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HORIZONTE TEOLÓGICO ANO 11 | Nº 22 | JULHO-DEZEMBRO 2012 TÉCNICA: UMA HERMENÊUTICA DA EXISTÊNCIA NO SEU TODO Horizonte Teológico | Belo Horizonte | V. 11 | N. 22 | P. 1-130 | 2012 ISSN 1677-4400

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HORIZONTE

TEOLÓGICOANO 11 | Nº 22 | JULHO-DEZEMBRO 2012

TÉCNICA: UMA HERMENÊUTICA DA EXISTÊNCIA NO SEU TODO

Horizonte Teológico | Belo Horizonte | V. 11 | N. 22 | P. 1-130 | 2012

ISSN 1677-4400

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© 2012 - Instituto Santo Tomás de Aquino

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Jornalista responsável: Purificacion Vega Garcia - MTB: 3039Conselho Editorial: Antônio Pinheiro, Cleto Caliman, José Carlos Aguiar, Manoel Godoy, Sílvia Contaldo, Wolfgang Gruen.Revisão: Helena Contaldo - ConttextoDiagramação: Lívia DuarteNormalização Bibliográfica: Iaramar Sampaio - CRB6/1684

As matérias assinadas são de responsabilidade dos respectivos autores. Aceitamos livros para recensões ou notas bibliográficas, reservando-nos a decisão de publicar ou não resenha sobre os mesmos. Aceitamos permuta com revistas congêneres.

Administração / Redação:Rua Itutinga, 300Bairro Minas Brasil30535-640 | Belo Horizonte - MG Tel.: (31) 3419-2803 | Fax: (31) [email protected]

Publicação Semestral

Impressão: Editora O Lutador

Horizonte Teológico / Instituto Santo Tomás de Aquino. v. 11, n. 22 (2º Sem. 2012) - Belo Horizonte: O Lutador, 2012-130p.

ISSN 1677-4400 Semestral

1. Teologia - Periódicos. 2. Filosofia - Periódicos. I. Instituto Santo Tomás de Aquino.

CDU: 2:1

H811

Elaborada por Iaramar Sampaio - CRB6/1684

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SUM

ÁR

IO EDITORIALTÉCNICA: UMA HERMENÊUTICA DA

EXISTÊNCIA NO SEU TODOManoel Godoy

TÉCNICA E PROGRESSOJoão Mac Dowell, SJ

HANS JONAS E MARTIN HEIDEGGER EM DIÁLOGO SOBRE A TÉCNICA

Lilian Simone Godoy Fonseca

RELIGIÃO, MORAL E TEOLOGIA: OPÇÃO PARA A REFLEXÃO DA

ÉTICA DO CUIDADOElismar Alves dos Santos

ECCLESIA SICUTI “DE UNITATE PATRIS ET FILII ET SPIRITUS SANCTI”:

ASPECTOS DE ECLESIOLOGIA DE COMUNHÃO NA LITURGIA E NOS SANTOS PADRES

Vanderson de Sousa Silva

A BÍBLIA: MÉTODOS DE LEITURA E ABORDAGENS POSSÍVEIS

Orione Silva Solange Maria do Carmo

O PREÇO DO AMANHÃ (IN TIME, 2011), DE ANDREW NICCOLBruno Castro Schröder

Helena Contaldo

RECENSÕES

NORMAS PARA COLABORADORES

LIVROS RECEBIDOS

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ISTA - Instituto Santo Tomás de AquinoCentro de Estudos Filosóficos e Teológicos

Diretor Executivo: Manoel Godoy

GRADUAÇÃO:

Filosofia (licenciatura)Coordenação: Antonio Martins Pinheiro

Teologia (bacharelado)Coordenação: Cleto Caliman

PÓS-GRADUAÇÃO (Lato Sensu):Coordenação: Cleto Caliman

Especialização para Formadores de Presbíteros Diocesanos - 360 horas / aulasJaneiro / julho / janeiro

Especialização para Formadores da Vida Religiosa - 360 horas / aulas Janeiro / julho / janeiro

Especialização em Aconselhamento Pastoral e Espiritual - 360 horas / aulas Janeiro / julho / janeiro

Especialização em Gestão de Projetos Sociais - 360 horas / aulas Janeiro / julho / janeiro

Especialização em Língua Portuguesa - 360 horas / aulas Janeiro / julho / janeiro

Mais informações:Rua Itutinga, 300 - Minas Brasil 30535-640 - Belo Horizonte - MGTelefax: (31) [email protected]

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EDIT

OR

IAL

TÉCNICA: UMA HERMENÊUTICA

DA EXISTÊNCIA NO SEU TODO

Este número da Revista Horizonte Teológico, no ano jubilar do ISTA, traz algumas contribuições de participantes da XVIII Semana Filosófica realizada em maio do corrente ano, que teve por tema “Filosofia e Tecnologia”. O pensador jesuíta Pe. João Mac Dowell, na sua reflexão sobre “Técnica e Progresso” coloca seus interlocutores frente a uma questão muito instigante: “crença na evolução da técnica como fator do verdadeiro progresso da humanidade ou criacionismo?”. No desenvolvimento do seu pensamento, Mac Dowell afirma que nem tudo que emerge como novo pode ser chamado de progresso e que este pode ser definido como uma mudança para melhor, medida por determinado padrão, em vista de determinado fim. Nessa perspectiva, pode-se medir o progresso pessoal, de um indivíduo, ou progresso social. Todo o sentido da reflexão foi alertar para a necessidade de pensar esta realidade, na sua essência, na sua inspiração mais profunda, não nos deixando arrastar simplesmente por seu dinamismo fatal. A técnica é um modo de ser, de compreender a existência no seu todo. O que importa, hoje, é libertar-nos do espírito da técnica, que nos domina e controla, ao nos transformar em dominadores e exploradores implacáveis da natureza. O progresso tecnológico não nos torna, por si mesmo, nem mais nem menos humanos. O que nos torna verdadeiramente humanos é a abertura de cada um na liberdade para o sentido da realidade, é acolher com gratidão o dom da existência, correspondendo fielmente aos apelos de seu destino.

Manoel Godoy

Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.22, p.5-8, jul./dez. 2012.

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6 | Já a professora visitante da Universidade Federal de Minas

Gerais, Lilian Simone Godoy Fonseca, tomou dois autores, Hans Jonas e Martin Heidegger, e os confrontou com seus conceitos sobre a técnica. Afirma ela: a técnica está presente desde a aurora da humanidade, porém, nunca como então, a técnica se converteu num elemento tão onipresente e absolutamente indispensável à vida humana e extra-humana. E alertou: a técnica tem seu lado luminoso e seu lado obscuro. Assim, está posta também a questão da ética para uma sociedade tecnológica. Como abordar o necessário controle do homem sobre a técnica?

O professor da Faculdade de Filosofia e Teologia de Goiás, Elismar Alves dos Santos, ao desenvolver o tema “Religião, moral e teologia: opção para a reflexão da ética do cuidado”, traz um contributo à questão da ética bastante significativo. Partindo da perspectiva de Kant, que afirma que a moral conduz à religião, mas a religião não conduz à moral, o autor não esvazia a significância da religião, mas esta pode se constituir num espaço imprescindível para a vivência de uma ética do dever. Por outro lado, o autor enfrenta a problemática teológica, afirmando que, com a redefinição do conceito específico de teologia, Kant abre a dupla passagem do conhecimento: da ciência da natureza à moral e da moral à religião, dando contornos nítidos da racionalidade da religião. Em tempos de emocionalidade, ligar religião à razão é um desafio que está posto: “uma dose de racionalidade proporciona ao ser humano a capacidade de refletir sobre o limite e o alcance da religião. O fracasso da religião ocorre a partir do momento em que a religião distancia-se da razão.” Por fim, deixa claro que a relação entre ética, moral e religião, sob o prisma de Kant, pode jogar luzes para uma ética do cuidado, ética da alteridade como imperativo último para o agir.

A reflexão de Vanderson de Sousa Silva, mestrando da PUC-Rio, sobre a eclesiologia da comunhão nos ajuda a resgatar a dimensão trinitária da Igreja, como fizeram os padres conciliares na Constituição Dogmática Lumen gentium, ao assumir a definição eclesiológica de Cipriano de Cartago de que a Igreja é como “plebs adunata de unitate

EDITORIAL

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| 7Patris et Filii et Spiritus Sancti”. Dentre outros desenvolvimentos, resgata também o equilíbrio entre o Pão da Palavra e o Pão Eucarístico, tão maltratado na praxe eclesial atual, onde a volta à “devotio moderna” exalta tanto a hóstia consagrada, deixando na obscuridade a força da Palavra. Passando pela reflexão dos Santos padres, o autor afirma que a patrística não separava a Igreja de Cristo, nem a Igreja da Eucaristia, fazendo emergir uma eclesiologia unida ao Mistério de Cristo e da Eucaristia. Mostra a dinâmica que há do Sacramentum unitatis, a Eucaristia, para a vivência da communio. Nessa perspectiva, não só o pão e vinho são eucaristizados, mas também a Assembleia que invoca o Espírito sobre as espécies.

Por fim, Orione Silva, presbítero, e Solange Maria, leiga, ambos catequetas, abordam a questão imensamente pertinente nos dias de hoje sobre métodos de leitura e abordagens possíveis da Bíblia. Frente à avalanche fundamentalista que assola o mundo religioso, texto bastante oportuno. Ao diferenciar a leitura literária da leitura fundamentalista, afirmam os autores: “O perigo do fundamentalismo está exatamente em desconsiderar o texto como literatura humana, como se ele tivesse caído pronto do céu, sem a mediação humana. Parece que esse risco é bem remoto na leitura literária”. Essa perspectiva nos ajuda a entender o que os autores resumiram numa frase tão feliz: “Se a religião cristã é religião do livro, ela é antes de tudo religião da hermenêutica”.

Nossos leitores ainda poderão ser instigados à prática da boa leitura por meio de duas recensões. Uma delas trata da série de publicações do teólogo Bruno Forte, editada pelas Paulinas. A professora do ISTA, Áurea Marin, passeando pela coleção, nos desperta para o prazer de ler os livros deste teólogo que trata das palavras com poesia e profundidade. E o Pe. Cleto Caliman, diretor geral do ISTA, nos apresenta a pequena obra de um dos mais lidos dentre os teólogos da atualidade, o espanhol José Pagola, sobre o Pai Nosso. Como o próprio Cleto nos diz, esse texto visa nos ajudar a superar a repetição mecânica dessa oração e a reforçar nosso desejo de caminhar nas sendas do Senhor.

Manoel Godoy

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8 | Temos a certeza de que ler os textos desta edição da Revista

Horizonte Teológico colocará os leitores em sintonia com as comemorações do ano jubilar do ISTA.

Pe. Manoel GodoyDiretor Executivo do ISTA

Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.22, p.5-8, jul./dez. 2012.

EDITORIAL

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TÉCNICA E PROGRESSO1

João Mac Dowell, SJ

Existe verdadeiro progresso na história da humanidade? A técnica é um fator de progresso? Hoje em dia há uma consciência difusa dos riscos que a técnica oferece. Nem por isso as perguntas que acabo de levantar deixarão de causar estranheza em muitos. Parece evidente que a humanidade tem progredido através dos tempos, desde o aparecimento do Homo erectus ou do Homo sapiens, e continua a progredir, justamente em virtude das conquistas da ciência e da técnica. Tal evidência só poderia ser negada pelo criacionismo ingênuo, hoje em dia, aliás, novamente em voga, segundo o qual todas as espécies naturais de viventes, inclusive o homem, permanecem imutáveis desde quando foram criadas por Deus. Ora, é a crença na evolução da técnica como fator do verdadeiro progresso da humanidade que pretendo questionar, naturalmente, sem qualquer concessão ao dito criacionismo.

A resposta à pergunta inicial implica, em primeiro lugar, suficiente clareza a respeito da noção de progresso. Que significa propriamente progresso? Todo progresso supõe uma mudança que se realiza no tempo. Mas o surgimento de algo novo não representa necessariamente um progresso. O sol ou a energia dos raios solares esquentou a água que estava fria. A mangueira produziu seu fruto. Trata-se do resultado da ação de certas causas naturais, regida pelas

1 Palestra proferida na XVIII Semana Filosófica do Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA) em 15 de maio de 2012.Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.22, p.9-26, jul./dez. 2012.

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10 | leis da matéria. Mas não se pode falar aqui de progresso. Também no conjunto da natureza observam-se novidades. A teoria científica da evolução, na sua formulação mais ampla, afirma não só que toda a vida atualmente existente no planeta Terra desenvolveu-se a partir de organismos primitivos unicelulares, mas também que o próprio universo físico surgiu há cerca de 13,7 bilhões de anos pela explosão (Big Bang) e expansão progressiva de um núcleo energético extremamente condensado. Nesse processo surgiram sucessivamente as partículas elementares, os átomos dos elementos, as moléculas, as galáxias, as estrelas e seus planetas. Será que esta complexificação crescente da matéria e da vida constitui um progresso? A passagem no processo evolutivo da bactéria para a borboleta representa um genuíno progresso? Em que sentido? Se se trata simplesmente da capacidade de conservação da vida, há arqueobactérias, muito mais resistentes às condições ambientais extremas (temperatura, pressão e natureza do meio físico envolvente) do que qualquer borboleta. A ciência, enquanto tal, constata e explica os fatos, mas não pode emitir juízos de valor. Ela pode reconhecer que o ser humano possui certas capacidades, a linguagem articulada p.ex., que não se encontram nos outros primatas. Mas não lhe compete dizer que o ser humano é mais perfeito do que o chimpanzé ou o morcego. Este também possui capacidades inexistentes no homem.

De fato, a distinção entre mais ou menos perfeito, melhor ou pior, implica uma avaliação, fundada em um padrão ou medida. E é exatamente esta avaliação que caracteriza a ideia de progresso. Tal noção se inscreve numa abordagem teleológica da realidade, que lhe confere um sentido e orientação. Há progresso quando num lapso de tempo algo se aproxima mais de seu padrão. Tal meta pode ser estabelecida por uma decisão do indivíduo ou de uma coletividade. Nosso objetivo será, por exemplo, erradicar a malária no Brasil. Nesse processo poderá haver progresso ou regresso ou também estagnação ao longo do tempo. Há, porém, elementos que permitem verificar se a mudança ocorrida em determinado período foi positiva ou negativa. Algo análogo acontece também na própria natureza. Trata-se de fins que correspondem à realização das capacidades próprias de cada tipo

TÉCNICA E PROGRESSO

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| 11de ente. Os entes naturais tendem por si mesmos à realização de suas capacidades. Tal realização constitui o seu bem. Para o ser humano, p.ex., a saúde, a liberdade, a paz, são bens ou valores, que podem ser efetivados em graus diversos respectivamente no organismo físico e no organismo social. Pode-se falar então de progresso em cada um desses setores da realidade humana. Mas, como foi dito acima, essas considerações estão fora do campo das ciências. A medicina p.ex. desenvolve conhecimentos e técnicas, que explicam em que consiste a saúde do organismo e fornecem os meios para sua preservação ou restauração, que é o seu objetivo. O valor da saúde é, porém, um pressuposto, que a medicina não estabelece por si mesma. O mesmo vale da paz e da liberdade. O fim, que se pretende alcançar mediante o progresso, é, por definição, algo ainda não alcançado e que, portanto, enquanto tal, não existe, por enquanto, na realidade. Não é um fato, que possa ser constatado e explicado pelo conhecimento científico. Trata-se de um valor, descoberto no autoconhecimento que a consciência humana tem implicitamente e que pode ser explicitado sistematicamente pelo pensamento filosófico. Na verdade, nem todas as correntes filosóficas admitem a objetividade e universalidade de tais valores, como fazemos aqui.

Estabelecida a noção de progresso, como uma mudança para melhor, medida por determinado padrão, i.e. em vista de determinado fim, fica claro que há diferentes linhas de possível progresso em função dos diferentes bens ou valores, estabelecidos como padrão. Restringindo a investigação aos valores especificamente humanos, poderemos considerá-los em primeiro lugar do ponto de vista individual e subjetivo. O indivíduo, além do crescimento biológico nos primeiros anos de sua vida, tende a desenvolver-se em diferentes dimensões de sua personalidade. Trata-se da aquisição de qualidades ou valores, como p.ex. informações, experiência da vida e do trato com os outros, compreensão da realidade no seu conjunto, habilidades técnicas próprias da vida quotidiana ou da atividade profissional, equilíbrio e unificação interior, disposições de caráter, como a constância e a coragem, e atitudes propriamente morais, a honestidade, a justiça, a solidariedade etc. Convém notar, contudo, que o progresso do indivíduo

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12 | nestas linhas, ainda que possível e, de certo modo, espontâneo, não é inevitável, nem necessariamente contínuo, nem irreversível, de tal modo, aliás, que seu ápice não coincide sempre com o final da vida. Sob muitos aspectos, o envelhecimento, quando acontece, pode significar um declínio.

Todavia, o que nos interessa aqui não é tanto o progresso humano individual e subjetivo, mas o seu aspecto objetivo e social. A humanidade, no seu conjunto, tem progredido ao longo da história? Nossa resposta imediata seria sim. Pelo menos, sob vários aspectos, dentre os quais se destaca o tecnológico, este progresso parece hoje claramente constatável. No entanto, nem sempre a história humana foi assim compreendida. Na antiguidade prevalecia o mito da idade de ouro, correspondente aos primórdios da humanidade: o curso da história era interpretado, não como progresso, mas como decadência em todos os sentidos até a ruína final. Por outro lado, os gregos tinham uma imagem cíclica do tempo, concebido como o eterno retorno do mesmo, o que exclui evidentemente qualquer progresso global. A ideia de progresso pressupõe uma concepção linear do tempo, que surgiu apenas com a visão bíblica da história entendida como história da salvação. O mundo atual não durará para sempre. Ele se encaminha para um fim, o destino final da humanidade. Este desfecho, que imprime um sentido a toda a história, coincide com a segunda vinda de Cristo, concomitante à criação do novo céu e da nova terra.

Entretanto, a perspectiva escatológica cristã não promoveu imediatamente a ideia de progresso na história humana, no sentido de um aperfeiçoamento crescente da humanidade. Tal ideia emerge apenas na modernidade com a secularização da visão cristã da salvação. A realização plena do gênero humano deixa de ser entendida como resultado da ação salvadora de Deus e passa a ser concebida como meta intra-histórica, a ser alcançada progressivamente pelos esforços e pela criatividade do próprio homem. Cabe a este, portanto, superar toda a negatividade ainda existente no mundo, a fim de promover a felicidade plena e universal, mediante a submissão

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| 13crescente da realidade aos interesses humanos. A viabilidade de tal projeto repousa, segundo a visão do homem moderno, na sua capacidade de assumir as rédeas de seu destino, determinando racionalmente os seus fins e os meios de alcançá-los. Esta esperança surgiu concretamente no século XVII com as possibilidades criadas pela nova racionalidade, própria da ciência da natureza, de caráter matemático e experimental, cujas bases Galileu acabava de lançar. É o que proclama com entusiasmo o filósofo inglês Francis Bacon em sua obra Nova Atlantis (1624). Ele espera do desenvolvimento do conhecimento científico, orientado para o bem-estar da humanidade, uma fantástica transformação das condições da existência. Eis o elenco das conquistas tecnológicas, que prevê: “Prolongar a vida, restituir, em alguma medida, a juventude. Retardar o envelhecimento. Curar doenças consideradas incuráveis. (...) Aumentar e educar o cérebro. (...) Fabricar novas espécies. Transplantar uma espécie para outra. (...) Controle da imaginação sobre o corpo, ou sobre o corpo de outrem. (...) Produzir alimentos novos a partir de substâncias que atualmente não são utilizadas” e assim por diante (Cf. BOURG, 1998, p.39).

A utopia de Bacon, assumida pelo Iluminismo no século XVIII, está na origem da ideologia do progresso técnico-científico que prevaleceu no século XIX e em grande parte do século XX. Muitos de seus sonhos são hoje impressionante realidade ou, pelo menos, já não estão fora do horizonte da ciência contemporânea. Mas a pergunta fundamental continua de pé: Qual o significado de todo este progresso tecnológico? Ele beneficia a humanidade? Ou, mais geralmente: a humanidade no seu conjunto goza hoje de melhores condições de vida? Ou ainda: o ser humano tornou-se melhor, mais perfeito, mais realizado do que ontem, do que séculos atrás? Para responder a tais perguntas faz-se mister distinguir vários aspectos de um eventual progresso do gênero humano ao longo de sua história. Além do conhecimento tecnocientífico, acumulado na memória coletiva dos povos, e do instrumental tecnológico por ele gerado, é necessário examinar o que acontece noutros campos. Refiro-me às expressões artísticas, ao pensamento filosófico, às instituições políticas e sociais, com as normas jurídicas que as regulamentam, ao

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14 | ethos, ou seja, aos costumes e valores, relativos ao comportamento propriamente moral, vigentes nas sociedades humanas. Em muitos desses âmbitos podem identificar-se padrões e, por conseguinte, medir eventuais progressos e regressões.

Certamente no campo das instituições políticas e sociais, ainda que por vias não lineares e pouco transparentes, podem-se detectar verdadeiros progressos na consciência coletiva da humanidade. É hoje praticamente universal, no plano teórico e legal, o reconhecimento da dignidade inalienável da pessoa. Para quem assume este padrão na medida das relações humanas, é inegável o progresso no campo dos direitos humanos, especialmente da mulher e da criança, com a afirmação da igual oportunidade de todos no acesso à educação, aos meios de tratar da saúde, ao trabalho e às diversas profissões, bem como à participação na vida política. Manifestações de tal progresso são ainda a condenação pela opinião pública de qualquer discriminação racial, social, cultural, religiosa, ou também da escravidão, da tortura, da guerra e da lei do talião. Entretanto, este aperfeiçoamento da legislação e das convicções vigentes na sociedade, ainda que seja um bem em si mesmo, não significa necessariamente a melhoria das relações efetivas entre as pessoas e grupos humanos, ou seja, um progresso naquilo a que visam todos esses princípios e medidas legais, a justiça e a paz. Não obstante a abolição do sistema escravocrata praticamente em todo o mundo, não obstante a garantia das liberdades cívicas e a vigência do estado de direito e da democracia representativa na maioria dos países, bem como de tantas outras conquistas sociais, será que a situação da humanidade no seu conjunto melhorou? Haverá hoje mais respeito mútuo, maior satisfação, melhor qualidade de vida, um grau superior de realização humana – fiquemos em nosso país, para facilitar a comparação – frente ao que sucedia p.ex. duas gerações atrás, no Brasil de nossos avós, ou na época do Império, ou ainda entre as tribos indígenas anteriores à chegada dos portugueses? É duvidoso, a meu ver. E isso porque, como se mostrará mais adiante, a realização da pessoa humana, embora condicionada pelas estruturas sociais e culturais, em última análise, as transcende.

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| 15Passemos agora ao campo das artes e da filosofia, duas das

mais elevadas manifestações do espírito humano. Desde Parmênides e Platão até nossos dias, quantos sistemas de pensamento foram excogitados, quanto aprofundamento na análise dos diversos reinos de fenômenos, quantas novas ideias e interpretações da realidade, enriquecendo o patrimônio filosófico da humanidade! Não há dúvida de que houve ampliação do conhecimento filosófico no plano dos conteúdos elaborados e dos métodos e perspectivas desenvolvidos na abordagem da realidade. Nesse sentido, pode-se falar de progresso. E, no entanto, a compreensão que Platão alcançou da verdade das coisas seria menos profunda do que a de Descartes ou de Wittgenstein? Será que Tomás de Aquino é maior filósofo do que Aristóteles, Kant do que Tomás de Aquino, Hegel do que Kant, e assim por diante, na sucessão dos períodos da história da filosofia ocidental? A resposta, bastante consensual entre os filósofos, é que na filosofia, ao contrário do que acontece com o conhecimento científico, não há propriamente progresso. Esse fato, que chega a escandalizar os leigos no assunto, longe de ser um demérito, como pensam, constitui um atestado da posição superior do pensar filosófico na escala dos valores humanos.

Semelhante é a situação da arte. Também aqui, ainda no âmbito do mesmo gênero de arte, a poesia, a música, a pintura, a escultura ou a arquitetura, é difícil estabelecer uma comparação entre obras-primas de diversas épocas e culturas. Não que não haja um padrão objetivo, embora quase indefinível, que permita, sob certas condições, distinguir universalmente entre uma obra-prima e produções de menor ou de nenhum valor artístico. Certamente, Beethoven na composição da Nona Sinfonia utilizou recursos musicais mais sofisticados que não estavam à disposição dos autores anônimos das melodias do canto gregoriano. Mas haverá progresso entre estas criações medievais e a obra do genial compositor alemão, entre a tragédia Antígona de Sófocles e o King Lear de Shakespeare, entre o templo egípcio de Karnak e a catedral gótica de Chartres? Certamente não. São manifestações supremas do belo de diferentes épocas e estilos. Nem por isso o seu valor cresce com a posterioridade no tempo.

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16 | Focalizemos uma última dimensão da realização do ser

humano, aquela que, a meu ver, define, em última instância, a sua humanidade. Trata-se do ethos, entendido como atuação da liberdade humana no horizonte do bem, segundo a razão. A perfeição moral é, na verdade, o fim último do ser humano justamente enquanto racional e livre. Este bem se encarna historicamente nos costumes e normas morais próprias de cada sociedade e cultura. Tais normas podem, de fato, adequar-se mais ou menos às exigências da razão prática. Como foi visto a propósito das instituições sociais, costuma haver uma especificação progressiva de tais exigências da razão na consciência moral coletiva. Algo que não era percebido como mau ou injusto passa a sê-lo mais tarde, e com razão. Entretanto, o progresso nesta moralidade objetiva, ainda que importante, não determina, em última análise, o valor moral do ser humano. O julgamento da consciência pessoal é o que constitui definitivamente a qualidade ética do agente. Utilizaremos, para ilustrar este princípio, um exemplo, fornecido na Bíblia pela personalidade estilizada de Abraão. Além de sua esposa Sara, a quem muito ama, mas que é estéril, toma como concubina a escrava Agar, de quem tem um filho, Ismael. A poligamia e o concubinato, tidos por nós, justificadamente, como moralmente ilícitos, enquanto ofendem a dignidade da mulher, eram práticas aceitas pelas normas morais daquele tempo. Abraão age, portanto, moralmente bem, de acordo com a sua consciência. Na perspectiva bíblica, ele é mesmo uma figura exemplar, que realiza em grau elevado o ideal moral e humano. Embora seu comportamento, do ponto de vista da moralidade objetiva, seja deficiente, seu valor moral, sua adesão ao bem não é menor do que a nossa hoje, simplesmente porque reconhecemos o caráter monogâmico do matrimônio.

Com efeito, o ato livre da escolha pessoal, que recebe propriamente a qualificação moral, transcende todos os condicionamentos históricos. Estes podem ser mais ou menos favoráveis, mas não determinam a decisão livre, de modo que a bondade ou maldade moral do ser humano prescinde de sua situação histórica. Ainda que o hábito p.ex. possa condicionar internamente o comportamento humano, facilitando a decisão num ou noutro

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| 17sentido, cada ação livre é, na verdade, um começo absoluto, indeterminável e imprevisível antecipadamente. Não podemos determinar exatamente em que momento do processo evolutivo os nossos antepassados se tornaram capazes de sentirem-se responsáveis por seu destino, situando-se livremente diante de suas consciências no horizonte absoluto do bem e do mal. O certo é que desde esse momento foram propriamente humanos. Aliás, também no plano do desenvolvimento individual chega um momento, difícil igualmente de identificar, no qual a pessoa assume a consciência da responsabilidade de sua escolha, atuando as suas disposições inatas. Daí por diante pode livremente aderir ou não ao bem.

Não se pode dizer, portanto, que os seres humanos são hoje, sob este aspecto, melhores ou piores do que no passado, nem que a humanidade no seu conjunto tende a ser cada vez mais perfeita moralmente. Ora, o valor moral, enquanto realização de sua liberdade no bem, é o que qualifica definitivamente o homem, o que o torna mais humano. Também o conhecimento verdadeiro do sentido da existência e a autêntica obra de arte são valores que realizam o ser humano num plano superior. Ao contrário das estruturas sociais, tanto do conhecimento tecnocientífico como das instituições jurídicas e políticas, tais atividades não são meros meios para conseguir algo mais, mas fins em si mesmos. No entanto, realizam apenas dimensões setoriais da natureza humana, na sua abertura ao todo do ser. O conhecimento da verdade, a sua expressão artística, dignificam certamente a pessoa, tornam-na mais humana, sob tais aspectos. Mas seu valor é relativo, já que a grandeza do saber e da produção artística não qualificam globalmente o ser humano. É a sua qualidade ética que confere propriamente a grandeza a uma pessoa, quer ela sobressaia, quer não em outras dimensões da existência.

Em outras palavras, a realização última da humanidade, enquanto situada na esfera moral, tem um caráter estritamente pessoal. Essa realização se dá – não é o caso de justificá-lo aqui – na relação com o outro, no amor de doação, que é a máxima expressão do valor moral. Certamente, o ser humano é essencialmente

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18 | social, também no sentido de que não pode existir humanamente senão enquanto inserido nas estruturas de uma sociedade. Seu desenvolvimento, também do ponto de vista ético, é radicalmente condicionado por tal contexto. Daí o significado humano do progresso nesses setores. Costumes sociais objetivamente mais humanos, uma legislação mais justa, uma visão do mundo mais profunda, são conquistas inestimáveis. Contribuem decisivamente para a realização do ser humano como tal. Entretanto – é preciso repetir – uma moralidade pública elevada, leis justas, princípios sábios, não tornam necessariamente o homem bom. Mesmo que se dê, num mundo cada vez mais globalizado, uma evolução positiva nestas dimensões objetivas da cultura, o que não é nada certo, isso não seria uma garantia de que nossos pósteros serão mais humanos do que nós. Aliás, um ethos social elevado só pode desenvolver-se e subsistir na medida em que os membros de tal sociedade sejam, no conjunto, proporcionalmente honestos, justos e sábios.

Se esta é a relação entre aspectos tão nobres da cultura e o verdadeiro progresso humano, que dizer do conhecimento tecnocientífico e da própria tecnologia, enquanto instrumentos de domínio sobre a realidade natural e social. Fica claro que o grande rodeio que demos foi indispensável para uma abordagem lúcida da questão, que diretamente nos interessa: técnica e progresso. Se o critério for aqui a capacidade de transformação da natureza e da sociedade segundo seus propósitos, não há dúvida de que o homem de hoje possui instrumentos de intervenção no mundo material e humano muito mais poderosos do que a pedra lascada e a comunicação por fogueiras ou por trompas de chifre dos nossos primeiros antepassados. Esse progresso corresponde basicamente à descoberta progressiva do funcionamento da natureza, de suas leis e potencialidades. Ele foi obtido através da experiência refletida das sucessivas gerações humanas e, mais ainda, do novo tipo de conhecimento sistemático, próprio da ciência moderna.

Mas este poder crescente do homem sobre seu mundo constitui como tal um benefício para a humanidade? Já vimos que a verdadeira realização da humanidade consiste na atitude ética

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| 19dos seus membros, sem a qual não é possível estabelecer uma convivência justa, solidária e pacífica entre eles. Ora, o progresso nesta direção não depende diretamente do grau de recursos técnicos e econômicos de que se dispõe. Um nível satisfatório de tais recursos é, sem dúvida, condição para a própria sobrevivência do homem e, mais ainda, para o desenvolvimento de uma vida humana digna, inclusive sob o aspecto ético. No entanto, uma pessoa pode manter um elevado padrão moral ainda sob as condições mais adversas, na miséria, na enfermidade, no meio de maus tratos. Mas dificilmente poderá desenvolver uma atitude ética razoável tendo nascido e vivido longamente sob tais condições. Daí a necessidade para o ser humano de dispor de recursos materiais suficientes para a sua realização. Trata-se dos bens capazes de satisfazer as necessidades vitais, que não são supridas imediatamente pela natureza, sejam as mais básicas, em termos de alimentação, vestuário, habitação, sejam outras que vão se impondo com a complexificação dos estilos de vida. Ora, é através da intervenção técnica na natureza, para modelá-la segundo seus objetivos, que o ser humano gera tais recursos indispensáveis para sua subsistência e desenvolvimento. Nesse sentido a técnica, enquanto adequação da natureza à satisfação das necessidades humanas, é uma dimensão essencial da existência, da qual não se pode prescindir. Todavia, enquanto constitui uma dentre outras linhas que devem convergir para a realização do ser humano, o seu valor humano não depende do poder maior ou menor de intervenção na natureza que ela confere, mas de sua contribuição para o aperfeiçoamento da qualidade de vida da humanidade.

Neste sentido, há quem entenda a técnica como uma grandeza neutra, um instrumento nas mãos do homem, que pode ser usado bem ou mal, para construir ou para destruir, para a salvação ou para a perdição da humanidade. É o caso p.ex. da energia atômica. Pode ser utilizada em usinas nucleares para suprir o potencial energético necessário para o funcionamento da sociedade moderna. Trata-se então de uma finalidade legítima, a produção de energia elétrica para a satisfação de importantes necessidades humanas. Acontece, porém, que a mesma tecnologia pode servir também para a montagem de

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20 | um arsenal nuclear, capaz de destruir toda a raça humana. Nessa perspectiva tudo depende do fim que o ser humano tem em vista no emprego de tais meios, considerados, em si mesmos, inofensivos. Mas serão tão inofensivos assim? Hoje em dia, depois dos desastres de Chernobyl e, mais recentemente, de Fukushima, pouca gente ainda acredita na inocência da tecnologia nuclear, independentemente do uso que dela se faz. Mas não é apenas o risco de acidentes nos reatores nucleares que torna problemática essa tecnologia. O próprio lixo atômico, ou seja, os resíduos radioativos resultantes do processo de fissão nuclear, além da longevidade, são altamente tóxicos e prejudiciais à saúde, de modo que seu armazenamento, sobretudo a longo prazo, é um problema até hoje sem solução satisfatória. A questão da energia atômica não se resolve, portanto, no nível da intenção, da atitude moral, em função do fim bom ou mau de seu emprego. Trata-se dos efeitos inerentes a essa tecnologia como tal.

Alguém poderia alegar que o potencial destrutivo da energia nuclear é um caso especial, uma exceção, que não vale para o conjunto da tecnologia. Consideremos então uma das técnicas mais elementares e, ao mesmo tempo, mais significativas por seus benefícios na história da humanidade: a agricultura. Jared Diamond em um livro recente, “O terceiro chimpanzé: a evolução e o futuro do ser humano”, apresenta o resultado de pesquisas científicas rigorosas a respeito do que chama “os benefícios ambivalentes da agricultura” (DIAMOND, 2010. p. 199). Não é possível apresentar aqui nem por alto a argumentação que ele usa para provar a sua tese. Baste referir a conclusão a que chega. Os grupos humanos originários eram caçadores-coletores: viviam da caça de animais selvagens e da coleta de plantas silvestres. A agricultura, ou seja, a domesticação e cultivo de plantas, surgiu apenas há cerca de 10.000 anos, em diferentes regiões, e rapidamente se espalhou. Ela foi adotada porque é uma maneira eficiente de obter mais alimentos com menor esforço. Com ela vieram o aumento da produção e o seu armazenamento, mas também a extrema desigualdade social e uma série de doenças epidêmicas, que afligem a existência humana até hoje. Esta é a tese provocante do autor. A agricultura multiplicou os alimentos, mas também as bocas

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| 21para alimentar, já que levou a crescente adensamento populacional. Com isso, prejudicou a saúde, já que reduziu a alimentação dos agricultores a poucas plantas em contraste com a dieta variada e mais rica dos coletores. Além disso, a dependência de um ou de poucos tipos de alimentos aumentou o risco de fome e subnutrição, no caso, não raro, de perda da colheita. Finalmente, grande parte das doenças infecciosas só pode transmitir-se em populações densas e sedentárias, como as que surgiram com o sistema agrícola. Por outro lado, o crescimento dos grupos humanos exigiu a diferenciação das funções sociais, levando à constituição de elites não produtivas e bem alimentadas à custa de massas subnutridas e oprimidas. Segundo o autor, estes males provocados pela agricultura são confirmados quer pela pesquisa atual relativa à alimentação, saúde e gênero de vida dos poucos grupos de caçadores-coletores ainda existentes, inclusive no Brasil, quer pela “paleopatologia”, ou seja, a pesquisa de sinais de doenças nos restos mortais de populações antigas. Isso não quer dizer que a vida dos povos primitivos tenha sido, ou seja, uma maravilha. Do ponto de vista das condições de vida, a nossa situação de universitários é certamente melhor do que a deles. Mas é preciso reconhecer que, no mundo atual, apesar de tudo, pertencemos a uma elite entre milhões de seres humanos que vivem abaixo do nível de pobreza. Portanto, a agricultura provocou a melhoria da qualidade de vida de alguns, mas, se as considerações de Diamond (2010) são válidas, não beneficiou a maioria. Em todo caso, elas dão o que pensar.

Há muitos outros exemplos desconcertantes de progresso técnico, i.e. de crescente domínio e exploração das forças da natureza, com resultados duvidosos, sobretudo a longo prazo. Um deles, semelhante à agricultura por sua repercussão histórica, é a revolução industrial, fundada basicamente na substituição da força motriz humana e animal por formas de energia, térmica, sobretudo, capazes de mover máquinas muito mais poderosas e eficazes do que os instrumentos manejados simplesmente pela força muscular. Os benefícios dessas invenções em termos da multiplicação de todo tipo de produtos, bem como de facilitação do transporte e comunicação,

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22 | são incalculáveis. No entanto, sem falar dos imensos problemas sociais provocados pela industrialização, essas novas técnicas trouxeram consigo, como hoje se pode constatar, a crescente poluição do meio ambiente, que tem produzido alterações climáticas de trágicas consequências. Aqui, de novo, não se trata do mau uso da tecnologia, mas de efeitos que são inerentes ao seu próprio emprego e ao dinamismo que ele implica. A ambiguidade da técnica não depende, portanto, apenas do fato de ela poder ser orientada pelo homem para o bem ou para o mal. Reside na sua própria condição de intervenção na natureza com alteração de seus processos espontâneos. E a esperança de que a tecnologia, por si mesma, oferecerá sempre novos recursos, capazes de anular as consequências negativas de seu uso, também não parece justificada. Haja vista a constatação de que a ação dos antibióticos, pelo próprio mecanismo da seleção natural, provoca o surgimento de micro-organismos cada vez mais resistentes, numa espiral que parece levar a um ponto de esgotamento a capacidade humana de suplantar as artimanhas sempre renovadas da natureza.

Não pretendemos deter-nos na análise do problema ecológico, com suas implicações éticas, nem de outros impasses decorrentes do desenvolvimento tecnológico como tal. O que nos interessa é apontar, como fizemos, para a insuficiência da concepção instrumental da técnica. Ela não é simplesmente uma realidade neutra que compete ao ser humano controlar e orientar construtivamente. Tampouco seus riscos se situam simplesmente no nível das condições materiais de sobrevivência do ser humano no planeta Terra. Como muitos já indicaram, a humanidade se encontra hoje diante de um desafio sem precedentes na sua história. O ser humano tem atualmente o poder, resultante do progresso técnico, de aniquilar a própria raça humana e, eventualmente, todo tipo de vida orgânica, no planeta. Essa catástrofe pode acontecer subitamente através de uma guerra nuclear ou pode ser o resultado final de um processo de destruição da biosfera em virtude de mudanças climáticas e ambientais já em curso. Entretanto, esses riscos podem, em princípio, ser evitados, enquanto dependem de decisões humanas. Há, porém, uma ameaça muito mais séria atuante no bojo do próprio processo de

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| 23desenvolvimento tecnológico. Sim, mais sério do que a destruição de toda a humanidade é para o homem a perda de sua própria essência. A estranheza dessa afirmação desaparece se compreendermos que a vida não é o valor supremo. Não poucas figuras humanas exemplares ao longo da história não só o compreenderam, mas levaram até as últimas consequências esta convicção, desde Sócrates e Jesus Cristo até uma plêiade de anônimos, que preferiram sacrificar a própria vida a violar a sua consciência, a trair a missão a que se sentiram chamados, a renunciar à liberdade sua ou de seu povo.

Mas em que sentido a tecnologia põe em risco a própria essência do ser humano? Este risco não vem dos produtos da técnica, como tais, da aparelhagem cada vez mais sofisticada, fabricada de acordo com procedimentos ditados pela ciência moderna. Tampouco reside no próprio procedimento técnico enquanto adaptação da natureza ao uso humano, desde que se respeite a índole de cada coisa. O caráter problemático da técnica surge justamente com a modernidade, à medida que o ser humano se arvora em dono da natureza, reduzindo-a simplesmente a algo puramente disponível, sem consistência própria, sob a forma de matéria prima e de recursos energéticos a serem integrados em seus projetos. É o que aponta Martin Heidegger (2012) ao caracterizar a essência da técnica como controle. Colocar inteiramente sob controle as forças da natureza e as potencialidades humanas num sistema fechado e autorregulado é o espírito do mundo contemporâneo, que, por isso mesmo, pode ser denominado de civilização da técnica. Entretanto, a atitude dominadora, própria do homem da técnica, não corresponde a uma escolha sua. Trata-se do destino histórico da cultura ocidental, que gerou o mundo atual, o horizonte a partir do qual o homem moderno compreende a si mesmo e tudo mais. Enquanto imerso nesta perspectiva, que lhe é ditada, ele não é capaz de alçar o seu olhar acima de seus objetivos imediatos para acolher no pensar a verdade de sua situação. Ele é então levado de roldão pelo dinamismo intrínseco do sistema tecnológico que reivindica sem cessar a dominação crescente do mundo natural e social. Neste sentido, ao pretender controlar a natureza, o homem cai sob o controle de sua própria técnica. Ao encarar toda a realidade

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24 | tão somente como recurso disponível, corre o risco de tornar-se ele também apenas recurso humano, peça na grande engrenagem do complexo tecno-econômico-mediático, pervertendo a sua própria essência.

Todavia, não estamos diante de uma pura fatalidade. Pelo contrário, no horizonte existencial da cultura contemporânea, que o envolve, o ser humano se encontra diante de uma escolha radical: adequar-se simplesmente ao mundo da técnica ou abrir-se para a essência da técnica e experienciar, assim, a sua própria essência na correspondência constitutiva com a verdade do ser. Tal é a decisão de vida ou morte com a qual se confronta hoje o ser humano entendido como liberdade radical: ser ou não ser propriamente ele mesmo. Ou resvalar na perversão de sua essência humana, passando a existir na superfície das coisas como mero robô, se for o caso, muito satisfeito com os divertimentos que lhe brindariam tecnologias cada vez mais sofisticadas, ou dispor-se a acolher fielmente no pensar os apelos que nos chegam das profundezas do mistério da existência. Na verdade, a hipótese de uma vida satisfeita na superficialidade dos jogos da tecnologia é irreal. Com efeito, tão somente a disposição de abrir-se no pensar a revelação do sentido do mundo da técnica, correspondendo lucidamente ao seu destino atual, é capaz de proporcionar as decisões indispensáveis para salvar a humanidade também da pura destruição por um cataclismo ecológico ou nuclear. É desta abertura atenta e obediente à verdade, que se manifesta no horizonte global de sua existência, que poderá surgir um novo começo para a humanidade. Só à medida que entrar na posse da própria essência, como guarda da verdade do ser, o ser humano poderá escapar ao controle da técnica, condição para evitar os riscos fatais nela embutidos.

Afinal de contas, estamos condenando a técnica, o progresso tecnológico? De modo algum. A exposição feita não pretendeu emitir um juízo de valor sobre a técnica. Apontou apenas para a verdade do acontecimento da modernidade avançada, enquanto civilização da técnica, na qual estamos todos envolvidos. Todo o sentido da presente reflexão foi alertar para a necessidade de pensar esta realidade, na

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| 25sua essência, na sua inspiração profunda, não nos deixando arrastar simplesmente por seu dinamismo fatal. Não se trata de renunciar aos produtos da tecnologia. Mas também não basta querer usá-los apenas para o bem da humanidade. A questão da técnica não é simplesmente uma questão moral. É algo mais profundo. A técnica, na sua essência, é um modo de ser, de compreender a existência no seu todo. É o modo de ser do homem moderno. O que importa hoje é libertar-nos do espírito da técnica, que nos domina e controla, ao nos transformar em dominadores e exploradores implacáveis da natureza. Essa libertação não é uma obra puramente humana. Não resulta da decisão de uma ou muitas pessoas. Mas o seu acontecer implica a disposição de acolher no pensar o significado da técnica, a sua verdade, que nos liberta de seu domínio. Esta é a missão urgente à qual somos chamados, preparar-nos para consentir com a manifestação histórica da verdade, para que a humanidade não sucumba na insignificância de uma existência tecnicizada. O progresso tecnológico não nos torna, por si mesmo, nem mais nem menos humanos. O mesmo se diga dos valores objetivos, tanto jurídicos como mesmo éticos, que vão surgindo progressivamente na consciência social do gênero humano, verdadeiros avanços, benéficos, mas que como tais não são decisivos. Na verdade, não se pode falar propriamente de progresso em humanidade ao longo dos milênios de nossa história. Pois o que nos torna verdadeiramente humanos é a abertura de cada um na liberdade para o sentido da realidade, é acolher com gratidão o dom da existência, correspondendo fielmente aos apelos de seu destino. E essa atitude, fruto da resolução de ser propriamente o que somos, pode acontecer ou não, para qualquer ser humano, tanto ontem, como hoje ou amanhã.

João Mac Dowell, SJ. Possui graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira (1958), graduação e mestrado em Teologia pela Philosophische Theologische Hochschule Sankt Georgen (1962/1963) e doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (1968). Membro fundador da Academia Brasileira de Educação (RJ), foi Reitor da PUC-RJ e da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE-BH). Atualmente é professor titular e Diretor do

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26 | Departamento de Filosofia da mesma Faculdade, bem como Editor da Síntese - Revista de Filosofia. Além do estudo do pensamento de M. Heidegger, dedica-se especialmente à Filosofia da Religião, com ênfase nos seguintes temas: transcendência, experiência de Deus, cultura moderna e sagrado.E-mail: [email protected]

Referências

BOURG, Dominique. Natureza e técnica: ensaio sobre a ideia de progresso. Tradução Maria Carvalho. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p.39. [Nature et Technique. Paris: Hatier, 1997].

DIAMOND, Jared. O terceiro chimpanzé: a evolução e o futuro do ser humano. Tradução Cristina Cavalcanti. Rio de Janeiro: Record, 2010. p.199-212. [The Third Chimpanzee, 1992]

HEIDEGGER, Martin. A questão de técnica. In: HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002. p.11-38. [Die Frage nach der Technik. In: Vorträge und Aufsätze. Pfullingen: Neske, 1954].

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HANS JONAS E MARTIN HEIDEGGER EM

DIÁLOGO SOBRE A TÉCNICA1

Lilian Simone Godoy Fonseca

Introdução

O século XX, por suas inúmeras transformações nos mais diferentes âmbitos: científico, econômico, social etc. Trouxe à reflexão filosófica uma série inédita de temas e questões. Desse modo, temas considerados relevantes desde a antiguidade foram preteridos em favor de questões emergentes. Em alguns casos, porém, a novidade não se ateve ao tema, mas ao modo ou à ênfase dada a um assunto já conhecido. Nesse contexto, entre aqueles que ganharam maior destaque, pode-se mencionar a técnica como um dos mais inquietantes e desafiadores. De fato, já no final do século XIX, vários pensadores começaram a refletir sobre os diversos aspectos concernentes à técnica, melhor dizendo, à técnica moderna ou tecnologia, como preferem alguns.

Toda a atenção dedicada à matéria se justifica pela complexidade desse fenômeno, em princípio, tão comum. Pois, se por um lado, a técnica está presente desde a aurora da humanidade; por outro, nunca, como então, a técnica se converteu num elemento tão onipresente e absolutamente indispensável à vida humana (e até extra-humana). Não obstante, o que alguns autores mostram é que, além do lado indiscutivelmente luminoso da técnica, ela tem também seu lado obscuro, indissociável de sua face positiva.

1 A versão inicial deste texto foi apresentada na XVIII Semana Filosófica do Instituto São Tomás de Aquino, entre os dias 15 e 18 de maio de 2012.

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28 | O que se pretende, ao longo dessa exposição, é abordar a visão

de dois autores que tentaram avaliar a técnica levando em conta, precisamente, esses dois lados. Sem cair numa apologia ingênua, mas, evitando, igualmente, a simples recusa ou mesmo hostilidade em relação à técnica em suas mais diferentes manifestações, Martin Heidegger e Hans Jonas dedicam parte relevante de suas vastas reflexões filosóficas ao tema da técnica. Trata-se, assim, de abordar, ainda que em linhas gerais, as respectivas concepções desses pensadores, para indicar o cerne principal de cada uma delas e avaliar em que medida elas se aproximam e se distanciam.

Para tanto, estruturou-se o texto da seguinte forma:

1 Breve apresentação da vida e obra de Hans Jonas

Jonas (1903-1993) estudou filosofia e teologia em Freiburg, onde foi aluno de Edmund Husserl (1859-1938); Berlim e Heidelberg – onde foi aluno de Martin Heidegger (1889-1976), a quem ele seguiu até Marburg e com quem ali se doutorou em filosofia sob a co-orientação de Rudolf Bultmann (1884-1976).

Importante dizer que quando, em 1933, Heidegger se filia ao partido Nacional Socialista alemão, Jonas toma essa atitude do mestre como uma afronta pessoal, já que ele, como vários outros colegas, tinha ascendência judia e, sobretudo, por sua intensa e manifesta atividade como sionista2.

O fato de o grande filósofo ser capaz de tal insensatez política fez Jonas duvidar do real valor de sua filosofia. Tanto assim que, em 1934, ele abandonou a Alemanha e mudou-se para a Inglaterra e, no mesmo ano, dirigiu-se ao território da Palestina3.

2 Ativista do movimento identificado como sionismo, termo derivado de Sião (Sion, Zion), que é o nome de um monte localizado nos arredores de Jerusalém. Trata-se de um movimento político em defesa do direito do povo judeu à autodeterminação e à criação de um Estado judaico.3 Que, na ocasião, pertencia à coroa britânica.

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| 29Lá, ele ajudou a fundar uma brigada judia no interior do exército

britânico, ao qual se juntou para lutar contra Hitler. Seu envolvimento na guerra levou-o a questionar toda a formação filosófica que recebera de seus grandes mestres, mas sua decepção com Heidegger marca-o de maneira especialmente significativa.

Nesse contexto, cabe, assim, indagar: em que medida a filosofia heideggeriana permanece relevante para ele, particularmente, com relação à reflexão sobre a técnica?

1.1 Obras em que Jonas aborda o tema da técnica

Jonas, ao longo de seis décadas de intensa produção intelectual, escreveu sobre diferentes tópicos, sendo os principais: gnose, filosofia da biologia e ética. Mas, no final da década de 60, começa a surgir em sua obra a preocupação com relação às questões diretamente relacionadas à evolução tecnológica e suas consequências para a biosfera.

A seguir, vemos uma breve cronologia dos principais textos dedicados ao tema:

a) 1969: “Philosophical Reflections on Experimenting with Human Subjects”;b) 1971: “The Scientific and Technological Revolutions”;c) 1973: “Technology and responsibility: Reflections on the New Tasks of Ethics”;d) 1979: “Toward a Philosophy of Technology” e Das Prinzip Verantwortung;e) 1981: “Reflexions on Technology, Progress and Utopia”;f) 1982: “Technology as a Subject for Ethics” (Ensaio 2 do Técnica Medicina e Ética); e “Möglichkeiten und Grenzen der technischen Kultur”;g) 1984: “Technik, Ethik und biogenetische Kunst” (Ensaio 10 do Técnica, Medicina e Ética);h) 1987: “Warum unsere Technik ein vordringliches Thema für die Ethik geworden ist” e “Technik, Freiheit und Pflicht.”

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Cabe ressaltar que, no mesmo ano de seu célebre O Princípio da Responsabilidade (1979), Hans Jonas publica o texto “Toward a Philosophyof Technology”; mostrando que, naquele momento, ele estava bastante absorvido pela reflexão acerca de nossa “civilização tecnológica” e comprovando que, entre outras coisas, cabe a Jonas o mérito de ter sido um dos primeiros a propor uma reflexão ética no âmbito da tecnologia e da técnica moderna.

Importante resultado desse empenho é sua obra posterior, intitulada Técnica, Medicina e Ética, publicada em alemão em 1985, reunindo uma série de ensaios sobre questões de ética prática no âmbito das ciências naturais, notadamente no campo das pesquisas envolvendo seres humanos, abordando temas candentes como a responsabilidade médica, a aplicação de novas biotecnologias – entre as quais a clonagem e a eugenia – e, ainda, questões altamente polêmicas como o conceito de morte cerebral e sua relação com os transplantes de órgãos e a eutanásia.

Por sua atualidade e importância, essa obra tornou-se bastante conhecida nos meios acadêmicos, sobretudo nos departamentos das Ciências Médicas e foi uma importante fonte em meu trabalho doutoral. Contudo, são os dois primeiros ensaios ali publicados que serão focalizados na presente exposição, por se voltarem exclusivamente para a questão da técnica.

No ensaio 1, Jonas justifica (formal e materialmente) o fato de a filosofia tomar a técnica por seu objeto. No ensaio 2, ele expõe cinco motivos para justificar o fato de a técnica se converter em objeto (também) da reflexão ética.

Assim, com base, principalmente, nesses dois textos liminares é que pretendemos, posteriormente, indicar os aspectos capitais da reflexão jonasiana sobre a técnica. Antes, porém, serão apontadas, ainda que de forma breve e concisa, as principais características da concepção de Martin Heidegger com relação à técnica.

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2 Principais traços da concepção heideggeriana sobre a técnica

Segundo Heidegger, aquilo que denomina de “o caminho para o ser” passaria, naquele momento do pensamento que ele presencia, por três etapas distintas, a saber: 1) a superação da metafísica, 2) a análise da linguagem e 3) a meditação sobre a técnica. Coerentemente, as três etapas podem ser encontradas em sua própria obra e, talvez não por mera coincidência, também no desenrolar da tradição filosófica no século XX.

Com efeito, pode-se verificar com a tradição positivista (em suas distintas manifestações) a tentativa de superar a metafísica; a seguir, com a escola analítica e seus vários desdobramentos, a virada linguística que estabelece a linguagem como objeto filosófico privilegiado e, por fim, alguns autores que, embora não sigam uma mesma tendência ou formem uma escola, se dedicam intensamente à reflexão filosófica sobre a técnica.

Desse modo, embora Heidegger não seja aí um precursor, está entre aqueles que perceberam a importância de dar ao tema da técnica a devida ênfase; algo que ganhou força, sobretudo, na segunda metade do século XX, no interior da filosofia contemporânea e algumas áreas afins (como as Ciências Sociais).

2.1 Textos de Heidegger que abordam a técnica

Apesar disso, não são muito numerosos os textos de Heidegger dedicados ao tema. Na verdade, podem-se mencionar basicamente três títulos, a saber:

a) “A questão da técnica” – conferência de Heidegger realizada na Escola Técnica Superior de Munique, em 18 de novembro de 1953, a uma audiência majoritariamente formada por técnicos e engenheiros.b) “O princípio de identidade” – conferência proferida por ocasião do jubileu da Universidade de Freiburg, no ano de 1957, onde ele aponta em que medida uma experiência pensante do que constitui a

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especificidade da técnica moderna pode abrir a possibilidade de que o homem da era técnica experiencie uma ligação a um apelo, que ele está apto a ouvir, e do qual, efetivamente, ele próprio faz parte.c) “Já só um deus nos pode ainda salvar” – entrevista concedida por Martin Heidegger à revista alemã Der Spiegel em 23 de setembro de 1966 e publicada no nº 23/1976.

A importante entrevista concedida dez anos antes a Der Spiegel, seguindo o desejo manifestado pelo filósofo ao concedê-la, só foi publicada postumamente. Ela foi realizada em 23 de setembro de 1966, na casa de Heidegger em Freiburg e no seu refúgio em Todtnauberg, sob a condução do diretor e editor da Der Spiegel, Rudolf Augstein, em presença de George Wolff e H. W. Petzet.

Serão focalizados, a seguir, o primeiro e o terceiro textos.

Do texto “A questão da técnica”, para efeito dessa exposição, os aspectos mais relevantes ali discutidos por Heidegger podem ser enumerados como se segue:

a) Distinção entre a técnica e a questão da técnica: dado que, sobre a técnica pode-se dizer que ela funciona ou não e sobre a questão da técnica, enquanto uma questão filosófica, o que está em jogo é, sobretudo, a relação do homem com a técnica e a questão do futuro.b) Diferença entre saber operativo (técnica) ligado ao fazer e reflexão (filosofia) referente ao saber.4

c) A técnica não é neutra, mas é ambígua: seu aspecto positivo é indissociável do negativo e vice-versa.d) A técnica independe da vontade, do controle ou do domínio humanos. Ou seja, segundo ele, a técnica constitui um “saber operativo” autônomo.e) A técnica confere ao homem sua “especificidade”.

4 Embora não possamos nos ater aqui a esse ponto, cabe mencionar que em sua abordagem da instrumentalidade da técnica, Heidegger retoma as quatro causas aristotélicas.

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Do texto “Já só um deus nos pode ainda salvar”, as concepções de Heidegger sobre a técnica que merecem ser aqui destacadas são:

a) A técnica como um movimento planetário.b) A técnica, na sua essência, é algo que o homem por si mesmo não domina.c) A técnica moderna não é um “instrumento”.d) Embora não diga que sejamos a ela subjugados, pensa que ainda não encontramos um caminho que “co-responda” à essência da técnica.e) “A técnica arranca o homem da terra e des-enraíza-o cada vez mais. (...) Nós já só temos relações puramente técnicas. Já não é na Terra que o homem hoje vive.”

Apesar dessa dura avaliação, Heidegger critica a tendência a se

tomar a técnica de uma maneira demasiado absoluta. Eu não vejo a situação do homem no mundo da técnica planetária como uma dependência impossível de desvencilhar e de separar. Considero, pelo contrário, que a missão do pensar, dentro dos seus limites, consiste precisamente em contribuir para que o homem chegue a conseguir estabelecer uma relação suficientemente rica [e livre] com a essência da técnica (HEIDEGGER, 2002, p.22).

Pois, conforme ele próprio afirma: “estou convencido de que só partindo do mesmo sítio do mundo onde surgiu o mundo técnico moderno, se pode preparar uma inversão.” (HEIDEGGER, 2002, p. 23).

Trata-se, aqui, de uma alusão de Heidegger a um verso do poema de Hölderlin – No azul sereno floresce, em que o poeta nos diz:

Ora, onde mora o perigoÉ lá que também cresceO que salva.5

Essa concepção, Heidegger retoma na célebre entrevista, no seguinte trecho:

5 Citado por Heidegger em “A Questão da Técnica”, p. 31.

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DER SPIEGEL: Na sua opinião, tem que ser justamente nesse lugar em que o mundo técnico surgiu, que este...HEIDEGGER: ... seja superado, sem sentido hegeliano (não eliminado, mas sim superado). Mas o homem não pode consegui-lo sozinho (HEIDEGGER, 1966).

Ou seja, nessa passagem que esclarece o título dado ao texto, Heidegger considera que, com relação à técnica, “Já só um deus nos pode ainda salvar”.

A seguir, veremos as linhas gerais da concepção jonasiana sobre a técnica.

3 Principais concepções jonasianas sobre a técnica

Como antecipado acima, aqui será concedida especial atenção aos ensaios 1 e 2 do Técnica, Medicina e Ética. O primeiro pretende justificar por que a técnica pode ser considerada como objeto da Filosofia6 e o segundo, mostrar por que a técnica deve se tornar também objeto da Ética.7

A começar pelo primeiro, onde Jonas apresenta uma espécie de Programa para uma Filosofia da Técnica, vemos o que ele entende por técnica. Em seu entendimento, a técnica moderna é o mesmo que tecnologia e a importância pela conquista da técnica, nos dias de hoje, deve-se ao fato de estar presente em todos os aspectos de nossas vidas. Daí a necessidade de se estabelecer a técnica como objeto da reflexão filosófica.

Assim, Jonas propõe a: “Distinção entre técnica moderna e pré-moderna: a técnica moderna é um empreendimento e um processo, enquanto a anterior era uma posse e um estado” (TME, p.16).

Além disso, ele afirma que a nova técnica (ou tecnologia), de saída, apresenta aspectos extremamente antagônicos: por um lado,

6 Publicado em duas versões, a primeira em 1979 e a segunda em 1981, ambas em inglês.7 Publicado em duas versões, a primeira em inglês, em 1982, e a segunda em alemão, em 1987.

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a promessa utópica e, por outro, a ameaça apocalíptica. Porém, como afirma Jonas, eles têm em comum um traço “quase” escatológico, pois, nos dois, estaria presente uma visão sobre o “fim último do homem”.

Ao propor uma espécie de “programa” para uma possível Filosofia da Técnica, Jonas recorre a duas antigas categorias do pensamento: conteúdo e forma8 e estrutura sua proposta em dois momentos:

1) A dinâmica formal da tecnologia: “como uma atividade coletiva contínua que avança conforme as ‘leis de movimento’ próprias.” (TME, p.15).

2) O conteúdo substancial da tecnologia: “consistindo nas coisas que contribuem para o uso humano, o patrimônio e os poderes que nos confere os novos objetivos que nos abre ou dita, e as próprias novas formas de atuação e conduta humanas” (TME, p.15).

Aqui, apenas são apontados os tópicos abordados em cada um desses momentos:

1) A dinâmica formal da tecnologia (p.16-24)a) Técnica pré-moderna (p.16-18)b) Técnica moderna (p.18-19)

1. Cada novo passo - passo seguinte2. Cada inovação: rapidamente compartilhada3. Relação entre meios e fins não linear, mas circular: dialética4. Progresso não opcional, mas o seu modus operandi.

c) Explicação causal: coações e impulsos para o progresso técnico (p.20-21)d) As premissas ontológico-gnoseológicas da possibilidade do progresso contínuo (p.21-22)e) A inter-relação entre técnica e ciência (p.22-24)f) Aspectos filosóficos (p.24)2) O conteúdo material da tecnologia (p.25-31)a) Mecânica (p.25-26)b) Química (p.26-27)

8 Ou seja, se Heidegger retoma de Aristóteles as quatro causas, Jonas retoma essas duas categorias.

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c) As máquinas como bens de uso (p.27-28)d) Eletricidade (p.28)e) Técnica de transmissão elétrica de energia (p.28-29)f) Técnica de transmissão elétrica de notícias e de informação (p.29-30)g) Biotecnologia (p.30-31) h) A metafísica desafiada (p.31)

No segundo ensaio, “Técnica como objeto da Ética” (p.33-39), Jonas esclarece que a técnica se torna objeto da reflexão ética, uma vez que ela se torna um exercício do poder humano.

O texto está estruturado em cinco tópicos, visto que, segundo ele, a técnica moderna é um fenômeno novo graças a cinco de suas principais características:

Ambivalência dos efeitos (p.33-34)•Automatismo da aplicação (p.34)•Dimensões globais do espaço e tempo (p.35)•Ruptura do antropocentrismo (p.35-36)•Colocação da questão metafísica (p.37-39)•

A seguir, rapidamente, veremos as concepções sobre a técnica apresentada no PR. Começo por destacar que, ali, o objetivo de Jonas é apresentar sua proposta de uma “ética para uma civilização tecnológica”. Seu ponto de partida é a constatação de que a técnica constitui uma vocação do homem, ou seja, desde o princípio da história humana, ela sempre esteve presente. Entretanto, com a técnica moderna, ocorreu uma ampliação espaço-temporal dos efeitos das ações humanas, o que ele associa ao sucesso desmedido na realização do ideal baconiano9 e justifica a necessidade de se pensar um novo modelo ético.

Jonas constata que as éticas anteriores não respondem aos problemas atuais, sobretudo aqueles resultantes do emprego indiscriminado das novas tecnologias, tanto no aspecto ambiental quanto humano. Isso porque, segundo ele, nas éticas até então:

9 Ver, no anexo, parte do Programa de Bacon.

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1. Toda relação com o mundo extra-humano, que se fazia pela mediação da téchne, era, com exceção da medicina, neutra do ponto de vista ético, tanto no tocante ao objeto quanto ao sujeito de tal agir; uma vez que a técnica não afetava nem a natureza das coisas, nem a do próprio sujeito que a dominava.

2. A dimensão ética estava presente apenas na relação direta entre seres humanos, inclusive na relação consigo mesmo. Isso significa que toda a ética tradicional era antropocêntrica.

3. Nesse âmbito do agir, estimava-se que o homem (e sua condição fundamental) fosse constante em sua essência e que ela própria não fosse um objeto da téchne transformadora.

4. Tanto o bem quanto o mal estar, de que se ocupava o agir, estavam próximos da ação, não existindo a necessidade de planificar uma ação no longo prazo.

Jonas também percebe que a situação ética atual se caracteriza pelo vazio ético, niilismo e individualismo. Daí ele conclui a necessidade de repensar os princípios éticos até então oferecidos. Pois, até mesmo o Imperativo Categórico (IC) kantiano revela-se insuficiente. Jonas o considera um critério lógico e não propriamente moral.

Dada a exigência de um novo princípio, Jonas reformula o Imperativo Categórico para chegar a outro imperativo capaz de fundamentar sua “ética para uma civilização tecnológica”. Isso o conduz à primeira formulação do princípio da responsabilidade, que prescreve:“Age de tal modo que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente humana na Terra.” (PR, p.40).

Assim, como o IC, tal formulação permite outras três diferentes variações:2. “Age de tal modo que os efeitos de tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida”.3. “Não comprometa as condições para a continuidade indefinida da humanidade na Terra”.4. “Inclui em tua escolha atual a integridade futura do homem como objeto secundário de teu querer” (PR, p.39-40).

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Nathalie Frogneux esclarece que, na visão de Jonas:

Somente há responsabilidade porque há potência: «a responsabilidade é o aspecto complementar da potência». Desde Bacon, o homem tornou-se todo poderoso face à natureza, mas também face ao homem. Tanto assim que no período pré-moderno, uma responsabilidade em relação ao que deve ser simplesmente não seria pensável. Na base da filosofia de Jonas e de seu princípio responsabilidade como princípio, há, portanto, paradoxalmente, um fato contingente resultando em condições históricas: o poder tecnológico do homem. O dever-ser implica hoje um dever-fazer da parte do homem porque esse está em condições de impedir a realização do dever-ser (FROGNEUX, 2001, p.22).

Neste sentido, o próprio Jonas declara:

É preciso entender que temos diante de nós uma dialética do poder que só pode ser superada com um poder maior e não com uma ‘quietista’ renúncia ao poder. A fórmula de Bacon diz que saber é poder. Mas o programa baconiano manifesta de per si, isto é, em sua própria execução no auge de seu triunfo, sua insuficiência, mais ainda, sua contradição interna, ao perder o controle sobre si mesmo, perda que significa a incapacidade não só de proteger os homens de si mesmos, mas também a natureza frente aos homens. [...] O poder se tornou autônomo, enquanto que suas promessas se converteram em uma ameaça e suas salvadoras perspectivas se transformaram em um apocalipse. Torna-se agora indispensável, se a catástrofe não lhe puser antes freio, o poder sobre o poder, a superação da impotência frente à autoalimentada coação do poder para seu progressivo exercício. Após passar de um poder de primeiro grau, dirigido à natureza que parecia inesgotável, a outro de segundo grau, que usurpou o controle ao usuário, a autolimitação do domínio, antes da colisão contra os limites da natureza que arraste consigo os dominadores, se converteu na tarefa de um poder de terceiro grau. Este seria um poder que atuaria sobre o poder de segundo grau, o qual já não é o poder do homem, mas poder do próprio poder para ordenar seu emprego a quem supostamente o possui (PV, p.253-254; PR, p.235).

Jonas identifica, portanto, três diferentes âmbitos de poder. O primeiro, consoante com o ideal bacon-cartesiano, é o poder exercido pelo homem sobre a natureza que, num primeiro momento, não

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| 39conduzia ao desequilíbrio ou à destruição irreversível dos implicados no processo. O segundo, apontado por Heidegger, resulta do êxito descomunal obtido na execução desse projeto, emergindo como um poder monstruoso, cujo melhor exemplo é a bomba atômica, que representa a força destrutiva despertada pelo homem com o uso abusivo da técnica, que se tornou um poder “descontrolado”10. Daí a necessidade do terceiro poder, ou poder de terceiro grau, cuja tarefa é, precisamente, controlar esse segundo poder.

Cabe ainda frisar: o que está em jogo na formulação ética jonasiana é a preocupação com toda a biosfera. Isto é, em última instância, a preservação das condições da sobrevivência humana. Porém, embora nesse aspecto a perspectiva antropocêntrica persista, também ocorre uma mudança inegável, na medida em que a preocupação com relação aos efeitos das ações não mais se atém àqueles mais próximos, imediatos e que afetam apenas os homens.

Em resumo, os traços mais relevantes da técnica, segundo Jonas, seriam:

1. A técnica pode ser compreendida como “vocação do homem”.2. A técnica se converteu em objeto da filosofia e da ética.3. Distinção entre técnica moderna e pré-moderna: “a técnica moderna é um empreendimento e um processo, enquanto a anterior era uma posse e um estado” (TME, p.16).4. A nova técnica (ou tecnologia), de saída, apresenta aspectos extremamente antagônicos: por um lado, a promessa utópica e, por outro, a ameaça apocalíptica. Ambos, porém, como afirma Jonas, trazem em comum um traço “quase” escatológico.5. A técnica seria (ou traria ao homem) um “poder de segundo grau” - necessidade de um “poder de terceiro grau” = um poder sobre o poder.

10 Essa perda de controle sobre a técnica é mencionada por Heidegger em sua entrevista de 1966.Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.22, p.27-42, jul./dez. 2012.

Lilian Simone Godoy Fonseca

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40 | À guisa de conclusão: semelhanças e diferenças entre Jonas e Heidegger com relação à técnica

Pelo que se viu acima, pode-ser indicar como semelhanças entre Heidegger e Jonas o fato de ambos considerarem que:

a) A técnica é ambígua: seu aspecto positivo é indissociável do negativo e vice-versa.b) A técnica moderna alcançou uma dimensão planetária ou global.c) A técnica atual escapou ao controle do homem.

Para listar as diferenças entre Jonas e Heidegger com relação à técnica, segue-se o quadro:

Quadro 1: Diferenças entre Heidegger e Jonas com relação à técnica

Heidegger Jonas

- Visão abstrata da técnica: essência- Visão concreta da técnica: aspecto substancial

- Não discute suas consequências - Discute suas consequências

- Não pode ser dominada - Pode e deve ser dominada

- “Só um deus pode nos salvar”- Tarefa* do próprio homem (*coletiva: social e política)

- Via possível: pensamento - Via possível: ação (ética)

- Meta: relação “livre” com a técnica - Meta: uso responsável da técnica

Fonte: Elaborado pela autora, 2012

Vemos, portanto, que embora as semelhanças entre Jonas e Heidegger, no tocante à reflexão sobre a técnica, sejam notórias e indiscutíveis, as diferenças são igualmente significativas e, inclusive, mais numerosas.

Desse modo, se é possível considerar que, mesmo à distância, o antigo mestre pode ter, de algum modo, influenciado a reflexão jonasiana sobre o tema, tal influência se limita a alguns aspectos da avaliação geral sobre o fenômeno técnico, mas não se estende às

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HANS JONAS E MARTIN HEIDEGGER EM DIÁLOGO SOBRE A TÉCNICA

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| 41considerações mais detalhadas. Jonas apresenta uma abordagem mais minuciosa do ponto de vista do conteúdo e propõe, a partir daí, uma solução mais consistente e menos “soteriológica” que a do pensador da “Floresta negra”.

Ambos veem a técnica com reservas, mas, onde Heidegger vê uma impossibilidade, Jonas vê uma necessidade e, até mesmo, uma urgência: a de o homem estabelecer um controle coletivo sobre a técnica, tarefa que, na visão heideggeriana, dada a sua grandeza e quase inacessibilidade, só pode ser atribuída a um “deus”.

Lilian Simone Godoy Fonseca é professora visitante do departamento de Filosofia da UFMG.E-mail: [email protected]

Referências

FROGNEUX, Nathalie. Hans Jonas ou la vie dans le monde. Bruxelles: De Boeck & Larcier, 2001. 384p.

GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Notas sobre a técnica no pensamento de Heidegger. Veritas, Porto Alegre, v. 43, n. 1, p. 97-108, 1997.

HEIDEGGER, Martin. “Já só um deus pode ainda nos salvar”. 1966. Disponível em: <http://www.lusosofia.net/textos/heideggger_ja_so_um_deus_nos_pode_ainda_salvar_der_spiegel.pdf>. Acesso em: 15 maio 2012.

HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002. 269p.

JONAS, Hans. “Por qué la técnica moderna es objeto de la ética?” In: JONAS, Hans. Técnica, medicina y ética: la práctica del principio de responsabilidad. Barcelona: Paidós, 1997. p.31-39. cap. 2.

JONAS, Hans. Le Principe Responsabilité. Paris: Flammarion, 1990. 470p.

JONAS, Hans. Por qué la técnica moderna es objeto de la filosofía? In: JONAS, Hans. Técnica, medicina y ética: la práctica del principio de responsabilidad. Barcelona: Paidós, 1997. p.15-31. cap. 1.

Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.22, p.27-42, jul./dez. 2012.

Lilian Simone Godoy Fonseca

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Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.22, p.27-42, jul./dez. 2012.

JONAS, Hans. Seventeenth century and after: the meaning of the scientific and technological revolution. In: Philosophical Essays: From Ancient Creed to technological Man. New Jersey: Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1980. p.45-80. cap. 3.

JONAS, Hans. Technology and Responsibility: Reflections on the New Tasks of Ethics. In: Philosophical Essays: From Ancient Creed to technological Man. New Jersey: Englewood Cliffs, Prentice-Hal, 1980. p.03-20. cap. 1.

JONAS, Hans. Técnica, medicina y ética: la práctica del principio de responsabilidad. Barcelona: Paidós, 1997. 206p.

SIQUEIRA, José Eduardo de. Ética e tecnociência: uma abordagem segundo o princípio de responsabilidade de Hans Jonas. In: SIQUEIRA, José Eduardo de et al. Ética, ciência e responsabilidade. São Paulo: Loyola, 2005. p.101-200.

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Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.22, p.43-57, jul./dez. 2012.

RELIGIÃO, MORAL E TEOLOGIA: OPÇÃO PARA A REFLEXÃO DA

ÉTICA DO CUIDADO

Elismar Alves dos Santos

A experiência religiosa que o ser humano faz do Transcendente torna-se, frequentemente, objeto de interesse por parte das ciências humanas (cf. JAMES, 2001). Por isso, a religião é continuamente tomada como realidade de estudo, especialmente pelos teóricos da psicologia (cf. FREUD, 1996)1. Entretanto, ao abordar o tema da religião em qualquer área do conhecimento, faz-se necessário estabelecer a distinção metodológica entre dois conceitos: religião e religiosidade. “O ser humano cria ou já encontra diante de si comunidades que vivem uma forma religiosa herdada dos antepassados e estruturada socialmente. É a religião.” (LIBANIO, 2002, p.99).

O segundo conceito “corresponde às exigências de objetividade, de sociabilidade, de historicidade do homo religiosus. Diante do mesmo fenômeno, a inteligência se pergunta pela realidade que

1 Freud escreveu um pequeno artigo, em 1907, sobre “atos obsessivos e práticas religiosas”. No artigo, estabelece a relação entre “prática religiosa” e “atos obsessivos”. Nota-se certo pessimismo do pai da psicanálise diante da análise do comportamento religioso. Nesse texto, Freud reflete mais sobre o significado da religiosidade que propriamente o conceito e significado de religião. Além desse pequeno artigo, há vários outros escritos de Freud voltados para a discussão da religião. Isso evidencia que a discussão sobre religião e comportamento humano foi para ele um tema sempre recorrente. Diferentemente de Freud, Jung, na obra Psicologia da Religião Ocidental e Oriental. In: Edições das Obras Completas de C.G. Jung. Petrópolis: Vozes, 1988, volume XI, p.1-62; 329-351, apresenta uma visão da religião de maneira mais otimista que Freud. São duas visões distintas acerca do papel da religião e da religiosidade na existência humana. Entretanto, os dois pensadores apresentam um ponto de vista comum: a religião é um importante “objeto” de estudo, ora para a psicanálise, ora para a psicologia.

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44 | RELIGIÃO, MORAL E TEOLOGIA

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existe no ser humano que o faz religioso, produtor e consumidor de símbolos. É a fase subjetiva, existencial, inerente ao ser humano. Fala-se então de religiosidade.” (LIBANIO, 2002, p.99). Com essa distinção, o artigo priorizou o conceito de religião. Ao analisar a religião a partir do ponto de vista filosófico, Paul Ricoeur apresenta críticas pertinentes à pós-modernidade. Essa crítica ricoeuriana baseia-se na justificativa de que a “volta do Sagrado” encontra-se associada ao fracasso da secularização (modernidade) e à revalorização da liberdade do indivíduo (autonomia) face ao fracasso da religião como poder.

Em sua crítica, Paul Ricoeur faz um comentário pertinente

sobre o significado da religião em Kant: “a tarefa da religião é restaurar no sujeito moral a sua capacidade de agir segundo o dever. A regeneração de que se trata nessa filosofia da religião ocorre no nível da disposição fundamental, no nível do que chamo aqui de ‘si capaz.’” (RICOEUR, 1996, p.173). Inicialmente, para Paul Ricoeur, o papel da religião em Kant visa “resgatar”, no sujeito moral, a originalidade de seu agir conforme o dever.

Realmente, o sentido da religião para Kant corresponde ao conhecimento do dever como mandamento divino. Nessa ótica, está subjacente o Dogma Cristão da origem da moral kantiana. Pensamento desenvolvido numa das obras mais importantes do filósofo alemão sobre Filosofia da Religião: A Religião nos Limites da Simples Razão, escrita em 1794. Nessa obra, Kant explica que existe um Soberano Bem no qual se justifica o porquê do agir conforme o dever.

Ora, assim como há, na moral, um Soberano Bem, que pede ao indivíduo que aja conforme as exigências do dever, de acordo com o imperativo categórico, na esfera da religião não é diferente: pois existe a defesa também de um Soberano Bem que fundamenta o agir correto através da religião. Religião e moral estariam interligadas por um mesmo princípio em que prevalece a concepção de um Soberano Bem, Deus.

Esse nexo entre moral e religião permite afirmar que Deus, na moral kantiana, torna-se o responsável por corrigir a capacidade

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moral “deficiente” na estrutura da pessoa humana. No sistema moral de Kant, Deus é um ser legislador, moral e poderoso. Quais seriam as principais características da religião na ótica kantiana? “Primeiro, na religião, temos deveres; segundo, na religião, temos um conceito de Deus; e, terceiro, na religião, os seres humanos são capazes de obedecer aos deveres morais.” (KRASSUSKI, 2005, p.185). Moral e religião, na filosofia de Kant, têm a mesma finalidade: “ambas possuem uma tarefa comum. Partindo da moral, a religião determina, no seu âmbito, a causalidade da vontade.” (KRASSUSKI, 2005, p.185). O agir moral torna-se a base e o critério do exame racional da religião. Para o filósofo alemão, a religião não deve ser concebida somente como um objeto de conhecimento teórico, mas também como condição de experiência prática subjetiva (KRASSUSKI, 2005, p.185).

Numa segunda obra intitulada Lecciones sobre la filosofia de lar religión (1783), Kant mostra a correlação entre moral e religião.

A moralidade e a religião estão intimamente unidas, e se diferenciam mutuamente só porque na primeira devem ser praticados os deveres morais como princípios de todo ser racional, e esse deve atuar como membro de um sistema universal dos fins; na segunda só contemplamos como mandamentos de uma suprema Vontade Santa, pois no fundo, as leis da moralidade são as únicas que concordam com a ideia de uma suma perfeição (KANT, 2000, p.147).

Do nexo entre moral e religião, é a moral que conduz à religião e não o contrário. Deus, nas Lecciones sobre la filosofia de la religión, é tomado como ser que governa o mundo que tem como suporte as leis morais: “um Deus que governa o mundo segundo leis morais.” (KANT, 2000, p.147). Por outro lado, Kant articula a relação entre Teologia e Religião. O filósofo explica que uma religião que declarasse, inconsequentemente, guerra à razão não resistiria por muito tempo. Se a religião não pode colocar-se em conflito com a razão, logo se considera que a razão já determinou, a priori, a origem, o conteúdo e o objetivo de toda e qualquer religião. Pode-se dizer que o nome dessa determinação é certamente moralidade, e a forma específica da moralidade da pura razão prática em relação à religião chama-se Teologia.

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Por meio de uma redefinição do conceito específico de Teologia, Kant abrirá a dupla passagem do conhecimento, essencialmente, da ciência da natureza à moral e da moral à religião. A única diferença consiste em que, enquanto a primeira passagem é irreversível, a moral, para Kant, não faz conhecer nada, apenas coloca o indivíduo diante do imperativo categórico do puro dever e do “tu deves”. Significa que jamais levará o ser humano a formular qualquer espécie de “eu sei”. Porém, a segunda passagem, ao contrário, tem uma espécie de reversibilidade ou circularidade.

A discussão kantiana sobre Teologia e Religião evidencia-se, primeiramente, pela responsabilidade da Teologia em pensar a religião. Kant apresenta algo de novo para a reflexão no campo da religião e da moral? O que se torna central e novo na religião e que Kant pretende salientar é: “quanto mais simples uma religião se apresenta, mais se constata, nos seus seguidores, o esforço para serem honestos.” (KRASSUSKI, 2005, p.125- 126). Trata-se, portanto, de uma religião racional. Isso se deve ao fato de que a razão já determinou, a priori, a origem, o conteúdo e o objetivo de toda e qualquer religião possível.

Nos escritos de Kant que versam sobre a Filosofia da Religião, é a Teologia que constitui a base sobre a qual se deve pensar a religião. Dito de outro modo: é a Teologia que suscita a religião e não a Religião que suscita a Teologia. A justificativa para a Teologia Moral, de acordo com Kant, deve ser compreendida nestes termos: “a única justificativa para a teologia moral é assentá-la na argumentação moral, cuja fundamentação estabelece princípios a priori da razão.” (KRASSUSKI, 2005, p.125- 126). Para ele, a teologia deve ser independente da fé. Ela diz respeito ao conhecimento racional de Deus por considerar exclusivamente a aplicação do conceito de Deus à moralidade.

Para Kant, a pessoa não sabe e nunca poderá saber quem é Deus e se de fato existe. Porém, o ser humano precisa postulá-lo e crer nele por meio da fé moral. A fé, nesse contexto, é assumida como fé racional: pura fé da razão, traduzida por meio do comportamento da pessoa em fé moral: “a fé moral é o argumento central para a

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compreensão da religião, no contexto da filosofia crítica, e Kant é consciente de que não é possível propor a prova moral, a não ser no plano da fé, que é, a saber, uma convicção puramente subjetiva.” (KRASSUSKI, 2005, p.125- 126).

A religião, nesses dois escritos2 de Kant, deve ser interpretada como chave de leitura histórico-antropológica, na condição de uma hermenêutica moral da dogmática cristã. O filósofo faz a interpretação da Encarnação do Verbo de Deus, como a ideia personificada do Bom princípio, o qual pode ser direcionado como ideal da perfeição moral. Também na interpretação da fé histórica como mero veículo da fé verdadeira, que ele chama de fé racional.

Assim, da relação entre Moral, Religião e Teologia em Kant, conclui-se: “da vinculação entre moralidade, religião e teologia, fica clara a intenção de Kant de estender a moralidade para além das suas barreiras, ao domínio da religião e da teologia, como subentende a definição da religião enquanto ‘reconhecimento de todos os nossos deveres como mandamentos divinos’” (KRASSUSKI, 2005, p.125- 126). Em Kant, por ser a lei moral uma realidade universal, pode-se afirmar que a religião faz parte de uma característica própria do ser humano.

Por isso, o filósofo resgata o sentido teológico, sobretudo, pela afirmação incondicional da humanidade, em cuja liberdade o ser humano descobre-se a caminho de uma teologia moral. Logicamente, “admitir a abertura da Moral para a Religião não supõe privar de valor absoluto a pessoa. Pelo contrário, significa oferecer-lhe o fundamento mais seguro e o ideal mais elevado. Desse modo, para o fiel, a pessoa é ordenada para Deus, não no sentido de ‘meio’, mas de ‘fim em si.’” (VIDAL, 2003, p.710).

2 Os dois escritos a que nos referimos são as duas obras de Immanuel Kant que versam sobre religião e moral. Lecciones sobre la filosofia de la religión (1783) e A religião nos limites da simples razão (1794).

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Do vínculo entre Religião, Moral e Teologia emergem duas categorias reflexivas: o papel da ética na religião e articulação da Ética do Cuidado

Os teólogos da moral fazem uma distinção entre Ethos, Moral e Ética. Ethos designa o fundo social. Trata-se de “um conglomerado de evidências, de símbolos, mitos, de valores, de práticas” (THÉVENOT, 2007, p.16) que sustentam a vida individual e coletiva. Refere-se, portanto, a “uma matriz de percepções, de apreciações e de ações” (THÉVENOT, 2007, p.16). A Moral, por sua vez, corresponde a “um conjunto organizado de interditos, de regras, de normas, de valores e de modelos” (THÉVENOT, 2007, p.16). E a Ética significa “a reflexão filosófica sobre as condições de possibilidade de uma moral” (THÉVENOT, 2007, p.16). Ou ainda, a moral remete-se ao momento deontológico do “dever ser”. Já a ética configura-se como a instância teleológica da reflexão sobre a vida (RICOUER, 2007, p.7).

As duas considerações sobre a distinção de moral e ética ensinam que a ética preocupa-se com o aspecto filosófico-reflexivo da condição humana. Por isso, falar das considerações kantianas sob o ponto de vista da ética para a religião permite refletir e contextualizar, necessariamente, o papel da Ética na esfera da religião. Primeiramente, Kant considera que o sujeito moral é alguém capaz de refletir. Trata-se, portanto, de um sujeito pensante. Alguém que reflete acerca de seus atos diante de si e mediante a convivência social. Do ponto de vista da vivência da religião, que geralmente proporciona a experiência da religiosidade, o sujeito moral não se deixa enganar na equivocidade de outrem sobre o “conceito” de Deus, fé e religião. O sujeito moral, nessa perspectiva, rompe com o infantilismo religioso e alcança a maioridade na relação com o Transcendente. Seu comportamento terá traços éticos devido à correlação da religião com a moral.

Em segundo, em matéria de tolerância religiosa, a Filosofia da Religião matizada por Kant tem muito a contribuir. O fanatismo religioso, por exemplo, mostra claramente a falta da racionalidade como princípio mediador entre religião e razão. Sobre esse tema, o diálogo do filósofo Alemão Jürgen Habermas com o teólogo Joseph

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Ratzinger converge numa mesma direção: “como criar mecanismos éticos para conter o poder de destruição mundial?” (RATZINGER; HABERMAS, 2006, p.57). Para ambos, a religião deveria estar abaixo da tutela da razão (RATZINGER; HABERMAS, 2006, p.57). Entretanto, para Habermas & Ratzinger (2006), a razão torna-se uma realidade paradoxal: ao mesmo tempo em que proporciona o processo reflexivo em vista do bem, pode também converter-se numa ameaça à vida humana. Por exemplo, “a bomba atômica é um produto da razão” (RATZINGER; HABERMAS, 2006, p.57).

Por isso, perguntam-se: “não se deveria ser a razão colocada abaixo da observação”? (Cf. JUNGES, 2006, p.75-76). Mesmo com o “limite” da razão, a doutrina kantiana defende positivamente seu papel como mecanismo antropológico voltado para o discernimentodo sujeito moral, pois este é convidado a repensar constantemente acerca do significado da religião em seu comportamento e na configuração social. Uma dose de racionalidade proporciona ao ser humano a capacidade de refletir sobre o limite e o alcance da religião.

Em terceiro, da relação entre religião, moral e teologia no pensamento kantiano, pode-se pensar na articulação da Ética do Cuidado (Cf. JUNGES, 2006, p.75-76). Como lembrado, não se trata de reduzir a moral kantiana à religião. São matizes diferentes, porém relacionados. Em A Religião Nos Limites da Simples Razão (1794) como em Lecciones Sobre la Filosofia de La Religíon (1783), Kant defende o nexo da Religião com a Moral e que o ser humano é portador do ethos religioso. Daí emergem os motivos do respeito ao ser humano, pois, para a doutrina kantiana, nesse contexto, a pessoa humana foi criada à imagem e semelhança de Deus.

A Moral kantiana coloca a pessoa no centro de suas discussões. Nota-se que o descuido por parte do ser humano estende-se desde o não cuidado com o planeta ao descaso “pela vida inocente de crianças usadas como combustível na produção para o mercado mundial.” (BOFF, 1999, p.18). Comumente, segue o não cuidado pelos pobres “e marginalizados da humanidade, flagelados pela fome crônica, mas sobrevivendo da tribulação de mil doenças, outrora erradicadas e atualmente retornando com redobrada virulência.”

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(BOFF, 1999, p.18). No estudo da Ética do Cuidado, faz-se necessário recordar da contribuição da filosofia diante dos avanços da ciência e, consequentemente, do papel da bioética em favor do cuidado para com a pessoa: “a bioética é filosofia, é ética filosófica intimamente ligada a uma tradição milenar, o que significa que não é possível ser competente em bioética sem conhecer com certa profundidade aquela tradição.” (PEGORARO, 2002, p.15).

A bioética (cf. THÉVENOT, 1990, p.5)3 se preocupa com a evolução e o progresso das ciências biológicas (cf. HÄRING, 1977) e com os problemas éticos (cf. VIDAL, 1988, p.287). Em decorrência do advento das ciências biomédicas (cf. POTTER, 1971), torna-se urgente tecer um olhar, não totalmente pessimista, mas esperançoso, sobretudo quando a ciência procura proteger e respeitar a dignidade do seu humano. Sabe-se, entretanto, dos perigos que os avanços científicos trazem para a pessoa, por isso, a Ética à luz da doutrina kantiana tem papel decisivo para corrigir os possíveis desvios causados pelo uso indevido dessas descobertas (cf. VIDAL; LACADENA; BARRI; GAFO, 1990, p.63-76).4

O usoda Ética em favor da bioética proporciona uma nova luz que “surge em meio às sombras das incertezas.” (JOÃO PAULO II, 2006). Dessa maneira, a bioética torna-se um meio de reflexão entre crentes e não crentes. Estabelece a conjugação acerca da vida sob o prisma da ética: “tudo o que ‘se pode’ (tecnicamente) fazer ‘se deve’ (eticamente) fazer?” (VIDAL, 1994, p.17). Trata-se, portanto, “da eterna pergunta sobre a relação entre ‘técnica’ e ‘ética’, entre ‘ciência’ e ‘consciência.’” (VIDAL, 1994, p.17).

3 “Bioética. Termo erudito e misterioso ao mesmo tempo. O que, com exatidão, significa? Segundo sua estrutura derivada dos vocabulários gregos bio e etthos, fala da vida e da moral. A bioética seria a moral da vida. Na realidade, esse termo apareceu no momento em que a biologia contemporânea fazia tais progressos que removia e parecia deixar fora de lugar os pontos de referencia morais vigentes. Tanto os autores como os beneficiários das investigações das ciências da vida sentiram a partir de então a necessidade de lançar-se a uma reflexão moral renovada, que chamamos bioética”. (p.5).

4 O “status humano” do embrião humano e a polêmica antropológica que envolve esse tema evidenciam os impactos diretos no campo da Ética na esfera da biologia.

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Além do estudo da bioética pautado nas implicações técnico-científicas relacionadas com a integridade do ser humano, existe, por outro lado, um outro modelo de bioética que se dedica a refletir os problemas do quotidiano (ANJOS, 1998, p.211). A bioética precisa ser vista em duas dimensões: uma que se preocupa com a tecnociência e outra que se volta para as situações persistentes (cf. PESSINI, 2006, p.22), como a pobreza, as doenças, a exclusão social e a falta de saneamento básico.

Em decorrência desse contexto social do qual a bioética faz parte, a religião torna-se cada vez mais objeto de interesse por parte da bioética por considerá-la uma variável importante para a saúde mental quando vivida com responsabilidade. Nesse sentido, Pessini (2006), ao descrever acerca do processo histórico da bioética, observa que, na primeira edição da Enciclopédia de Bioética Americana (1978), bem como na segunda (1995) e, sobretudo, na terceira (2003), houve, de uma edição para a outra, um considerável progresso no que se refere aos temas abordados pela bioética. Na terceira edição, incluiu-se a religião como tema de estudo na área da bioética: “saúde mental, genética, religião e ética foram completamente revistos e são, na essência, novos.” (PESSINI, 2006, p.28-29)5

Portanto, bioética se torna uma dimensão muito importante para a ética do cuidado, ao abranger o cuidado social dos menos favorecidos e não se restringir ao enfrentamento dos desafios científicos.

Das considerações de Kant relacionadas à Religião e à Moral, surgem elementos antropológicos que permitem fundamentar uma Ética em favor da preservação da dignidade da pessoa. O dado bíblico do ser humano na condição de imagem e semelhança de Deus abre um leque de possibilidades na esfera da Ética para o respeito do ser humano. Subjacente à defesa da dignidade da pessoa, percebe-se a influência do Antigo Testamento na posição do filósofo, sobretudo, ao tratar da relação e contraposição da Religião com a Moral.

5 Os temas relacionados à bioética e religião são: “autoridades nas tradições religiosas, bioética no cristianismo, aspectos religiosos da circuncisão, amor compassivo, Testemunhas de Jeová e a recusa da transfusão de sangue, bioética e os mórmons”.

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Para Kant, a reflexão entre Religião e Moral origina-se da Teologia Transcendental que “se pode chamar theísm moralis, onde se pensa Deus como autor de nossas leis morais, e esta é a autêntica teologia que serve de fundamento para a religião.” (KANT, 2000, p.73-74). O theísmus moralis não consiste somente na crença em um Deus, e sim na crença em um Deus vivo que criou o mundo por sua inteligência mediante uma vontade livre. (KANT, 2000, p.73-74). Percebe-se que a imagem de Deus, no sistema moral kantiano, torna-se decisiva para o entendimento da relação que ele faz da religião com a moral: “na moral teológica, o conceito de Deus deve determinar nossos deveres.” (KANT, 2000, p.74).

Pode-se falar, portanto, da Ética do Cuidado de inspiração kantiana à luz dos três conceitos abordados, pois os mesmos oferecem articulação reflexiva do ponto de vista da Ética que cuida do ser humano como “fim em si mesmo”. Ou de forma mais precisa: “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.” (KANT, 1995, p.59). Essa máxima kantiana garante proteção à dignidade da pessoa em decorrência de seu fundo ético-religioso. Precisamente, “a dignidade de todo homem procede, em primeiro término, de que é imagem de Deus (Gen 1,27).”6 Assim, a Ética do Cuidado de inspiração kantiana leva em seu bojo o legado da tradição bíblica da Teologia da Imagem.7 (cf. MARTÍNEZ, 2008, p.203-204). Quanto à ética cristã, espera-se que leve o ser humano ao cultivo da esperança, pois esta “tem uma plenitude escatológica, a saber,

6 “A dignidade de um ser humano não descansa tanto em sua beleza, seu êxito social ou seu coeficiente intelectual, quanto simplesmente no fato de que existe; e que, somente porque existe, há sido querido por Deus e é convidado a entrar na aliança entre a humanidade e seu Criador. ‘Nos fez senhor, para Ti’ – exclama Santo Agostinho traduzindo a seu modo esse mistério. Um ser que tem sua origem e seu fim em Deus, esse é o que constitui a toda Pessoa humana’” (THÉVENOT, 1990, p.49).

7 Do ponto de vista da Teologia da criação, a dignidade humana está em ser “imagem e semelhança de Deus”. Sobre a Teologia da imagem, “na Sagrada Escritura encontramos algumas passagens que falam, em diversos contextos, de imagem de Deus (Sab 7, 24-28; Rom 8,29; 2Cor 4,4; Col 1,15; Hb 1,3). Entretanto, o texto fundamental é Gênesis 1,26-28, o relato sacerdotal onde se descreve a criação do ser humano” (MARTÍNEZ, 2008, p.203-204).

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a segurança oferecida pela salvaçãode Deus realizada em Cristo.” (VIDAL, 2003, p.714).

Conclusão

A religião é objeto de estudo das ciências humanas. Sublinhou-se, primeiramente, a importância da distinção de religião e religiosidade. A experiência herdada do ponto de vista do contexto social, no qual o ser humano encontra-se em sua história de vida, chama-se religião. Por outro lado, a fase subjetiva e existencial relacionada com a capacidade de consumir e de produzir símbolos corresponde à religiosidade. A primeira parte do texto foi dedicada à explicação da relação dos três conceitos presentes na Filosofia da Religião de Kant: religião, moral e teologia. A religião, segundo Kant, encontra-se relacionada ao conhecimento e à prática do dever enquanto mandamento Divino subjacente ao Dogma Cristão. Na moral, existe a ideia de um Soberano Bem (Deus) que exige do ser humano o cumprimento do dever. E, na esfera da religião, não é diferente, pois há também um Soberano Bem o qual fundamenta o agir correto por meio da religião.

Do nexo entre Religião e Moral, falou-se da presença do Transcendente nas duas experiências (religiosa e moral) que as pessoas fazem. Daí, concluiu-se: na religião, o indivíduo tem deveres. Por meio da religião, a pessoa adquire um conceito de Deus. Pela religião, o sujeito obedece aos deveres morais. Explicou-se, ainda, que a moral conduz à religião, mas a religião não conduz à moral. Deus, para Kant, “governa” o mundo devido às leis morais. Religião e razão estão entrelaçadas. O filósofo não separa a razão da religião. O fracasso da religião, segundo Kant, ocorre a partir do momento em que a religião distancia-se da razão.

Descreveu-se, também, que Kant, por meio da redefinição do conceito de teologia, coloca-a como instância responsável em pensar a religião. Sendo a teologia o desenvolvimento do conhecimento racional de Deus e sua consequente aplicação à moral, ela se configura num a priori kantiano da maior importância. Nessa perspectiva, é a

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religião que suscita a teologia e não o contrário. Nesses termos, a Teologia Moral, na estimativa kantiana, encontra-se fundamentada na racionalidade. Justifica-se pelos princípios a priori da razão. A Teologia é concebida como realidade independente da fé. A correlação entre moral, religião e teologia leva a afirmar que o filósofo entende a moral “além das suas barreiras, ao domínio da religião e da teologia”. A religião é matizada como reconhecimento dos deveres configurados nos mandamentos divinos. Essa foi a primeira parte do texto.

Já a segunda sublinhou que a relação da religião com a moral e com a teologia possibilita abordar duas categorias reflexivas: o papel da Ética na religião e a articulação da Ética do Cuidado. A Ética, diferentemente do Ethos e da Moral, debruça-se sobre o caráter reflexivo na existência do ser humano.

Acredita-se na contribuição positiva da Filosofia da Religião de Kant no âmbito da tolerância religiosa. Para ele, uma religião que declarasse “guerra” à razão já estaria fadada à morte e ao fracasso. Filósofos e teólogos da atualidade defendem que a religião deveria encontrar-se sob a tutela da razão. Isso não significa ignorar o próprio limite da razão, sobretudo quando é usada contra a dignidade da pessoa. Kant defende que a razão, no universo da religião, proporciona o reto discernimento entre o “certo” e o “errado”. E, por último, mostrou-se que do nexo entre Religião, Moral e Teologia, é possível abordar o papel da Ética do Cuidado.

A Ética do Cuidado volta-se para a preocupação e o zelo da pessoa em todas as dimensões: biológica, psíquica e religiosa, sobretudo perante os avanços da ciência. Além da bioética voltada para os desafios científicos, há, também, outro estilo de bioética que lida diretamente com os problemas sociais. A religião, como área de estudo no campo da bioética, encontra-se nesse segundo modelo metodológico. Sua importância como objeto de estudo encontra-se presente na última edição da Enciclopédia de Bioética Americana (2003).

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A doutrina kantiana toma o ser humano na condição de imagem e semelhança de Deus. Religião, Moral e Teologia defendem o mesmo postulado: a pessoa é, incontestavelmente, sempre “fim em si mesmo”. Esse princípio vai contra o desejo de colocar a pessoa como “meio” em decorrência da arbitrariedade. O imperativo categórico kantiano impede conceber a pessoa como “meio”. O ser humano diferencia-se das “coisas” em razão de sua dignidade, nesse caso, ferir a dignidade do ser humano “equivale ferir a Deus”. Daí o motivo da articulação dos três conceitos no sistema da Filosofia da Religião de Kant como opção metodológica em vista da reflexão da Ética do Cuidado a qual protege a dignidade do ser humano.

Elismar Alves dos Santos, CSsR, licenciou-se em Filosofia (1998) pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Fez bacharelado em Teologia (2003) na Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Fez licenciatura em Psicologia (2004) na Universidade Católica de Goiás. Fez mestrado em Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2006). Doutorado em Teologia, na área de Teologia Moral (2012) na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte, MG e na Pontifícia Universidade Católica de Comillas, Madrid, España. Atualmente é professor de Teologia e de Filosofia na Faculdade de Filosofia e Teologia de Goiás (IFITEG) em Goiânia, GO. Endereço: Rua 22, Qd. 05, Lt. 12/13, Jardim Goiás. CEP: 74805-250 Goiânia-GO. E-mail: [email protected]

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ECCLESIA SICUTI “DE UNITATE PATRIS ET FILII

ET SPIRITUS SANCTI”: ASPECTOS DE ECLESIOLOGIA DE COMUNHÃO NA LITURGIA

E NOS SANTOS PADRES

Vanderson de Sousa Silva

1 Introdução

“Adão dorme para que nasça Eva. Cristo morre para que nasça a Igreja. Enquanto Adão dorme, Eva se forma do seu lado. Quando Cristo acaba de morrer, seu lado é aberto por uma lança, para que dali corram os sacramentos para formar a Igreja.” (AGOSTINHO, 1954, p.102).

Este trabalho intenta perquerir na Tradição patrística o caminho percorrido pelos Santos Padres na compreensão eclesiológica a partir do conceito teológico de comunhão. Para tanto, apresentar-se-ão aspectos da eclesiologia de comunhão destacando que, para os Santos Padres, a comunhão eclesial brota impreterivelmente do Mistério de Cristo celebrado nos mistérios litúrgicos, assim, a liturgia é princípio fontal da comunhão eclesial, pois, nesta, Cristo cabeça junto ao seu corpo, a Igreja, realizam o culto ao Pai, na comunhão do Espírito Santo. Não se olvide do não esgotamento da temática neste lacônico percurso pela patrologia e liturgia, assim, seletivamente apresentar-se-ão alguns aspectos relevantes no que tange à temática.

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2 Aspectos de eclesiologia de comunhão nos Santos Padres

Não pode ter a Deus por Pai quem não tem a Igreja por mãe (São Cipriano, 1973)

Buscar-se-á neste item apresentar os aspectos da eclesiologia dos principais Padres da Igreja, sempre perseguindo o conceito de comunhão. Ainda que laconicamente, apresentar-se-ão os principais Pais da Igreja e sua teologia no que concerne à eclesiologia de comunhão. Não se olvide do caráter lacônico das abordagens que limitar-se-ão aos aspectos principais e aos textos notórios. Far-se-á necessário eleger alguns Padres da Igreja e relegar outros a não alusão, sem, contudo, afirmar que nos não citados não exista uma conspícua teologia da eucaristia e sua ligação intrínseca com a eclesiologia em vista da comunhão.

2.1 A eucaristia como locus e ápice da comunhão eclesial

A teologia dos Santos Padres da Igreja, no que concerne à compreensão da Igreja como comunhão, poder-se-ia asseverar que como ponto comum entre as diversas épocas e escolas teológicas é o dado cristológico-eclesial da Eucaristia.

A teologia patrística não separava a Igreja de Cristo, nem a Igreja da Eucaristia, por conseguinte a eclesiologia dos Padres era unida ao Mistério de Cristo e da Eucaristia. Ilustrador é o texto de Eusébio de Cesaréia de sua obra História Ecclesiástica 10,2-3. Este assevera a alegria oriunda da “paz constantiniana” (313), em que a liturgia aparece como em ligame com a Igreja:

Para nós foi sobretudo uma alegria indizível e uma felicidade sobre-humana ver as igrejas erguerem-se de suas ruínas [...] ver o espetáculo tão desejado por todos, isto é, um suceder-se de festas de dedicação e de consagração de igrejas em todas as cidades [...]. Sim, tudo era esplêndido: as celebrações dos bispos, os ritos dos sacerdotes e o comportamento digníssimo das assembleias, que se manifestava tanto na salmodia e na escuta da palavra de Deus como nas divinas celebrações dos símbolos inefáveis (a eucaristia) da paixão do Salvador (CESARÉIA, 2000).

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A partir do mandato do Senhor de fazer memória D’Ele, a “Ceia do Senhor” ou Ceia Pascal foi aceita como dom de Cristo à Igreja. Dom, este, no qual Jesus se dá por interio ao Pai e aos homens. Esta anamnese do Senhor à Igreja compreende como sendo o locus privilegiado de onde emana o convite e a possibilidade da comunhão eclesial.

A communio era a expressão máxima da Igreja, assim como a Trindade é comunhão inter-relacional das Pessoas Divinas, a Igreja como ícone da Trindade é comunhão entre o gênero humano, a nova humanidade dos remidos, povo santo, casa de comunhão. Portanto, ser cristão era entrar na dinâmica comunal, nos mistérios santos, que se expressavam na caridade, pois eram unânimes na comunhão fraterna, na oração e na “fração do pão.” (At 2,42).

Em suma, para os Padres da Igreja e autores cristãos antigos, a eclesiologia não era desvinculada da Eucaristia e somente se compreenderá a Igreja colocando-a como ligame na Eucaristia que é a sacramentalidade da communio.

2.2 A doutrina eucarística: os séculos I-III

O período que compreende os três primeiros séculos da história do cristianismo deixou para a posteridade três importantes testemunhos acerca da liturgia e da teologia da eucaristia: a Didaqué, que é do fim do I século; as descrições litúrgicas de Justino, em torno do ano 150, e, por fim, a Traditio Apostolica de Hipólito de Roma, em torno de 215-225; contudo, o texto anafórico hipolitano será apresentado no item que tratará dos aspectos da eclesiologia de comunhão na liturgia.1

Estes testemunhos dos séculos I ao III demonstram que na Igreja primitiva existia uma conspícua relação entre a doutrina Eucarística, a liturgia e a eclesiologia.

1 LODI, E. É cambiata la Messa in 2000 anni? Italia: Marietti, 1975. PADOIN, G. O Pão que eu darei: o sacramento da eucaristia. São Paulo: Paulinas, 1999, p.84.

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A Didaqué2 assume em conexão com a doutrina e opção entre as “duas vias”, desenvolvendo em seus capítulos a prática litúrgica e a compreensão teológica no que tange à celebração do Batismo, da Penitência e da Eucaristia.

Poder-se-iam apresentar alguns capítulos relevantes: no capítulo 9 encontra-se a descrição das orações e ritos que eram realizados sobre o pão e o vinho; nota-se que no posterior capítulo, o 10, há um texto eucológico muito semelhante ao da “liturgia” do judeu piedoso após a refeição.

Outro aspecto que se destaca na Didaqué é a referência à Igreja unida, numa preclara referência à simbologia do pão, que sendo um alimento feito de muitos trigos, estes amassados formam um só pão.3 Assim assevera o texto da Didaqué:

Nós vos damos graças, ó nosso Pai, pela vida e pelo conhecimento que nos revelastes por meio de Jesus Cristo, vosso servo, Glória a vós pelos séculos! Assim como este pão aqui partido estava antes esparso pelos vales, e após ter sido recolhido tornou-se ‘um’, assim também acolhei a vossa Igreja desde as extremidades da terra para o vosso Reino. Porque vossa é a glória e o poder, por Jesus Cristo nos séculos [...].4

O texto do capítulo 10 é claramente um texto oracional de cunho eucarístico, ou seja, de ação de graças. E a eclesiologia que brota deste texto poder-se-ia afirmar ser uma analogia entre a unidade

2 Alguns especialistas negam que na Didaqué encontra-se uma referência à Eucaristia, principalmente os capítulos 9 e 10, contudo, poder-se-iam citar outros especialistas dentre ao quais liturgistas e patrólogos renomados, tais como: Battifol, Casel, Quasten, Bouyer e outros. Estes defendem o contexto eucarístico dos capítulos 9 e 10, para tanto, basta constatar que no capítulo 9 assevera-se que “[...] ninguém coma ou beba da vossa Eucaristia, a não ser que esteja batizado em nome do Senhor”. Não haveria sentido em excluir os não batizados, caso não fosse uma Eucaristia propriamente dita. “Esta cláusula exclusiva no tocante aos não batizados tem uma razão de ser na ‘sacramentalidade’ da Eucaristia.” PADOIN, G. O Pão que eu darei: o sacramento da eucaristia. São Paulo: Paulinas, 1999, p.86.

3 Esta tipologia será muito utilizada na teologia dos Santos Padres para se referir à Igreja e sua comunhão. Nota-se que esta simbologia também aparece nos textos anafóricos.

4 DIDAQUÉ ou doutrina dos Apóstolos. Petrópolis: Vozes,1973.

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eclesial com a unidade do pão eucaristicizado, que outrora eram muitos grãos “esparsos pelos vales”, mas que recolhidos se tormam “um”. A unidade da Igreja se faz em torno do pão, pois a Igreja é a nova Belém – casa do pão, comunidade que se reúne em torno do pão da Palavra e da Eucaristia.5

O segundo testemunho é o de Justino, os textos são: Diálogo com Trifon, os capítulos 41, 1; 97, 3 e Apologia I, os capítulos de 65-67, nestes transparece com riqueza de detalhes a liturgia e o rito da celebração da Eucaristia. Esta Eucaristia apresentada por Justino é uma ação litúrgica do memorial sacrifical do Senhor. Justino relata a prática litúrgica da Igreja primitiva, que celebrava a Eucarista primeiramente e de forma solene na “noite pascal”, após a celebração do batismo dos neófitos e no “dia do sol”, ou seja, aos domingos.

Ressalta dos textos de Justino a insistência na ‘oração eucarística’ única e pronunciada pelo presidente, não se tratando de preces distintas, mas uma só. Justino com esta insistência queria exprimir que a unidade da assembleia reunida pelo Senhor para fazer memória de Sua Páscoa vinha da comunhão na mesma oração ao Pai pelo Filho na unidade do Espírito Santo. A comunhão eclesial é realizada enquanto assembleia que ora unida.

Na obra Apologia I, no capítulo 66, Justino, em consonância com o estilo do Evangelho de João, compreende a Eucaristia numa tríplice mutação, a saber: o Logos que torna carne, o pão e o vinho que se tornam carne e sangue do Senhor para ser nosso alimento e os cristãos nutridos por Cristo, se tornem cristóforos. 2.3 A doutrina eucarística: padres apostólicos e apologistas

Padoin assevera que o trabalho da ‘inteligência’ deve acompanhar a celebração para que haja a compreensão do conteúdo e dos ligames entre o “fato eucarístico”, o Mistério crístico e o mistério da Igreja, assembleia que se torna “corpo de Cristo no Espírito.”6

5 SC 7.6 PADOIN, G. O Pão que eu darei: o sacramento da eucaristia. São Paulo: Paulinas,

1999, p.90.

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Contudo, a teologia dos primeiros autores cristãos foi mais apofática, não transformando o banquete do Senhor em objeto de especulação, mas de experiência, louvor, doxologia.

A teologia dos padres apostólicos e apologetas utilizava expressões crísticas, tais como: invisível, ressurreto, contudo, presente permanentemente na sua Igreja, seu corpo. Essa teologia é bem afinalada à teologia paulina da carta aos Coríntios. Estes elementos de uma teologia da Eucaristia, ainda que incipientes, encontram-se nos Padres Inácio de Antioquia e Irineu de Lyon.

Em Inácio de Antioquia, encontra-se já no século II o modo de organização da Igreja, onde aparecem as figuras do bispo, presbítero e diácono. Não se olvide que os escritos de Inácio, por sua antiguidade e vinculação direta aos apóstolos, ganham autoridade na Igreja primitiva.

São famosas as sete cartas de Inácio, em que transparece a Eucaristia como evento salvífico e ponto de centralidade onde grafita a vida Eclesial. Poder-se-ia ainda que laconicamente sintetizar a doutrina inaciana nos seguintes pontos: primeiramente, em alguns textos célebres, o termo “eucaristia” é usado como léxico específico. Na carta a Esmirna, a Eucaristia é associada ao louvor e à prece, como fonte inesgotável de salvação, assim na carta aos Efésios afirma Inácio: “[...] empenhai-vos em vos reunir com frequência para eucaristia. Quanto estais reunidos as forças do Diabo ficam impotentes.”7

Nessas assertivas inacianas transparece uma eclesiologia, em que a reunião assembleial em torno da eucaristia garante a comunhão da própria Igreja, contra as “forças do Diabo”, o divisor, aquele que é “antiecclesia”, anticomunhão – somente em torno da Eucaristia, sacramento de comunhão com o Mistério trinitário e crístico e de comunhão com os irmãos. Inácio teologiza a ação de graças (eucaristia) como possibilidade de comunhão eclesial, em que as forças do “diábolos” (o que divide) não tem como dividir a Igreja que é una em Cristo.

7 INÁCIO DE ANTIOQUIA, Ef. 13,1.

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Outro ponto que se destaca dos escritos inacianos é o significado cristológico e eclesial da Eucaristia; na carta a Filadelfia, Inácio assevera que “Uma é a carne de Nosso Senhor Jesus Cristo, e um é o cálice de seu sangue; um é o altar, como um é o bispo [...]8. Para Padoin, o valor eclesial transparece no fato de que o sacramento da Eucaristia (corpo e sangue do senhor) é sacramento de unidade, pois a Eucaristia nos põe em unidade contra os promotores do cisma. Este dado aparece nas cartas a Esmirna 8,1-2 e a Filadelfia 4. Os critérios da eclesialidade como comunhão estão nos sinais “sacramentais” e simbólicos (o símbolo une) da oração litúrgica presidida pelo bispo em torno do único altar (Smir. 7,2). Assim assevera Padoin: “A Eucaristia, fazendo com que todos comunguem no corpo do Senhor, realiza a unidade e cria aquele corpo que é a Igreja [...].”9

Em suma, poder-se-ia afirmar que a doutrina eucarística de Inácio de Antioquia é uma realidade essencialmente espaço de unidade, em que os comungantes do corpo do senhor realizem e criem aquele corpo que é a Igreja, no aforismo inaciano: “uma só carne de Cristo, uma só Eucaristia, uma só Igreja.”10

O outro autor investigado é Irineu de Lyon. Segundo Hamman11, o ensinamento eucarístico do referido autor é fruto dos problemas por ele vividos como missionário e bispo e que revelam a centralidade da Eucaristia. O problema é circunscrito à figura de Marcos, que apresenta seduzindo os habitantes da cidade gaulesa de Lyon de uma doutrina gnóstica em que transparece o dualismo radical, em que se põem Deus e o mundo. Contra esta doutrina gnóstica, Irineu apresenta a tradição da Igreja e a imagem das duas mãos do Pai, a saber, o Filho e o Espírito que operam no mundo, marcando uma não oposição entre Deus e o mundo, numa teologia da criação com fundamentos bíblicos e na tradição.

8 INÁCIO DE ANTIOQUIA, Filad. 4.9 PADOIN, G. O Pão que eu darei: o sacramento da eucaristia. São Paulo: Paulinas,

1999, p.92.10 INÁCIO DE ANTIOQUIA, Filad. 4.11 HAMMAN, A. L’Eucharistie des premiers chrétiens. Paris: Beauchesne, 1976.

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De sua doutrina resume-se: primeiramente a Eucaristia como sinal da continuidade entre a criação e a salvação; no Adversus Haereses, afirma Irineu que a comunhão eucarística transmite as propriedades da cabeça, a saber Cristo, ao corpo, isto é, a todos os irmãos de Cristo com os quais se plasma a Igreja. Para Irineu, “nós somos os membros de seu corpo, formados pela sua carne e por seus ossos.”12

Na teologia eucarística de Irineu, a relação da Eucaristia e da Igreja, numa preclara influência da teologia paulina da carta aos Coríntios 12, acerca do corpo de Cristo e da cabeça, que é Cristo. Assim, Irineu assevera que a Igreja é comunhão em Cristo cabeça, como “formados por sua carne por seus ossos.”

2.4 A escola alexandrina: Clemente e Orígenes

Fato notório nos séculos II e III na história da Igreja foi o surgimento das escolas catequéticas cirscunscritas aos centros urbanos e culturais da antiguidade. Dessas escolas destacam-se a escola africana de Cartago e a escola alexandrina e antioquena. No que tange à importância teológica dessas escolas, é notória a influência das mesmas, nas controvérsias trinitárias e cristológicas, com relevância as escolas de Antioquia e Alexandria.

Neste item perquisar-se-á a escola alexandrina, com destaque para seus mestres mais famosos, a saber, Clemente de Alexandria e Orígenes, que comungam na linguagem que vê no centro da mistério cristão o “Logos”. Assim a Eucaristia é compreendida como uma presença do Logos. Contudo, devido ao formato deste trabalho que deve ser limitado, analisaremos somente Orígenes.

Para Orígenes, a Eucaristia é o “corpo de Cristo”, a realidade eucarística diz respeito ao corpo que está sobre o altar e Orígenes afirma que há outro corpo, o povo santo que celebra a Eucaristia, numa preclara eclesiologia associativa do “corpo eucaristicizado” e do corpo assembleial que celebra como povo santo e sacerdotal o culto eucarístico.

12 IRINEU DE LYON, Adversus Haereses, 5, 2-3.

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Outro dado que se destaca na teologia origenista é a relação entre a palavra e pão, desenvolvendo um estreito paralelismo entre a palavra de Deus e a Eucaristia. A palavra também é “corpo de Cristo”, não sendo imperioso separar a mesa da Palavra e do Pão, pois ambas estão intimamente unidas na celebração eucarística. Assim, assevera Padoin, “a palavra é essencial ao ‘corpo de Cristo’, porque é através dela, através da invocação do Espírito Santo, que a oferta do pão é santificada, bem como a assembleia de todos aqueles que participam da celebração.”13 Assim a Igreja torna-se a nova Belém – casa do Pão e casa da Palavra e os cristãos estão em comunhão pela mesma casa que nos nutre do Pão da Palavra e do Pão da Eucaristia.

2.5 A escola antioquena

Os teólogos da escola antioquena, os orientais, ou seja, os Padres que se situam na região da Síria, compreendem a Eucaristia sublinhando com vigor o aspecto humano e salvífico da cruz.14 Destes destaca-se a teologia de Teodoro de Mopsuestia15, que afirma, pois, uma identidade entre o corpo histórico e o corpo eucaristicizado de Jesus, este é o mesmo corpo nascido da Virgem Maria, entregue na cruz e presente na Eucaristia; esta doutrina é partilhada por Crisóstomo. Para Teodoro de Mopsuestia, a identidade entre o corpo de Cristo “Eucaristia” e a Igreja corpo de Cristo dá-se pela comunhão entre Cristo e a Igreja, que são um mesmo corpo; assim, a comunhão eclesial é por Cristo, em Cristo e com Cristo.

2.6 Os Padres latinos: Tertuliano e Cipriano

Este item deter-se-á sobre os textos e Padres latinos: Tertuliano, Cipriano e Ambrósio, perquirindo a eclesiologia de comunhão nos mesmos.13 PADOIN, G. O Pão que eu darei: o sacramento da eucaristia. São Paulo: Paulinas,

1999, p.101. Este pensamento origenista pode ser encontrado descrito no In. Mateus Serm. 85.

14 BETZ, J. Eucaristia: mistério central. In: FEINER, Johannes; LOEHRER, Magnus (Coords.). Mysterium Salutis: compêndio de dogmática histórico-salvífica. Petrópolis: Vozes, 1977. v.4; p.5. p.268-275.

15 THÉODORE, Bishop de Mopsueste. Les homélies catechetiques. Introdução de Raymond Tonneau, Robert Devreese. Cittá del Vaticano: Biblioteca Apostolica Vaticana, 1949.

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Da teologia de Tertuliano, no que concerne ao nosso estudo, destaca-se no seu texto16 a prática da Igreja africana de levar para as casas o corpo e sangue do Senhor para que possam comungar nos dias não litúrgicos; deste dado, poder-se-ia asseverar que para Tertuliano e, mais ainda, para a Igreja africana, a Eucaristia era tão importante que a ‘comunhão’ era levada para as casas em vista de uma ‘comunhão’ entre os membros da casa e os ausentes.

Uma eclesiologia que se faz desta prática: uma compreensão de que a Eucaristia gera comunhão tanto eclesial como na “oikos” – casa, uma verdadeira Igreja doméstica surge daí. Uma comunhão em casa e na casa, em vista da comunhão maior com a comunidade que no domingo celebrou a memória do Mistério Pascal de Jesus, assim mantinha-se o vínculo de comunhão pela Comunhão no Corpo do Senhor. Quanto aos ausentes, por motivos de doença, velhice ou trabalho, era a oportunidade de manter o vínculo de comunhão com a comunidade eclesial pela comunhão nos mesmos Mistérios.

O outro autor é o bispo africano Cipriano de Cartago, que enviou, no ano de 253, a Carta número 63 a Cecílio, que era bispo de Biltha. Desta carta, Battifol afirma que “[...] é o documento mais considerável que a literatura cristã dos três primeiros séculos produziu sobre a Eucaristia.”17

Esta carta 63 de Cipriano é motivada pelo uso dos “aquarianos”, ou seja, os que colocavam um pouco de água no cálice com vinho para celebrar a Eucaristia.18 Há uma simbologia na água misturada ao vinho. Para Cipriano, a água é símbolo do povo que está em comunhão com Cristo19, assim, a Eucaristia inclui a Igreja. Cristo e o seu povo tornam-se inseparáveis, assim como a água que misturada ao vinho não se distinguem mais as partes.

16 TERTULIANO, De Orat. 19 e o De Idol. 7.17 JOANNY, R. Cyprien de Cartge. LDC, 1976, p.152.18 Não se olvide que a utilização da água e a recusa em usar o vinho era uma práxis

das eitas dos Encrastitas e dos Ebionitas.19 CIPRIANO, Carta 63, 13.

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| 69A doutrina de Cipriano no que concerne à eclesiologia de

comunhão é também, como a dos demais Padres, Eucarística. Há em Cipriano uma eclesialidade da Eucaristia, o mesmo afirma que Cristo se dá a nós e nos faz habitar na unidade. A Eucaristia para Cipriano, segundo Padoin, revela a constituição da Igreja “de unitate Patris et Filii et Spiritus Sancti plebs adunata.”20

Na carta 63 Cipriano afirma que o corpo de Cristo é corpo eucarístico e corpo eclesial e não se realiza fora da comunidade eclesial21. Dessa compreensão, Cipriano tira as consequências, segundo as quais fora da verdadeira Igreja não pode haver verdadeira Eucaristia no meio cismático, que dilacera o corpo de Cristo, não pode realizar-se a Eucaristia, pois este é “Sacramentum unitatis”, na bela imagem que Cipriano retoma da tradição (Inácio de Antioquia) dos grãos que se fundem para formar um só pão. Em suma, para Cipriano, a Eucaristia é figura e fonte da Igreja para a sua unidade e comunhão.

2.7 “Totus Christus caput et corpus”: eclesiologia de Agostinho

Segundo Gerken22, em Agostinho devem se destacar dois conceitos que servem de ponto de partida para a compreensão da eclesiologia; contudo, o que concerne ao nosso tema é a estreita ligação entre a Igreja e Cristo na Eucaristia. Essa conexão para Agostinho está consignada na famosa expressão: “totus Christus caput et corpus.”

Para o mestre de Hipona, a conexão entre a Igreja e a Eucaristia é tal que a Eucaristia faz a Igreja e a Igreja faz a Eucaristia. Segundo o mesmo, o que ocorre no batismo torna-se perfeito na Eucaristia, é ali que o caput da Igreja funda a unidade do organismo inteiro.

A Eucaristia é um símbolo da Igreja e seus frutos só podem ser produzidos nos que já são Igreja. Segundo Padoin, a teologia do mestre de Hipona acerca da eclesialidade da Eucaristia configura-se como

20 CIPRIANO, De dom., 23.21 CIPRIANO, Carta 63, 13,4.22 GERKEN, A. La Teologia dell’Eucaristia. Alba: Edizione Paoline, 1977, p.100.

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uma Igreja, pois, pré-existente, e que é alimentada pela Eucaristia, numa dinâmica de mutualidade: a Igreja faz a Eucaristia (celebra) e a própria Eucaristia faz a Igreja ser o que é – corpus Christi. Somente unindo Cristo e a Igreja que se compreende a teologia agostiniana, em que o Cristo total é seu corpo e seus membros.

3 Aspectos de eclesiologia de comunhão na liturgia

Um teólogo, por sua vez, aí [na Liturgia] encontra referências de primordial importância quando tem em vista a reconstituição do significado que a Igreja tem atribuído e continua atribuindo à celebração eucarística, momento central e normativo do seu caminho ao longo da história (SARTORE; TRIACCA, 1992, p.938).

Já os Santos Padres intuiam que na liturgia Cristo é encontrado de forma toda especial, como afirma Leão Magno: “Tudo o que havia de visível em nosso redentor, passou para os mistérios (liturgia/sacramentos).”23 Para Vaggagini, a Liturgia é o locus privilegiado onde o teólogo encontrará referências para a compreensão da dogmática, unindo lex orandi com a lex credendi:

Por isso a contribuição da liturgia para o pensamento teológico recente pode ser resumida na afirmação da seguinte regra metodológica geral: de nenhum dogma tem-se consideração integral se esta não inclui também a perspectiva de sua verificação na liturgia.24

3.1 A eclesiologia nas anáforas eucarísticas

Apresentar-se-á neste item, o testemunho da comunidade cristã que consigna por escrito textos eucológico-anafóricos que transparecem uma eclesiologia, contudo deter-se-á no aspecto de comunhão eclesial.

23 LEÃO MAGNO, Santo. LXXIV Sermão – segundo sermão na ascensão do Senhor. In: LEÃO MAGNO, Santo. Sermões. São Paulo: Paulus, 1996, 213p. (Patrística, 6).

24 VAGGAGINI, Cipriano. Discurso inaugural do Pontifício Instituto de Liturgia de Roma – PIL. Roma: Ateneu Santo Anselmo de Roma, 2006.

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Na Traditio Apostolica25 de Hipólito de Roma, a Eucaristia é celebrada após a celebração do batismo26, na celebração dominical e na celebração na qual um bispo será consagrado (cap. 4).

A Prece Eucarística de Hipólito de Roma assenta-se sobre uma sólida teologia e sua estrutura pode ser apresentada assim: a Oração Eucarística é precedida da apresentação das ofertas e do ósculo da paz, inicia-se com o diálogo, segue-se a ação de graças ao Pai, por meio de seu Filho – o encarnado e enviado ao mundo. Segue-se o relato da instituição, ainda vem a anamnese da Páscoa – morte e ressurreição, por fim uma epíclese sobre a oferta da Igreja e implicitamente sobre a Igreja, pedindo unidade, concluindo-se com a doxologia de caráter eminentemente trinitário, comum nas orações litúrgicas.

A Anáfora hipolitana traz em seu bojo uma conspícua teologia do período patrístico, com uma proeminência na cristologia e eclesiologia. Para melhor visualização e posterior análise da eclesiologia, transcreve-se a Anáfora de Hipólito, contida na Traditio Apostolica:

O diácono apresenta a oferta [ao Bispo] e ele, impondo as mãos com todo o colégio dos presbíteros, exprime esta ação de graças: O Senhor esteja convosco. E com teu espírito. Corações ao alto. Temos o coração voltado para o Senhor. Demos graças ao Senhor. É próprio e justo. Nós te agradecemos, Deus, por meio do teu dileto filho Jesus Cristo, que nestes últimos tempos nos enviastes como Salvador, Redentor e Anjo (núncio) da tua vontade; ele é o Verbo inseparável,

25 A estrutura da Traditio Apostolica de Hipólito pode ser apresentada em três partes principais: a primeira contém um prólogo, cânones para a eleição e consagração de um bispo, e a oração de sua consagração, a anáfora que segue a esta cerimônia e as bênçãos do azeite, queijo e azeitonas. Segue as normas e orações para a ordenação sacerdotal e diaconal; finalmente fala-se sobre os confessores, leitores, viúvas, virgens, subdiáconos e dos que possuem o dom da cura. A segunda parte contém normas para os leigos, há legislação sobre os neófitos, sobre as artes e profissões proibidas, bem como do catecumenato, dos sacramentos de iniciação cristã – batismo, confirmação e, por fim, a eucaristia. A última parte da Traditio Apostolica traz a descrição da liturgia Eucarística dominical, regula o jejum em vista do ágape, a celebração do lucernário, recomenda-se a melhor hora de rezar, a comunhão diária em casa e o cuidado no trato com a Eucaristia.

26 Poder-se-ia apresentar um paralelismo entre Hipólito, Justino e a Didaqué, segundo Padoin: Didaqué, cap. 9-10, e Justino, Apologia I, cap. 65-67. PADOIN, G. O Pão que eu darei: o sacramento da eucaristia. São Paulo: Paulinas, 1999, p.88.

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por meio do qual tudo fizestes e que foi aceito por ti; tu o enviastes do céu no seio da (de uma) virgem, e, recebido no seio, tomou carne e se manifestou teu filho, nascendo do Espírito Santo e da (de uma) virgem; ele, cumprindo a tua vontade e conquistando para ti um povo santo, na Paixão estendeu as mãos, para assim poder libertar da Paixão (dor) aqueles que haviam de acreditar nele; ele, quando estava para ser entregue à sua voluntária Paixão, com a qual dissolveria a morte, romperia as correntes do demônio, pisotearia o inferno, iluminaria os justos, marcaria o fim e manifestaria a ressurreição, tomando o pão, deu graças dizendo: “Tomai e comei; isto é o meu corpo que será partido por vós”. Do mesmo modo (tomou) o cálice, dizendo: “Este é o meu sangue, que é derramado por vós; quando fizerdes isso, fazei-o em memória de mim”. Lembrando, portanto, a sua morte e a sua ressurreição, nós te oferecemos o pão e o cálice agradecendo-te porque nos considerastes dignos de estar diante de ti e de prestar-te culto. E (agora) te pedimos que envies o teu Espírito Santo sobre a oferta da santa Igreja, congregando na unidade todos os santos que desta (oferta) participam, para que sejam cheios do Espírito santo para poder confirmar a fé na verdade, e assim possamos te louvar e glorificar por meio do teu filho Jesus Cristo, o qual é glória e honra a ti, Pai e Filho com o Espírito Santo, na santa Igreja tua, agora e nos séculos dos séculos. Amém.27

Concentrar-se-á na oração epiclética que suplica o Dom do Espírito sobre a oferta da Igreja para congregar todos os que participam da Eucaristia, não para ‘mudá-las’ no corpo e sangue de Cristo, como fazem muitas epícleses da liturgia oriental e ocidental (II Oração Eucarística do novo Missal Romano). Contudo, o texto anafórico hipolitano apresenta-nos uma epíclese eclesial, quando expressa:

E te pedimos que envies o teu Espírito Santo sobre a oferta da santa Igreja, congregando na unidade todos os santos que desta (oferta) participam, para que sejam cheios do Espírito Santo para poder confirmar a fé na verdade e assim possamos te louvar e glorificar por meio do teu filho Jesus Cristo, o qual é glória e honra a ti, Pai e Filho com o Espírito Santo, na santa Igreja tua [...].28

Esta epíclese sobre a Igreja exprime uma bela teologia da ação do Espírito na Igreja – uma epíclise como a das ofertas em nossas atuais Orações Eucarísticas, nestas há uma dupla epíclese, a saber, sobre

27 HIPÓLITO. Traditio Apostolica. Petrópolis: Vozes, 1972. 4.28 HIPÓLITO. Traditio Apostolica. Petrópolis: Vozes, 1972. 4.

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as ofertas (pão e vinho) e sobre a Igreja (assembleia). Na realidade o termo Igreja vem do hebraico – qahal, que é “convocação, assembleia reunida”. Assim para Hipólito de Roma, é o próprio Espírito Santo quem convoca, reúne, faz a Igreja na celebração da Eucaristia.

Por fim, a Anáfora diz: “[...] para que sejam cheios do Espírito Santo […] para que possamos te louvar e glorificar [...]”. Entrevê-se nessa frase da Anáfora uma teologia do ‘auxílio do Espírito’ para o louvor e a oração, como diz-nos Paulo: “Assim também o Espírito socorre nossa fraqueza. Pois não sabemos o que pedir como convém; mas o Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis [...].”29

A doxologia final da anáfora hipolitana é cristocêntrica e eclesiológica ao dizer: “[...] por meio do teu filho Jesus Cristo, o qual é glória e honra a ti, Pai e Filho com o Espírito Santo, na santa Igreja tua, agora e nos séculos dos séculos. Amém.”. O texto anafórico termina doxologicamente remetendo a assembleia orante ao mistério Trinitário. Numa relacionalidade entra a comunhão trinitária e a comunhão eclesial, assim a Igreja/assembleia orante em Eucaristia é ícone da comunhão trinitária. E mais, a comunhão eclesial é originada e sacramento da comunhão trinitária.

A eclesiologia hipolitana apresenta dois aspectos, um hierárquico e o outro espiritual. O aspecto hierárquico de sua eclesiologia, como afirma Quasten, tem “[...] mucho em comum com Ireneo.” 30 Ao refutar as heresias e as ‘novidades’ que se impõem ao cristianismo, Hipólito quer provar que a Igreja é a depositária da verdade e que a sucessão apostólica dos bispos – hierarquia – é a garantia de sua transmissão, uma verdadeira teologia da Traditio.

29 Rm 8,2630 Ainda que Hipólito tenha sido influenciado por Irineu de Lião, afirma Quasten que

“[...] a pesar de ser discípulo de Ireneo, quien habla tan claramente de la maternidade de la Iglesia, em las obras de Hipólito no se mencione uma sola vez el título de Iglesia Madre. En esso sigue la tradición romana primitiva y no la concepción oriental. Hay, em cambio, em sus obras muchas referencias a la Iglesia como Esposa y Novia de Cristo”. QUASTEN, J. Patrologia: hasta el concílio de Nicea. Madrid: Biblioteca dos Autores Cristianos, 1991, p.506.

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Após trabalhar-se a anáfora hipolitana, ser-nos-ia necessário apresentar a eclesiologia das novas Orações Eucarísticas; para tanto, limitar-se-á à teologia da segunda epíclese. A primeira epíclese é sobre os dons do pão e do vinho que são eucaristicizados e tornam-se o Corpo e Sangue do Senhor. Contudo, há nas anáforas uma segunda epíclese, esta é sobre a assembleia, a mesma Igreja que evoca o Espírito sobre o Pão e o Vinho, invoca o Espírito sobre a assembleia para transformar a comunidade reunida em torno do altar em corpo de Cristo.

A Oração Eucarística I assevera que se oferece este sacrifício “[...] pela Igreja santa e católica: concedei-lhe paz e proteção, unindo-a num só corpo [...]” e como resposta a assembleia aclama dizendo: “Conservai a vossa Igreja sempre unida”. Nota-se uma atitude oracional em que a comunidade-Igreja pede ao Senhor que a conserve na comunhão, bem como destaca a teologia paulina de Cor. 12, do corpo de Cristo. Em algumas solenidades relacionadas ao Mistério Pascal, a Oração Eucarística I propõe os “comunicantes próprios”, que se iniciam com a frase: “Em comunhão com toda a Igreja celebramos o dia santo [...].”

Na Oração Eucarística II, encontra-se: “E nós vos suplicamos que, participando do Corpo e Sangue de Cristo, sejamos reunidos pelo Espírito Santo num só corpo”. A teologia desta II Prece Eucarística rememora o sentido lexical da própria Igreja, que é comunidade-assembleia reunida, convocada pelo Espírito Santo, que faz a Igreja ser um só corpo com Cristo – o Cristo total: cabeça e corpo. Encontra-se ainda a seguinte prece: “Lembrai-vos, ó Pai, da vossa Igreja que se faz presente pelo mundo inteiro: que ela cresça na caridade [...]”, revelando o caráter de comunhão eclesial das comunidades todas dispersas pelo mundo inteiro, que em Cristo formam uma só Igreja de Cristo.

A Oração Eucarística III afirma que “[...] pela força do Espírito Santo, dai vida e santidade a todas as coisas e não cessais de reunir o vosso povo, para que vos ofereça em toda parte, do nascer ao pôr-do-sol, um sacrifício perfeito”, a pneumatologia é desenvolvida como sendo o Pneuma a “reunir” o que está disperso, para congregar na “Unidade do Espírito Santo”, ou seja, a comunhão eclesial é obra

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do Espírito Santo, que reúne os que “circundam este altar” (OE I). E a posteriori, ora pedindo que o Pai olhe com bondade a oferenda da Igreja, que, alimentada pelo Corpo e Sangue do Senhor, seja ‘repleta’ do Espírito Santo e “[..] nos tornemos em Cristo um só corpo e um só espírito”. A este pedido, a assembleia responde aclamativamente “Fazei de nós um só corpo e um só espírito”.

Na Oração Eucarística IV, pede-se: “[...] concedei aos que vamos participar do mesmo pão e do mesmo cálice que, reunidos pelo Espírito Santo num só corpo, nos tornemos em Cristo um sacrifício vivo para o louvor da vossa glória”.

Por fim, a Oração Eucarística V pede: “E quando recebermos Pão e Vinho, o Corpo e sangue dele oferecidos, o Espírito nos una num só corpo, para sermos um só povo em seu amor”, a anáfora brasileira afirma que é por obra do Espírito Santo que a Igreja se torna um só povo em seu amor, este ‘amor’ na tradição patrística é o próprio Espírito Santo.

Em suma, as anáforas eucarísticas de forma geral terminam com a doxologia: “Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda honra e toda glória, agora e para sempre”, as doxologias asseveram que a comunhão-unidade é fruto e dom do Espírito Santo.

4 Considerações finais

Os Santos Padres recorrem à imagem poética e, ao mesmo tempo, profética com que o livro do Gênesis nos descreve a origem da mulher. Como Eva nasceu do lado de Adão, assim a Igreja, a esposa de Cristo, nasceu da ferida do lado do novo Adão, quando dormia sobre a Cruz.

Esta teologia acerca da Igreja perpassa toda a patrística. Já pelo final do século II, Tertuliano escrevia: “Se Adão foi figura de Cristo, o sono de Adão foi também figura do sono de Cristo, dormindo na morte sobre a Cruz, para que, pela abertura do seu lado, se formasse

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a verdadeira mãe dos vivos, isto é a Igreja.”31 Santo Ambrósio também fala de Cristo como o novo Adão e afirma que a vida da Igreja brotou do lado de Cristo e que todos nós somos membros do seu corpo, de sua carne, de seus ossos. A Igreja é a verdadeira Eva, mãe de todos os viventes.

Da bela produção teológica dos Padres e dos textos anafóricos depreende-se uma não menos bela eclesiologia de comunhão, centrada no “Sacramentum unitatis”, ser-nos-ia necessário tirar as consequências pastorais, espirituais e teológicas desta rica tradição que recebemos como dom e devemos entregar aos demais com o mesmo ardor, enriquecendo-a com novas perspectivas. Assim a Igreja é como “plebs adunata de unitate Patris et Filii et Spiritus Sancti”.

Vanderson de Sousa Silva, leigo, mestrando em Teologia Sistemático-Pastoral na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, PUC-Rio e em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Leciona na Mater Ecclesiae e é assessor de pastoral na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição - Realengo. E-mail: [email protected]

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31 PL t. II, col.767

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A BÍBLIA: MÉTODOS DE LEITURA

E ABORDAGENS POSSÍVEISOrione Silva

Solange Maria do Carmo

De vez em quando alguém aparece perguntando sobre os métodos de leitura da Bíblia e sobre qual deles é mais apropriado para lançar luzes sobre os textos bíblicos.

Bom, essa questão é intrigante: lançar luzes sobre os caminhos da Bíblia. Certamente, ao longo da história da exegese cristã, muita coisa foi feita. Muitas luzes foram projetadas sobre o texto, muitos métodos surgiram e o texto ganhou mais transparência, mais visibilidade pelo esforço exegético e hermenêutico de uma porção de estudiosos que se empenharam em decifrá-lo.

Em linhas gerais, nós poderíamos classificar os métodos que tiveram força e status em momentos importantes nessa caminhada de investigação em três grupos: métodos que priorizam o autor, o leitor ou o texto. Vejamos um pouco mais sobre cada um desses caminhos metodológicos.

1 Métodos que priorizam o autor do texto

Numa primeira abordagem, o interesse de pesquisa dos exegetas foi o autor do texto: sua intenção, o que ele queria dizer com seu escrito no contexto em que ele se encontrava. Essa pesquisa muito contribuiu para a compreensão das Sagradas Escrituras. São os chamados métodos histórico-críticos, tão conhecidos dos teólogos,

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especialmente dos exegetas – aqueles que se debruçam sobre o texto bíblico para destrinchá-lo e melhor explicá-lo. Quem já fez teologia pelo menos já ouviu falar desses métodos. Mas eles não são de todo desconhecidos dos não teólogos. Vamos lembrá-los:

a) Crítica textual: o objetivo desse método é reconstituir o texto no estado original do momento em que ele foi publicado. Nós não temos os originais da Bíblia. Temos diversos manuscritos (pergaminhos e papiros), mas que são cópias de cópias de cópias... Na hora de copiar o texto, o copista fez modificações. Ele pode ter modificado o texto intencionalmente, por exemplo, para torná-lo mais claro. Ou pode ter modificado sem querer, por exemplo, por descuido, pois já estava cansado de tanto copiar textos à luz de velas e aí saltou uma frase, ou colocou sem querer no lugar outra coisa que estava em sua cabeça. É bom lembrar que tudo era feito manualmente, num trabalho minucioso e delicado, sem as técnicas modernas, sem a ajuda da imprensa. Cada texto era copiado artesanalmente, como se pinta um quadro ou se faz um trabalhoso bordado. Num trabalho artesanal, podemos fazer a mesma obra, mas ela nunca sai igualzinha. Então, os estudiosos ficam comparando os manuscritos que nos sobraram. É como se pegassem uma lupa ou um microscópio para melhor ver o que está desenhado na obra. Aí aparecem as diferenças. E além de compararem manuscritos bíblicos entre si, comparam também os manuscritos com outros textos antigos em que as citações bíblicas aparecem, por exemplo, num manual de liturgia, num escrito de algum antigo Pai da Igreja (os Santos Padres) etc.

A crítica textual não está interessada no sentido do texto, na mensagem que está veiculada naquele registro. Ela apenas procura saber até que ponto o texto bíblico que temos em mãos é mesmo o texto que foi escrito lá no começo. Então, a pergunta que norteia essa pesquisa é: “O texto que temos hoje em mãos é mesmo o que o autor escreveu originalmente?” Ou ainda: “Posso mesmo confiar neste texto que hoje estou lendo?”. Note que o acento está sobre o autor, sobre o que ele escreveu. Recuperar isso não é tarefa fácil. E há regras para fazer essa pesquisa. São regras rigorosas, baseadas nas ciências modernas.

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b) Crítica histórica: o objetivo desse método é, tanto quanto possível, reconstruir os fatos narrados com a máxima objetividade histórica. Ou seja, a tentativa é recuperar a historicidade do fato narrado pelo autor, até porque se pensou que a Bíblia fosse um livro de história, um livro de relatos de fatos acontecidos na vida do povo de Israel durante sua história. Essa pesquisa já foi muito importante. Agora, nem tanto mais. A Igreja compreendeu que a Bíblia apresenta um relato teológico dos fatos e não um relato histórico. E essa verdade teológica que a Bíblia narra vem na embalagem dos diversos gêneros e formas literários. Essa descoberta mudou bastante a abordagem bíblica, o jeito de lidar com os textos.

A pergunta principal da crítica histórica é a seguinte: “Quando o autor relata um evento, podemos acreditar que de fato isso aconteceu? As palavras escritas na bíblia foram mesmo ditas por Jesus e por outros personagens bíblicos?”. Para responder a essa interrogação, o pesquisador confere os relatos bíblicos com os testemunhos arqueológicos ou com documentos da época. Ele procura ver se há registros na história que confirmem aquela narrativa. Além disso, ele confere os textos da Bíblia, comparando-os para ver se são coesos ou se entram em contradição. Note que o acento continua sobre o autor: “O que ele escreveu é verdade ou não? O que ele escreveu aconteceu?”. Recuperar isso também não é nada fácil. Há regras, critérios estabelecidos para fazer essa pesquisa.

c) Crítica literária: o objetivo desse método é descobrir o que o autor quis dizer quando escreveu o texto. Para isso, levam-se em consideração as circunstâncias em que o texto foi escrito e o tipo de literatura que o povo produzia naquele tempo. Esse estudo foi muito importante para desvendar certos enigmas de alguns textos bíblicos, por exemplo, quem é o autor do texto, se é um autor só ou se o texto foi composto por várias mãos etc. Foi graças a essa pesquisa que a gente conseguiu penetrar mais no Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia), que a gente descobriu que a famosa Carta de Paulo aos Hebreus não foi escrita por Paulo, assim como muitas outras a ele atribuídas. Foi aí que a gente descobriu a chamada pseudoepigrafia: a atribuição de um escrito a outra pessoa, para homenagear alguém,

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para dar mais credibilidade ao texto ou até para remetê-lo a uma origem mais antiga e mais confiável.

A pergunta que norteia esse trabalho é a seguinte: “Por quem, onde, como, quando, para quem, por que esse texto foi escrito?”. Ou ainda: “O que o autor quis dizer quando relatou essa história nessa dada época?” Veja que de novo a pergunta gira em torno do autor: quem escreveu, como escreveu etc. Para fazer esse trabalho, o estudioso da Bíblia busca fontes arqueológicas, literárias, arquivos e registros da época. Ele vasculha a própria Bíblia para ver os sinais que estão nela presentes. Por exemplo, ele estuda o estilo do texto, o seu vocabulário e o pensamento ali registrado, comparando-os com outros textos da época. Um trabalho também muito árduo e penoso, que exige muita dedicação e critérios muito sérios. Para isso, o estudioso conta também com a ajuda de diversas ciências modernas.

d) Estudo da Tradição: o objetivo desse estudo é saber como se formou a memória que deu origem ao texto. Todo texto bíblico, antes de ser escrito, foi vivido, transmitido, interpretado. Então, é importante saber qual era o interesse das pessoas ao conservar essas histórias, o que elas queriam transmitir, se havia grupos que pensavam diferente etc. Essa é, então, uma preocupação com a transmissão literária do texto. Esse tipo de investigação ajuda a mergulhar melhor no texto, porque dá a oportunidade de conhecer a tradição na qual ele nasceu, seu contexto, a realidade de fé e de vida que o cercava. Descobrimos que um texto vem de um lugar e outro vem de outra região; que um grupo tinha um tipo de tradição teológica e outro grupo tinha uma teologia um pouco diferente. É o caso das diversas tradições presentes, especialmente, no Pentateuco: Tradição Javista, Tradição Eloísta, Tradição Deuteronomista, Tradição Sacerdotal.

A pergunta que norteia a pesquisa é: “Que tradição conservou este texto? Como esse grupo vivia sua fé? Que teologia esse grupo defendia? Qual imagem de Deus está por trás desse texto?”. Veja que tudo ainda gira em torno do autor: pensa-se na tradição à qual ele pertencia e que ele faz questão de conservar. Para saber isso, o

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pesquisador estuda muito: compara textos, pesquisa as teologias antigas em outros registros, procura conhecer os povos vizinhos que se relacionavam com o povo de Israel, seu jeito de crer, suas religiões etc. Uma tarefa nada fácil e para a qual a pessoa deve ser muito bem preparada.

e) Estudo dos gêneros ou das formas: essa investigação tem como objetivo saber o gênero literário a que pertencem os livros da Bíblia. Há diversos gêneros literários na Bíblia: um texto foi escrito em forma de leis, outro de poesia, outro de história, outro de carta, outro de apocalipse e ainda de profecia etc. E, dentro dos livros, há diversas formas literárias diferentes. Há, por exemplo, dentro de um livro profético, as chamadas invectivas, os oráculos, os relatos, as cartas, os gestos proféticos etc. Se a gente sabe disso, lê o texto com mais critério. Ninguém lê uma receita de bolo como se lê um conto de fadas. Nem lê uma carta como se lesse uma constituição do país. E ninguém lê uma poesia como se fosse uma bula de remédio. São gêneros e formas literárias diferentes. Quando a gente lê uma poesia, já sabe que é poesia. E poesia tem regras próprias, bem diferentes do código de trânsito, por exemplo.

A pergunta que norteia essa pesquisa é clara: “Que gênero literário é esse que o autor escolheu para nos deixar essa mensagem? Que forma literária é essa que ele utilizou para fazer teologia e nos relatar sua experiência de Deus?”. Veja que a preocupação ainda é o autor: sua forma de escrever, seu artifício literário, suas escolhas literárias. O resultado dessa pesquisa orienta a leitura do texto: mostra se ele deve ser lido como um fato acontecido ou como um relato cheio de nuances próprias, se deve ser tomado como um relato biográfico ou como um relato catequético. Para fazer essa investigação, o pesquisador também estuda muito. Ele deve conhecer bem as línguas bíblicas, comparar textos da Bíblia com outros livros da época, saber da cultura e da literatura do povo da Bíblia, das particularidades da linguagem do povo e do seu jeito de escrever. O investigador tem muito trabalho pela frente, mas conta também com o auxílio das ciências que envolvem principalmente a linguística e a literatura.

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f) Estudo da redação: o objetivo desse método de pesquisa é fazer relação entre a tradição que deu origem ao texto e a redação final do texto; ou seja, entre a forma como o relato foi transmitido e a forma que ele ganhou quando se tornou texto, pois os textos foram escritos bem depois de os relatos e as tradições terem surgido. Só para exemplificar: os Evangelhos foram escritos de 40 a 60 anos depois da morte de Jesus; a história das origens – no Gênesis – foi escrita no tempo do Exílio; a história de Rute que relata sobre o tempo dos juízes (mais ou menos 1100 a.C) foi escrita em torno do ano 440 a.C. Essas elaborações teológicas surgiam e eram conservadas oralmente. Só depois eram cristalizadas na forma de escrita.

A pergunta que norteia a pesquisa é: “Que relação tem esse texto que o autor escreveu com a história que ele viveu e recebeu na sua comunidade? Será que o autor reelaborou a tradição recebida, colocando-a numa nova forma? Ou teria ele preservado a tradição tal qual recebida, sem nenhuma reelaboração?”. Veja que de novo o autor é o centro. O que interessa é o que ele fez. Para se emaranhar nessa pesquisa, o estudioso da Bíblia tem um trabalhão também. Ele deve ser possuidor de muitos conhecimentos para estabelecer relações tão complexas entre tradições e textos diversos.

Bom, ainda bem que existe muita gente pesquisando tudo isso e nos ajudando a entender melhor a Bíblia. São os exegetas – estudiosos que geralmente são conhecedores das línguas bíblicas, da geografia e da história da época, da organização social do povo daquele tempo, da literatura de Canaã e dos povos vizinhos, da arqueologia e de tantas outras ciências – e que se põem a dissecar o texto, como se disseca um cadáver. A teologia usa os métodos e os recursos da ciência moderna para fazer a investigação bíblica. E o resultado é um texto todo dissecado, conhecido nas suas entranhas, desmitificado, quase sem mistérios e estranhezas. Um trabalho importante e de grande valor, pois a exegese – o que fazem esses pesquisadores – dá elementos para que o texto bíblico não seja entendido na sua literalidade, evitando o fundamentalismo e tantas outras abordagens equivocadas.

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Numa comparação bem simples, poderíamos dizer que o exegeta faz com o texto o que uma pessoa poderia fazer com um bom bife no prato: corta-o da maneira mais correta possível, com os melhores instrumentos, segundo as regras da etiqueta, para que seu paladar não seja alterado. E depois ainda explica como fez, o que fez, por que fez, e ensina outros a fazerem o mesmo. E critica quem fez diferente: argumenta, prova, discute e debate. Cria teorias e hipóteses. Tudo muito bom e útil. Mas, nem sempre depois de cortar o bife, esse precioso prato é degustado com prazer. O bife torna-se objeto de estudo e não um alimento saboroso que deve ser comido com calma na companhia de bons amigos. Todo o esforço do exegeta, mais que válido e precioso, nem sempre é aproveitado no final. E pior, nem todo mundo tem as técnicas, os recursos, as ferramentas e os conhecimentos necessários para fazer trabalho tão minucioso. Isso é coisa para especialistas, doutores, quase sempre religiosos e padres que dedicam sua vida a esse árduo trabalho e que assumem essa tarefa como um ministério, um dom colocado a serviço das ciências bíblicas para o bem da Igreja.

Não podendo nós, pobres mortais, dar conta de tudo isso, agradecemos a quem já destrinchou os textos para nós e vamos às fontes que eles nos deixaram. Há boas traduções da Bíblia que levam em conta essas pesquisas e nos apresentam suas considerações em formas de notas de rodapé e na própria versão que nos oferecem. A Bíblia de Jerusalém e a TEB (Tradução Ecumênica da Bíblia) são bons exemplos desse esforço. Além delas, a Bíblia da CNBB que, apesar de carecer de uma séria revisão, traz ainda outras vantagens: notas ricas e confiáveis, ótimas introduções aos livros bíblicos e uma linguagem popular e facilitada, que não adultera o texto, nem veicula ideologias.

Para quem não pode se tornar exegeta, mas tem prazer na leitura bíblica e quer se alimentar da Palavra de Deus registrada na Escritura, essas traduções são bem recomendadas. Voltando à nossa comparação, já encontramos o bife bem partido e todo ajeitado, no ponto de ser degustado. Que bom que temos exegetas talentosos para nos ajudarem nessa caminhada. Agora, é só saborear esse prato delicioso.

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2 Métodos que priorizam o leitor do texto

Num segundo momento, o acento da leitura bíblica foi deslocado do autor do texto para o leitor. O mesmo texto já tão conhecido e pesquisado passa a ser visto por outra ótica. Acontece que, ao trocar os óculos de leitura, conseguimos ver de outra forma o que está aos nossos olhos. A novidade se encontra na forma de ler, ou melhor, naquele que lê: o leitor. Desse novo ponto de partida, surgem diversas leituras. Vejamos duas possibilidades mais frequentes em nosso meio.

a) Leitura libertadora: também chamada de leitura a partir dos pobres. Essa leitura da Bíblia parte de uma situação específica da vida: a pobreza e a situação de exclusão em que vivem tantos irmãos e irmãs, especialmente na América Latina. Uma sensibilidade para as questões sociais e uma percepção afinada da justiça se apresentam como marcas desse leitor.

Então, vamos entender como essa leitura ganhou corpo. Tudo começou a fazer sentido com o Vaticano II. Cristãos da América Latina há muito buscavam mudanças sociais significativas, tão cansados estavam de ver o sistema opressor em que viviam – e vivem – milhões de pessoas. As reflexões conciliares ganharam feição própria na pobreza dos países do Terceiro Mundo e a Bíblia foi relida a partir do rosto do povo sofrido, sinal visível do Cristo crucificado. Textos tão conhecidos e tão populares ganharam nova cor, novo brilho, novo sentido. A problemática da fé passou a ser vista sob uma ótica inovadora: o processo de libertação dos oprimidos. Brotaram dessa experiência uma nova teologia e sua reflexão, e não o contrário. Uma práxis libertadora norteou a hermenêutica bíblica.

Baseada na espiritualidade do êxodo de Israel – libertado do regime opressor do Egito –, a leitura libertadora ganhou adeptos, pessoas de peso, nomes importantes, tendo como expressão teórica dessa ótica a Teologia da Libertação. Mas os passos mais marcantes para firmar essa tendência à leitura libertadora foram dados pelas Conferências Episcopais Latino-americanas, que assumiram a tarefa

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concreta de traduzir as grandes inspirações do Vaticano II para a realidade do povo sofredor deste continente.

Em 1968, ainda sentia-se o frescor do perfume do Concílio que desabrochara há pouco, quando aconteceu a Conferência de Medellín, com a finalidade de levar a Igreja latino-americana a uma leitura situada do Vaticano II. Dela resultou um documento, no qual os bispos afirmaram clara e corajosamente a necessidade de uma nova teologia, frente a uma sociedade profundamente marcada pela injustiça e pela opressão. E, se é necessária uma nova teologia, faz-se mister um novo jeito de ler a Bíblia, fonte principal da teologia. Toma forma, então, uma leitura a partir dos pobres.

E não ficou por aí. Em 1979, Puebla falou sobre a evangélica opção pelos pobres, realçando, com cores fortes, o estranho quadro social construído com ricos e pobres. Tanta pobreza e tanto sofrimento não podiam – e não podem – ser ignorados pela Igreja na América Latina. Ganhou ainda mais força a leitura libertadora, com a entrada no cenário de novos biblistas, exegetas e teólogos, também bispos e padres, que despertavam cada vez mais para a estranha e excludente situação social de nossa gente.

Especialmente essas duas Conferências Episcopais Latino-americanas muito contribuíram para a leitura libertadora. O evento do êxodo de Israel foi redescoberto e retraduzido, trazendo possibilidades de leituras antes impensadas. Os profetas do direito e da justiça, atuantes especialmente no século VIII antes de Cristo, foram retomados e o clamor profético da Igreja ecoou por todo canto na América Latina, tendo as Escrituras como sua fonte inspiradora. Mas esse sopro renovador não ficou só nas margens estreitas da América dos Pobres. Encontrou ressonância na África, na Ásia, na população negra dos Estados Unidos etc.

Poderíamos dizer então que o leitor passa a buscar na Bíblia um alento para sua vida e a força necessária para superar as situações de opressão. Em vez de se conformar com a leitura já conhecida, nossa gente procura fazer uma leitura que nasce de sua situação

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concreta. A realidade presente se torna o centro articulador da leitura; a concreta situação de pobreza e opressão do leitor tira-lhe o véu e ele vê nas Escrituras sua própria realidade, como uma imagem no espelho. A partir dessa experiência, a Escritura se transforma em fonte dinamizadora de libertação.

Então, o raciocínio é mais ou menos o seguinte:

Deus está presente na história; ele não ignora a história •humana, ao contrário faz-se história em Jesus Cristo. Mas ele não tolera a injustiça e abomina a opressão.Se é assim, não faz sentido a leitura bíblica ser neutra: ela •deve ser encarnada como o Deus encarnado. O leitor deve tomar o partido do pobre, como Deus mesmo faz. Deve repudiar toda injustiça e buscar na Escritura as bases para esse repúdio.A partir daí, o melhor lugar para se ler essa Escritura torna-•se a comunidade, pois a libertação é processo coletivo e não individual. Os pobres são entendidos como os destinatários primeiros do texto, pois a Bíblia é palavra de libertação para eles. Eles são entendidos como aqueles que são capazes de encontrar o sentido mais genuíno da Escritura.

Essa leitura trouxe contribuições muito valiosas para a Igreja: o sentido profundo da presença de Deus na história, o reconhecimento da importância da dimensão comunitária da fé, a urgente necessidade de uma práxis libertadora enraizada na justiça social, a retomada da Escritura como pão cotidiano que sustenta o caminheiro na busca de seus sonhos, a possibilidade de revisitar a Escritura a partir de um lugar específico: o povo sofredor.

Mas ela, apesar de suas contribuições, colocou-nos diante de alguns riscos também. Ao se priorizar demais o leitor, corre-se o risco de se esquecer do texto, de se esquecer de seus códigos, de suas particularidades etc. E pode-se ler no texto o que se quer ler. Vejamos! Os grandes exegetas e biblistas que deram voz a esse tipo de leitura

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certamente eram pessoas muito preparadas e conhecedoras da Escritura. Mas popularizou-se por aí uma leitura bastante extravagante: a partir do binômio opressor-oprimido que norteia esse tipo de leitura, todo texto bíblico teria que falar de libertação social, de exclusão, de pobreza etc. Mas nem todo texto da Escritura está preocupado com isso. Nem todo texto da Bíblia quer falar algo sobre a estranha e injusta situação de pobreza. Há outros problemas presentes na Bíblia, muito além do que esse binômio dá conta. Se a gente forçar a barra e colocar tudo dentro desse esquema, até Jesus será opressor em algumas situações: quando ele expulsa os vendilhões do templo, quando ele responde com aspereza ao pedido da sírio-fenícia que intercede em favor de sua filha, quando ele manda pagar imposto a César, quando ele conta a parábola dos trabalhadores da última hora etc. Ora, esse esquema tem limites. Se por vezes ele deixa o leitor oprimido falar por meio da Escritura, em outros momentos, ele pode levar a fazer uma leitura ideológica, dando, às vezes, um resultado bem equivocado e diferente do sentido original do texto.

É preciso ser cuidadoso na hora de ler a Bíblia. O leitor é da máxima importância: sempre! Mas é preciso deixar o texto falar. Nem sempre a situação concreta do leitor é suficiente para definir a abrangência da mensagem que se colhe na leitura bíblica.

b) Leitura feminista: também chamada de leitura de gênero. A hermenêutica feminista, como a leitura libertadora, não é outro método de estudo. É um novo jeito de abordar a Escritura. E o que nos interessa nessa reflexão não são tanto os métodos, mas o modo de aproximação da Escritura. O jeito de ler a Bíblia: a luz que pode ser lançada sobre ela a partir de caminhos, métodos, escolhas diferentes.

Esse tipo de leitura nasceu no final do século XIX, nos Estados Unidos, no contexto sociocultural da luta pelos direitos da mulher. Essa hermenêutica trouxe novidades, ventilou possibilidades impensadas. Viu a Bíblia por uma ótica feminina, redescobrindo o papel da mulher nas comunidades de fé, tanto do Antigo quanto do Novo testamento, mas especialmente no seguimento de Jesus. Com o olhar delicado da

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mulher, a Bíblia foi revisitada e Deus foi compreendido na sua ternura, no seu amor materno.

A leitura feminista acrescentou dois critérios na investigação bíblica, o que ajudou a encontrar um resultado bem inovador no final da leitura. O primeiro é o critério feminista, que diz respeito à suspeita que deve ser levantada quando é feita uma aproximação do texto. Ora, o texto sagrado foi escrito por homens e para homens. Assim, para se entranhar na verdade que o texto propõe, não se deve confiar demasiadamente nos textos. Deve-se pesquisar e ir bem além dele, na tentativa de encontrar indícios que revelem outra coisa. Assim, uma pequena frase, um simples nome, uma alusão apenas, uma palavra no feminino – tudo pode ser muito importante. O segundo critério é sociológico. Procura-se investigar sobre as sociedades do tempo em que o texto foi escrito e publicado, para melhor entender o papel da mulher nessa organização.

A partir desses novos elementos, tenta-se estabelecer uma linha comparativa entre a concepção da mulher na sociedade do tempo da Bíblia e a concepção da mulher nas comunidades de fé, especialmente nas comunidades cristãs do século I. Traça-se um perfil das comunidades e vê-se a igualdade homem-mulher nos escritos dos Evangelhos e nas cartas de Paulo. O texto basilar desta leitura é Gl 3,28: “Não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só, em Cristo Jesus”. Daí, volta-se ao passado, vasculha-se a Bíblia e se descobre nos relatos o papel importante das mulheres nas Igrejas das origens. Mesmo nos textos do Antigo Testamento, tenta-se garimpar algum fragmento da presença feminina, tentando salvar a participação da mulher na história sagrada.

Não temos dúvidas de que essa leitura trouxe contribuições importantes para a Teologia Cristã. A primeira delas foi que esse tipo de leitura levantou questões novas, esquecidas, que os homens não se punham. A teologia cristã, exceto algumas raras contribuições femininas, manteve-se ao longo da Igreja como monopólio masculino. Os homens mantinham a hegemonia do pensar, especialmente na

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Igreja Católica. A entrada da sensibilidade feminina no panorama da hermenêutica corrigiu interpretações teológicas equivocadas e revelou a face materna de Deus.

Mas o problema dessa leitura é que, muitas vezes, despreza-se o texto em prol de uma construção hipotética. Ou ainda, atém-se a pequenos resíduos do feminino que nele se encontram e despreza-se o grande relato. Não é incomum, por exemplo, encontrar adeptos dessa leitura que, ao estudar o Pentateuco, desprezam a Torá e toda sua riqueza teológica para se debruçarem sobre algumas presenças femininas que aparecem nos relatos: Séfora, Mara, Tamar, Dina etc. Outros, ao ler os livros históricos, ignoram toda a teologia deuteronomista para se dedicarem a saber quem foi Ana, Jezabel, Débora e outras. Outros acusam a Bíblia de machista, como se naquele tempo já existissem os critérios que possuímos hoje para perceber a dignidade da mulher e sua situação de opressão na sociedade.

Estamos certos de que a leitura feminista muito contribui para abrir os olhos da Igreja, um ambiente totalmente generificado, onde a mulher ocupa papel de somenos importância. Nas questões de poder da Igreja, então, nem discutimos isso! O perigo, porém, é que a visão feminista queira ocupar o lugar da visão machista. Seria apenas inverter os papéis. Em vez de leitura feminista, falamos de leitura feminina. Toda mulher, consciente de sua feminilidade, só conseguirá ler a Bíblia como mulher, com a sensibilidade feminina, com a astúcia feminina, com a perspicácia que lhe é própria. Assim como o homem haverá de lê-la como homem, mas nem por isso sua visão precisará ser machista. São lugares diferentes de leitura, mas não são leituras opostas.

3 Métodos que priorizam o texto

Depois de investigar o autor e dar voz ao leitor, entramos em outra fase: a valorização do texto, do que está escrito. Recupera-se o valor do texto, do registro que nos foi legado. Percebe-se que o texto diz por si mesmo; basta saber ler o que está dito, basta deixar o texto dizer, pois os relatos na sua forma escrita comunicam algo. Isso equivale a fazer uma leitura literária da Bíblia.

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Mas será a Bíblia uma literatura? Bom, no sentido estrito de literatura como “arte da palavra”, que alguns pesquisadores usam, a Bíblia talvez não se encaixe na classificação de obra literária. Mas hoje encontramos uma definição muito mais ampla de literatura e que parece muito mais apropriada. Literatura é criação desinteressada que está destinada a durar. O que é uma criação desinteressada? É aquela obra que é de natureza estética, ou seja, um dos seus principais objetivos é proporcionar prazer ao leitor: o prazer de ler, a satisfação dos sentidos, a difusão de ideias, a transmissão de experiências, a alegria de ver a vida de sua gente recontada nos relatos etc.

Se a Bíblia é entendida como uma literatura – como um registro que o autor faz do seu tempo, cujo objetivo é transmitir a experiência de fé de sua gente e proporcionar aos leitores a alegria de fazer essa mesma experiência –, então ela está sujeita aos mesmos métodos de análise literária que qualquer outra obra da literatura. Mas uma abordagem bíblica por essa vertente pode causar estranhezas em alguns, que apresentam suas objeções. Vejamos:

a) “Se é assim, então a Bíblia não foi inspirada”: parece que, por ser Palavra de Deus encarnada em palavra humana, a Bíblia torna-se menos digna de credibilidade, menos capaz de iluminar nossa realidade. Mas, por ser palavra humana, a Bíblia não é menos Palavra de Deus, não é menos inspirada. Ao contrário, aí é que está a beleza mais sutil. Na Escritura, Deus se torna evento nas palavras humanas, abandonando sua radical alteridade para se deixar conhecer. Ao tratar o texto como evento literário, ganhamos clareza e amplitude e, se perdemos precisão, ganhamos muito mais em significado. O que seria dito com muita precisão e positividade num relato histórico-jornalístico ou numa biografia não é mais digno de fé e credibilidade do que o que é dito em forma poética, mitológica, narrativa com toda a estranheza do texto. Há tanta verdade na ficção quanto num relato histórico, depende de como entendemos a verdade. Vejamos um exemplo. O que nos diz mais sobre a vida sofrida e a peleja do povo nordestino: a obra literária de Graciliano Ramos, como Morte e Vida Severina e Angústia, ou uma pesquisa do senso do IBGE e um relato de um historiador? O que nos fala mais sobre os costumes mineiros

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e as tramas do sertão de Minas: a obra de Guimarães Rosa Grande Sertão, Veredas ou os registros oficiais das prefeituras das cidades do noroeste mineiro? Depende muito. Se os relatos desses autores são pura ficção no que diz respeito aos personagens, eles ao mesmo tempo transmitem a mais pura verdade sobre o homem aí descrito. E ainda, os autores usam nomes fictícios, mas a realidade que eles transmitem não é fictícia: é real e verdadeira. O fato de uma obra ser literária não lhe tira sua verdade, ao contrário, confere à verdade que ela transmite ainda mais amplitude e significado.

b) “Ah, isso é um truque para a Igreja se safar das contradições presentes na Bíblia e dos absurdos por ela relatados”. De um lado é verdade. Quando se toma o texto como literatura e não como ditado de Deus, a resposta para toda questão pode ser o gênero literário, a forma de escrever do autor, o recurso por ele utilizado etc. E vamos admitir: há muitas contradições na Bíblia. Contradições de cunho histórico e geográfico, do tipo cultural; contradições religiosas e até teológicas. Mas a Igreja não precisa encaixar o texto na análise literária para sair dessa saia justa. A noção de inspiração que a Igreja assume já é suficiente para dar ao leitor condições de conviver com essas estranhezas do texto. Estranhezas que vão desde informações equivocadas, até noções culturais só assimiladas por aquela cultura. Basta ao leitor saber que Deus não ditou o texto e que ele é uma obra do seu tempo, de uma cultura específica, com conhecimentos científicos bem diferentes dos conhecimentos do leitor atual. A análise literária não é para justificar os textos bíblicos. Ela não tem fins apologéticos. Sua finalidade gira em torno de outro eixo: a possibilidade de plenificação do texto, de forma que o leitor possa tirar do relato tudo o que ele pode lhe dizer.

Se a Bíblia, então, é uma literatura, as palavras registradas no texto, os artifícios literários que ele contém, as escolhas do autor, nada disso é ingênuo e sem consequências. Cada texto, cada relato e sua mensagem teológica estão subordinados a questões literárias que ele suscita. Torna-se fundamental, pois, deixar-se impregnar de sua natureza literária, dos traços característicos que cada relato literário possui. Como já falamos anteriormente, a Escritura não é ditado de

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Deus, nem relato histórico de eventos acontecidos no passado; é resultado de uma criação por parte do autor, cujo interesse é difundir experiências religiosas vividas por seu povo e suscitar nos leitores o prazer de fazer essa experiência. E que fique bem claro: o conteúdo que é dito – a teologia que perpassa o texto – não está separado da forma como o texto se apresenta. A teologia que o autor elabora está dita na forma literária que ele a transmite, no modo como o relato é organizado, nas escolhas que o escritor faz ao registrar o texto. Conteúdo teológico e forma literária estão em íntima relação. Assim, poderíamos dizer que, na trama da escrita, as mesmas palavras humanas que escondem Deus também revelam sua face amorosa. O mesmo recurso literário que ofusca o que é dito é o recurso que revela o sentido do texto. A mesma questão literária que tira a precisão do relato plenifica-o, fazendo-o ganhar significado.

Esse tipo de leitura enfrenta alguns obstáculos. Nenhum método é tão bom que nos faça escapar da aventura do equívoco. Vejamos alguns riscos:

A tendência de fazer desaparecer o autor e seu contexto• . Ao colocar sua tônica sobre o texto, o método literário corre o risco de menosprezar o autor do texto. Pode-se de tal forma absolutizar o texto, que todas as outras possibilidades de leitura sejam descartadas. Mas, se essa tendência é um perigo, ela é também uma vantagem. O descolamento do autor possibilita a chance de o texto falar. Enquanto estamos preocupados com a intenção do autor, sempre oculta, esquecemo-nos do legado que ele nos deixou, presente em cada sinal de seu relato. A intenção do autor é sempre uma hipótese, enquanto que o texto é algo concreto, palpável, possível de análise. Ao mergulhar no texto, o leitor encontra muito mais que palavras e artifícios literários. Ele encontra o próprio autor, sua realidade, sua comunidade, sua vida, sua fé, seus costumes, sua história.O risco de desconsiderar o leitor• . Esse é um risco que não podemos desprezar: o de achar que o texto é absoluto

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e que tudo advém dele, de forma que sua análise traz um resultado isento de parcialidades, algo puro e inquestionável. Nós já sabemos que não é bem assim. É só lembrar que, para que o sentido se descole do texto, o texto precisa de um leitor. E todo leitor se aproxima do texto com uma predisposição, com um horizonte de compreensão já formulado, com uma realidade que o envolve, que o obscurece ou o fascina. Não se vai ao texto com uma cabeça oca, mas com uma vida de experiências, conhecimentos e afetos que fazem o leitor ser quem é, que o fazem formular questões e hipóteses que lhe são próprias. Logo, uma boa leitura do texto nunca desconsidera o leitor, o único capaz de fazer saltar do registro literário o seu sentido.A confusão entre fu• ndamentalismo e leitura literária. Nem seria preciso tratar disso, mas, para evitar transtornos, vamos enfrentar o assunto. Ao se falar em leitura literária, muita gente acaba pensando em fundamentalismo: ler o texto ao pé da letra. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Esse equívoco vem do fato de a leitura literária valorizar o texto e tomá-lo como ponto de partida do estudo. Mas vamos esclarecer: a leitura fundamentalista parte da convicção de que a Bíblia é Palavra de Deus, inspirada por ele, praticamente um ditado de Deus ao hagiógrafo, palavra por palavra. Bem diferente da leitura literária, que parte do pressuposto de que a Bíblia não é um ditado, apesar de sua inspiração divina. O perigo do fundamentalismo está exatamente em desconsiderar o texto como literatura humana, como se ele tivesse caído pronto do céu, sem a mediação humana. Parece que esse risco é bem remoto na leitura literária. Mas, se há riscos, essa abordagem tem múltiplas vantagens. Ao tomar o texto como eixo da leitura, podemos realizar uma busca de sentido muito ampla, sentido que só pode ser encontrado nele. E isso é muito importante no campo teológico: o sentido. Porque Deus é o Totalmente outro que não pode ser dito e a única linguagem possível para falar dele é a linguagem simbólica, sempre plena de sentido.

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Para concluir, poderíamos afirmar que, nesse mergulho no mundo do texto, encontramos, ao mesmo tempo, o texto – que é o legado do autor; o autor – que se diz no texto; e ainda nos encontramos como leitores no confronto com o que está dito.

Até aqui, vimos expondo o imenso esforço de inúmeros estudiosos de encontrar o melhor método para lançar luzes sobre a Bíblia. Mas queríamos propor uma inversão nesse caminho, com o objetivo de pensar não em como lançar luzes nos caminhos da Bíblia, mas, sim, em como deixar a Bíblia lançar luzes em nossos caminhos. Conforme o Sl 119,105 a Bíblia é luz para os nossos caminhos. Não é uma questão apenas de trocadilho. É uma escolha, uma opção pensada e deliberada de tomar as Sagradas Escrituras em toda sua estranheza e dificuldade como luz, como clarão, como farol que ilumina nossa vida. Certamente essa escolha se aproxima mais do terceiro momento acima citado que se apropria do texto como literatura, fazendo a recuperação da centralidade do texto na hora de escutá-lo, estudá-lo e acolhê-lo em nossa vida. Mas penso que tomar a Bíblia como luz para nossos caminhos vai além dessa abordagem, apesar de integrá-la no processo, pois na leitura literária das Escrituras corremos também o risco de ficarmos aprisionados no texto.

Ao se falar em métodos de leitura da Bíblia e da Bíblia como luz em nosso caminho, precisamos ver antes a centralidade da Bíblia na vida dos cristãos. É preciso lembrar que a religião cristã, assim como o Islamismo e o Judaísmo, é intitulada por muitos de “religião do livro”. A experiência de fé de um povo se encontra registrada em textos que foram canonizados pela Igreja e aceitos como livros inspirados por Deus. Mas se a religião cristã é religião do livro, ela é antes de tudo religião da hermenêutica. Cada texto da Bíblia nasceu da hermenêutica de uma experiência religiosa que, depois de ser vivida e partilhada, tornou-se escritura. Essa escritura foi conservada e projetou luzes sobre outras realidades. Sua acolhida provocou outra experiência religiosa, que de novo foi transmitida para novas gerações, tornou-se outro registro, que foi outra vez lido e reinterpretado, numa corrente hermenêutica que perpassou gerações e gerações.

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Nesse processo de apropriação do texto, ele foi ganhando novo sentido e elevando o texto anterior a um patamar hermenêutico ainda mais alto. A narratividade bíblica ganha corpo na vida de cada grupo, de cada pessoa que acolhe, experimenta, degusta o texto. A Escritura Sagrada projeta luz sobre a experiência religiosa das gerações que a acolhem. Percebe-se que o Deus que falou aos antigos pais na experiência de fé por eles vivida continua falando a cada um que se abre para a experiência com ele: a palavra escrita é luz para o leitor e provocadora de novas e legítimas experiências de fé que vão ser luz para novas experiências. Assim, o povo hebreu não teve receios de refazer o texto, pois acreditou que Deus continuava falando, sua luz continuava sendo projetada sobre a sua caminhada de fé. Os profetas se apropriaram de textos que os antecederam e os interpretaram atualizando as Escrituras. Os evangelistas tomaram os textos dos profetas e os viram ganhar plenitude em Jesus. E assim por diante.

Desde seus primórdios, a Igreja entendeu essa hermenêutica da experiência de fé vivida como Sagradas Escrituras ou Palavra de Deus, expressão nem sempre bem compreendida, pois deu margem para pensar que o texto, por ser sagrado – Palavra de Deus –, estava engessado, como um ditado de Deus feito a pessoas com capacidade especial de comunicação com ele. Essa visão das Escrituras levou-nos a esquecer que esses relatos continuam sendo textos, elaborações teológicas literárias, exigindo sempre novas hermenêuticas. E cada texto tem seu mistério, que não está ali para ser desvendado, mas acolhido, experimentado, saboreado. Na acolhida do texto, o relato faz sentido na vida de quem o acolhe, projetando luz sobre a vida do ouvinte.

Se o princípio hermenêutico é válido para todo texto, ainda mais para as Escrituras Sagradas, que relatam a experiência de fé de um povo com o Deus Totalmente Outro, o Deus que não tem nome, que não pode ser visto, muito menos apreendido, abarcado, esgotado. Esse Deus Totalmente Outro, num paradoxo sem igual, ao mesmo tempo se esconde e se deixa conhecer. Ele se oculta e se revela, num jogo sedutor impressionante que os escritores dos textos sagrados com maestria souberam narrar. Acontece uma espécie de

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98 | dança harmoniosa entre Deus e os homens por meio de artifícios literários, cuja música é tão suave que só os ouvidos sensíveis podem captar e gozar. Num vai-e-vem sutil, Deus se faz experimentar; e uma troca de intimidades acontece. Na estranheza desse jogo de mostrar-se e esconder-se, luzes são projetadas sobre a vida de quem acolhe essa Palavra. Há uma beleza e uma significação incomparáveis na estranheza. Ela instiga, questiona, faz pensar, provoca mudanças, causa mal-estar – algo bem próprio da vida de fé. A estranheza do texto desinstala o ouvinte, incomoda-o; ela o faz ir além do dito para acolher o não-dito. Deus se diz nas palavras e para além delas, pois o relato bíblico da experiência de fé é o inefável que precisa ser narrado. A estranheza do texto é a porta de entrada da escuta, porque ela provoca, suscita desejo, atenção; ela instiga a escutar. Há, pois, uma tensão salutar: o que não dá para dizer, o inenarrável, precisa ser dito mesmo assim. Então acontece algo maravilhoso: o Deus que não pode ser dito, ele mesmo se diz. E isso é mesmo muito estranho.

Aí encontramos a característica mais curiosa da hermenêutica. Se Deus é o objeto da investigação bíblica, ao mesmo tempo ele é o sujeito da ação investigativa, porque é ele que se dá a conhecer, é ele quem fala, é ele quem se diz, o que não elimina, é claro, o esforço da investigação, mas cria uma atitude humilde de acolhida. A tarefa da investigação bíblica não é tanto dar uma informação, proporcionar conhecimento, achar uma solução para o texto, eliminar sua estranheza. Seu desafio é antes ajudar no reconhecimento de Deus que fala por meio de sua Palavra, é suscitar no ouvinte abertura e acolhida como correspondência a Deus que é pura doação e se entrega a cada um que se dispõe a ouvi-lo. Deus fala. E falar é abrir um campo de comunicação onde nada é determinado de antemão, onde os dois interlocutores que travam o diálogo estão abertos ao novo, ao inusitado. Por muito tempo, nós fomos à Bíblia buscar textos que justificassem nossas teologias, nossas definições dogmáticas, nossas certezas morais, nossos costumes. Já é tempo de dar palavra à Palavra, deixar a Palavra dizer. E a Palavra quer se dizer. É só estarmos dispostos a escutá-la. É muito importante acolher a luz que essa Palavra lança sobre nossas vidas, para que vivamos “à luz da Palavra de Deus.” Mais que conhecer métodos exegéticos e hermenêuticos

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| 99muito complicados que lançam luzes sobre o texto sagrado, apesar da máxima importância disso, talvez seja mais importante ainda se dispor a acolher a luz que é própria dessa Palavra e que pode transformar nossas vidas.

Depois de toda essa reflexão, é bom falar também sobre alguns cuidados que devemos tomar ao ler a Bíblia. Já conhecemos os métodos mais comuns de investigação bíblica, suas vantagens e seus riscos. E conversamos principalmente sobre a importância de dar palavra à Palavra de Deus, de deixar Deus falar, pois a Escritura é antes de tudo palavra que ele nos dirige, mesmo na sua estranheza. Agora, é pôr mãos à obra e começar a ler a Bíblia, mas alguns cuidados são importantes. A Bíblia não é um livro nosso, ainda que o exemplar que estamos lendo seja de nossa propriedade. A Bíblia é um patrimônio da Igreja: ela o conservou, ela selecionou os textos de seu cânon, ela traduziu esses textos. Eles fizeram caminho e história na vida da Igreja, numa comunidade eclesial. Ao ler a Bíblia, devemos então nos lembrar dessa trajetória, e ler a Bíblia como Igreja e com a Igreja, ainda que a estejamos lendo na solidão de nosso quarto. Porque ler a Bíblia como Igreja e com a Igreja não significa lê-la apenas na liturgia ou nas reuniões comunitárias. Não é uma questão de lugar físico e sim de lugar hermenêutico, e até de lugar teológico. Ler a Bíblia com a Igreja e como Igreja significa ler em comunhão de fé.

Vejamos, pois, alguns cuidados importantes na hora de nos aproximar do relato bíblico:

a) Não devemos pegar os textos ao pé da letra.

Por exemplo: quando a Bíblia diz em Mc 1,33 que “toda a cidade se ajuntou à porta da casa onde Jesus se encontrava”, Marcos não quer dizer que todo mundo de Cafarnaum saiu de casa para ir aonde Jesus estava. Isso seria impossível. Marcos só quer dizer que Jesus atraía muita gente por causa de sua palavra e de suas obras maravilhosas. Jesus despertava a curiosidade de muita gente e elas queriam ver Jesus e saber quem ele é. Diariamente nós usamos também expressões assim, com o mesmo sentido. São as

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100 | hipérboles. Dizemos: todo mundo veio à catequese; todo mundo foi à festa.

Outro exemplo. O Evangelho de Mateus diz que, se nossa mão é motivo de queda para nós, devemos cortá-la. A Igreja entendeu desde o começo que ninguém deve se mutilar porque cometeu um pecado. O que o texto quer dizer é que a gente deve evitar ocasiões que favoreçam pecar. Cortar as ocasiões de pecado e não partes do nosso corpo. Cada um sabe de suas fraquezas. Cada um que se cuide para não pecar.

b) Não devemos tirar o texto de seu contexto.

Por exemplo: quando o Livro do Gênesis diz que Abraão quase sacrificou seu filho Isaac para agradar a Deus, é fundamental lembrar que Abraão estava antes num contexto de politeísmo, em que cada pessoa, para agradar aos deuses do paganismo, ofertava a eles vários sacrifícios, inclusive sacrifícios humanos, da vida de seus próprios filhos. Em nosso contexto, isso soa muito estranho, porque nós já entendemos coisas que Abraão ainda não tinha entendido. Se a gente tirar a narrativa do contexto, vai pensar que Abraão é doido ou que Deus é cruel e mau, pedindo a um pai que mate seu próprio filho. O que para nós parece uma loucura já foi, em tempos passados, um costume, que o povo de Deus aprendeu a superar.

Outro exemplo. Quando a Primeira Carta de Pedro diz que as mulheres devem ser submissas a seus maridos (cf. 1Pd 3,1), é preciso lembrar que a mulher era, naquele tempo, considerada uma propriedade do marido. Ele podia dispor dela como de uma ovelha ou de um campo. Podia mandá-la embora, podia desprezá-la, podia inclusive corrigi-la com violência. Esses eram os costumes e as regras sociais daquele tempo. Se a mulher não se subordinasse sabiamente a seu marido, podia ir parar nas ruas, sem emprego, sem apoio, sem nenhuma instituição para defendê-la. As mulheres não podiam trabalhar fora como hoje, nem tinham direito a pensão de marido, nem à parte dos bens do matrimônio. Nada! Para não passar fome, uma mulher repudiada mendigava ou se prostituía. Isso era

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| 101muito comum. Então, na comunidade cristã, havia uma preocupação com as mulheres. Para que elas não chegassem a essa situação tão complicada, deviam se lembrar de que as leis favoreciam os homens. Logo, deveriam agir com sabedoria e não enfrentar os maridos cara a cara. Era preciso agir com prudência. Então, a submissão não era uma atitude de acomodação e preguiça. Era uma estratégia para sobreviver, um jeito sábio de enfrentar a vida matrimonial naquele tempo. Com jeitinho, as mulheres conseguiriam mais coisas do que com brigas inúteis com seus maridos. Mas os tempos mudaram, é claro, e hoje os costumes sociais e até as leis são muito diferentes. Prudência continua sendo importante, mas a mulher não tem que ser mais submissa ao seu marido. Ela é vista hoje como uma companheira, que deve ser amada e respeitada. Isso tem que ser levado em conta quando lemos a Bíblia. A palavra de Pedro sobre a subordinação da mulher ao homem não procede mais.

c) Não devemos entender a Bíblia como um livro de história ou ciência.

Por exemplo, a bíblia diz que Deus criou o mundo em sete dias. E descreve isso em detalhes. Será que ele criou o mundo igualzinho está ali narrado? Mas a Bíblia não é um livro de ciência; nem o escritor do Gênesis um cientista. A Bíblia é um livro religioso e o escritor é um teólogo, uma pessoa de fé. Então, o que o Gênesis diz não é como o mundo foi criado. Isso não interessa ao povo da Bíblia. O Gênesis diz que a vida vem de Deus, que nós somos queridos de Deus a tal ponto que ele primeiro fez surgir o mundo lindo pra depois fazer a vida humana brotar nele. Se o mundo demorou milhões de anos pra chegar a ser o que ele é, se a vida brotou em um dia ou em milhões de anos, tanto faz. Se ela surgiu pronta ou se foi evoluindo, isso é coisa para cientista pesquisar. Mas que ela é dom de Deus, disso nem o escritor do texto nem nós que cremos temos dúvida, não importa como ela se deu: ela é um milagre do amor de Deus. Mas quem pensar que a Bíblia quer repassar informações científicas vai ficar perdido com essas informações. Hoje, imaginar um mundo feito em sete dias parece irracional. E é mesmo. Criar em sete dias, para o escritor sagrado, significa criar com carinho, de modo organizado e com a máxima perfeição. Essa é a mensagem de fé do texto.

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102 | Outro exemplo. A Bíblia fala, no Salmo 19/18, que o sol se

levanta de manhã e percorre o céu em volta da Terra (cf. Sl 19/18,5-7). Ora, o que o escritor sabia de astronomia naquele tempo não lhe permitia afirmar senão aquilo que ele via: o sol no nascente, de manhã; o sol no poente, de tarde. Olhando assim, parecia mesmo que o sol andou e mudou de lugar, girando em volta da Terra. Mas os cientistas, muito tempo depois, inventaram aparelhos, observaram os astros e viram que a Terra é que se move em torno do sol e não o sol em torno da Terra. A Bíblia está errada? Bom, cientificamente sim, mas isso não importa. O escritor do salmo é um músico, um poeta, e não um cientista ou astrônomo. Ele está fazendo uma canção sobre a natureza e louvando a Deus por isso. Só isso! E Deus deve mesmo ser louvado por tudo de belo que há. Nisso o autor do salmo tem razão! Mas não tem razão quando diz que o sol gira em torno da Terra. Só que essa descoberta foi feita muito tempo depois que o salmo já tinha sido escrito. Ao escrever, o escritor lida com os conhecimentos de seu tempo.

Em outro texto se diz que o sol parou (cf. Js 10,12-15) e ficou parado por um dia inteiro. Ora, hoje sabemos que o sol não para jamais. O autor, com os conhecimentos precários da astronomia de seu tempo, usou um recurso de expressão para falar do poder de Deus que abençoava assim as conquistas de seu povo.

d) Não devemos ler a Bíblia desconsiderando sua compreensão e acolhida ao longo da história da Igreja.

Em outras palavras, devemos olhar com atenção como a Igreja interpreta e entende certos textos mais complexos. A experiência e a orientação da Igreja nos ajudam muito. Por exemplo, a Bíblia diz, no livro do Levítico (cf. Lv 11,1-8), que não se deve comer carne de porco, entre outros animais, porque ele é um animal impuro. Ora, a Igreja desde o começo entendeu que esse era um costume do povo judaico, mas não uma lei de Deus. O povo, por questões culturais, não comia carne de certos animais, entre eles o porco. Mas hoje essas questões não fazem mais sentido. A Igreja percebeu logo que isso era uma questão cultural e não uma regra para a salvação humana.

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| 103Outro exemplo. No começo do cristianismo, os cristãos vinham

do judaísmo e os judeus tinham o hábito de circuncidar os meninos. Ora, logo no começo do cristianismo, o apóstolo Paulo entendeu que esse era um costume judaico e que, com a entrada de muita gente que vinha de outros povos, não era lógico impor o costume de um povo ao outro. Então, na Igreja ficou combinado que, se os judeus quisessem se circuncidar, tudo bem. Mas circuncidar os outros povos, não era preciso. Cada um deveria viver a fé, dentro de sua realidade cultural.

Se esses textos e toda a Bíblia forem entendidos fora de sua história de interpretação, muitas conclusões podem ser precipitadas e estranhas para nós. Por isso, a gente diz que a Bíblia deve ser lida com o Magistério da Igreja, ou seja, com a Igreja que estuda a Bíblia e ensina a gente a lê-la com sabedoria. Dessa forma, a gente evita equívocos extravagantes e até perigosos.

e) Não devemos tirar sorte com a Bíblia.

Estamos nos referindo ao costume de abrir a Bíblia aleatoriamente e ler qualquer versículo, sem seu contexto, como se nele a gente fosse encontrar alguma mensagem mágica de Deus para nós; como se fôssemos descobrir o que Deus quer nos falar naquele exato momento. A Bíblia é um livro especial, porque relata a vida de fé do povo. Mas ela não é um livro mágico. Não devemos agir com a Bíblia como alguns fazem com cartas, búzios ou tarô. Ela não é um livro para se tirar sorte, como nas cartas. Então, os textos devem ser lidos ou no conjunto do que foi escrito (por exemplo, o Evangelho de Mateus todo, o livro do profeta Jonas etc.) ou à medida que queremos rezar, meditar, estudar ou pesquisar um tema. Então abrimos a Bíblia naquela passagem e lemos com amor, respeito e veneração. Refletimos, destrinchamos e pesquisamos o seu sentido. Mas abrir a Bíblia ao acaso, como se fosse um ato mágico no qual Deus fala, é desaconselhado. Deus sempre fala quando escutamos com coração aberto a sua Palavra. Qualquer relato da Bíblia está cheio de significado para nós. Não é preciso lançar a sorte com ela. Esse costume é tolo e perigoso, além de colocar na banalidade as

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104 | coisas de Deus. Não é assim que Deus fala. Esse não é um costume da Igreja Católica. E, se somos Igreja, lemos a Bíblia com a Igreja e como Igreja. Além disso, esse desejo de saber o que Deus quer me dizer nesse exato momento é pura fantasia e sinal de insegurança. Deus quer te dizer tudo o que está na Bíblia em todos os momentos. E ele quer também que a gente saiba acolher os seus ensinamentos, com maturidade e segurança, tomando as nossas decisões com critério. Uma pessoa madura na fé saberá tomar suas decisões. E não vai ficar buscando em versículos aleatórios da Bíblia algo como se fosse Deus lhe falando diretamente.

Ao concluir esta reflexão sobre a leitura da Bíblia e os métodos de abordagem do texto, lembramos que, para nós católicos, a Bíblia é um livro ou conjunto de livros muito importante. Livros inspirados por meio dos quais Deus nos fala, mas são apenas livros. Contém relatos da vida de um povo que viveu sua fé de modo dedicado. Povo que fez sua experiência de fé, acolhendo a revelação do Deus Uno, e que deixou para nós, como uma herança, essa experiência. Nossa Igreja se esforça o máximo para perceber qual é realmente a mensagem de Deus transmitida por esses escritos. Há pessoas que estudam a fundo a Bíblia Sagrada, para nos ajudar a entendê-la melhor. Então, insistimos: é preciso ter cuidado para não interpretar de qualquer jeito a experiência de fé do povo da Bíblia. Por isso, lemos a Bíblia com a Igreja e como Igreja, sempre atentos à Tradição, ao Magistério e ao bom senso. Mas isso não significa continuísmo ou mesmice. Lemos a Bíblia sempre abertos ao novo de Deus: com humilde e atenta atitude de escuta: Deus não cessa de falar. É urgente ouvir o seu clamor.

Orione Silva e Solange Maria do Carmo são autores da coleção Catequese Permanente, publicada pela editora Paulus. Pe. Orione Silva e professora Solange trabalharam juntos há muitos anos na catequese paroquial em cidades das Dioceses de Mariana e de Paracatu - MG. Ele é sacerdote da Arquidiocese de Mariana, atualmente pároco de Catas Altas da Noruega. Ela é professora de teologia bíblica no curso de Teologia da PUC Minas e do ISTA em Belo Horizonte.E-mail: [email protected]

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| 105Referências

CNBB. Crescer na leitura da Bíblia. São Paulo: Paulus, 2003.

GABEL, John B; WHEELER, Charles B. A Bíblia como literatura. São Paulo: Loyola, 1990.

KONINGS, Johan. A Bíblia nas suas origens e hoje. Petrópolis: Vozes, 1998.

LACROIX, Roland; VILLEPELET, Denis. Question à la foi: la catéchèse, écho d’une parole de vie. Paris: L’Atelier, 2008.

MAGALHÃES, Antônio. Deus no espelho das palavras. São Paulo: Paulinas, 2009.

PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da Bíblia na Igreja. São Paulo: Paulinas, 1994.

TOSAUS ABADÍA, Jose Pedro. A Bíblia como literatura. Petrópolis: Vozes, 2000.

Orione Silva e Solange Maria do Carmo

Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v.11, n.22, p.79-105, jul./dez. 2012.

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O PREÇO DO AMANHÃ (IN TIME, 2011),

DE ANDREW NICCOL

Bruno Castro Schröder Helena Contaldo

Andrew Niccol nos apresenta uma trama em ficção científica onde, num futuro próximo, o tempo se tornará a maior moeda de todas. Os cientistas conseguiram identificar e destruir o gene do envelhecimento, todas as pessoas aparentam vinte e cinco anos de idade. De fato, todos crescem até o vigésimo quinto aniversário, depois, resta-lhes um ano apenas, porém nesse período pode-se comprar tempo. Logo, quanto maior o poder aquisitivo, maior a longevidade.

Cria-se no filme uma atmosfera de desigualdade social gritante, a famosa luta de classes. Ricos vivendo mais que os pobres, e estes últimos tendo que negociar a sua existência. Um dos temas abordados é o esforço de Will Salas (Justin Timberlake) e Sylvia (Amanda Seyfried) para destruir com o sistema de segregação social, garantindo um maior equilíbrio.

O preço do amanhã traz um cenário bem conhecido, o embate entre classes sociais, desenhado por Engels e Marx no século passado:

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108 | A história da sociedade até hoje é a história de lutas de classes.Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestres e companheiros, numa palavra, opressores e oprimidos, sempre estiveram em constante oposição uns aos outros, envolvidos numa luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta [...]. (ENGELS; MARX, 1988, p.66).

Acredito que não há ninguém melhor para ilustrar o enredo do filme como Karl Marx. Seu pensamento é uma filosofia de análise sobre a dimensão política da sociedade. Para Marx, é necessária uma sociedade boa para, como consequência, gerar um indivíduo bom.

É perceptível no filme a necessidade da conscientização da população. Tanto Sylvia como todos os demais ‘oprimidos’ estão alienados à realidade. E é nessa ótica que entra o papel da educação, especialmente a educação segundo Karl Marx; para o pensador não basta apenas o conhecimento, é imprescindível aliá-lo à prática, conhecer e transformar. Ela não deve estar a serviço do crescimento individual, mas sim a serviço da comunidade, a serviço de uma transformação.

Só haverá igualdade quando a razão for privilegiada, e isso só é possível através de uma educação libertadora assim como Freire nos ensinou.

Paulo Freire nos propõe a uma criticidade como solução ao ideologismo, ou melhor, um senso crítico às opressões ideológicas. É de urgente necessidade que o ser humano torne-se crítico, “tome as rédeas” da própria vida, seja o protagonista e responsável por si, não mais manipulado. E uma vez tomada à consciência da realidade poderemos interferir e superar as opressões das ideologias. Tomar esta posição, a crítica, implica em riscos – como observado no filme a constante perseguição a Will e Sylvia – ser livre é arriscar-se, ser crítico é observar a realidade e enxergar as causas e os porquês. Freire em a Educação como Prática da Liberdade coloca que a consciência crítica “se caracteriza pela profundidade na interpretação dos problemas, pela substituição de explicações mágicas por princípios causais.” (FREIRE apud JORGE, 1979, p.20).

O PREÇO DO AMANHÃ (IN TIME, 2011), DE ANDREW NICCOL

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| 109Bruno Castro Schröder e Helena Contaldo

O preço do amanhã nos remonta a um futuro distante, mas a reflexão proposta por ele é para nós, do aqui e do agora, um espelho. Vivemos em uma estrutura social desigual. O sistema de ensino vem mudando, mas ainda está carregado de ideologias, pensamentos impostos pelos opressores aos oprimidos para que estes cada vez mais tenham menos poder de reação. Só através da educação crítica vencemos a ideologia. É um trabalho árduo, Will e Sylvia que o digam, difícil, perigoso, mas como seres humanos é nosso dever sermos partícipes da sociedade e é nosso direito uma sociedade mais igualitária.

Referências

ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Manifesto do partido comunista. Petrópolis: Vozes, 1988. (Clássicos do pensamento político).

JORGE, J. Simões. Educação crítica e seu método. Loyola: São Paulo, 1979.

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REC

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ES

OS TRÊS PRIMEIROS LIVROS

DA ESTAÇÃO DA FÉ,

DE BRUNO FORTE

A Editora Paulinas nos ofereceu no primeiro semestre deste ano de 2012 uma série de publicações de Bruno Forte com o título: Estações da Fé. Três livros já foram publicados: A Palavra para viver, As quatro noites da salvação e Os graus do amor no Cântico dos Cânticos e cinco, a Editora nos promete, o serão em breve: A confirmação e a beleza de Deus, Breve introdução à vida cristã, Breve introdução aos sacramentos, Exercícios espirituais ao alcance de todos e O batismo e a beleza de Deus. São publicações bem cuidadas, no formato 11cm por 18cm, com arte impecável e preço acessível.

As reflexões, como se percebe pelos títulos, são de fundamental importância para a vida de fé do cristão, oferecidas, em primeiro lugar, para os cristãos da arquidiocese de Chieti-Vasto, Itália, onde Bruno Forte é o Pastor. Também por esse motivo, a linguagem é simples, embora mantenha a correnteza da fundamentação teológica, uma vez que o autor é teólogo de renome internacional, doutor em filosofia e teologia e foi, por muitos anos, professor de teologia dogmática da Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional.

A Palavra para viver (53p.) é estímulo à escuta da Palavra de Deus que se diz nas palavras humanas dos textos das Sagradas Escrituras. A obra é dividida em três partes: a primeira traz informações teológicas e do Magistério da Igreja sobre a Revelação de Deus na

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112 | Palavra das Sagradas Escrituras. Na segunda parte, temos uma série de Orações de preparação para a escuta da Palavra de Deus de vários autores conhecidos da tradição cristã: Edith Stein, Santo Agostinho, Sören Kierkegaard, Charles de Foucauld, Karl Rahner. A terceira parte, Orações para encontrar a palavra de Deus em cada dia da semana, sete propostas de oração do próprio Bruno Forte para cada dia da semana.

A Palavra para viver, na realidade, é uma carta que Dom Bruno Forte, arcebispo da diocese de Chieti-Vasto, na Itália, dirige a cada cristão da sua diocese porque “ouvir a voz que lhe fala na Sagrada Escritura é aprender a amar: a Palavra de Deus é a Boa-Nova contra a Solidão!” (p.10). Solidão que atinge a todos “na nossa sociedade complexa” (p.9), e que o autor compreende como a manifestação da fome de ouvir a Palavra de Deus, como já percebia o profeta Amós (Am 8,11).

Nessa solidão, a Palavra nos atinge como declaração do amor de Deus: amor infinito que “nos queima por dentro” e que, somente ele, pode “nos satisfazer”, pois “somente o Deus, que é amor infinito, pode dizer-nos que não estamos sozinhos...” (p.9). Sabendo-nos amados seremos capazes, por nossa vez, de amar.

A linguagem é simples, coloquial, convidando o leitor a uma aproximação da Palavra de modo vital.

As quatro noites da Salvação (71p.) é o texto nascido das meditações feitas por Bruno Forte em uma das igrejas da cidade de Chieti, durante três noites na Quaresma de 2006, à guisa de retiro espiritual para todos. Efetivamente esta é a sensação de quem lê essas páginas: a de ter feito um proveitoso retiro espiritual. No centro da reflexão, obviamente, está a noite da manifestação plena da glória de Deus com a libertação definitiva de todo ser humano, a noite de Páscoa. Através da tradição judaico-cristã, somos levados a contemplar as “noites” em que Deus se revela o seu amor aos homens e mulheres de todos os tempos. Para tanto, o autor se serve do rito judaico da bênção (qiddush) das quatro taças da salvação da celebração do seder:

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| 1131. A noite da criação ou do amor humilde. Primeira noite: O qiddush da primeira taça representa a primeira noite da

salvação que precede a primeira manhã da criação. Nela, o Salvador é o Criador que “faz espaço”, “se contrai” para dar lugar a toda a criação, segundo a doutrina do zim-zum. Esse fazer espaço para a criatura é sinal da humildade de Deus Criador. Assim também o homem é convidado a fazer-se espaço aberto, acolhida do Outro (Deus) e do outro (o próximo), especialmente do pobre. A primeira noite da salvação é a da humildade de Deus e do homem que corresponde ao Seu Amor.

2. A noite de Abraão ou da fé. Segunda noite:A segunda noite da salvação é aquela em que vemos Abraão

vivenciando a mais pesada escuridão: Deus lhe pede a vida do seu único filho, o filho da promessa. É a noite da fé, pois, nesse pedido, Deus parece negar-se a si mesmo: como Aquele que tudo pode volta atrás na sua promessa mais preciosa para Abraão? Abraão luta na noite escura para continuar acreditando que Deus é Deus e suas promessas não são mais importantes que Ele mesmo. Abraão se torna o pai dos crentes por continuar a acreditar contra todas as evidências, continuar a “crer na impossível possibilidade de Deus, confiar em Deus apesar do silêncio de Deus, da noite escura das suas exigências impossíveis” (p.27).

3. A noite do Êxodo ou da esperança libertadora: Terceira noite:

O qiddush da terceira taça está ligado a Moisés e à saída do povo hebreu do Egito, experiência vital para a fé do povo judeu. Bruno Forte retoma a tradição bíblica que divide a vida de Moisés em três etapas de 40 anos cada uma: a primeira, do tempo da utopia, da esperança ilusória, da doce inconsciência; a segunda, do tempo da derrota, do desencanto, da desilusão, da penúria da esperança; a terceira, do tempo da esperança da fé, marcada pela irrupção de Deus na sua vida. É essa terceira etapa, a da esperança, que leva irremediavelmente à libertação própria e de quem lhe está próximo.

4. A noite do Messias ou do Amor Crucificado. Quarta noite:Esta é a noite da paixão de Jesus. Noite da traição, da entrega,

do abandono. “Nessa noite a Palavra ressoa no silêncio como luz na treva do coração e da história” (p.52). Na noite em que o Filho se exila

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114 | do Pai, na dolorosa entrega do Espírito Santo, se consuma o drama trinitário do Deus não Amado que procura a sua criatura para com ela se reconciliar. “É esse mistério de amor a realização de todas as noites da salvação” (p.65).

Fechando esse ciclo de reflexões, a última pérola: Oração a Maria, Rainha das noites da nossa salvação.

Por fim, a preciosidade “Os graus do amor no Cântico dos Cânticos” (63p.), pequeno livro que reúne as meditações dos “Exercícios espirituais para todos” feitas na Quaresma de 2007, na Arquidiocese de Chieti-Vasto. A apresentação feita pelo próprio autor já coloca a questão: por que falar do amor? Forte responde: “porque o amor é tudo; por amor se nasce, por amor se vive; amar e ser amado são a razão da vida; não ser amado e não saber amar é tristeza infinita” (p.7). Para Bruno Forte, a experiência do amor é primordial na vida humana, pois o “ser no mais profundo dos seres é amor e a estrutura de sustentação de tudo quanto vive reside na relação de distância e proximidade, que é a vida do amor...” (p.7). Amar é oferta radical de si, num êxodo sem retorno nem arrependimentos; amor é chegada sem saudades, acolhida radical do outro.

Outra vez valorizando a tradição judaica, agora com o Shir Ha Shirim, Bruno Forte reflete sobre o Cântico dos Cânticos citando padres da Igreja como Orígenes, místicos como Ricardo de São Vítor e João da Cruz. O esquema dos três graus do amor se inspira na obra de Ricardo de São Vítor, Os quatro graus da caridade violenta. O termo-chave do Cântico é o verbo amar, ‘ahev em suas várias formas. Bruno Forte nos lembra que ‘ahavah = amor corresponde aos termos gregos: filia, eros e ágape, isto é, amor entre amigos, amor (sexual) entre amantes e amor oblativo, amor por Deus. O termo hebraico, como se pode ver, contém também duas letras em comum com o nome de Deus.

Bruno Forte refere-se aos três graus do amor: O amor que procura: o primeiro grau do amor. Essa é a etapa do despertar do desejo que incita a procura. No Cântico dos Cânticos, é a amada que procura o amado. A mulher é, por excelência, aquela que sente a falta

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| 115e se coloca à procura do amado.

No capítulo seguinte nos é apresentado o Toque do amado: segundo grau do amor. O toque do amado aqui é encontro fugidio vivido na “noite da ausência”, é preciso mais... A Beleza do dom recíproco estimula ainda mais o desejo do encontro e a necessidade de que ele nunca acabe.

Finalmente, O amor vitorioso: o grau do amor sem fim. Nesse grau do amor vemos a doação recíproca na comunhão sem tempo do amor, característica da comunhão dos santos.

Cada grau do amor é finalizado por uma oração e uma série de perguntas para o discernimento. O livro se fecha com chave de ouro, a Oração a Maria, Mãe do Belo Amor.

Nessas três obras encontramos ao mesmo tempo: profundidade espiritual, fundamentação teológica e linguagem acessível, o que nos leva a recomendá-la com alegria, pois vale a pena “degustar” a beleza e a profundidade dessas três pérolas que Bruno Forte nos regala!

Áurea Marin Burocchi

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116 | PAGOLA José Antonio. Pai-nosso: orar com o Espírito de Jesus. Petrópolis: Vozes, 2012. 140p.

A Editora Vozes nos brinda com um belo e singelo livrinho de Pagola sobre o Pai-nosso. A tradição de comentar o Pai-nosso é bem antiga. Já Cipriano de Cartago o fez ainda no séc. III no De Dominica Oratione. A edição original de Pagola em castelhano é de 2002. O autor já é conhecido entre nós pelo seu excelente livro Jesus: aproximação histórica, publicado também pela Vozes em 2010. O estilo é o mesmo. Simples, direto e claro. Consegue dar, ao mesmo tempo, agilidade e profundidade ao texto. O A. divide o trabalho em duas partes. A primeira comenta as invocações da oração do Senhor que se dirigem ao Pai em nove pequenos capítulos, que nos introduzem na experiência orante de Jesus. Ele faz a experiência de Deus como Pai amoroso e ensina a seus discípulos a fazer o mesmo. Em suma, a oração do Pai-nosso é a síntese do Evangelho do Reino, pregado por Jesus. Plenamente aberto ao Pai, ele está também plenamente voltado para nós. Ele faz a ligação existencial entre o amor a Deus e ao próximo. Assim, o A. nos introduz às invocações dirigidas a nós mesmos. É a segunda parte. Nela são nomeadas as nossas necessidades mais profundas tais como o “pão nosso de cada dia”, o “perdoai-nos as nossas ofensas...”, “não nos deixeis cair em tentação” e “livrai-nos do mal”. O comentário da primeira parte do livro termina com o “amém”. Nele manifestamos a segurança, a firmeza e a confiança no Deus do Reino. Na compreensão de Jesus, o Pai é um Deus que se interessa pelas suas criaturas. Ele nos acolhe como filhos e filhas no seu próprio Filho Jesus.

A segunda parte da obra do nosso autor nos traz alguns salmos para rezar o Pai-nosso. Eles nos ajudam a aprofundar, na contemplação do mistério de Deus, o mistério de Deus que é nosso Pai. Assim, manifestamos nossa confiança filial, a nossa fraternidade e a nossa solicitude pelos bens do Reino e pelas exigências da convivência humana justa e fraterna.

Recomendo com carinho esse pequeno livro a todos que desejam aprofundar a espiritualidade do seguimento histórico de Jesus. Na breve Apresentação o A. oferece umas indicações de como

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| 117utilizar o livro (cf. p.9-10). Com certeza, ele nos ajudará a deixarmos para trás uma repetição mecânica da Oração do Senhor. Os leitores irão sentir mais profundamente que, na oração do Pai-nosso, o que lhes chega é o próprio Evangelho do Reino do Pai amoroso.

C. Caliman

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1 Textos inéditos

A revista Horizonte Teológico (HT) recebe contribuições para suas seções de artigos, comunicações e recensões. Os textos devem ser inéditos e serão submetidos à avaliação do Conselho Editorial.

2 Submissão dos textos

Os textos devem ser enviados ao Conselho Editorial pelo e-mail [email protected].

3 Apresentação dos originais

a) O texto deve ser digitado em Word for Windows, fonte Times New Roman, corpo 12, papel A4, com margens de 3 cm. à esquerda, 2 cm à direita, 3 cm na margem superior e 2 cm na margem inferior.

b) Usar espaçamento 1,5 no corpo do texto e alinhamento justificado.

c) Entre partes do texto e entre texto e exemplos, citações, tabelas, ilustrações etc, utilizar espaço duplo. Para fazer isso, basta redigi-los na segunda linha após o parágrafo anterior.

d) Para citação com mais de três linhas, adentrar o texto em 4 cm e utilizar fonte Times, corpo 10.

e) Para texto citado com menos de três linhas, usar aspas no próprio corpo do texto.

f) Para notas de rodapé, usar fonte Times, corpo 10.

g) Apresentar o texto na seguinte sequência: título do artigo, texto, nome do(s) autor(es), referências e anexos.

h) Digitar o título do artigo centralizado na primeira linha da primeira página com fonte Times 12, em formato negrito, todas as letras maiúsculas.

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i) Digitar os títulos de seções com fonte Times, corpo 12, em negrito. O título da introdução deve ser redigido na terceira linha após o título. Os demais títulos, duas linhas após o último parágrafo da seção anterior (pular linha). Os títulos de seções são numerados com algarismos arábicos seguidos de ponto (por exemplo, 1. Introdução, 2. Fundamentação teórica). Apenas a primeira letra de cada subtítulo deve ser grafada com caracteres maiúsculos, exceto nomes próprios.

j) Artigos e comunicações devem ter entre 4 mil e 8 mil palavras, incluindo os anexos; recensões, entre 1 mil e 2 mil palavras.

k) As referências devem ser indexadas pelo sistema autor data no corpo do texto e não em nota de rodapé. Para citar, resumir ou parafrasear um trecho da página 36 de um texto de 2005 de Pedro da Silva, a indexação completa deve ser (SILVA, 2005, p.36). Quando o sobrenome vier fora dos parênteses deve-se utilizar apenas a primeira letra em maiúscula.

l) Citações no meio do texto sempre devem vir entre aspas e nunca em itálico. Use itálico para indicar ênfase ou grafar termos estrangeiros.

m) As referências devem ser antecedidas da expressão Referências, em negrito. A primeira referência deve ser redigida na segunda linha abaixo dessa expressão. As referências devem seguir a NBR 6023 da ABNT: os autores devem ser citados em ordem alfabética, sem numeração, sem espaço entre as referências e sem adentramento; o principal sobrenome do autor em maiúsculas, seguido de vírgula e iniciais dos demais nomes do autor (Por exemplo: MATOS, Henrique Cristiano José. Liturgia das horas e vida consagrada. Belo Horizonte: O Lutador, 2004.)

n) Se houver outros autores devem ser separados uns dos outros por ponto e vírgula; título de livro, de revista e de anais, em negrito; título de artigo: letra normal, como a do texto.

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| 1214 Dados dos autores

Os autores deverão informar seus dados pessoais: nome completo; instituto religioso ao qual estão vinculados (opcional); maior titulação; atividade atual (local e instituição); endereço eletrônico.

5 Exemplares dos autores

Os autores de artigos e comunicações publicados receberão três exemplares da revista; de recensões, dois exemplares.

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O Caminho aberto por Jesus: Lucas Autor: José Antonio Pagola

Esta obra foi escrita com a finalidade de ajudar a entrar pelo caminho aberto por Jesus, centrando a nossa fé no seguimento de sua pessoa. Um livro que nasce da vontade de recuperar a Boa Notícia de Jesus para os homens e mulheres de nosso tempo.O evangelho de Lucas é, sem dúvidas, o primeiro que temos que ler para descobrir com satisfação a Jesus, o Salvador enviado por Deus. Também é o mais acessível para captar a mensagem de Jesus como Boa Notícia de um Deus compassivo, defensor dos pobres, curador dos enfermos e amigo dos pecadores.

Pós-estruturalismo Autor: James Williams

Pós-estruturalismo é um guia lúcido para algumas das mais excitantes e controversas ideias existentes no pensamento contemporâneo. Estruturado em torno das obras essenciais dos mais importantes teóricos do movimento (Foucault, Derrida, Kristeva, Lyotard e Deleuze), cada capítulo examina um texto central, proporcionando sumários detalhados dos pontos principais e uma análise crítica dos argumentos centrais. As ideias difíceis são expostas claramente em termos de seu valor, tanto para o pensamento crítico como para os problemas contemporâneos. A metodologia desafiadora do pós-estruturalismo (desconstrução, economia libidinal, genealogia e empirismo transcendental) é iluminada por seu exame do contexto.

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124 | UtilitarismoAutor: Tim Mulgan

O utilitarismo – filosofia baseada no princípio da maior felicidade para o maior número de pessoas – exerceu enorme influência ao longo dos últimos dois séculos. O livro começa com um resumo do utilitarismo clássico dos séculos XVIII e XIX, enquanto os capítulos seguintes traçam a evolução dos temas centrais do pensamento utilitarista ao longo do século XX. Entre as questões abordadas estão: O que é a felicidade? É a felicidade a única coisa valiosa? Ocupa-se o utilitarismo dos atos, das normas ou das instituições? É o utilitarismo injusto, ou inadmissivelmente exigente, ou inviável? Qual poderá ser o futuro do utilitarismo?

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PAULUSwww.paulus.com.br

Estrutura e significado da metafísica de AristótelesAutor: Enrico Berti

Este ensaio pode ser entendido como uma introdução à leitura da Metafísica. Para quem já conhece essa obra, o texto pode ser lido como proposta interpretativa nova, capaz de esclarecer e dar a justa sistematização e alcance às doutrinas parciais, aos ensinamentos particulares até agora adquiridos, ou para pôr em discussão ou confirmar a visão de conjunto que havia formado da obra. O autor, professor Enrico Berti, é um dos mais gabaritados intérpretes do pensamento aristotélico.

A ditadura continuadaFatos, factoides e partidarismo da imprensa na eleição de Dilma RousseffAutor: Jakson de Alencar (org.)

A obra relembra que o golpe militar e a maior parte do regime tiveram o apoio da mídia, mostrando que a continuidade dos laços da imprensa com o autoritarismo apareceu de maneira clara quando Dilma Rousseff, uma ex-militante da resistência à ditadura, concorreu à presidência do país. Com esse viés, o título analisa, além do caso da ficha falsa e seus desdobramentos, a pré-campanha e a operação segundo turno daquelas eleições. Além do olhar crítico em relação à postura da grande mídia, o livro destaca a atuação positiva de muitos blogues que fizeram contrapontos e derrubaram versões produzidas pela mídia politicamente conservadora, enfraquecendo a forma autoritária de cobertura da eleição.

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126 | O Jesus do PovoTrajetórias no Cristianismo PrimitivoAutor: Robin Scroggs

O que pensavam as pessoas comuns a respeito de Jesus?” Em busca dos padrões de pensamento que moldaram as crenças primitivas a respeito D’Ele, o autor distingue três concepções fundamentais da significância de Jesus: como Cosmocrator, como Filho do Homem apocalíptico e como Christos. Ele correlaciona essas concepções com as realidades e necessidades sociais de comunidades primitivas distintas e, em seguida, traça as “trajetórias” ao longo das quais essas concepções evoluíram do início do século II adiante.

Espiritualidade para insatisfeitosAutor: José M. Castillo

Nos dias atuais, quando as religiões se veem questionadas por sérios motivos e sob diversos pontos de vistas, a espiritualidade ganha força. Um dos problemas apontados neste livro é que, em muitos ambientes, a espiritualidade é relacionada àquilo que nos afasta da vida e do mundo, da sociedade e dos assuntos urgentes que vivemos. Este livro, que vai ao encontro desse e de outros mal-entendidos, apresenta o significado e a forma de viver uma espiritualidade correta, que não renuncia nem à nossa condição de cidadãos do mundo nem à premente necessidade de sermos felizes que queremos experimentar.

Governando o presenteAutor: Nikolas Rose / Peter Miller

Neste livro Governando o presente, os autores investigam a natureza e a forma da governamentalidade, indagando por que é que alguns aspectos aparecem como problemas que precisam de administração e de regulamentação, além de examinarem o que constitui a base desses “problemas” e os processos que lhe servem de apoio. De forma fascinante e desafiadora, Petter Miller e Nikolas Rose oferecem uma análise profunda do tema, suscitando novos olhares e debates.

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