer frente exclusividade que delas tinham os participantes mais

    poderosos. Assim, as complicaes da lei no so evocadas exclusivamente para fins

    fraudulentos, mas tambm com o intuito de trazer o conflito para a arena jurdica, numatentativa de mant-lo irresoluto mas contido, e dessa maneira controlando-o, embora demaneira frgil, at que se constitua a vontade poltica necessria soluo. Ao perpetuaro conflito, portanto, a irresoluo jurdico-burocrtica pode ser considerada politicamentefuncional - embora sem qualquer conotao funcionalista.(l7)

    Para demonstrar a fora da irresoluo dentro da lei, tentarei separar os fios doenleado conjunto de alegaes de propriedade de terra no Jardim das Camlias. Suashistrias nos levam s fundaes coloniais do Brasil e revelam o grau impressionante

    segundo o qual tanto a ocupao territorial quanto a lei da terra desenvolveram-se a partirda necessidade de legalizar direitos usurpados - primeiro para avolumar as fortunas doscolonos brasileiros em detrimento daqueles ligados a Portugal, e mais tarde, aps aindependncia, para consolid-las. medida que retraamos no passado os argumentosdos prprios litigantes, percebemos que o assim chamado grileiro no a nica parteenvolvida que utiliza a lei para construir origens histricas. Tornase, desta maneira,extremamente difcil determinar que origem, entre todas aquelas apresentadas, a menosquestionvel.(18)

    Os fundamentos do direito propriedade do governo federal: sesmarias e

    ndios

    O governo federal afirma que as terras do Jardim das Camlias lhe pertencem porqueesto dentro das fronteiras do antigo aldeamento indgena de So Miguel e Guarulhos,estabelecido a partir de uma concesso de terra real em 1580 e oficialmente extinto em1850. Encontrei dois argumentos que embasam a afirmao. Um deles diz que a Lei deTerras imperial de 1850 e a legislao seguinte incorporaram os aldeamentos indgenas

    ao patrimnio nacional. Todas as Constituies Federais, exceo da primeira, de 1891,

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    reafirmam essa incorporao. A Constituio Republicana de 1891 anexa as terrasindgenas ao patrimnio de cada estado, deciso revertida em 1934. O segundoargumento do governo federal reconhece que a primeira Constituio transferiu aosestados a partir de 1891 direitos sobre os antigos aldeamentos indgenas, declarados

    abandonados - e por isso constituindo "terra devoluta" -; no entanto, tambm afirma queas terras em questo nunca pertenceram a essa categoria. Ao contrrio, o argumentoestabelece que o governo federal manteve a propriedade porque, desde o sculo XVII, e

    pautado por uma srie de intervenes executivas e jurdicas, vem arrendando essas terrasa no-ndios.

    Muitos argumentos contrrios foram apresentados. Alguns afirmam que os estadosadquiriram direitos reais sobre as terras indgenas em 1891, o que no pode ser anulado

    por Constituies posteriores. Outros sustentam que o governo federal, apesar de terinteresses nas propriedades, no tem de fato os direitos sobre elas porque, afinal, elenunca discriminou, como exigido, as terras indgenas remanescentes das propriedades

    privadas. Seja como for, o importante a ser notado nessa situao que todas as partesenvolvidas tm argumentos juridicamente plausveis, o que vem dificultando 0 trabalhoat mesmo do Supremo Tribunal Federal. O impasse uma conseqncia direta do caos

    jurdico que o Brasil ps-colonial herdou do sistema portugus de concesses de terrasreais. O aldeamento indgena de So Miguel parte dessa herana. Assim, a fim decompreender o poder das complicaes jurdico-burocrticas e o conjunto de alegaes

    no Jardim das Camlias, temos que investigar essa herana.

    Uma das premissas fundantes do colonialismo portugus est no ato dedescobrimento ou conquista do emissrio real, o qual incorporou a terra ao patrimnio

    pessoal do rei. Essa incorporao estabeleceu as bases legais para a poltica imperial dedominao da Colnia, constituda a partir da criao de uma elite fundiria. Dessamaneira ficaram definidos os poderes e os direitos do Rei, que deveria distribuir as terrasaos seus sditos com o duplo objetivo de explorao econmica e cristianizao. Esse

    ltimo projeto fora assumido pela Coroa quando o Papa ordenou Dom Joo Ill Mestre daOrdem de Cristo em 1522, fazendo dele o responsvel pela propagao da f entre ospovos descobertos ao longo das exploraes martimas europias. Resultou disso que aCoroa portuguesa apossou-se de todo o territrio descoberto por Cabral em 1500 eestabeleceu uma organizao jurdico-poltica atravs do Regimento de Tom de Souza,de 1548, segundo o qual distribui terras para empreendimentos comerciais e religiosos.

    A fim de regular essa distribuio, os portugueses empregaram um sistemamedieval de concesso de terras conhecido como sesmarias. No final do sculo XIV, a

    Coroa tinha elaborado uma srie de mecanismos legais para forar o cultivo de terras

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    inabitadas, improdutivas ou abandonadas. Tais medidas foram consolidadas nassesmarias e incorporadas nas ordenaes nas quais, por sua vez, pautavam os governostanto de Portugal quanto de suas colnias. O objetivo central da Coroa era conciliar aocupao das terras com sua utilizao agrcola. Por esse motivo, a legislao imperial

    autorizava a expropriao das terras improdutivas, tornando-as concesses no-hereditrias em troca de uma quantia equivalente a um sexto da produo anual. Otamanho das concesses era limitado capacidade de cultivo dos colonos; e o tempo deusufruto dos direitos sobre elas era limitado, findo o qual as sesmarias no cultivadasretornavam Coroa. Ambas restries estavam destinadas a causar muito conflito noBrasil.

    Essa poltica, vinda para as Amricas com as instrues reais de 1548, tornou-se o

    nico meio legal de fixar pessoas na terra. Essas pessoas eram fundamentais para osprojetos de lavouras comerciais e instruo religiosa, ambos baseados na agriculturasedentria, a qual constitua alternativa crist aos hbitos nmades dos brbaros pagos.Por esses motivos, a Coroa autorizou seus representantes no Novo Mundo a distribuirsesmarias somente queles que tinham condies de desenvolv-las segundo essasorientaes. Isso, todavia, introduziu uma mutao na poltica. A fim de atrair taiscolonizadores e, em especial, para iniciar as plantaes de cana-de-acar movidas atrabalho escravo, a Coroa ofereceu generosos incentivos e extinguiu as restrieshereditrias e os pagamentos anuais (exceto, claro, o dzimo divino) que incidiam sobre

    as concesses de terras. Alm disso, e apesar das lavouras ainda serem fundamentais, seusentido modificou-se. No Brasil colonial, a terra tinha pouco valor. Contribua para tantono s a abundncia, mas tambm, e sobretudo, a enorme quantidade de capital que eranecessrio sua explorao lucrativa, j que esta dependia do fornecimento de escravosque era, por sua vez, dispendioso e complexo. A produo de acar, gado, e mais tardecaf, dependia da constante incorporao de novos escravos e terras. Por esse motivo aCoroa muitas vezes utilizou suas concesses de sesmarias para garantir futurosinvestimentos na produo destinada exportao, em vez de assegurar sua efetiva

    ocupao. Assim, a terra podia ser legitimamente possuda sem ser imediatamentecultivada ou ocupada, bastando, para tanto, que fosse futuramente utilizada- o que,obviamente, constituaumaperverso dos objetivos originais da lei da sesmaria.

    A partir dessas mudanas, os representantes da Coroa utilizaram-se das concessesreais para repartir o Brasil em enormes latifndios. As concesses usuais de 10, 20 e at100 lguas (que correspondem aproximadamente a 432, 868 e 4.342 quilmetrosquadrados, respectivamente), de acordo com um observador da poca, eram to grandesque era possvel nelas "perder de vista Itlia" (citado em Lima 1988, p. 58). Essadistribuio consolidou seus beneficiados, que se tornaram uma classe dominante

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    aristocrtica, escravagista e orientada para o comrcio. Em 1822, no ano daindependncia, a instituio das sesmarias j havia produzido uma perverso: depois detrs sculos de colonizao, o pas era uma terra sem povo e um povo sem terra.(19)

    Alm disso tudo, o sistema de sesmarias tinha muitas conseqncias jurdicas quepersistiram por um bom tempo. A primeira era com relao ao papel do governo, quelegitimava a propriedade privada como algo subtrado do domnio pblico. Esse papel foise modificando medida que tambm ia se transformando a noo da propriedade dassesmarias. Inicialmente parte do patrimnio real, elas foram cedidas aos interessados soba forma de concesses administrativas com direito de usufruto. No havia mercadoimobilirio porque a terra no podia ser nem vendida e nem comprada. O historiador dasleis de terra Ruy Cirne Lima argumenta que a posse das sesmarias pela Coroa comeou a

    ser vista sob um prisma distinto depois que exigiu, em 1695, um imposto anual, o foro,baseada na lei de propriedade comum (1988, pp. 41-43). Depois disso, as sesmarias foramgradativamente sendo pensadas menos como restries administrativas sobre aapropriao da terra por indivduos privados ou por entidades pblicas e mais comoalienaes de propriedades subtradas do domnio real, sobre as quais os beneficiadostinham direitos de propriedade comuns, direitos que eram simbolizados na sua obrigaode pagar os impostos da propriedade. Essa transformao conceitual no foi completadaat que a Constituio de 1824 garantiu a propriedade privada e a Lei de Terra de 1850consolidou seus fundamentos jurdicos e de mercado. Os ltimos estabeleciam, primeiro,

    que os beneficiados pelas concesses poderiam requerer ao governo o reconhecimento desua condio de proprietrios; e, segundo, que daquele momento em diante as terras

    pblicas s poderiam ser adquiridas mediante a compra.

    A segunda conseqncia do sistema de sesmarias foi a confuso jurdica, a qualtornou-se uma estratgia de dominao dos dois lados do Atlntico. A Coroa distribuiumuitas concesses de terra sem fronteiras definidas, o que produziu infindveis litgios eviolncia em torno de direitos contestados.2 Os debates no Congresso em 1824 a

    respeito da legislao da terra nos mostram que alguns juristas suspeitavam que a Coroadeliberadamente concedia sesmarias pouco definidas no por ignorncia nem por falta demapas precisos do territrio e muito menos devido carncia de tcnicas de pesquisa,mas para manter os agricultores "nervosamente brigando entre si, em vez de brigar contraa Coroa" (Dean,1971, p. 607). Mas no ficou s nisso. Os prprios brasileirosdesenvolveram mais ainda as estratgias de confuso jurdica, atingindo nveis deelaborao nunca dantes vistos. Tendo se apossado das melhores terras, a elite ruralatravessou o sculo XVIII no somente aumentando suas riquezas, mas tambmaprendendo a dominar o sistema de distribuio de terras, tornando o seu acesso cada vezmais difcil para os outros. Sem dvida, seus meios no excluam de forma alguma a

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    violncia. No entanto, e talvez mais importante, ela controlou a distribuio da terracriando tamanha complexidade na legislao sobre as sesmarias que somente aqueles que

    j estavam no poder podiam domin-la. Sua estratgia no foi a de negar a lei - como freqentemente assumido nas afirmaes de que "o Brasil sempre foi terra sem lei". Ao

    contrrio, o intuito era criar um excesso de leis, de modo a aplicar minuciosamente ofundamento jurdico Teuto-Romano segundo o qual "a lei no tem lacunas".(21) Essasmesmas elites mandavam seus filhos para a Universidade de Coimbra, em Portugal, ondeestudavam Direito. Ao retornarem, iam completar os alto escales das carreiras polticas e

    jurdicas, o que ocorreu tanto antes quanto depois da Independncia.22 Como juzes,legisladores, polticos, administradores e dirigentes de Estado, essas elites formavam osquadros dos governos locais e dos tribunais, arranjavam leis para impor perdas s

    propriedades de seus oponentes, manipulavam as regras que incidiam sobre a herana,

    obtinham concesses a mais atravs de discretos e longnquos contatos familiares -atravs dos quais tambm arranjavam casamentos - e apossavam-se de terras, fossem elasdevolutas, estivessem elas sob disputa. Em suma, a elite tinha aprendido a complicar osistema jurdico e disso tirar vantagens. Lima (1988, p. 46) conclui que, depois de umsculo subordinando as transferncias de terra s restries jurdicas e aos procedimentosadministrativos, essa eli te criou, com sucesso, uma "trama invencvel da incongrunciados textos, da contradio dos dispositivos, do defeituoso mecanismo das reparties eofcios de governo, tudo reunido num amontoado constrangedor de dvidas e tropeos".

    O destino do aldeamento indgena de So Miguel um caso ilustrativo. Formadopelos nativos Guaianases por volta de 1560, ele foi logo transformado pelos jesutas emum modelo de aldeia, de acordo com as propostas contidas nas Regras de Governo. Em1580, os jesutas obtiveram uma sesmaria para a aldeia de mais ou menos 270quilmetros quadrados, transformando a rea numa reserva oficial de ndioscristianizados. Suas intenes eram no s separar os convertidos e demarcar as terrasnecessrias agricultura - fundamental para o ensino civilizatrio -, como tambm obter agarantia legal da Coroa para que a concesso protegesse os ndios da escravido e suas

    terras da invaso por colonos da vila de So Paulo, que rapidamente se expandia.Intenes somente no bastaram: os ndios acabaram perdendo tanto sua terra quanto sualiberdade. Essas perdas, no surpreendentemente, ocorreram sob a cobertura da lei.Aprendemos, atravs desse episdio, de que maneira as complicaes e as ambigidades

    jurdicas servem s prticas ilegais e ainda como essas prticas redundam em mais leis.

    A escravizao dos ndios cristianizados foi um travestimento jurdico. O governolocal arrogou a si o controle sobre suas atividades seculares e depois criou ambigidades

    jurdicas e complicaes processuais com relao s responsabilidades sobre o trabalhocoletivo, complicaes e ambigidades estas que terminaram permitindo sua efetiva

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    servido.(23) Motivado pelo ouro, pela ganncia e expanso, o governo tambm usurpouterras indgenas atravs da legalizao de atos ilegais. Primeiro vieram os confiscosgeneralizados de terra. Depois, no comeo do sculo XVII, o governo local cedeusesmarias legalmente a colonizadores, sesmarias estas, todavia, que incluam ilegalmente

    terras indgenas. Tais "irregularidades", como eram descritas pelos funcionrios dogoverno, ficaram sem soluo durante meio sculo at 1660, quando a Cmara Municipalconseguiu autorizar-se a distribuir terra dentro das reas proibidas aos colonizadores"desde que estes no fossem prejudicados" (Bomtempi, 1970, p. 64). Apesar dessacontradio, estavam assim juridicamente regularizadas as concesses irregulares e sendocriadas mais algumas. Em 1679, o desembargador sindicante e ouvidor geral Joo daRocha Pitta veio a So Paulo "em diligncia de correio" - como era chamado o

    procedimento - para tratar de descompassos entre a lei da letra e a lei da prtica. A fim de

    resolver o problema de terra, ele simplesmente reescreveu a primeira para encaixar asegunda. Para tanto, foi oficialmente reconhecido aquilo que a Cmara Municipal j tinhausurpado, ou seja, sua autoridade sobre a aldeia indgena e o direito de distribuir a terranela contida sem qualquer restrio estavam agora juridicamente assentadas. Odesembargador ainda ordenou que a Cmara recolhesse um imposto anual de todos osinvasores da aldeia. Ficavam assim regularizados os sequestros de terras pblicas,tornados desse modo arrendamentos, e transformada a condio dessas pessoas, desimples invasores, em arrendatrios juridicamente reconhecidos. Esses arrendamentos, oschamados aforamentos, conferiam aos beneficiados o pleno gozo do imvel, tornando-oalienvel e transmissvel aos herdeiros. Como eram muito mais facilmente arranjados doque as concesses reais, e alm disso, como deram incio a um mercado privado dedireitos sobre a terra, eles possibilitaram ao Conselho dispor, rpida e judicialmente, dorestante das terras indgenas - todas, vale lembrar, supostamente inviolveis pelo ttulo desesmaria que, ento, ainda valia.

    De tempos em tempos a Coroa atentava para essa contradio aparente, massempre protelava solues a favor de medidas temporrias que indiretamente

    reconheciam a validade desses aforamentos. Sua declarao de 1703, decretando quesomente seus representantes tinham a autoridade para recolher os foros, um exemplodisso. Quando, em 1733, a Coroa finalmente anulou o controle da Cmara Municipalsobre a reserva e ordenou que a terra fosse devolvida aos aborgenes, a Cmara apeloudizendo que ao longo de mais de um sculo ela havia acumulado suporte jurdico para sua

    poltica de terras junto a numerosas administraes regionais, coloniais e reais. Comotodo bom grileiro, a Cmara apresentou seu dossi de documentos (ttulos de sesmarias,recibo de impostos, levantamento de terra, aforamentos e outros) para sustentar sua

    posio e atravs de complicaes processuais conseguiu travar o litgio at 1745. Foi

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    quando deu um desfecho sua causa, afirmando que a apropriao de terras indgenas erairrevogvel porque havia poucos ndios remanescentes para reav-las.

    Durante o regime de sesmarias, a elite brasileira desenvolveu habilidades para usar

    a lei, o governo e a burocracia, a fim de criar "uma trama invencvel" de regulaes daterra (Lima, 1988, p. 46). Esse imbrglio paralisou as aes judiciais da Coroa no conflitode terras, permitindo a efetiva legitimao, por parte das autoridades locais, de prticasilegais que iam ao encontro de seus interesses. Dessa maneira, a complicao jurdica setornou uma arma contra as imposies portuguesas, alm de constituir um meio eficaz deassalto ao patrimnio real. Portanto, quando, em 1822, o Conselho de Apelaes no Riode Janeiro aboliu a poltica de sesmarias e suspendeu o aforamento de terras da Coroa, eleestava apenas formalizando a extino daquilo que j estava havia muito subvertido e

    usurpado.O fundamento do direito propriedade de Ackel: posse e direitos do invasor

    A ancestralidade das alegaes de famlia Ackel sobre o Jardim das Camlias podeser retraada desde o conturbado perodo marcado pela abolio das sesmarias. Para umagerao inteira, e at a Lei de Terras de 1850, no houve acordo possvel a respeito de umsubstituto legal para a alienao de terras pblicas. Na sua ausncia, o efeito da decisodo Conselho de Apelaes foi o de obscurecer mais ainda o carter das ocupaes com

    mais uma grossa camada de complicaes: ela no s tornou a invaso ilegal o nicomeio de obter terra, como tambm automaticamente transformou aquisies posterioresem atos de usurpao. Desde os primrdios da colonizao, as invases de terras daCoroa constituam prticas comuns de colonos que, se por um lado no tinham osrecursos exigidos para pleitear sesmarias, por outro conseguiam sobreviver com culturasde subsistncia e em meio s circunstncias mais adversas. Dadas as dimensescontinentais do pas e as vastas faixas de terra no cultivadas e em disputa no interior dasreas reservadas s plantaes, as invases eram uma alternativa sempre presente,tolerada, e at ignorada- a no ser quando algum conseguia uma concesso que inclua aterra invadida. As posses, assim, tornavam possvel a condio de colonos livres quelesque no podiam participar da economia comercial, e ainda serviam de trunfo para osimigrantes mais pobres-os habitantes das fronteiras, os meeiros e os pequenosagricultores-contra o regime dos latifundirios.(24)

    Durante o perodo colonial, a invaso de terras tinha umstatus jurdico ambguo.Apesar de serem consideradas ilegais, as posses eram, segundo costume, reconhecidascomo legtimas se fossem cultivadas intensamente durante um longo perodo de tempo - e

    conquanto apresentassem uma produo evidente e regular. Desta maneira, os invasoresprodutivos gozavam de certos direitos consuetudinrios. 25 Estes derivam da idia j

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    presente na Lei das Sesmarias de Portugal medieval, segundo a qual toda propriedade temuma funo social e todo proprietrio tem a obrigao de produzir algum benefcio social,seja na forma de alimentos, seja atravs de colonizao. Apesar dessa justificativaexplicar o interesse do governo por dar um ttulo legal queles que ocupavam a terra

    ilegal mas produtivamente, em especial as terras pblicas, e mesmo se isso ameaava osdireitos daqueles que as ocupavam legal mas improdutivamente, at hoje persistemambigidades a respeito do que seja uma posse produtiva ou improdutiva, invaso e

    propriedade. Essas ambigidades se manifestam segundo vrias formas jurdicas eculturais as quais, nunca demais lembrar, vo constituindo o solo frtil sobre o qualvicejam os perenes conflitos de terra. Os Tribunais coloniais geralmente determinavamque os direitos dos invasores sobre as terras cultivadas podiam ser concretizados se seus

    pedidos fossem registrados e os impostos e taxas pagos dentro de um perodo

    especificado. A essncia dessa deciso era converter a posse numa sesmaria ou numaforamento. Todavia, para muitos invasores, tais despesas eram proibitivas; ocorria entoque procedimentos favorveis freqentemente tinham efeitos perversos: os invasoreseram expulsos das terras ou, no mnimo, viam-se definitivamente na ilegalidade. Era porisso que os invasores mais modestos dificilmente almejavam a legalizao de suas posses.As elites latifundirias, por sua vez, no encontravam dificuldades em bancar aconverso, o que, numa estratgia efetiva para aumentar suas propriedades, as encorajavaa invadir mais terras pblicas. Elas podiam assim tirar vantagens das ambigidadescontidas nos incentivos ao cultivo das terras, anexando grandes reas s suas

    propriedades, as quais eram posteriormente legalizadas. Antecipando dessa maneira umnovo mecanismo de legalizao, posterior extino das sesmarias, os invasores da elitereivindicavam posses enormes, maiores at que as concesses reais, e marcavam seuempenho nas atividades agrcolas com uma carroa e um curral, quando muito. Nas terrasmais afastadas, os invasores reivindicavam o quanto sua imaginao permitia; nas reasmais povoadas, a pretenso ia at onde conseguiam lev-la.(26) Esses invasores da eliteassim consagraram uma estratgia fundamental e duradoura de aquisio de terra noBrasil: como ausurpao geralmente dava incio legalizao, elas confirmaram a

    invaso de terra como uma maneira segura de obter direitos legais de propriedade.

    Expanso econmica, avidez e ambio familiar moviam o arrebatamento deterras, o qual se tornou uma batalha campal quando novos piratas de terras apareceram

    para competir com os latifundirios j estabelecidos. As reas no vigiadas estavamsujeitas a invases: com isso, todas as partes envolvidas contratavam capangas paradefender suas posies e anexar outras. Os pequenos proprietrios que de fato haviam seestabelecido em suas posses eram ameaados como intrusos e delas expulsos.

    Completando o crculo vicioso, os destitudos eram recrutados como capangas. Naausncia de qualquer meio legal para estabelecer ttulos de propriedade, os assassinatos

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    tornaram-se rotina na mesma proporo em que as reivindicaes de terras conflituosaspermaneciam sem qualquer tipo de apreciao.(27)

    Durante esse perodo, os arrebatadores de terra refinaram suas tcnicas de

    manipulao da lei, o que identifiquei acima como sendo a marca registrada da grilagcm:envolvendo as terras invadidas no que pareciam ser transaes legtimas, davam a elasuma fachada de legalidade. O objetivo duplo dessa tcnica montar um dossi dedocumentos que atestam, em cada caso, o que seria uma transao legal se fosse baseadaem direitos de propriedade legtimos e, desse modo, envolver o maior nmero possvel de

    pessoas nesse aparente reconhecimento das alegaes do usurpador. A quantidade deverses desse estratagema to grande quanto a variedade de dispositivos a respeito daterra. Para envolver a propriedade numa teia de transaes legtimas, o invasor pode

    pagar os impostos da sua posse, vender uma de suas partes, doar uma frao a umaorganizao religiosa, pedir seu levantamento, us-la como garantia em um emprstimo,deix-la como herana, ou d-Ia como dote. Seus herdeiros e scios continuariam ahonrar essa transaes, tomando o cuidado de pagar em dia os impostos e taxas. Maisimportante ainda, eles devero sem demora registr-las nos livros da parquia mais

    prxima, a qual em muitos lugares servia de cartrio. Todos os papis acumulados nessastransaes - recibos, promissrias, procuraes, levantamentos, acordos, contabilidadeetc. - eram utilizados para provar que o Estado e a Igreja as haviam sancionado. umatcnica, como vemos, que requer um conhecimento jurdico considervel. Sua utilizao

    dissimula, no interior de uma teia de alegaes legtimas, a usurpao e a fraude. Oobjetivo sobrecarregar essa teia com relaes sociais a tal ponto que, e mesmo com a

    passagem do tempo, seu desmantelamento se torna impossvel, de maneira tal que alegitimao, por um decreto do executivo ou um ato do legislativo, se torna inevitvel.

    Nesse tipo de complicao, a fraude encontra na lei seu cmplice.

    Entre 1822 e 1850, os pais de Gabriela Fernandes estabeleceram uma grande possedentro da aldeia indgena de So Miguel. Quando Gabriela se casou com Felisbino

    Santana, recebeu deles 243 hectares dessa rea como dote. Desde 1886, quando Gabrielamorreu, essa propriedade constava do registro da parquia local e estava legalizadasegundo os termos da Lei de Terras de 1850.(28) Seus quatro filhos herdaram, cada um,uma parte igual do todo. Em 1924 um deles vendeu sua parte de 60,73 hectares a JosMiguel Ackel e seu scio. No mesmo ano, o primeiro comprou a parte do segundo,desenvolveu um plano para lotear a terra em cerca de mil lotes, registrou o loteamentoaprovado como Jardim das Camlias, e colocou os terrenos venda. O empreendimentono deu certo. Com certeza, poucos compradores foram atrados, j que na poca SoMiguel Paulista era um subrbio de So Paulo, distante e isolado, sem empregos etransporte. Foi somente na dcada de 1930 que a situao mudou. Indstrias por ali se

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    instalaram e linhas de trem e nibus foram criadas. Nesse perodo de crescimento dolocal, Jos Miguel vendeu 207 de seus lotes ao seu irmo Nadime Miguel, o que foiregistrado em 1935 no 7 Cartrio de Imveis de So Paulo.

    Percebemos assim como, na origem da propriedade de Ackel, est a venda deterras indgenas invadidas e a legitimao das alegaes dos invasores. Sua histriademonstra que, apesar de seus ttulos e registros, as alegaes de Ackel no diferemdaquelas dos outros litigantes, j que revela uma estratgia perante a lei que, na suaessncia, compartilhada por todos: uma mistura de costume, fraude e complicao

    jurdica que torna a mera posse da terra - resultante de concesso, arrendamento, invaso,proclamao, e at mesmo compra - uma propriedade. Se a histria de Ackel evidencia aimportncia do costume nessa estratgia, a que exponho a seguir revela a fraude.

    Os fundamentos do direito de propriedade da Adis e do Estado de So Paulo

    As origens das alegaes da Adis no Jardim das Camlias, comuns s outrasreivindicaes no estado de So Paulo, constituem o centro nevrlgico de um dos casosde terra mais notrios e complexos na histria brasileira, o que, de fato, no deixa de seruma distino. Frente sua complexidade sem limites, no posso afirmar que o entendo

    por inteiro, tampouco seria prudente dirimir de erros e distores a anlise de seuscontornos que a seguir exponho e analiso. Todavia, uma coisa certa: no h verso

    isenta de distoro, j que essas mesmas distores estruturam o uso da lei ao longo dosprocessos. As manipulaes da lei foram buriladas no intuito de criar verses mltiplas eplausveis, apesar de incompletas e discordantes entre si. com relao a essas mesmasverses que tanto a noo de verdade jurdica desaparece, quanto a possibilidade deresoluo surge dependente de imposies polticas conjunturais. A exemplo dos outroslitigantes, o argumento principal da Adis de fundo genealgico: ela justifica suaalegao apresentando uma rvore genealgica, supostamente legtima, que remonta a1890 atravs de sete geraes de direitos de propriedade, cada qual asseverado pordocumentos registrados, os quais, por sua vez, referem-se a outros documentos maisantigos que dariam origens legtimas s suas alegaes. No entanto, quando examinamosessa genealogia de propriedade, torna-se evidente que a Adis e seus predecessores vmdesde h muito criando origens as quais, apesar de nunca inteiramente falsas, so sempreilcitas.(29)

    Quando o governo imperial promulgou a primeira lei detalhada de terra no Brasil,em 1850, sua inteno era no s estabelecer os meios legais para regular os ttulos deterras e prevenir invases do territrio pblico como tambm utilizar a poltica de terras

    para atrair imigrantes europeus para o Brasil, de incio como trabalhadores livres parasubstituir os escravos nas plantaes e mais tarde como colonos livres proprietrios de

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    suas terras. Com essa finalidade, em 1890 0 primeiro governo republicano concedeu aoengenheiro Ricardo Medina 50 mil hectares de terras devolutas, divididas em duas partesiguais, cada qual em uma das margens do rio Tiet, no leste de So Paulo. A parcelameridional dessa enorme concesso inclua So Miguel Paulista e, de fato, o que hoje a

    Zona Leste da cidade. O contrato de Medina apresentava uma srie de condies: eletinha que fundar, num perodo de dois anos, uma colnia agrcola com 500 famlias decada lado do rio Tiet; fazer um levantamento da rea a fim de discriminar as terrasdevolutas daquelas j adquiridas por outros e sobre as quais ele no tinha direitos; e pagarum preo fixo pelas primeiras, as quais podia revender aos imigrantes. O nocumprimento de qualquer uma dessas condies rescindia contrato. Nesse caso, todavia,o beneficiado ficaria com a metade das terras cedidas segundo os termos do contrato e aoutra metade seria restituda ao governo. Em 1891, Medina transferiu sua concesso, com

    todas as suas condies, para o Banco Evolucionista - do qual era o fundador e que eraum dos muitos precrios bancos de empreendimentos imobilirios que pipocaram com anova poltica de terra. O banco no conseguiu colonizar as reas no tempo exigido e comisso perdeu o contrato. Ele conseguiu, no entanto, fazer um levantamento da parcela maisao sul e chegou a oferecer pagamento por ela, mas no discriminou, dentro dessa parcela,e muito significativamente, as terras devolutas daquelas que no 0 eram. Nessascondies, em 1892 o governo republicano concedeu ao banco o ttulo de 25 mil hectares.Apesar disso estabelecer os direitos de propriedade do banco, estes ficavam subordinadosa todas as condies estipuladas na concesso original.

    Um ano mais tarde, o Banco Evolucionista hipotecou esse ttulo condicional aoBanco de Crdito Real do Brasil, o qual ficou definitivamente com o ttulo quando o

    primeiro foi falncia em 1900. Apesar do Banco de Crdito Real tambm ter falido em1909, seu presidente, Eugnio Hanold, comprou o ttulo em leilo realizado durante aliquidao do banco. Vendeu-o em 1917 para a Predial, uma companhia imobiliria.

    Nesse interregno, todavia, outros credores do Banco Evolucionista entraram comprocessos pedindo as partes das propriedades do banco que lhes cabiam. O estado de So

    Paulo tambm interveio, alegando que ele, e no o banco falido, e de acordo com aConstituio de 1891, detinha as terras devolutas em questo. O caso foi para o SupremoTribunal Federal. Todavia, sua deciso, em 1928, mais pareceu complicar do que resolvera disputa: apesar de o Supremo reafirmar a validade dos direitos do Banco Evolucionista,negando que a Constituio os havia esvaziado, contudo, ela estabeleceu, com base naclusula da reaquisio, constante no contrato inicial de 1890, que o estado de So Paulotinha direitos sobre a metade dos 25 mil hectares. A Corte definiu o Estado, e no aUnio, o beneficiado com a devoluo da propriedade, argumentando, para tanto, que na

    poca em que o banco rompeu o contrato j estava em vigor a Constituio quedeterminava que as terras devolutas eram dos estados. Assim, o Supremo Tribunal

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    Federal reconhecia que o banco e o Estado tinham, cada um, direito sobre 12.500hectares, os quais estavam sujeitos mesma condio original, qual seja, a discriminaodas terras devolutas daquelas que no o eram.

    A sentena gerou, entre outros, dois efeitos importantes. Primeiro, ela deu ofundamento originrio aos interesses de propriedade do estado de So Paulo em lugarescomo o Jardim das Camlias. Segundo, o reconhecimento do ttulo do banco por parte doSupremo, e apesar desse ficar valendo apenas para a metade da rea total anteriormentecompreendida, permitiu aos seus herdeiros continuar a usar esse mesmo ttulo emtransaes bancrias e comerciais. Porque as terras nunca foram claramente discriminadase porque havia muitos herdeiros, o ttulo foi envolvido - sempre de maneira ambgua, svezes de modo fraudulento - em inmeras transaes. Assim, em 1958, quando a Predial

    vendeu-o para Nagib Jafet, um ex-presidente da Adis, constava no contrato uma clusulaque dizia o seguinte: o vendedor "no responsvel por qualquer perda de direitos".Nesse mesmo esprito, em 1966 Jafet vendeuo para Garzouzi, que por sua vez, em 1968, eassim que se tornou seu nico acionista, transferiu-o para a Adis.

    Dessa maneira, ao longo de todo um sculo, um sem-nmero de bancos, firmasimobilirias e terceiros estiveram utilizando-se desse ttulo para completar vriastransaes de propriedades - algumas envolvendo o prprio ttulo juntamente com outrastantas terras de fato, mas todas, fundamentalmente, comprometidas por sua natureza

    condicional. Os negociantes desse quase fetiche dependeram de duas coisas para levaradiante sua transao: seu acmulo de complicaes e fraudes. A fora desse ttulo vemde sua complexidade, a qual impossibilita aos Tribunais resolver uma das disputas semresolver todas as outras. Como isso praticamente impossvel, nunca declaram oesgotamento da validade do ttulo. dessa maneira que se multiplicam as oportunidades

    para a prtica da grilagem. A nica soluo regularizar, atravs de intervenoextrajudicial, todo hectare citado no ttulo, de tal forma que esse mesmo ttulo perde seu

    poder j que, assim, ficam sem objeto, a saber, terras devolutas ou de posse duvidosa. A

    comisso de procuradores do Estado convocada em 1986 para examinar o problemachegou exatamente a essa concluso - recomendando nada menos que um decretopresidencial para resolver as disputas de terras no Jardim das Camlias.

    Ao investigar a perpetuao do ttulo do Banco Evolucionista, encontrei dezesseistipos diferentes de fraudes. Algumas so gritantes, como a falsificao de documentos,adulterao de marcas de divises, corrupo de funcionrios e destruio de registros.Outras so sutis, estratagemas de longo prazo que se utilizam da lei para estabelecer

    precedentes a favor do grileiro. Por exemplo, um grileiro se utiliza de documentos falsos,

    relativos a um pedao de terra, para abrir um processo para reaver sua posse; um

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    cmplice, todavia, faz as vezes de ocupante ilegal. Ele se defende de maneira poucoconvincente e expulso da terra. Resultam disso tudo muitas aes no Tribunal e umasrie de precedentes constituindo uma espcie de jurisprudncia, a qual o grileiroapresentar mais tarde para sustentar suas alegaes de propriedade. A fraude mais

    impressionante, contudo, talvez tenha ocorrido justamente quando tudo comeou. Aoexecutar a hipoteca do Banco Evolucionista, o Banco de Crdito Real alegou teradquirido com isso um imvel especificado em uma "carta de adjudicao" extrajudicial.O problema que a hipoteca s podia se referir a possveis direitos sobre hectares ideais,e no a direitos reais sobre terras discriminadas - um detalhe que, de minha perspectiva,condena tanto as alegaes de propriedade da Unio quanto as do Estado. No entanto, areferida "carta" inclua um levantamento que definia uma rea de 21.600 hectares. Essatransformao mgica do ideal em real um exemplo de um tipo de trapaa envolvendo a

    hipoteca um tanto quanto comum entre grileiros bem relacionados. De um jeito ou deoutro, o grileiro acaba obtendo documentos que lhe do direito sobre terras ideal ouvagamente definidas. Ele ento as hipoteca a um parceiro como garantia de umemprstimo que, deliberadamente, no cumprido. Como a execuo da hipoteca requerum inventrio de bens, o parceiro contrata um inspetor para produzir um levantamento da

    propriedade hipotecada, o qual, todavia, impossvel de ser verificado em funo de sutisomisses tcnicas. Esse levantamento torna-se parte de uma carta de acordo privado oude leilo para a liquidao da dvida, a partir da qual a negociao resolvida

    juridicamente. Como os documentos so agora parte de um procedimento judicial, osgrileiros tm pouca dificuldade para obter a escritura das terras - terras estas que talveznem existam mas que foram por eles definidas a partir de uma rede de operaes

    perfeitamente legais. Nos documentos da Adis e de seus predecessores, esse tipo dealquimia envolvendo hipotecas, cartas de acordos e levantamentos aparecesistematicamente na origem de suas alegaes.

    Tornando legal o ilegal

    Passados 400 anos de colonizao, uma coisa certa: no Jardim das Camlias noh ningum que tenha um ttulo de propriedade isento de ambigidades - o que, alis,ocorre em muitas reas do Brasil. Resulta disso, e apesar das vrias alegaes contrrias,que no h um nico, indiscutvel proprietrio de quem os moradores podem receber umaescritura incontestvel para qualquer um desses 207 lotes de cuja histria de disputa aquinos ocupamos. Cada litigante no conflito, no intuito de encontrar uma origem quesustente sua alegao, utilizou-se da lei para criar uma verso dessa histria. Essasorigens so invenes de lei; literalmente: fices jurdicas. O governo central de inciocriou para os ndios de So Miguel um santurio legalmente inviolvel e depois, atravsde suas vrias encarnaes - colonial, imperial e federal -, legalizou sua usurpao.

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    Parece indiscutvel que, apesar de ~o governo federal ter, com isso, adquirido interessesdominiais na rea, tais interesses no so legtimos porque ele nunca chegou a discriminaras terras indgenas residuais de outros tipos de propriedade. Assim o governo federal notem o ttulo registrado e com isso - numa dessas reviravoltas da histria que nos

    surpreendem de maneira agradvel - no pode provar sua titularidade nos termos de suaprpria Lei dos Registros Pblicos. A situao do estado de So Paulo parecida: seusinteresses permanecem presos s condies no cumpridas no contrato de 1890 deMedina, o que tambm o deixa sem um registro. Apesar de as alegaes da famlia Ackele da Adis estarem calcadas em ttulos e registros, estes tm procedncia duvidosa. Asalegaes dos Ackel advm da venda de terras indgenas invadidas e da legalizao das

    posses dos invasores. Ironicamente, estes ltimos so os que mais tm reconhecimentooficial, que aparece nos recibos de impostos, registros pblicos e documentos de tribunais

    - tudo porque esses invasores so, afinal, os fraudadores mais hbeis e ambiciosos. Apergunta, todavia, persiste: que alegao tem mais mritos legais?

    Uma resposta definitiva parece ser impossvel, no s por causa da importncia dailegalidade em cada uma das alegaes, mas tambm devido relao instvel que hentre o legal e o ilegal. De fato, se por um lado nosso estudo histrico mostrou que ausurpao uma das principais foras motrizes da ocupao territorial brasileira, poroutro lado ele tambm revelou que a prpria lei da terra se desenvolveu, em grandemedida, a partir da necessidade de legalizar invases. Esse desenvolvimento redundou

    numa densa massa de complexidades jurdicas, por sua vez gerada como uma estratgiapara iniciar manobras extrajudiciais visando precipitar a legalizao das invases, etambm para, ao longo desse processo, interferir em outras reas da lei e da burocracia.Durante o perodo colonial, os direitos sobre a terra tornaram-se arena de contestao dadominao portuguesa, na qual esses mesmos direitos eram complicados ao ponto detorn-los inativos. Era, pois, um meio de atingir a autonomia da colnia. No entanto, essaforma de resistncia tambm era de hegemonia local: as complicaes jurdicassustentavam os conflitos de terra para a elite que tinha todas as vantagens extrajurdicas e

    que podia legalizar o ilegal. Assim como ocorre hoje, as invases ajudavam os maispobres a ganhar acesso terra, j que, de acordo com os direitos consuetudinrios, eramreconhecidos como proprietrios legtimos se fossem produtivos. Apesar dessa mistura delei e costume ajudar os mais humildes, ela tambm permitia, e numa proporo maior, aosgrileiros camuflar suas fraudes dentro de uma rede de transaes legtimas. A apropriaoilegal, assim, tornou-se um meio bsico de aquisio de terras; a ilegalidade, umadimenso fundamental da organizao social brasileira, perpassando-a por inteiro.

    Ao longo destes sculos, portanto, as irresolues orquestradas pela prpria leiincentivaram as invases de terras, j que tambm criaram a confiana na sua legalizao.

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    No decorrer desse processo, prticas ilegais produzem lei, solues extralegais soincorporadas no processo judicial, e a lei confirmada como um canal de desordemestratgica. Resultou disso que a ilegalidade e a irresoluo jurdico-burocrticatornaram-se a norma nos casos envolvendo terras. Nessas circunstncias, a lei difere

    completamente das noes americanas de regulao neutra e imperativa, ou de separaoda lei e da sociedade, na qual a segunda produz a primeira mas , todavia, controlada porela. No contexto brasileiro, a lei assegura uma norma diferente: a manuteno do

    privilgio para aqueles que possuem poderes extralegais para manipular a poltica, aburocracia e a prpria histria. Nesse sentido, a irresoluo jurdica um meio dedominao efetivo, embora perverso. Atualmente, o campo jurdico modifica-se, noatravs de reformas legais - a respeito das quais, infelizmente, h pouco a dizer -, masatravs de movimentos sociais populares. Suas aes coletivas, durante as duas ltimas

    dcadas, produziram um crescimento generalizado, apesar de instvel, da idia do direitoa direitos - acesso Justia -, o qual est transformando, numa freqncia cada vez maior,os brasileiros pobres em estrategistas jurdicos. No lapso de uma gerao, algunsaprenderam a usar as complicaes da lei para intricar os conflitos de terras a seu favor.Sem dvida, tais iniciativas povoam com novas foras ticas, polticas e mesmo pessoaisuma instituio antiga e opressiva. Esses novos atores, no entanto, esto mais propensos areproduzir o sistema do que a mud-lo. Se os moradores do Jardim das Camlias ganhama causa, isso se dar porque tero derrotado 0 mestre do jogo. Em muitos sentidos, eles jforam vitoriosos ao utilizar a lei em vez de serem vtimas dela. Contudo, ao aprender agerar irresoluo legal, eles aceitam a premissa do jogo segundo a qual a irresoluo

    permite aos mais poderosos transformar o ilegal em legal - um poder que ainda lhes falta.Eventualmente o sistema jurdico poder transformar-se, pressionado por esse tipo deengajamento: uma participao ampliada, ou mesmo universal, talvez dificulte demais assolues extra judiciais para os conflitos judiciais, fazendo com que esse uso privilegiadoda legalizao do ilegal, e o tipo de dominao que se atualiza junto com ele, termine devez. E se existe a esperana de que tal transformao j esteja em curso, os seusdesdobramentos so ainda incgnitos: as duradouras distopias da lei so tanto

    constitutivas quanto sintomas de um interregno mrbido.

    Notas

    (*)Este artigo foi previamente publicado como "The misrule of law: land and usurpation in Brazil." Comparative Studiesin Society and History. 33 (4) pp. 695-725, 1991.

    1. Parte de um estudo mais amplo sobre a terra, trabalho, lei e movimentos sociais no Brasil, este ensaio baseia-se numtrabalho de campo e de arquivos de dois anos, realizado entre 1987 e 1990, financiado por um Fullbright Hays FacultyResearch Award, um CIES Fullbright Regional Award, e pela University of Southern California. Agradeo s pessoas doJardim das Camlias por sua inestimvel ajuda na coleta e anlise dos dados apresentados neste artigo. A AntnioBenedito Margarido, advogado da associao de bairro, Jos Nogueira Souza, seu presidente durante meu trabalho decampo, e a Teresa Caldeira, colega antroploga, meus agradecimentos especiais.

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    2. Em outras publicaes, mostro com mais detalhes que as periferias urbanas brasileiras devem sua formao spolticas de terra elaboradas para regular o fornecimento de trabalho, o que era feito atraindo, fixando e disciplinando umtipo desejado de fora de trabalho (Holston 1989: caps. 6-8; e Holston s.d.) Esse regulamento estabelece no somente

    padres bsicos de migrao e assentamento, mas tambm as condies nas quais ocorrem os conflitos de terras, e queconstituem o foco deste ensaio.

    3. Muitos estudos antropolgicos reiteram esse princpio. Ele aparece ao longo do espectro terico, tpico e regional,como uma nfase, por exemplo, na manuteno do controle social atravs do costume ou da coero (Malinowski 1926,Radcliffe-Brown 1933), na resoluo de desarranjos sociais (Llewllyn e Hoebel 1941), para refrear abusos (Gluckman1955), na produo de coerncia social atravs do conflito (Gluckman 1956), na mediao de disputas (Gulliver 1963),no incentivo ao compromisso e ao equilbrio (Nader 1969), e na eliminao da ambigidade (Leach 1977). Uma exceo o polmico mas negligenciado artigo de Leach (1963), no qual ele argumenta, contra os funcionalistas malinowskianose os funcionalistas anti-malinowskianos, que na sociedade primitiva a lei serve para proteger privilgios.

    4. Mesmo Barnes (1961, pp. 193), em um de seus primeiros estudos da "lei como algo politicamente ativo", conclui queapesar de as "instituies jurdicas (onde no h tribunais) ... de fato fornecerem as regras atravs das quais ocorrem asdisputas (polticas) ... a lei, todavia, pode ser vista como um conjunto duradouro e consistente de regras aplicadasimparcialmente".

    5. Por exemplo, ensaios recentes sugerem que os sistemas jurdicos criam conflitos (Starr e Collier 1988); que alegislao uma arena de disputas entre faces, e que a lei nativa contesta a dominao colonial (Vincent 1989); que aassim chamada lei dos costumes uma inveno do colonialismo (Cohn 1989 e Moore 1989); que as disputas podem serdirigidas e utili