Homem Cordial
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O homem cordial Srgio Buarque de Holanda
Cap. V de Razes do Brasil (1 ed. 1936). Vale observar que este
conceito de "homem cordial" adquire interesse filosfico especfico a
partir da crtica de Mrio Vieira de Mello, em sua obra
Desenvolvimento e cultura. O problema do estetismo no Brasil (1 ed.
1963), cap. VI, cujo texto se encontra em nosso site Textos de
Filosofia Brasileira.
Para consultar o texto relacionado:
http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2012/05/desenvolvimento-e-cultura-o-problema-do.html
Notas ao fim do texto.
Antgona e Creonte. Pedagogia moderna e as virtudes
antifamiliares. Patrimonialismo O homem cordial. Averso aos
ritualismos: como se manifesta ela na vida social, na linguagem,
nos negcios. A religio e a exaltao dos valores cordiais.
O Estado no uma ampliao do crculo familiar e, ainda menos, uma
integrao de certos agrupamentos, de certas vontades
particularistas, de que a famlia o melhor exemplo. No existe, entre
o crculo familiar e o Estado, uma gradao, mas antes uma
descontinuidade e at uma oposio. A indistino fundamental entre as
duas formas prejuzo romntico que teve os seus adeptos mais
entusiastas durante o sculo dcimo nono. De acordo com esses
doutrinadores, o Estado e as suas instituies descenderiam em linha
reta, e por simples evoluo da Famlia. A verdade, bem outra, que
pertencem a ordens diferentes em essncia. S pela transgresso da
ordem domstica e familiar que nasce o Estado e que o simples
indivduo se faz cidado, contribuinte, eleitor, elegvel, recrutvel e
responsvel, ante as leis da Cidade. H nesse fato um triunfo do
geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do
abstrato sobre o corpreo e no uma depurao sucessiva, uma
espiritualizao de formas mais naturais e rudimentares, uma procisso
das hipstases, para falar como na filosofia alexandrina. A ordem
familiar, em sua forma pura, abolida por uma transcendncia.
Ningum exprimiu com mais intensidade a oposio e mesmo a
incompatibilidade fundamental entre os dois princpios do que
Sfocles. Creonte encarna a noo abstrata, impessoal da Cidade em
luta contra essa realidade concreta e tangvel que a famlia.
Antgona, sepultando Polinice contra as ordenaes do Estado, atrai
sobre si a clera do irmo, que no age em nome de sua vontade
pessoal, mas da suposta vontade geral dos cidados, da ptria:
E todo aquele que acima da Ptria
Coloca seu amigo, eu o terei por nulo.
O conflito entre Antgona e Creonte de todas as pocas e preserva-se
sua veemncia ainda em nossos dias. Em todas as culturas, o processo
pelo qual a lei geral suplanta a lei particular faz-se acompanhar
de crises mais ou menos graves e prolongadas, que podem afetar
profundamente a estrutura da sociedade. O estudo dessas crises
constitui um dos temas fundamentais da histria social. Quem
compare, por exemplo, o regime do trabalho das velhas corporaes e
grmios de artesos com a escravido dos salrios nas usinas modernas,
tem um elemento precioso para o julgamento da inquietao social de
nossos dias. Nas velhas corporaes o mestre e seus aprendizes e
jornaleiros formavam como uma s famlia, cujos membros se sujeitavam
a uma hierarquia natural, mas que partilham das mesmas privaes e
confortos. Foi o moderno sistema industrial que, separando os
empregadores e empregados nos processos de manufatura e
diferenciando cada vez mais suas funes, suprimiu a atmosfera de
intimidade que reinava entre uns e outros e estimulou os
antagonismos de classe. O novo regime tornava mais fcil, alm disso,
ao capitalista, explorar o trabalho de seus empregados, a troco de
salrios nfimos.
Para o empregador moderno assinala um socilogo norte-americano o
empregado transforma-se em um simples nmero: a relao humana
desapareceu. A produo em larga escala, a organizao de grandes
massas de trabalho e complicados mecanismos para colossais
rendimentos, acentuou, aparentemente, e exacerbou, a separao das
classes produtoras, tornando inevitvel um sentimento de
irresponsabilidade, da parte dos que dirigem, pelas vidas dos
trabalhadores manuais. Compare-se o sistema de produo, tal como
existia quando o mestre e seu aprendiz ou empregado trabalhavam na
mesma sala e utilizavam os mesmos instrumentos, como o que ocorre
na organizao habitual da corporao moderna. No primeiro, as relaes
de empregador e empregado eram pessoais e diretas, no havia
autoridades intermedirias. Na ltima, entre o trabalhador manual e o
derradeiro proprietrio o acionista existe toda uma hierarquia de
funcionrios e autoridades representados pelo superintendente da
usina, o diretor-geral, o presidente da corporao, a junta executiva
do conselho de diretoria e o prprio conselho de diretoria. Como
fcil que a responsabilidade por acidentes do trabalho, salrios
inadequados ou condies anti-higinicas, se perca de um extremo ao
outro dessa srie.[1]
A crise que acompanhou a transio do trabalho industrial aqui
assinalada pode dar uma ideia plida das dificuldades que se opem
abolio da velha ordem familiar por outra, em que as instituies e as
relaes sociais, fundadas em princpios abstratos, tendem a
substituir-se aos laos de afeto e de sangue. Ainda hoje persistem,
aqui e ali, mesmo nas grandes cidades, algumas dessas famlias
retardatrias, concentradas em si mesmas e obedientes ao velho ideal
que mandava educarem-se os filhos apenas para o crculo domstico.
Mas essas mesmas tendem a desaparecer ante as exigncias imperativas
das novas condies de vida. Segundo alguns pedagogos e psiclogos de
nossos dias, a educao familiar deve ser apenas uma espcie de
propedutica da vida na sociedade, fora da famlia. E se bem
considerarmos as teorias modernas, veremos que elas tendem, cada
vez mais, a separar o indivduo da comunidade domstica, a libert-lo,
por assim dizer, das virtudes familiares. Dir-se- que essa separao
e essa libertao representam as condies primrias e obrigatrias de
qualquer adaptao vida prtica.
Nisso, a pedagogia cientfica da atualidade segue rumos precisamente
opostos aos que preconizam os antigos mtodos de educao. Um dos seus
adeptos chega a observar, por exemplo, que a obedincia, um dos
princpios bsicos da velha educao, s deve ser estimulada na medida
em que possa permitir uma adoo razovel de opinies e regras que a
prpria criana reconhea como formuladas por adultos que tenham
experincia nos terrenos sociais em que ela ingressa. Em particular
acrescenta a criana deve ser preparada para desobedecer nos pontos
em que sejam falveis as previses dos pais. Deve adquirir
progressivamente a individualidade, nico fundamento justo das
relaes familiares. Os casos frequentes em que os jovens so
dominados pelas mes e pais na escolha das roupas, dos brinquedos,
dos interesses e atividades gerais, a ponto de se tornarem
incompetentes, tanto social, como individualmente, quando no
psicopatas, so demasiado frequentes para serem ignorados. E
aconselha: no s os pais de ideias estreitas, mas especialmente os
que so extremamente atilados e inteligentes, devem precaver-se
contra essa atitude falsa, pois esses pais realmente inteligentes
so, de ordinrio, os que mais se inclinam a exercer domnio sobre a
criana. As boas mes causam, provavelmente, maiores estragos do que
as ms, na acepo mais generalizada e popular destes
vocbulos.[2]
Com efeito, onde quer que prospere e assente em bases muito slidas
a ideia de famlia e principalmente onde predomina a famlia de tipo
patriarcal tende a ser precria e a lutar contra fortes restries a
formao e evoluo da sociedade segundo conceitos atuais. A crise de
adaptao indivduos ao mecanismo social , assim, especialmente
sensvel no nosso tempo devido ao decisivo triunfo de certas
virtudes antifamiliares por excelncia, como o so, sem dvida,
aquelas que repousam no esprito de iniciativa pessoal e na
concorrncia entre os cidados.
Entre ns, mesmo durante o Imprio, j se tinham tornado manifestas as
limitaes que os vnculos familiares demasiado estreitos, e no raro
opressivos, podem impor vida ulterior dos indivduos. No faltavam,
sem dvida, meios de se corrigirem os inconvenientes que muitas
vezes acarretam certos padres de conduta impostos desde cedo pelo
crculo domstico. E no haveria grande exagero em dizer-se que, se os
estabelecimentos de ensino superior, sobretudo os cursos jurdicos,
fundados desde 1827 em So Paulo e Olinda, contriburam largamente
para a formao de homens pblicos capazes, devemo-lo s possibilidades
que, com isso, adquiriam numerosos adolescentes arrancados aos seus
meios provinciais e rurais, de viver por si, libertando-se
progressivamente dos velhos laos caseiros, quase tanto como aos
conhecimentos que ministravam as faculdades.
A personalidade social do estudante, moldada em tradies
acentuadamente particularistas, tradies que, como se sabe, costumam
ser decisivas e imperativas durante os primeiros quatro ou cinco
anos de vida da criana,[3] era forada a ajustar-se, nesses casos, a
novas situaes e a novas relaes sociais que importavam na
necessidade de uma reviso, por vezes radical, dos interesses,
atividades, valores, sentimentos, atitudes e crenas adquiridos no
convvio da famlia.
Transplantados para longe dos pais, muito jovens, os filhos
aterrados de que falava Capistrano de Abreu, s por essa forma
conseguiam alcanar um senso de responsabilidade que lhes fora at
ento vedado. Nem sempre, certo, as novas experincias bastavam para
apagar neles o vinco domstico, a mentalidade criada ao contato de
um meio patriarcal, to oposto s exigncias de uma sociedade de
homens livres e de inclinao cada vez mais igualitria. Por isso
mesmo Joaquim Nabuco pode dizer que em nossa poltica e em nossa
sociedade [...] so os rfos, os abandonados, que vencem a luta,
sobem e governam.[4]
Tem-se visto como a crtica dirigida contra a tendncia recente de
alguns Estados para a criao de vastos aparelhamentos de seguro e
previdncia social, funda-se unicamente no fato de deixarem margem
extremamente diminuta ao individual e tambm no definhamento a que
tais institutos condenam toda sorte de competies. Essa argumentao
prpria de uma poca em que, pela primeira vez na histria, se erigiu
a concorrncia entre os cidados, como todas as suas consequncias, em
valor social positivo.
Aos que, com razo de seu ponto de vista, condenam por motivos
parecidos os mbitos familiares excessivamente estreitos e
exigentes, isto , aos que os condenam por circunscreverem demasiado
os horizontes da criana dentro da paisagem domstica, pode ser
respondido que, em rigor, s hoje tais ambientes chegam a
constituir, muitas vezes, verdadeiras escolas de inadaptados e at
de psicopatas. Em outras pocas, tudo contribua para a maior
harmonia e maior coincidncia entre as virtudes que se formam e se
exigem no recesso do lar e as que asseguram a prosperidade social e
a ordem entre os cidados. No est muito distante o tempo que o Dr.
Johnson fazia ante o seu bigrafo, a apologia crua dos castigos
corporais para os educandos e recomendava a vara para o terror
geral de todos. Parecia-lhe prefervel esse recurso a que se
dissesse, por exemplo, ao aluno: Se fizeres isto ou aquilo, sers
mais estimado do que teu irmo ou tua irm. Porque, segundo dizia a
Boswell, a vara tem um efeito que termina em si, ao passo que se
forem incentivadas as emulaes e as comparaes de superioridade,
lanar-se-o, com isso, as bases de um mal permanente, fazendo com
que irmos e irms se detestem uns aos outros.
No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da
famlia patriarcal, o desenvolvimento da urbanizao que no resulta
unicamente do crescimento das cidades, mas tambm do crescimento dos
meios de comunicao, atraindo vastas reas rurais para a esfera de
influncia das cidades ia acarretar um desequilbrio social, cujos
efeitos permanecem vivos ainda hoje.
No era fcil aos detentores das posies pblicas de responsabilidade,
formados por tal ambiente, compreenderem a distino fundamental
entre os domnios do privado e do pblico. Assim, eles se
caracterizavam justamente pelo que separa o funcionrio patrimonial
do puro burocrata conforme a definio de Max Weber. Para o
funcionrio patrimonial, a prpria gesto poltica apresenta-se como
assunto de seu interesse particular; as funes, os empregos e os
benefcios que deles aufere, relacionam-se a direitos pessoais do
funcionrio e no a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro
Estado burocrtico, em que prevalecem a especializao das funes e o
esforo para se assegurarem garantias jurdicas aos cidados.[5] A
escolha dos homens que iro exercer funes pblicas faz-se de acordo
com a confiana pessoal que meream os candidatos, e muito menos de
acordo com as suas capacidades prprias. Falta a tudo a ordenao
impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrtico. O
funcionalismo patrimonial pode, com a progressiva diviso das funes
e com a racionalizao, adquirir traos burocrticos. Mas em sua
essncia ele tanto mais diferente do burocrtico, quanto mais
caracterizados estejam os dois tipos.
No Brasil, pode dizer-se que s excepcionalmente tivemos um sistema
administrativo e um corpo de funcionrios puramente dedicados a
interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrrio,
possvel acompanhar, ao longo de nossa histria, o predomnio
constante das vontades particulares que encontram seu ambiente
prprio em crculos fechados e pouco acessveis a uma ordenao
impessoal. Dentre esses crculos, foi sem dvida o da famlia aquele
que se exprimiu com mais fora e desenvoltura em nossa sociedade. E
um dos efeitos decisivos da supremacia incontestvel, absorvente, do
ncleo familiar a esfera, por excelncia dos chamados contatos
primrios, dos laos de sangue e de corao est em que as relaes que se
criam na vida domstica sempre forneceram o modelo obrigatrio de
qualquer composio social entre ns. Isso ocorre mesmo onde as
instituies democrticas, fundadas em princpios neutros e abstratos,
pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas.
J se disse, numa expresso feliz, que a contribuio brasileira para a
civilizao ser de cordialidade daremos ao mundo o homem cordial.[6,
ler esta nota especialmente] A lhaneza no trato, a hospitalidade, a
generosidade, virtudes to gabadas por estrangeiros que nos visitam,
representam, com efeito, um trao definido do carter brasileiro, na
medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influncia
ancestral dos padres de convvio humano, informados no meio rural e
patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar
boas maneiras, civilidade. So antes de tudo expresses legtimas de
um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade h
qualquer coisa de coercitivo ela pode exprimir-se em mandamentos e
em sentenas. Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez
envolve os aspectos mais ordinrios do convvio social, chega a ponto
de confundir-se, por vezes, com a reverncia religiosa. J houve quem
notasse este fato significativo, de que as formas exteriores de
venerao divindade, no cerimonial xintosta, no diferem
essencialmente das maneiras sociais de demonstrar respeito.
Nenhum povo est mais distante dessa noo ritualista da vida do que o
brasileiro. Nossa forma ordinria de convvio social , no fundo,
justamente o contrrio da polidez. Ela pode iludir na aparncia e
isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir
precisamente em uma espcie de mmica deliberada de manifestaes que
so espontneas no homem cordial: a forma natural e viva que se
converteu em frmula. Alm disso a polidez , de algum modo, organizao
de defesa ante a sociedade. Detm-se na parte exterior, epidrmica do
indivduo, podendo mesmo servir, quando necessrio, de pea de
resistncia. Equivale a um disfarce que permitir a cada qual
preservar intatas sua sensibilidade e suas emoes.
Por meio de semelhante padronizao das formas exteriores da
cordialidade, que no precisam ser legtimas para se manifestarem,
revela-se um decisivo triunfo do esprito sobre a vida. Armado dessa
mscara, o indivduo consegue manter sua supremacia ante o social. E,
efetivamente, a polidez implica uma presena contnua e soberana do
indivduo.
No homem cordial, a vida em sociedade , de certo modo, uma
verdadeira libertao do pavor que ele sente em viver consigo mesmo,
em apoiar-se sobre si prprio em todas as circunstncias da
existncia. Sua maneira de expanso para com os outros reduz o
indivduo, cada vez mais, parcela social, perifrica, que no
brasileiro como bom americano tende a ser a que mais importa. Ela
antes um viver nos outros. Foi a esse tipo humano que se dirigiu
Nietzsche, quando disse: Vosso mau amor de vs mesmos vos faz do
isolamento um cativeiro.[7]
Nada mais significativo dessa averso ao ritualismo social, que
exige, por vezes, uma personalidade fortemente homognea e
equilibrada em todas as suas partes, do que a dificuldade em que se
sentem, geralmente, os brasileiros, de uma reverncia prolongada
ante um superior. Nosso temperamento admite frmulas de reverncia, e
at de bom grado, mas quase somente enquanto no suprimam de todo a
possibilidade de convvio mais familiar. A manifestao normal do
respeito em outros povos tem aqui sua rplica, em regra geral, no
desejo de estabelecer intimidade. E isso tanto mais especfico,
quanto se sabe do apego frequente dos portugueses, to prximos de ns
em tantos aspectos, aos ttulos e sinais de reverncia.
No domnio da lingustica, para citar um exemplo, esse modo de ser
parece refletir-se em nosso pendor acentuado para o emprego dos
diminutivos. A terminao inho, aposta s palavras, serve para nos
familiarizar mais com as pessoas ou os objetos e, ao mesmo tempo,
para lhes dar relevo. a maneira de faz-los mais acessveis aos
sentidos e tambm de aproxim-los do corao. Sabemos como frequente,
entre portugueses, o zombarem de certos abusos desse nosso apego
aos diminutivos, abusos to ridculos para eles quanto o para ns,
muitas vezes, a pieguice lusitana, lacrimosa e amarga.[8] Um estudo
atento das nossas formas sintticas traria, sem dvida, revelaes
preciosas a esse respeito.
mesma ordem de manifestaes pertence certamente a tendncia para a
omisso do nome de famlia no tratamento social. Em regra o nome
individual, de batismo, que prevalece. Essa tendncia, que entre os
portugueses resulta de uma tradio com velhas razes como se sabe, os
nomes de famlia s entram a predominar na Europa crist e medieval a
partir do sculo XII acentuou-se estranhamente entre ns. Seria
talvez plausvel relacionar tal fato sugesto de que o uso do simples
prenome importa em abolir psicologicamente as barreiras
determinadas pelo fato de existirem famlias diferentes e
independentes umas das outras. Corresponde atitude natural aos
grupos humanos que, aceitando de bom grado uma disciplina da
simpatia, da concrdia, repelem as do raciocnio abstrato ou que no
tenham como fundamento, para empregar a terminologia de Tnnies, as
comunidades de sangue, de lugar ou de esprito.[9]
O desconhecimento de qualquer forma de convvio que no seja ditada
por uma tica de fundo emotivo representa um aspecto da vida
brasileira que raros estrangeiros chegam a penetrar com facilidade.
E to caracterstica, entre ns, essa maneira de ser, que no
desaparece sequer nos tipos de atividade que devem alimentar-se
normalmente da concorrncia. Um negociante de Filadlfia manifestou
certa vez a Andr Siegfried seu espanto ao verificar que no, no
Brasil como na Argentina, para conquistar um fregus tinha
necessidade de fazer dele um amigo.[10]
Nosso velho catolicismo, to caracterstico, que permite tratar os
santos com uma intimidade quase desrespeitosa e que deve parecer
estranho s almas verdadeiramente religiosas, provm ainda dos mesmos
motivos. A popularidade, entre ns, de uma Santa Teresa de Lisieux
Santa Teresinha resulta muito do carter intimista que pode adquirir
seu culto, culto amvel e quase fraterno, que se acomoda mal s
cerimnias e suprime as distncias. o que tambm ocorreu com o nosso
menino Jesus, companheiro de brinquedo das crianas e que faz pensar
menos no Jesus dos evangelhos cannicos do que no de certos
apcrifos, principalmente as diversas redaes do Evangelho da
Infncia. Os que assistiram s festas do Senhor Bom Jesus de
Pirapora, em So Paulo, conhecem a histria do Cristo que desce do
altar para sambar com o povo.
Essa forma de culto, que tem antecedentes na Pennsula Ibrica, tambm
aparece na Europa Medieval e justamente com a decadncia da religio
palaciana, superindividual, em que a vontade comum se manifesta na
edificao dos grandiosos monumentos gticos. Transposto esse perodo
afirma um historiador surge um sentimento religioso mais humano e
singelo. Cada casa quer ter sua capela prpria, onde os moradores se
ajoelham ante o padroeiro e protetor. Cristo, Nossa Senhora e os
santos j no aparecem como entes privilegiados e eximidos de
qualquer sentimento humano. Todos, fidalgos e plebeus, querem estar
em intimidade com as sagradas criaturas e o prprio Deus um amigo
familiar, domstico e prximo o oposto do Deus palaciano, a quem o
cavaleiro, de joelhos, vai prestar sua homenagem, como a um senhor
feudal.[11]
O que representa semelhante atitude uma transposio caracterstica
para o domnio do religioso desse horror s distncias que parece
constituir, ao menos at agora, o trao mais especfico do esprito
brasileiro. Note-se que ainda aqui ns nos comportamos de modo
perfeitamente contrrio atitude j assinalada entre japoneses, onde o
ritualismo invade o terreno da conduta social para dar-lhe mais
rigor. No Brasil precisamente o rigorismo do rito que se afrouxa e
se humaniza.
Essa averso ao ritualismo conjuga-se mal, como fcil imaginar com um
sentimento religioso verdadeiramente profundo e consciente. Newman,
em um dos seus sermes anglicanos, exprimia a firme convico de que a
nao inglesa lucraria se sua religio fosse mais supersticiosa, more
bigoted, se estivesse mais acessvel influncia popular, se falasse
mais diretamente s imaginaes e aos coraes. No Brasil, ao contrrio,
foi justamente o nosso culto sem obrigaes e sem rigor, intimista e
familiar, a que se poderia chamar, com alguma impropriedade,
democrtico, um culto que dispensava no fiel todo esforo, toda
diligncia, toda tirania sobre si mesmo, o que corrompeu, pela base,
o nosso sentimento religioso. significativo que, ao tempo da famosa
questo eclesistica, no Imprio, uma luta furiosa, que durante largo
tempo abalou o pas, se tenha travado principalmente porque D. Vital
de Oliveira se obstinava em no abandonar seu excesso de zelo. E o
mais singular que, entre os acusadores do bispo de Olinda, por uma
intransigncia que lhes parecia imperdovel e criminosa, figurassem
no poucos catlicos, ou que se imaginavam sinceramente
catlicos.
A uma religiosidade de superfcie, menos atenta ao sentido ntimo das
cerimnias do que ao colorido e pompa exterior, quase carnal em seu
apego ao concreto e em sua rancorosa incompreenso de toda
verdadeira espiritualidade; transigente, por isso mesmo que pronta
a acordos, ningum pediria, certamente, que se elevasse a produzir
qualquer moral social poderosa. Religiosidade que se perdia e se
confundia num mundo sem forma e que, por isso mesmo, no tinha foras
para lhe impor sua ordem. Assim, nenhuma elaborao poltica seria
possvel seno fora dela, fora de um culto que s apelava para os
sentimentos e os sentidos e quase nunca para a razo e a vontade. No
admira pois, que nossa Repblica tenha sido feita pelos
positivistas, ou agnsticos e nossa Independncia fosse obra de
maons. A estes se entregou com tanta publicidade nosso primeiro
Imperador que o fato chegaria a alarmar o prprio Prncipe de
Metternich, pelos perigosos exemplos que encerrava sua
atitude.
A pouca devoo dos brasileiros e at das brasileiras coisa que se
impe aos olhos de todos os viajantes estrangeiros, desde os tempos
do Padre Ferno Cardim, que dizia das pernambucanas quinhentistas
serem muito senhoras e no muito devotas, nem frequentarem missas,
pregaes, confisses, etc..[12] Auguste de Saint-Hilaire, que visitou
a cidade de So Paulo pela semana santa de 1822, conta-nos como lhe
doa a pouca ateno dos fiis durante os servios religiosos. Ningum se
compenetra do esprito das solenidades observa Os homens mais
distintos delas participam apenas por hbito, e o povo comparece
como se fosse a um folguedo. No ofcio de Endoenas, a maioria dos
presentes recebeu a comunho da mo do bispo. Olhavam direita e
esquerda, conversavam antes desse momento solene e recomeavam a
conversar logo depois. As ruas, acrescenta pouco adiante, viviam
apinhadas de gente, que corria de igreja a igreja j, mas somente
para v-las, sem o menor sinal de fervor.[13]
Em verdade, muito pouco se poderia esperar de uma devoo que, como
essa, quer ser continuamente sazonada por condimentos fortes e que,
para ferir as almas, h de ferir primeiramente os olhos e os
ouvidos. Em meio do rudo e da mixrdia, da jovialidade e da ostentao
que caracterizam todas essas celebraes gloriosas, pomposas,
esplendorosas, nota o Pastor Kidder, quem deseje encontrar, j no
digo estmulo, mas ao menos lugar para um culto mais espiritual,
precisar ser singularmente fervoroso.[14] Outro visitante, de
meados do sculo passado, manifesta profundas dvidas sobre a
possibilidade de se implantarem algum dia, no Brasil, formas mais
rigoristas de culto. Conta-se que os prprios protestantes logo
degeneram aqui, exclama. E acrescenta: que o clima no favorece a
severidade das seitas nrdicas. O austero metodismo ou o puritanismo
jamais florescero nos trpicos.[15]
A exaltao dos valores cordiais e das formas concretas e sensveis da
religio, que no catolicismo tridentino parecem representar uma
exigncia do esforo de reconquista espiritual e da propaganda da f
perante a ofensiva da Reforma, encontraram entre ns um terreno de
eleio e acomodaram-se bem a outros aspectos tpicos de nosso
comportamento social. Em particular a nossa averso ao ritualismo
explicvel, at certo ponto, nesta terra remissa e algo melanclica,
de que falavam os primeiros observadores europeus, por isto que, no
fundo, o ritualismo no nos necessrio. Normalmente nossa reao ao
meio em que vivemos no uma reao de defesa. A vida ntima do
brasileiro nem bastante coesa, nem bastante disciplinada, para
envolver e dominar toda a sua personalidade, integrando-a, como pea
consciente, no conjunto social. Ele livre, pois, para se abandonar
a todo o repertrio de ideias, gestos e formas que encontre em seu
caminho, assimilando-os frequentemente sem maiores
dificuldades.
Notas
[1] F. Stuart Chapin, Cultural change (Nova York, 1928), pg.
261.
[2] Knight Dunlap, Civilized Life. The Principles and Applications
of Social Psychology (Baltimore, 1935), pg. 189.
[3] Margaret Mead, Ruth Shoule Cavan, John Dollard e Eleanor
Wembridge, The Adolescent Word. Culture and Personality, The
American Journal of Sociology, julho, 1936, pg. 84 e segs.
[4] A perda da me na infncia diz ainda um acontecimento fundamental
na vida, dos que transformam o homem, mesmo quando ele no tem
conscincia do abalo. Desde esse dia ficava decidido que Nabuco
pertenceria forte famlia dos que se fazem asperamente por si
mesmos, dos que anseiam por deixar o estreito conchego da casa e
procurar abrigo no vasto deserto do mundo, em oposio aos que
contraem na intimidade materna o instinto domstico predominante.
Hrcules no se preocupava de deixar os filhos na orfandade, diz-nos
Epiteto, porque sabia que no h rfos no mundo. Joaquim Nabuco, op.
cit., I, pg 5.
[5] Max Weber, op. cit., II, pg. 795 e segs.
[6] A expresso do escritor Ribeiro Couto, em carta dirigida a
Alfonso Reyes e por este inserta em sua publicao Monterey. No
pareceria necessrio reiterar o que j est implcito no texto, isto ,
que a palavra cordial h de ser tomada, neste caso, em seu sentido
exato e estritamente etimolgico, se no tivesse sido contrariamente
interpretada em obra recente de autoria do Sr. Cassiano Ricardo
onde se fala no homem cordial dos aperitivos e das cordiais
saudaes, que so fechos de cartas tanto amveis como agressivas e se
antepe cordialidade assim entendida o capital sentimento dos
brasileiros, que ser a bondade e at mesmo certa tcnica da bondade,
uma bondade mais envolvente, mais poltica, mais assimiladora.
Feito este esclarecimento e para melhor frisar a diferena, em
verdade fundamental, entre as ideias sustentadas na referida obra e
as sugestes que prope o presente trabalho, cabe dizer que, pela
expresso cordialidade, se eliminam aqui, deliberadamente, os juzos
ticos e as intenes apologticas a que parece inclinar-se o Sr.
Cassiano Ricardo, quando prefere falar em bondade ou em homem bom.
Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha, por um
lado, a todo formalismo e convencionalismo social, no abrange, por
outro, apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivos e de
concrdia. A inimizade bem pode ser to cordial como a amizade, nisto
que uma e outra nascem do corao, procedem, assim, da esfera do
ntimo, do familiar, do privado. Pertencem, efetivamente, para
recorrer a termo consagrado pela moderna sociologia, ao domnio dos
grupos primrios, cujo unidade, segundo observa o prprio elaborador
do conceito no somente de harmonia e amor. A amizade, desde que
abandona o mbito circunscrito pelos sentimentos privados ou ntimos,
passa a ser, quando muito, benevolncia, posto que a impreciso
vocabular admita maior extenso do conceito. Assim como a inimizade,
sendo pblica ou poltica, no cordial, se chamar mais precisamente
hostilidade. A distino entre inimizade e hostilidade, formulou-a de
modo claro Carl Schmitt recorrendo ao lxico latino: Hostis is est
cum quo publice bellum habemus [...] in quo ab inimico differt, qui
est is, quocum habemus privata odia... Carl Schmitt, Der Begriff
des Politischen, Hamburgo, s. d. [1933], pg. 11, nota.[7] Friedrich
Nietzsche, Werke, Alfred Krner Verlag, IV (Leipzig, s. d.), pg.
65.
[8] O mesmo apego aos diminutivos foi notado por folcloristas,
gramticos e dialetlogos em terras de lngua espanhola, especialmente
da Amrica, e at em vrias regies da Espanha (Andaluzia, Salamanca,
Arago...). Com razo observa Amado Alonso que a abundncia de
testemunhos semelhantes e relativos s zonas mais distintas,
prejudica o intento de se interpretar o abuso de diminutivos como
particularismo de cada uma. Resta admitir, contudo, que esse abuso
seja um trao do regional, da linguagem das regies enquanto oposta
geral. E como a oposio maior nos campos do que nas cidades, o
diminutivo representaria sobretudo um trao da fala rural. A profuso
destas formas diz Alonso denuncia um carter cultural, uma forma
socialmente plasmada de comportamento nas relaes coloquiais, que a
reiterada manifestao do tom amistoso em quem fala e sua petio de
reciprocidade. Os ambientes rurais e dialetais que criaram e
cultivam essas maneiras sociais costumam ser avessos aos tipos de
relaes interpessoais mais disciplinadas das cidades ou das classes
cultas, porque os julgam mais convencionais e mais insinceros e
inexpressivos do que os seus. Cf. Amado Alonso, Nocin, Emocin,
Accin y Fantasia en los Diminutivos, Volkstum und Kultur der
Romanen, VIII, 1 (Hamburgo, 1935), pgs. 117-18. No Brasil, onde
esse trao persiste, mesmo nos meios mais fortemente atingidos pela
urbanizao progressiva, sua presena pode denotar uma lembrana e um
survival, entre tantos outros, dos estilos de convivncia humana
plasmados pelo ambiente rural e patriarcal, cuja marca o
cosmopolitismo dos nossos dias ainda no conseguiu apagar. Pode-se
dizer que um trao ntido da atitude cordial, indiferente ou, de
algum modo, oposta s regras chamadas, e no por acaso, de civilidade
e urbanidade. Uma tentativa de estudo da influncia exercida sobre
nossas formas sintticas por motivos psicolgicos semelhantes
encontra-se em Joo Ribeiro, Lngua nacional (So Paulo, 1933), pg.
11.
[9] Ou sejam as categorias: 1) de parentesco; 2) de vizinhana; 3)
de amizade.
[10] Andr Siegfried, Amrique latine (Paris, 1934), pg. 148.
[11] Prof. Dr. Alfred Von Martin, Kultursoziologie des
Mittelalters, Handwrterbuch der Soziologie (Stuttgart, 1931), pg.
383.
[12] Ferno Cardim, Tratados da terra e gente do Brasil (Rio de
Janeiro, 1925), pg. 334.
[13] Auguste de Saint-Hilaire, Voyage au Rio Grande do Sul (Orlans,
1887), pg. 587.
[14] Rev. Daniel P. Kidder, Sketches of residence and travels in
Brazil, (Londres, 1845), pg. 157.
[15] Thomas Ewbank, Life in Brazil or a journal of a visit to the
land of cocoa and the palm (Nova York, 1856), pg. 239.