HUMANISMO CÍVICO ONTEM E HOJE

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 HUMANISMO CÍVICO ONTEM E HOJE Maria Cristina Seixas Vilani* O humanismo é um movimento de idéias que tem como postulação básica a exaltação da dignidade humana. No presente estudo, destacaremos uma vertente específica desta corrente de pensamento: o humanismo cívico ou "humanismo politizado". O ponto de partida dos dou trinadores que a elaboraram est á na lib erda de entendida como uma faculdade dos homens de agirem em conjunto pelo bem da cidade. O humanismo cívico, desde suas origens, ou seja, desde a antigüidade romana, esteve articulado com o republicanismo. O termo 'res publica' foi cunhado pelos romanos para designar uma forma de governo que tem como característica central o cuidado com a coisa pública. No seu tratado político intitulado Da República (55 a.C.) , Marcus Tullius Cícero (106-43 a.C.), considerado por Petrarca o "grande gênio da antigüidade", centrou sua motivação na prática da virtude cívica. Em Cícero encont ramos uma notáv el vinculação entre a condição humana e a prátic a da 'virtus': "é da palavra homem ('vir') que deriva a palavra virtude ('virtus')". (Citado por Skinner. 1996.p.108). Esta é a qualidade maior que devemos cultivar se quisermos ser homens no sentido literal do termo. Para isto a educação do cidadão deve ter como objetivo maior desenvolver em cada um o 'vir virtutis'. Somente com uma educação adequada os homens serão capazes de conduzir com sabedoria os negócios públicos. Este grande orador e filósofo romano, ao reescrever Platão na sua obra Da República, afirma que a forma de governo adotada por uma cidade determina a vida de um povo. O seu elogio à república é  justificado pelos aspectos que a distinguem: a busca do bem comum e a submissão de todos à Lei. Na er a mo de rna, pens ad ores como Maquiavel, Rous se au, Montes quieu, Tocqueville, Marx e, entre os contemporâneos, Hannah Arendt contribuíram para o enriquecimento desta corrente de pensamento. No decorrer do te xt o examinaremos o resgate do humanismo cívico na er a moderna, faremos algumas reflexões sobre sua releitura atual e destacaremos alguns dos seus desafios para a democracia no Brasil. 1- A emergência do humanismo cívico na era moderna Florença, entre o fim do século XIV e o início do século XV, foi o berço do humani smo politizado . Dentre os seus filhos mais notáv eis está Coluccio Saluta ti (1331-1406). Nele encontramos o "núcleo a partir do qual o humanismo cívico se desenvolveu". (Bignotto, 1991. p.21). Leonardo Bruni (1369-1444), Leon Battista  Alberti (1402-72) e Matteo Palmieri (1406-75) constituíram, ao lado de Salutati, o grupo de grandes doutrinadores humanistas da época. Cem anos depois, Maquiavel realizou, de forma exemplar, o resgate da idéia republicana de virtude . Este florentino, destacado representante do Renascimento italiano, é tido por muitos como o grande herdeiro moderno do humanismo cívico.

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HUMANISMO CÍVICO ONTEM E HOJE

Maria Cristina Seixas Vilani*

O humanismo é um movimento de idéias que tem como postulação básica a

exaltação da dignidade humana.No presente estudo, destacaremos uma vertente específica desta corrente depensamento: o humanismo cívico ou "humanismo politizado". O ponto de partidados doutrinadores que a elaboraram está na liberdade entendida como umafaculdade dos homens de agirem em conjunto pelo bem da cidade.O humanismo cívico, desde suas origens, ou seja, desde a antigüidade romana,esteve articulado com o republicanismo. O termo 'res publica' foi cunhado pelosromanos para designar uma forma de governo que tem como característica centralo cuidado com a coisa pública. No seu tratado político intitulado Da República (55a.C.) , Marcus Tullius Cícero (106-43 a.C.), considerado por Petrarca o "grandegênio da antigüidade", centrou sua motivação na prática da virtude cívica. Em

Cícero encontramos uma notável vinculação entre a condição humana e a práticada 'virtus': "é da palavra homem ('vir') que deriva a palavra virtude ('virtus')".(Citado por Skinner. 1996.p.108). Esta é a qualidade maior que devemos cultivar se quisermos ser homens no sentido literal do termo. Para isto a educação docidadão deve ter como objetivo maior desenvolver em cada um o 'vir virtutis'.Somente com uma educação adequada os homens serão capazes de conduzir com sabedoria os negócios públicos. Este grande orador e filósofo romano, aoreescrever Platão na sua obra Da República, afirma que a forma de governoadotada por uma cidade determina a vida de um povo. O seu elogio à república é

 justificado pelos aspectos que a distinguem: a busca do bem comum e asubmissão de todos à Lei.

Na era moderna, pensadores como Maquiavel, Rousseau, Montesquieu,Tocqueville, Marx e, entre os contemporâneos, Hannah Arendt contribuíram para oenriquecimento desta corrente de pensamento.No decorrer do texto examinaremos o resgate do humanismo cívico na eramoderna, faremos algumas reflexões sobre sua releitura atual e destacaremosalguns dos seus desafios para a democracia no Brasil.

1- A emergência do humanismo cívico na era moderna

Florença, entre o fim do século XIV e o início do século XV, foi o berço dohumanismo politizado. Dentre os seus filhos mais notáveis está Coluccio Salutati(1331-1406). Nele encontramos o "núcleo a partir do qual o humanismo cívico sedesenvolveu". (Bignotto, 1991. p.21). Leonardo Bruni (1369-1444), Leon Battista

 Alberti (1402-72) e Matteo Palmieri (1406-75) constituíram, ao lado de Salutati, ogrupo de grandes doutrinadores humanistas da época. Cem anos depois,Maquiavel realizou, de forma exemplar, o resgate da idéia republicana de virtude .Este florentino, destacado representante do Renascimento italiano, é tido por muitos como o grande herdeiro moderno do humanismo cívico.

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Para entendermos o núcleo central da doutrina, destacaremos alguns elementosnela contidos: a valorização da vida ativa, a exaltação da virtude cívica e o elogioda liberdade.

1.1- A vida ativa

O humanismo moderno significou uma ruptura radical com os valores quepredominaram na Idade Média.

 A civilização do medievo encontrou em Santo Agostinho uma de suas maioresexpressões. Em A Cidade de Deus, redigida entre 413 e 426, ele afirma que a vidana terra faz parte de um plano divino e que as instituições políticas são fruto davontade do Criador; e este, por compaixão dos seres humanos decaídos pelopecado, estabeleceu as relações de mando e obediência e a divisão entregovernantes e governados. Somente assim os homens alcançariam a paz e aconcórdia necessárias à salvação eterna. Também no agostinismo, como emtodas as grandes doutrinas da era medieval, encontramos a valorização da vida

contemplativa como a forma superior da existência humana.Os humanistas cívicos, ao romperem com aquela tradição, valorizaramsobremaneira a vida ativa e a praxis humana, com vistas a organizar a vidacoletiva. Com isto, a atividade pública passou a ser vista como a mais nobre dasações. Em Hannah Arendt encontramos a política elevada à dimensão essencialda condição humana. Para ela, o sentido da política é a liberdade: faculdade quepossibilita aos homens construírem o seu próprio destino.

Se o sentido da política é a liberdade, então isso significa que nós, nesse espaço,e em nenhum outro, temos de fato o direito a ter a expectativa de milagres. Não

porque acreditemos [religiosamente] em milagres, mas porque os homens,enquanto puderem agir são aptos a realizar o improvável e o imprevisível, erealizam-no continuamente, quer saibam disso, quer não. (1993 p.22)

Para os humanistas modernos a ordem social é fruto da vontade humana: não énatural como pensavam os antigos , nem produto da vontade divina, comoafirmavam os medievais. Aos homens, segundo Maquiavel, cabe construir umaordem que evite o caos e a anarquia - produtos das paixões humanas.

O humanismo significou uma nova teoria da história. O homem é o autor do seupróprio destino, construtor das instituições e realizador da ordem social.

1.2- A virtude cívica

 A virtude cívica é o conceito central do humanismo politizado. Para seusrepresentantes, não existe virtude maior que a dedicação à vida pública.

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'Virtù' é um conceito antigo, encontrado em Cícero ('virtus'). Para ele, o homematinge seu mais alto nível de excelência agindo ao lado dos outros homens, comvistas à realização do bem comum.Palmieri, seguindo os passos do antigo humanista romano, afirma que "nenhumaobra humana pode ser mais elevada do que ajudar na salvação da pátria, na

conservação da 'polis' e na união e concórdia das multidões". (citado por Bignotto,1991. p.40). Matteo Palmieri tinha em mente o contexto florentino de seu tempo.Na época em que escreveu seus diálogos sobre A Vida Cívica (meados da décadade 1430), Florença estava envolvida na luta pela liberdade "contra uma série dedéspotas belicosos". (Skinner, 1996.p.91). Sua preocupação, então, era canalizar esforços e unir os cidadãos contra as ameaças à independência de sua cidade.Diz Maquiavel que o legislador virtuoso é aquele capaz de criar um Estadoestável, que traga felicidade ao seu povo; e para isto, ele tem que ser capaz deusar os meios necessários exigidos pelos acontecimentos e pelas circunstânciashistóricas.Nicolau Maquiavel faz da realidade concreta a sua referência única para pensar a

política. Segundo ele, todos os Estados adquirem a forma de repúblicas ouprincipados (O Príncipe cap. I). Quando uma cidade está corrompida, vulnerável aconflitos desestabilizadores ou alvo de invasões estrangeiras, o povo precisa deum príncipe astuto e virtuoso dotado de um "ânimo disposto a voltar-se para adireção a que os ventos e as variações da sorte o impelirem". (O Príncipe cap.XVIII) Já o governo republicano só é possível em cidades não corrompidas,estáveis e afortunadas. Ai, a liberdade deve ser confiada ao povo, pois nelepercebemos "uma vontade firme de viver em liberdade" (Discursos - cap. V). NosDiscursos sobre a primeira década de Tito Lívio encontramos a defesa doconfronto como a causa das boas leis que ensejam a liberdade pública:

Os que criticam as contínuas dissensões entre os aristocratas e o povo parecemdesaprovar justamente as causas que asseguraram fosse conservada a liberdadede Roma, prestando mais atenção aos gritos e rumores provocados por taisdissensões do que aos seus efeitos salutares. (Discursos cap. IV).

O caráter salutar dos conflitos está em que ao possibilitar a expressão devontades diferentes, a experiência da liberdade, produz boas instituições. Aoafirmar que as dissensões são benéficas à vida de uma cidade, Maquiavel seafastou dos humanistas que o precederam. Aqueles, ao contrário, viam a paz e aestabilidade como condições da boa ordem social.Para Maquiavel, a melhor forma de governo não depende apenas da vontade dohomem, mas das circunstâncias com as quais ele se vê confrontado. O homemnão escolhe sua fortuna, mas a sua liberdade o faz capaz de, mesmo emcontingências adversas , criar boas leis e boas instituições. A virtù reside nacapacidade de agir conforme as circunstâncias, objetivando o bem comum.Maquiavel, no cap. VIII de O Príncipe estabelece a diferença entre aquele quechega "ao principado pela maldade, pelas vias celeradas contrárias a todas as leishumanas e divinas" e aquele que torna-se "príncipe por mercê do favor de seuscontemporâneos." Para Nicolau Maquiavel aqueles tiranos que, sem mérito,matam seus concidadãos, traem seus amigos, não têm fé, piedade, nem religião,

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podem conquistar o mando mas jamais a glória. Porque estes, embora nãopossam ser julgados como "inferiores a qualquer dos mais ilustres capitães", por sua "crueldade e seus inúmeros crimes" não podem ser celebrados entre "os maisilustres homens da História." ( O Príncipe, cap VIII) Mas, como entender aafirmação de que "não deve importar ao príncipe a qualificação de cruel" e de que

deve usar de crueldade se assim for necessário? O próprio Maquiavel respondeao dizer que a crueldade do governante se justifica se é usada para "manter osseus súditos unidos e com fé, porque com raras exceções, é ele mais piedoso doque aqueles que por muita clemência deixam acontecer desordens, das quaispodem nascer assassínios ou rapinagem." O móvel da política deve ser sempre ointeresse público, seja em um principado ou em uma república. O legislador sábio(seja o príncipe ou o povo) deve ser "animado do desejo exclusivo de servir não osseus interesses pessoais, mas os do público: de trabalhar, não para seus própriosherdeiros mas pela pátria comum". (Discursos cap. IX).Montesquieu, em seu O espírito das leis, define a virtude numa república como"algo muito simples" e que "acarreta a pureza dos costumes": o "amor pela pátria"

(Livro V. cap. II). Ele estava preocupado em identificar a maneira como funcionamos governos, isto é, qual a "paixão que os move". Enquanto a monarquia é movidapela honra e o despotismo pelo medo, a república encontra o seu móvel navirtude. Das três paixões, somente esta última é "uma paixão propriamentepolítica: ela nada mais é do que o espírito cívico, a supremacia do bem públicosobre os interesses particulares". (J.A. Gilhon Albuquerque in Weffort (org),1989.p.117).Em suma, o que esses republicanos exaltaram foi o valor do civismo. Para eles osignificado da vida ativa está na participação política com vistas à realização dacoisa pública. É ai que reside a verdadeira virtude do cidadão.

 A República, sendo aquela forma de governo que cuida da coisa de todos, e que

possibilita a expressão da vontade política, é a forma onde a virtude se expressacom todo o seu vigor. No civismo está a essência do republicanismo.

1.2- A liberdade

 A liberdade tem lugar de destaque no humanismo e aparece como condiçãonecessária à realização da coisa pública. O mérito de uma cidade livre, segundoBruni (1369-1444), é que"ela confere iguais possibilidades a qualquer um de tomar parte nos negócios daRepública". Nela, tudo se dirige, "na mais ampla medida possível, para aconservação da liberdade e, ao mesmo tempo, da igualdade de todos oscidadãos". (Citado por Skinner, 1996p.100).Para Bruni, humanista florentino, em Roma antiga encontramos a mais claracomprovação de que um povo atinge sua grandeza quando é livre para participar do governo, e se corrompe quando se vê privado da liberdade.

 A liberdade, entre os humanistas republicanos, é pensada como aautodeterminação de um povo; como a possibilidade de uma comunidade políticadefinir o seu próprio destino. Vale aqui ressaltar o contraste entre a liberdade doshumanistas cívicos, de conotação positiva, e a concepção negativa defendida

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pelos liberais. Para estes últimos, ela é definida como a possibilidade de oindivíduo fazer suas escolhas sem constrangimentos externos.Entre os liberais, Stuart Mill definiu essa concepção individualista de liberdade deforma clara e precisa: ela é uma situação em que ninguém deve ser impedido defazer o que deseja e nem constrangido a fazer o que não quer. Esta liberdade

deve ser a mais ampla possível só encontrando limite na igual liberdade dosdemais. (Sobre a liberdade. Introdução). Tal definição"corresponde ao que Benjamin Constant chamava de liberdade dos modernos,uma liberdade negativa cuja finalidade principal era livrar os indivíduos dosconstrangimentos legais e institucionais a fim de poderem dedicar-se totalmente àvida civil, ao apetite aquisitivo da sociedade utilitária do mercado" (José Murilo deCarvalho - "Cidadania na Encruzilhada" in Bignotto (org).2000.p.105)Segundo os humanistas republicanos, o bem coletivo está acima dos interessesprivados, e a liberdade diz respeito à "disponibilidade do cidadão para se envolver diretamente na tarefa do governo da coletividade". (José Murilo de Carvalho - op.et loc. cit.).

Para que exista o efetivo exercício desta liberdade, três condições sãoimprescindíveis:· um governo republicano, pois somente numa República existe possibilidade daexpressão de uma vontade livre;· um sistema de leis que garanta a igualdade entre todos, pois na vida da polis, otrato da coisa pública só pode transcorrer entre cidadãos livres e iguais;· uma forte educação cívica, pois somente o sentimento cívico é capaz de fazer com que o cidadão coloque o bem público acima dos seus interesses particularese canalize suas energias para o bem da cidade.

2- O Humanismo cívico hojeVirtude versus interesses

No mundo dos interesses privados da sociedade de mercado, tende a predominar uma apatia política, e não há motivação para preocupações com o bem comum. Ahegemonia liberal no mundo de hoje, que enfatiza o individualismo exacerbado ecompetitivo, sugere a necessidade do debate em torno da importância do bempúblico, da ação coletiva e da solidariedade política.No republicanismo, o apelo à virtude cívica, a ênfase na participação pública, acompreensão de que o paradigma da política é o diálogo orientado para objetivoscomuns, diferem da concepção liberal, fundada nos interesses privados. Noliberalismo a compreensão da política é inteiramente diversa: o paradigma é omercado e o processo político é percebido como o meio através do qual sãoaglutinados interesses privados e encaminhados ao aparelho administrativoestatal .Nas atuais democracias liberais, a política foi transformada em lugar de disputa deinteresses particulares, e a república foi reduzida ao constitucionalismo, aogoverno de leis.

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O grande desafio hoje é criar uma arena pública capaz de propiciar aos cidadãosuma experiência de vida coletiva, de cooperação e de uma ação comum.No nosso tempo, o elogio da vida ativa e da virtude cívica não pode significar desconhecimento e desvalorização do que é próprio do indivíduo, daquilo quepertence ao particular. Hannah Arendt afirmou que é requisito da condição

humana desenvolver plenamente as coisas próprias da esfera pública, tantoquanto as da esfera privada. Esta é entendida como expressão da autonomiapessoal e da singularidade, como espaço da individualidade, da intimidade, da"preservação do calor da vida". O valor por ela atribuído à autonomia, àsingularidade e à distinção fez Arendt pensar na vida ativa e no debate públicoessencialmente realizado num espaço de "igualdade na diversidade". Isto significaque o diálogo entre cidadãos, com vistas à realização de objetivos comuns, sópode chegar a bom termo quando existe possibilidade de explicitação dasdiferenças e do confronto de opiniões.Esta concepção arendtiana da política é de extrema importância, quando vivemosnum tempo em que

o fantasma que nos espreita, e que é justamente temido pelos autores liberaiscomo Berlin, é o de que a praça pública e a retórica em favor do todo foram asgrandes armadilhas dos regimes totalitários, sustentados muitas vezes por umapelo abstrato ao bem público e pela defesa da comunidade contra o indivíduo".(Bignotto. 2000.p. 64)Em Arendt encontramos a defesa intransigente das liberdades pública e privada.Para ela, a grande tragédia da era moderna foi o totalitarismo, exatamente porque,ao exercer a "dominação total" (nas esferas pública e privada), negou ao homem asua própria humanidade.O problema para nós, contemporâneos, é desvendar as possibilidades da virtudeno contexto das atuais democracias. O desafio é dado pela tensão entre as

paixões privadas e o amor pela coisa pública. Como desenvolver entre cidadãos,preocupados com seus interesses, também aquele prazer pela vida políticaproclamado por Aristóteles, pelos "pais da pátria americana", por Tocqueville e por Hannah Arendt?

 A teoria tocquevilleana do "interesse bem compreendido" nos dá pistasimportantes para entendermos que, no contexto das democracias modernas, oenvolvimento com os negócios públicos não significa a negação dos desejosprivados. O que nos mostra o autor de A democracia na América é que, a partir deinteresses diversos, os cidadãos podem agir "concertadamente na elaboração demetas comuns". O elogio de Tocqueville "às experiências políticas comunitárias" eà "precedência da comunidade sobre os interesses particulares, não implicava aexclusão destes, pois já não podia pensar (à sua época) que se devesse ou quese pudesse impedir os interesses". (Marcelo G. Jasmin. Interesse bemcompreendido e virtude em A Democracia na América. In Bignotto (org) 2000. p.79)

Para Tocqueville, o mérito dos habitantes dos Estados Unidos, na sua época (ADemocracia na América foi escrita na década de 1830), residia no fato de, nãodescuidando do seu próprio bem estar, serem capazes de se preocupar com afelicidade de seus concidadãos.

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"Mostram complacentemente como o amor esclarecido por si mesmos leva-osincessantemente a ajudar-se entre si e os dispõe a sacrificar, de boa vontade, aobem do Estado, uma parte do seu tempo e das suas riquezas." (A Democracia na

 América. Livro II. 2ª. parte. cap. VIII)

O interesse bem compreendido entre os americanos não tinha o valor da virtudedos antigos, mas era qualidade "apropriada às necessidades dos homens denosso tempo." Não conduzia "diretamente à virtude, pela vontade, masaproximava-se dela pelos hábitos." (op. et loc. cit.)

"Os moralistas americanos não pretendem que seja necessário sacrificar-se aossemelhantes porque é grandioso fazê-lo; mas dizem ousadamente que taissacrifícios são tão necessários àquele que os impõe como àquele que dele seaproveita." (op. et loc. cit.)

 Ainda que imperfeitamente, mesmo não eliminando o egoísmo, o interesseesclarecido produziu, entre os cidadãos americanos, a clareza de que énecessário "sacrificar uma parte dos interesses particulares para salvar o resto."(op. et loc. cit.)

Como nos diz Marcelo Jasmin, à luz da experiência americana, Alexis Tocqueville"atualizava para a modernidade, o antigo princípio da virtude." (op. cit. p.79)

3- Os desafios do humanismo cívico para a democracia no Brasil

Muitos dos nossos cientistas sociais têm chamado a atenção para o fato de acultura brasileira carecer de civismo. Entre nós, o sentimento que predomina é ode que a política é coisa para uma elite, e ao cidadão comum cabe tão somenteeleger seus governantes em eleições periódicas. Este tipo de percepção temgerado apatia política, exclusão da maioria da vida pública e desinteresse pelacoisa comum.

Em pesquisa sobre a cultura política brasileira (1996), coordenada pelo professor José Murilo de Carvalho , pode-se observar o baixo grau de envolvimento dosbrasileiros na vida política. A pesquisa, realizada na região metropolitana do Riode Janeiro, teve como objetivo detectar o nível de interesse público, o senso dedever em relação à coletividade e o grau de envolvimento do cidadão na vidapolítica. Alguns dados recolhidos são muito indicativos da fragilidade da culturacívica entre nós: dos entrevistados, somente 2% declararam filiação a algumpartido político; 5% estão filiados a alguma associação de moradores; 13,6% sãosindicalizados; 80% votaram em 1994. Aparentemente contraditório, este últimodado tem pouca importância neste estudo, em razão da obrigatoriedade do votono Brasil.

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 Ao se perguntar como enfrentar, hoje, após a redemocratização, o problema dacidadania entre nós, José Murilo, no texto "Cidadania na Encruzilhada" (Bignotto(org.) 2000), aponta algumas perspectivas de envolvimento do cidadão brasileirocom as questões públicas.· O aparecimento de organizações não governamentais (ONGs), de associações

civis e de igrejas, aponta no sentido de abertura de um campo de atividadespropícias ao desenvolvimento da participação política. Tais formas têm avantagem de não estabelecer "uma separação tão grande entre a virtude e ointeresse, tornando-se por isso, mais viável por estar de acordo com a lógica e apsicologia da liberdade dos modernos." O conteúdo de suas práticas, ao mesmotempo que absorvem "pressões de minorias por ações específicas", possibilitam aexperiência da ação coletiva, da solidariedade política e do debate público. (JoséMurilo, "Cidadania na Encruzilhada". Bignotto (org.) 2000. p. 125);· A experiência de "formas alternativas de participação dos cidadãos naformulação e execução de política públicas, sobretudo na elaboração noorçamento e no planejamento de obras". (op. et loc. cit.) implementada em alguns

municípios do Brasil, têm constituído um significativo instrumento de envolvimentodo cidadão, em problemas governamentais de nível local.Maria Victória Benevides, com preocupações semelhantes, no seu livro Acidadania ativa, recorre a Montesquieu, Rousseau e Tocqueville para mostrar aimportância dos costumes de um povo para a vida republicana. Pensando ocontexto brasileiro, ela afirma que a nossa tradição "não é, certamente para dizer o mínimo, de acentuado apego às virtudes políticas e, muito menos de amor àigualdade". (1991.p.193). Para ela, a tradição oligárquica e patrimonialista gerouuma sociedade "marcada pela experiência do mando e do favor, da exclusão e doprivilégio". (1991. p.194), que em nada tem ajudado o civismo e a igualdade.Com a preocupação de ampliar o espaço público e a educação cívica do povo

brasileiro, a autora de A cidadania ativa propõe o uso mais constante dosmecanismos de "democracia semidireta" previstos na Constituição Federal:plebiscito, referendo, iniciativa popular. Para Maria Victória, o uso destesinstrumentos de participação popular, nas decisões públicas, pode significar uma"verdadeira escola de cidadania", levando o cidadão a "se interessar diretamentepelos assuntos que lhe dizem respeito e, sobretudo, a se manter informado sobreos acontecimentos de interesse nacional".(1991.p.196)Em estudo denominado "Políticas Públicas e Governança em Belo Horizonte"(1997), o professor Sérgio de Azevedo oferece aos leitores análise de algunscanais de participação da sociedade civil nas políticas governamentais domunicípio. Ele busca registrar "êxitos" e "constrangimentos" no OrçamentoParticipativo, em Belo Horizonte.

"Ao instituir uma arena pública não estatal para discussão de demandas e denegociação de interesses envolvendo associações reivindicativas, movimentossociais e pessoas individuais o orçamento participativo integra amplos setores noprocesso de tomada de decisão sobre a alocação de recursos da Prefeitura - oque é um ganho para o fortalecimento da cidadania - e rompe com os paradigmasclássicos da Administração Pública." (p.4)

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O valor desta prática, para o autor, é de que, além de exigir atuações maistransparentes por parte do poder público, também constitui um processo deeducação política que "a partir de demandas particularistas e locais", o cidadão élevado a "discutir questões mais amplas da cidade," e "desenvolver políticas desolidariedade vis-a-vis os mais necessitados." (p.4)

Por outro lado, Sérgio de Azevedo aponta constrangimentos que o OrçamentoParticipativo tem enfrentado. Dentre outros, ressalta que

"devido a dotações previamente definidas em Lei e a despesas de custeio damáquina pública municipal, na verdade não sobram muitos recursos cuja alocaçãopossa ser decidida através do Orçamento Participativo. No caso de BeloHorizonte, o percentual e as verbas disponíveis foram relativamente baixos para oporte da cidade, especialmente no primeiro ano de implantação do OrçamentoParticipativo, não passando de 5%, apesar de haver aumentado

significativamente, o valor absoluto dos recursos." (p. 5) Apesar destes constrangimentos o autor não tem dúvidas do valor cívico daparticipação popular na política orçamentária do governo municipal. "A dinâmicado Orçamento Participativo possui uma potencialidade educativa enormesignificando ganhos em várias dimensões da cidadania", pois: aumenta o controleda sociedade civil sobre o poder público, constitui um exercício de negociação ede convivência com diferentes vontades e necessidades, faz o cidadão ultrapassar uma visão particularista rumo a uma perspectiva mais ampla que o aproxima "deuma visão mais compreensiva da cidade (...)." (p. 5)

Resta ainda, em nossa breve análise sobre as perspectivas da cidadania brasileiraabertas pela redemocratização recente, um comentário sobre importanteinstrumento de participação política da sociedade civil no trato dos negóciospúblicos: os Conselhos Gestores Municipais. De acordo com indicação de Mariado Carmo A.A. Carvalho in Participação Social no Brasil Hoje,

"já existem hoje no Brasil, nos mais de cinco mil municípios, mais conselheirosque vereadores, o que nos dá a dimensão desta forma de participação popular,muito mais acessível aos participantes dos movimentos sociais do que atradicional representação parlamentar." (p. 17)

Os Conselhos Municipais constituem instâncias de formulação de políticaspúblicas compostos por grupos sociais organizados. Dentre eles, merecemdestaque os Conselhos de Defesa da Criança e Adolescente, da Saúde e da

 Assistência Social. Também vale ressaltar aqueles vinculados às políticas dehabitação, dos direitos da mulher, do patrimônio histórico, dos idosos, da inclusãodas pessoas portadores de deficiências.

 A importância dos Conselhos reside na publicização da política, na ampliação daparticipação popular na coisa pública.

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Contudo, este tipo de participação política, ainda incipiente no Brasil, encontralimites que foram registrados por Maria do Carmo Carvalho:1. os Conselhos dependem da abertura dos governos para possibilitar o acesso dapopulação às informações sobre os negócios públicos, sobre o funcionamento da

máquina administrativa governamental e para a criação efetiva de espaços de co-gestão;2. a participação eficaz dos conselheiros depende da capacitação técnica destesatores para a formulação e análise das políticas públicas, o que em geral é muitodifícil, "uma vez que os movimentos são majoritariamente constituídos desegmentos sistematicamente excluídos da escola e de todo tipo de acesso ainformações (...)." (p. 18);3. "a fragilidade da mobilização social" tem constituído um problema para a forçados Conselhos. Tal mobilização é indispensável às lideranças que delesparticipam como respaldo político e legitimidade de suas ações.

 A questão que se coloca para os republicanistas é: como enfrentar a apatiapolítica e fazer a cidadania mais virtuosa?Como vimos ao longo deste texto, a virtude cívica para os republicanos édecorrente de bons costumes e de boas instituições. Tocqueville afirmou que oamor à pátria "nasce das luzes, desenvolve-se com o auxílio das leis, cresce noexercício do direito". (Livro I. 2ª. parte. Cap. VI)

 A construção da república brasileira tem ainda um longo caminho a percorrer.Neste percurso, os democratas republicanos procuram encontrar mecanismos queestimulem entre nós o amor pela coisa pública e possibilitem o efetivo exercíciopopular do poder político.

Maio 2001Bibliografia:

· Agostinho (S). 1964. A cidade de Deus. São Paulo: das Américas· Arendt, Hannah.1993. A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume - Dumará· ________________ 1981. A condição humana. São Paulo: Universidade de SãoPaulo· Azevedo, Sérgio de. 1997. Políticas públicas e governança em Belo Horizonte,Revista do IPPUR, UFRJ, vol. II, nº. 1, jan/julho de 1997,· Benevides, Maria Victória. 1991. A cidadania ativa. São Paulo: Ática· Bignotto, Newton. 1991. Maquiavel republicano. São Paulo: Loyola· _____________(org.) 2000. Pensar a república. Belo Horizonte: UFMG.· Carvalho, Maria do Carmo A.A. Participação social no Brasil hoje. mimeografado.s/d.· Cattoni, Marcelo.2000. Devido processo legislativo. Belo Horizonte:Mandamentos· Châtelet, Duhamel e Pisier (orgs). 1993. Dicionário das obras políticas. Rio deJaneiro: Civilização brasileira.

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