HOMENAGEM A MARIANO GAGO

Em 25 de Abril

de 1974, o Zé

Mariano vivia

em Paris à beira

do Canal de l’Ourcq. De manhã cedo, um amigo bateu à porta para

informar que algo especial se estaria a passar em Lisboa. Seria um

golpe de Estado mas não se conheciam os contornos. Tentando sinto-

nizar a rádio, ouvimos “Aqui, posto de comando do Movimento das

Forças Armadas…” mas sempre com poucas in-

formações ao longo do dia.

O Mariano Gago estava exilado em Paris, “graças”

a um mandato de captura da PIDE. Sabia que se entrasse em Portugal

seria preso. Nos dias seguintes, terá estado em várias reuniões, muitas

delas ainda clandestinas, e só depois do poderoso 1º de Maio enten-

deu que havia condições para vir a Portugal. Fê-lo ainda com receios e

com a presença de seu pai (advogado) no aeroporto.

Nos meses seguintes, andou pelas fábricas, falando com as pessoas,

entendendo os processos das lutas. Relembro especialmente a luta

das operárias da Sogantal, uma fábrica que produzia fatos de treino no

Montijo. Aí dormiu algumas noites sobre fardos com fatos de treino,

ajudando as operárias na ocupação que faziam para proteger as má-

quinas em que continuavam a confecionar os produtos que depois iam

vender diretamente. O Zé Mariano procurava, por exemplo, perceber

como, na ausência de um enquadramento patronal, as operárias orga-

nizavam o seu trabalho. Registou, pelo menos, três grandes caracterís-

ticas. Uma: todas as operárias aprenderam a trabalhar em todos os

postos de trabalho, rejeitando a tradicional divisão social do trabalho,

marcada pela especialização; outra: o tempo de trabalho dependia da

quantidade de produção que necessitavam garantir, não estando sujei-

tas a horários rígidos; terceira: no mesmo sentido, não separavam

trabalho de lazer — uma vez, foram vender para a praia e, quando

terminaram, foram tomar banho ao mar. É de registar que estas dinâ-

micas foram interrompidas pelo representante sindical, que impôs o

cumprimento dos horários de trabalho, apelando para “a seriedade da

luta”!

JMG ESTAVA EM PARIS COM UMA BOLSA DO INSTITUTO DE ALTA CULTURA PARA FAZER O JMG ESTAVA EM PARIS COM UMA BOLSA DO INSTITUTO DA ALTA CULTURA PARA FAZER O DOUTORAMENTO. EM SETEMBRO DE 1972 VEIO DE FÉRIAS A PORTUGAL E SOUBE QUE VÁRIOS COLEGAS DO TÉCNICO TINHAM SIDO PRESOS OU PROCURA-DOS PELA PIDE. COMEÇOU POR PENSAR SAIR DE BARCO PELA FRONTEIRA DE CAMINHA MAS, JÁ AVANÇADO NA FILA DE EMBARQUE, CONSIDEROU SER MUITO ARRISCADO E VOL-TOU PARA TRÁS. [DE FACTO, DEPOIS DO 25 DE ABRIL TEVE OPORTUNIDADE DE VER NA SUA FICHA, NOS ARQUIVOS DA PIDE, QUE ESSE FORA O PRIMEIRO SÍTIO ONDE A POLÍCIA TINHA MONTADO ALERTA.] ESTEVE DEPOIS REFUGIADO NUMA CASA EM FONTANELAS, PERTO DE SINTRA, DE ONDE RARAMENTE IA À RUA, PREPARANDO O ES-QUEMA DE SAÍDA E… LENDO A MONTANHA MÁGICA DE THOMAS MANN. SOUBE-SE MAIS TARDE QUE O PROPRIETÁRIO SERIA INFOR-MADOR DA PIDE! SAIU DE PORTUGAL NO DIA 4 DE OUTUBRO, NOITE DE LUA NOVA. PARA A GUARDA FRON-TEIRIÇA ESTAR DE PREVENÇÃO POR CAUSA DO 5 DE OUTUBRO E PARA A ESCURIDÃO DA NOI-TE EVITAR QUE FOSSE VISTO. SÓ NÃO PREVIU UMA BENFAZEJA CHUVADA DURANTE AS 12 HORAS QUE DEMOROU A PASSAGEM DA FRON-TEIRA. UMA AMIGA DEIXOU-NOS À BEIRA DA ESTRADA UNS QUILÓMETROS ANTES DA FRONTEIRA, FIZEMOS MAIS 5 KM PERPENDICULARMENTE À ESTRADA, O ZMG DE CAJADO NUMA MÃO E A BÚSSOLA NA OUTRA. ATRÁS, SEGUIA EU CON-TANDO OS KMS. CADA 120 PASSOS CORRES-PONDERIAM A 100 METROS. PARA NÃO ME PERDER IA PASSANDO AS CONTAS DE UM TER-ÇO. FIZEMOS MAIS UNS QUANTOS KMS PARA-LELOS À ESTRADA E VIRÁMOS O RUMO PARA MAIS CERCA DE 5, AGORA EM DIREÇÃO À ES-TRADA. DEPOIS DE VÁRIAS PERIPÉCIAS, QUE PODEREI CONTAR NOUTRA ALTURA, CHEGÁ-MOS À ESTRADA, PORÉM… NÃO A VIMOS PORQUE A ESTRADA ESTAVA EM OBRAS! AO TERCEIRO RECURSO ENCONTRÁMOS ENTÃO OUTRA AMIGA QUE NOS LEVOU ATÉ MADRID. TERÍAMOS AINDA DE PASSAR PARA FRANÇA O QUE ERA TAMBÉM ARRISCADO DEVIDO À PO-LÍCIA FRANQUISTA. JMG TINHA UM PASSA-PORTE OFICIAL E UMA LICENÇA MILITAR EM DIA MAS… NÃO TINHA CARIMBO NO PASSA-PORTE… OPTOU ENTÃO POR IR DE COMBOIO, NO TALGO—BEM CARO NA ALTURA! - PARA TENTAR ILUDIR A POLÍCIA. DE FACTO, O AGENTE, APÓS DAR VÁRIAS VOLTAS AOS PAS-SAPORTES, DEIXOU-NOS PASSAR!... HUFF…!!!

LUCÍLIA SALGADO

H O M E N A G E M A M A R I A N O G A G O [ 2 ] Pediram alguns amigos para contar as tais peripécias da viagem para poderem ficar arquivadas. Relato algumas de que me lembro… CUMPRE DIZER QUE ESTA PASSAGEM DA FRONTEIRA TERÁ SIDO COMPLETAMENTE ORGANIZADA POR JMG SEM APOIO DE QUALQUER APARELHO PARTIDÁRIO OU MESMO DE CONTRABANDO… ARRANJOU UM MAPA DA ZONA FRONTEIRIÇA ONDE IRIAMOS PASSAR – VILA VERDE DE FICALHO/ROSAL DE LA FRONTERA -, QUE TAMBÉM NÃO CONHECIA, E, MUNIDO DE UMA BÚSSOLA, PREPAROU A VIAGEM. QUANDO O CARRO NOS DEIXOU NA BEIRA DA ESTRADA, PERTO DA FRONTEIRA, PARTIMOS A CORTA MATO, DEBAIXO DE CHUVA E ORIENTANDO-SE PELA BÚSSOLA. NÃO ERA FÁCIL ATÉ PORQUE, EM NOITE DE LUA NOVA E COM A CHUVA A CAIR, DIFICILMENTE SE VIAM OS PLANETAS! POR ESSA RAZÃO, O CAJADO NÃO CONSEGUIU DEIXAR VER UM DESNÍVEL DE TERRENO, O JMG COLOCOU O CAJADO EM FALSO E CAIU. NÃO SE MAGOOU, MAS… PERDEU OS ÓCULOS! (NÃO SABÍAMOS QUE NESTAS COISAS OS ÓCULOS DEVEM IR AMARRADOS!). NÃO SE VIA NADA! (NÃO ACENDÍAMOS A PILHA PARA NÃO SERMOS VISTOS!). AS ÁRVORES, AO LONGE, PARECIAM QUE SE MEXIAM E FAZIAM PENSAR QUE ERAM PESSOAS. NÃO ME LEMBRO QUE OS CÃES NOS DENUNCIASSEM MAS AS VACAS FAZIAM UMA SINFONIA COM OS SEUS CHOCA-LHOS! POR FIM, DESISTIMOS DE PROCURAR OS ÓCULOS, MAS… QUANDO PONHO A MÃO NO CHÃO PARA ME LEVANTAR, DESCOBRIMOS OS ÓCULOS! CHOVIA, CHOVIA E CHOVIA. SEQUEI A ROUPA NO CORPO DUAS VEZES! CHUPAVA A ÁGUA DOS CABELOS PARA MATAR A SEDE! NUM DETERMINADO MOMENTO O ZMG DIZ-ME: “PÁ-RA!” ESTAVA NO MURO DE UM POÇO/TANQUE E, DE DESCESSE DO LADO ERRADO… NESSE MOMENTO AGARREI-ME A UMA ÁRVORE E COLHI UMA ROMÃ. PARECE QUE O ZMG NÃO GOS-TAVA DE ROMÃS, MAS COMEMO-LA A MEIAS, SENTADOS NO CHÃO. SABÍAMOS QUE DEVERÍAMOS ENCONTRAR A ESTRADA, JÁ EM ESPANHA, DO OUTRO LADO DA FRONTEIRA. MAS NÃO ENCONTRÁVAMOS. PERCEBEMOS DEPOIS QUE A ESTRADA ESTA-VA EM OBRAS UNS LARGOS METROS E NÃO PERMITIA PERCEBER ONDE ESTARIA O ALCA-TRÃO. DRAMÁTICO ERA NÃO PERCEBERMOS SE ESTÁVAMOS EM ESPANHA OU SE AINDA ESTARÍAMOS EM PORTUGAL! UM OU OUTRO PAPEL QUE ENCONTRÁVAMOS NO CHÃO ESTA-VA INDISTINTAMENTE EM PORTUGUÊS OU EM ESPANHOL! AO AMANHECER, OLHANDO AO LONGE NÃO PERCEBÍAMOS SE PASSAVA UMA ESTRADA OU SE CORRIA UM RIO! POR FIM, ESTÁVAMOS NUM SÍTIO DE CERTO MODO ELEVADO E EU DISSE “OLHA AQUI ESTE GAJO! DOU-LHE O PÃO COM CARNE?” O ZMG DESAPARECEU! DAÍ A POUCO APARECE PER-GUNTANDO “ERA UM GNR OU UM GUARDA FRONTEIRIÇO?” RI-ME: O “GAJO” ERA UM JA-VALI! TÍNHAMOS COMBINADO UM ENCONTRO COM A PESSOA QUE NOS VIRIA BUSCAR À ESTRA-DA, DE CARRO. O PRIMEIRO, ÀS 7H, OUTRO ÀS 8H E OUTRO ÀS 9H! SÓ ÀS 9 A CONSEGUI-MOS ENCONTRAR. ELA ABRIU O CAPOT DO CARRO E CANTAVA ALTO “JÁ PASSEI A ROUPA A FERRO…” OUVIA-A. ESTÁVAMOS SALVOS. FOMOS ATÉ MADRID, FICÁMOS ACAMPADOS NUM PARQUE DE CAMPISMO E FOMOS COMPRAR ROUPAS PARA IR, DECENTEMENTE, NUM COM-BOIO DE LUXO PARA PARIS! A IDEIA ERA EVITAR QUE O POLÍCIA SE INIBISSE DE LEVANTAR PROBLEMAS, EVENTUAL-MENTE INÚTEIS, NUMA CARRUAGEM DE CERTA CLASSE SOCIAL. JMG MOSTROU O PASSA-PORTE OFICIAL E, “DISTRAIDAMENTE”, DEIXOU CAIR O SEU CARTÃO DA ORDEM DOS EN-GENHEIROS. O POLÍCIA PERCORREU O PASSAPORTE VÁRIAS VEZES PROCURANDO O CA-RIMBO DE SAÍDA DE PORTUGAL, OLHOU À VOLTA NO COMBOIO E… ENTREGOU-LHE O PAS-SAPORTE.

Lucília Salgado

JMG ESTAVA EM PARIS COM UMA BOLSA DO INSTITUTO DE ALTA CULTURA PARA FAZER O

JMG acabou por estar em Paris, quase dois anos, temendo a cada momento que a Bolsa que tinha do Instituto de Alta Cultura lhe fosse cancelada uma vez que tinha um mandato de captura por parte da PIDE. Estranhamente assim não aconteceu. Mas sabia que, se viesse a Portugal, seria certamente preso. Os tempos começavam a ser de transição e a sua consideração nos meios académicos começa a ser, de algum modo, considerável.