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Maria Mulé Slemenson HUMOR: DEFESA OU SUBLIMAÇÃO? Trabalho de conclusão de curso como exigência parcial para graduação no curso de Psicologia, sob orientação da Profª. Drª. Camila Sampaio Pedral. Pontifícia Universidade Católica Faculdade de Psicologia São Paulo 2007

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Maria Mulé Slemenson

HUMOR: DEFESA OU SUBLIMAÇÃO?

Trabalho de conclusão de curso como exigência

parcial para graduação no curso de Psicologia, sob

orientação da Profª. Drª. Camila Sampaio Pedral.

Pontifícia Universidade Católica

Faculdade de Psicologia

São Paulo

2007

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Agradecimentos

Agradeço à orientadora desta pesquisa, Camila Sampaio Pedral, a

qual tive o prazer de escolher e o privilégio de ser escolhida. Agradeço

pela sua atenta leitura e delicada escuta, por alimentar-me com seu

entusiasmo pelo estudo e com seu estimado acervo bibliográfico. E como

não poderia faltar: por rechear nossos encontros com leveza e bom

humor. Agradeço aos dois psicanalistas entrevistados que contribuíram

enormemente para a pesquisa, agradeço pela disposição e colaboração

imediata.

Aos professores da graduação, em especial, Isabel Kahn Marin,

Maria de Lourdes Trassi Teixeira, Silvana Rabello, Regina Chu Cavalcanti,

Franklin Goldgrub, que me ensinaram algo além da teoria, mestres

incapazes de passaram despercebidos e que, desde já, deixam saudades.

Ao professor Sidnei José Caseto, pela seriedade, impecável e implicada

presença, ao lado do qual me encantei pelo tema desta pesquisa.

Aos abuelos, Marta e Carlos, que não pouparam cuidados e afetos à

neta brasileira; desde o primeiro olhar, a insistente e invariável aposta em

mim, para os quais as palavras ficam curtas e insuficientes.

À minha mãe, olhos dos quais brotam orgulho, admiração e um

imenso compartilhamento das conquistas, aquela com a qual, lado a lado,

dei os primeiros passos, esses que me possibilitaram percorrer este

caminho; ao meu pai, que apenas com um sorriso me aquece com a

intensidade de nossa relação, presença na qual transborda acolhimento e

generosidade.

Aos meus irmãos, meninos encantadores, Ivan, Tomás e Teo, que

me distraíram com ímpar bom humor, nos momentos de maior

introspecção e debruce sobre o trabalho.

Ao meu grande amor, Fabio De Maria, que me fez conhecer partes

escondidas de mim mesma, que me fez rodopiar pelo mundo afora,

abraçada com a leveza e simplicidade com que vive a vida. Pela tolerância

diante dos cinemas perdidos, das tardes de estudo e as Obras Completas

de Sigmund Freud na estante de casa.

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Ao meu analista, Christian Ingo Lenz Dunker, que com poucas e

pertinentes palavras, me acompanhou em amadurecimento tão

significativo, o que tornou possível a finalização de tantas etapas.

À Isabel Penteado, amada amiga e cúmplice companheira de tantas

empreitadas e descobertas, que se interessou e se dispôs a fazer uma

leitura de algumas destas páginas quando ainda eram rascunhos.

À Heloísa Reuter, pelo apoiou em meus primeiros passos e tropeços

na vida adulta, pelo amparo às minhas inseguranças e conflitos

profissionais, por acompanhar as batalhas e comemorar, sempre, as

vitórias.

Ao mestre Li, mais além da medicina, ao pleno acolhimento do

corpo, da alma e das emoções.

À Luciana Lins, Ernesto Duvidovich, Cláudio Waks, Cris Calderon,

Zeza, Regina Scarpa, Manuela Novais, Renata Borges, Julia Browne,

Marcelo Alencar, Ligia Hoffmann, Julia Gleich, queridos amigos, que

contribuíram para esta realização.

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Humor: defesa ou sublimação?

Palavras-chave: Riso, Humor e Psicanálise.

Resumo

O presente trabalho teve como objetivo provocar os leitores a se

questionarem a partir de quais finalidades o humor está presente na vida

dos sujeitos. Para disparar a reflexão dois eixos foram contrapostos: o

humor enquanto uma potência elaborativa e resignificativa e enquanto

defesa e afastamento da realidade.

Para sustentar as inquietações suscitadas, em uma primeira parte,

realizou definições conceituais e aprofundou teoricamente as

peculiaridades das diferentes espécies de riso, estabelecendo estreitas

articulações com a psicanálise. Em um segundo momento, se dedicou a

discutir a respeito das contribuições do humor no desenvolvimento

infantil. Na terceira etapa, estendeu os efeitos do humor e desafiou a

possibilidade da presença do dito humorístico no cotidiano dos sujeitos.

Para tal, primeiramente voltou-se para a clínica psicanalítica e

posteriormente para outros contextos sociais.

Percebeu-se que, além das hipóteses sugeridas, outras potências se

desenham na estrutura humorística, entre elas, o fortalecimento da

identidade grupal, a possibilidade de um processo libertário e a elaboração

simbólica. Ao afinar a ótica do humor, concluiu-se que os risos irônicos e

demais defensivos, não se incluem no repertório do humor. O circuito e

aprofundamento da temática possibilitaram reconhecer e legitimar que a

presença do humor promove um distanciamento da realidade angustiante,

na perspectiva de que esta possa ser vista sob diferentes ângulos e, o que

antes era cristalizado em dor, possa ser compreendido a partir de outros

sentidos. Desta forma, o dito espirituoso promove um reposicionamento

psíquico do sujeito, atribuindo leveza e risadas no árduo caminho do

viver.

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S U M Á R I O

Introdução p.06

Metodologia p.09

1.0 Humor e Psicanálise

1.1 - O humor na vida de Sigmund Freud p.12

1.2 - O cômico, o chiste e o humor: a quitanda do riso p.17

1.3 - As risadas aplaudem o espetáculo: o outro imprescindível p.40

2.0 A infância no jardim do riso p.52

3.0 Olhar a vida através da lente do humor p.64

3.1 - Uma nota sobre a transferência p.67

3.2 - A clínica bem-humorada p.69

3.3 - Vinhetas Clínicas p.85

3.3 - O humor no cenário social p.93

Considerações Finais p.101

Referências Bibliográficas p.104

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Introdução

A ótica do humor e, das tiradas humorísticas, está estampada na

camiseta dos adolescentes, nas conversas de bar, no jornal que embrulha

o peixe, no dito que encanta a mocinha, nas propagandas publicitárias,

nos encontros familiares, no tête-à-tête dos companheiros de esperanças,

nos abraços dos namorados, no olhar dos cúmplices, na cena

desconcertada e à mercê do imprevisto. Apesar de ser um “dom raro e

precioso”, que traz um tempero especial para os dias de chuva, para os

ambientes abafados e para as noites de luar, é uma experiência vivida e

compartilhada.

O interesse pela temática do humor é antigo. Nascida de uma

família argentina e, em grande parte judia, os ditos espirituosos estiveram

presentes em minha vida desde os tempos de fraldas. As inúmeras

anedotas que são contadas demonstram que o humor sempre foi um

prestigiado convidado em nossas mesas de jantar. Sensível a este, devido

à sua presença especialmente familiar, aprofundei meu interesse quando

as charges da Mafalda e do Yo, Matias começaram a fazer sentido em

minhas leituras.

Diante da proposta de produzir um trabalho de conclusão de curso,

não foi imediato o encaminhamento em direção a esta temática. Sentia-

me tímida em discorrer sobre um assunto que nem sequer deslumbrava a

possibilidade de um aprofundamento teórico. Divaguei por outros temas,

até que, desanimada pelos caminhos que percorria, o humor surgiu,

abruptamente, como uma possibilidade de pesquisa.

Naquela tarde de meados de setembro, a cidade de São Paulo se

encontrava estupefata e desolada diante de um trágico acontecimento.

Sentada em um banco de praça, lia as manchetes de jornal e todas, ou

praticamente todas, se reportavam ao mesmo evento. A tirada

humorística não foi diferente, entretanto, apresentava o indesejado

evento com a leveza e profunda consistência, característica do humor.

Como foram prazerosas aquelas risadas em dia tão indecente. Ao

escorregar meu olhar diante da charge, perguntei-me: por que não? Hoje

estou diante da resposta a que cheguei naquele dia.

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Este trabalho de conclusão de curso está dividido em três capítulos:

no primeiro se encontram articulações estreitas entre o humor e a

psicanálise, com ênfase nas considerações que podem ser feitas entre os

conceitos humorísticos e a abordagem psicanalítica; no segundo capítulo é

proposto um mergulho nos ânimos infantis e no entusiasmo com o qual o

humor incide na vida dos pequenos e o terceiro está voltado para a

presença do dito espirituoso na vida cotidiana dos sujeitos.

Dentre esses, encontramos sub-capítulos: no primeiro há uma

retomada do humor nos meandros da vida de Sigmund Freud, com foco

na intensidade e proximidade que o mestre manteve com este; em

seguida, há definições conceituais e o aprofundamento de algumas das

contribuições das teorizações freudianas à reflexão, reforçando as

peculiaridades e singularidades dos conceitos de cômico, de chiste e de

humor; e para finalizar é caracterizado o dito espirituoso, legitimando e

fundamentando a imprescindível presença do público para a piada circular.

No segundo capítulo, é situado o riso no jardim da infância, onde é

desconstruída a idealização de que as crianças não desfrutam das piadas,

visão destorcida, concepção pela qual se acredita que essas são felizes por

natureza, dispensando deste recurso. O humor, neste contexto, é

apresentado, segundo as contribuições possíveis para o estado de

orfandade e humilhação que as crianças se encontram diante das

tentativas de inserção no universo que se apresenta a elas em seus

primeiros anos de vida.

O capítulo final é iniciado com um sub-capítulo sobre os efeitos da

presença do riso na experiência analítica, desafiando a possibilidade de

uma clínica bem-humorada. Neste, estabeleceu-se um diálogo entre os

diferentes autores, apresentando as contribuições de cada um desses no

universo do humor. Após este, é dada continuidade às reflexões com

algumas vinhetas clínicas que ilustram o que é desenvolvido teoricamente,

e finalizando, com o humor para além da prática clínica, reconhecendo

seus efeitos na transmissão cultural e social na constituição dos indivíduos

e abordando as interfaces do dito espirituoso na vida cotidiana.

A pressuposição é de que, a partir do desenvolvimento e

aprofundamento destes aspectos de dinâmica e das peculiaridades do dito

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espirituoso, possamos nos aproximar da possibilidade de discriminar

segundo quais efeitos o humor incide na vida psíquica dos sujeitos. Para

disparar a reflexão, foram contrapostos dois eixos: o humor enquanto um

movimento elaborativo e sublimatório, como forma de ressignificar

situações traumáticas e angustiantes, ou ao invés, de forma defensiva,

como recusa e afastamento da realidade.

A interrogação, Humor: defesa ou sublimação?, propõe-se a

provocar os leitores na perspectiva de se questionarem quais potências

podem ser incitadas a partir do dito espirituoso e que efeitos podem se

configurar. Mais do que tudo, pretende dar elementos para validar uma

possibilidade do viver à margem da seriedade, afirmando o estilo de olhar

através da ótica do humor.

Metodologia

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Ao princípio da realização deste trabalho de conclusão de curso, o

empenho estava em rechear a pesquisa com experiências práticas que

trouxessem sustentação às reflexões. O temor era não encontrar,

teoricamente, o suficiente para isso. À medida que o acervo bibliográfico

ganhava volume e alimentava as interrogações suscitadas, foi depositado

maior peso nas leituras e conseqüentemente retirado da perspectiva de

coletar dados práticos. O equilíbrio encontrado foi apresentar as vinhetas

clínicas, que trouxeram substanciosas ilustrações.

Neste sentido, a metodologia desta investigação foi elaborada

segundo estratégias que possibilitassem uma aproximação e

reconhecimento dos efeitos do humor na vida dos indivíduos. Atenta às

inconvenientes interferências que poderiam ser suscitadas, caso fosse

realizada uma abordagem invasiva ou intempestiva ao sujeito, optou-se

pela coleta de casos clínicos. Nesses, as interfaces e as incidências dos

ditos humorísticas nas experiências humanas, foram relatados a partir da

escuta e observação de psicanalistas do percurso de seus pacientes.

Devido ao recém desabrochar de minha experiência clínica, foi

solicitado a analistas relatos que trouxessem elementos da relação que

seus pacientes estabelecem com o humor. O critério para escolha dos

profissionais foi que tivessem atuação clínica e que se apoiassem na

abordagem psicanalítica para nortear sua atuação, já que esta é a

orientação deste trabalho.

Neste contato, foi priorizada uma discussão ampla, rica em relatos

de vivências e percepções destes analistas acerca do acompanhamento de

seus pacientes. Dessa forma, a entrevista individual não dispôs de um

questionário dirigido e rígido, com questões pré-elaboradas a serem

respondidas, mas sim, uma conversa flexível e espontânea, que pudesse

contemplar e abranger as variadas óticas acerca da incidência do humor.

A partir dessa conversa, as vinhetas clínicas foram desenhadas,

material prático utilizado para se estabelecer relações com a hipótese

esboçada. O encontro com dois profissionais, cada um a sua vez, se

mostrou adequado e suficiente para alimentar as indagações desta

pesquisa. Para disparar a conversa foi realizada a seguinte provocação:

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quais os efeitos do humor você identifica na vida de seus pacientes?

Diante das respostas, a atenção se direcionou para o que se desenhou na

fala desses, desfrutando da abrangência e rica experiência destes

profissionais. O material coletado não está disponível em sua íntegra,

apenas estão presentes as vinhetas clínicas.

Além daquelas coletadas a partir da conversa com psicanalistas,

foram utilizados casos clínicos encontrados na literatura, tendo sido

possível, inclusive, aproveitar das discussões realizadas pelos autores, nos

casos em que foi cabível. A partir das vinhetas coletas e retiradas dos

livros, foi possível desenvolver uma análise que fundamentasse, refutasse

e trouxesse novas inquietações às hipóteses desta pesquisa.

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HUMOR E PSICANÁLISE

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1.1 - O humor na vida de Sigmund Freud

Este capítulo pretende contextualizar a predileção de Sigmund Freud

em relação ao humor, proximidade que não parece por acaso. Seus

primeiros escritos acerca desta temática surgem no início do século XX. No

entanto, antes disso, damas e cavalheiros que o conheceram deixaram

registros, através de anedotas, de que o pai da psicanálise era bastante

espirituoso, costumando optar por comentários dotados de humor e

sagacidade.

A leitura de suas obras traz indícios de seu estilo persuasivo e de sua

próxima relação com o humor: é freqüente vê-lo fundamentar teorias ou

fortalecer argumentos com piadas e casos graciosos. Suas ilustrações,

mesmo que algumas vezes pouco delicadas, mas sempre divertidas,

facilitam que os leitores ou ouvintes compreendam teorias psicanalíticas

complexas que pretende transmitir.

Em seu histórico capítulo intitulado Piadas Sérias, Peter Gay (1992)

compartilha com seus leitores que, em conversas informais, a ironia e a

sátira também não deixavam de se apresentar ao expor observações

mordazes por puro prazer. Relatos daqueles que o conheceram,

descrevem-no como uma presença dotada de simplicidade, encantadora

jovialidade e uma incrível capacidade de encontrar graça nas situações

cotidianas, até mesmo naquelas que denotavam um conteúdo grave ou

polêmico. Algumas de suas opiniões e postura diante de conflitos políticos,

guerras mundiais e ditadores da época ainda trazem dúvidas de como não

trouxeram conseqüências mais desastrosas: através de piadas, não

poupava suas críticas às autoridades e líderes.

Em meados de 1897, Freud começa a colecionar anedotas judaicas,

interesse nada casual, considerando-se sua origem familiar e sua intensa e

complexa relação com o judaísmo. Nascido na Áustria, de uma família

judia, nota-se em suas falas uma relação ambígua em relação à cultura

judaica. O biógrafo Gay (1992) retoma uma fala de Freud em que diz: “a

minha língua é o alemão. A minha cultura, as minhas realizações são

alemãs. Eu me considerava intelectualmente um alemão, até ter reparado

no crescimento do preconceito anti-semita na Alemanha e na Áustria

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Alemã. Desde então, prefiro me proclamar um judeu”. (Freud, 1827, apud

Gay, 1992, p. 194).

Seu ímpeto e entusiasmo em se declarar um judeu eram mais

intensos em momentos polêmicos e problemáticos do que nos mais

tranqüilos. Ao ler algumas de suas piadas publicadas, evidenciam-se

comentários hostis e maliciosos em relação à cultura e aos judeus em

especial vindos da Europa Oriental. A explicação para esta ambigüidade

pode estar segundo Gay (1992), no fato de que Freud ao mesmo tempo em

que procurava estabelecer uma distância com esta frota de judeus que

invadia sua cidade, ironicamente se identificava com eles em alguns de

seus aspectos e costumes menos refinados. Neste contexto, seu interesse

pelas anedotas judaicas se explicaria pela possibilidade de se defrontar com

seus sentimentos ambíguos e assim transitar pelos dois extremos, ainda

mais com o interessante acréscimo de fazer graça para os outros.

Ao abordar rituais cotidianos, trazia embutido, além da cena em si, a

sátira e a ironia características do gênero da piada. Nos casos a seguir,

demonstra sua hostilidade pouco disfarçada em relação aos judeus, que em

sua arrogante declaração de limpeza, apenas vinham a confirmar sua

pouca higiene:

“Dois judeus falam sobre o ato de se banhar. Eu tomo um banho por

ano, fala um deles, necessitando ou não”; ou essa outra; “Um judeu

observa restos de comida na barba do outro: posso te dizer o que você

comeu ontem. Diga então. Lentilhas. Errou! Isso foi antes de ontem”.

(Freud, 1905/2001, p. 69).

O fascínio pelo desconhecido e a busca por desvendar enigmas

acompanharam Freud desde os dias de estudante até a poltrona como

analista atrás do divã. Os indícios e as perguntas que o incitavam a

prosseguir em suas formulações, em sua maioria, foram recolhidas a partir

do acompanhamento de seus pacientes, assim sendo, descobriu um

laboratório de observação em seu próprio consultório.

O mergulho de Freud no universo do riso surgiu como um suspiro em

sua extensa produção sobre a Interpretação dos sonhos (1900). Nesta,

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procurou esclarecer o enigmático processo do sonhar, apresentando-o

como um retorno de uma operação anímica normal, articulando o conteúdo

manifesto do sonho, aquilo que recordamos e relatamos uma vez

acordados, mesmo que muitas vezes nos pareça fragmentado, absurdo e

sem nexo, aos pensamentos oníricos latentes, material presente na psique

humana, do qual podemos nos aproximar através de associações aos

elementos sonhados. Afirma que da comparação entre o conteúdo

manifesto do sonho recordado e os pensamentos latentes descobertos se

obtêm o conceito de trabalho com sonhos. Descreve o processo de

condensação pelo qual passam os elementos da psique durante o ato de

sonhar, o que leva a uma abreviação e formações substitutivas com o

material dos sonhos, segundo ele, assemelhando-se com a técnica do

chiste.

Nas palavras do mestre Freud (1905/2001):

Procurou-se descobrir na técnica do chiste os

processos de condensação com formação substituta ou

sem ela, de deslocamento, de figuração por um

contra-sentido e pelo contrário, de figuração indireta,

etc., o que segundo achamos, cooperam com a

formação do chiste e mostram muito amplas

coincidências com o processo de trabalho com sonhos.

(p. 153).

Introduz as piadas como uma possibilidade de satisfação de pulsões

e contorno de obstáculos e restrições culturais, ainda mais com o acréscimo

de prazer de uma fonte antes inacessível. Descreve-a como uma saída

oculta, através da qual a censura é enganada e ao sujeito é sinalizada a

oferta de liberdade de fala e de ação, mesmo que por apenas alguns

instantes. Encontrou nas piadas um encantador jogo de palavras e um

importante peso da linguagem na manifestação de elementos do

inconsciente. Identificou que a abertura do código verbal possibilita que

pensamentos sejam expostos ou ocultados, assunto que iremos aprofundar

nesta pesquisa.

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Assim sendo, Freud se dedicou a investigar a lógica do inconsciente,

durante os primeiros anos do século XX, com o esforço de evidenciar que o

inconsciente não está presente apenas nos sintomas e nos sonhos. A

tentativa era em fundamentar que as manifestações inconscientes

poderiam acontecer na vida cotidiana, nos atos falhos, nas piadas,

produções artísticas, entre outros. Sustentava com isso, a universalidade e

onipresença do inconsciente e da psicanálise na vida dos sujeitos.

Esta postura esteve presente em todos os trabalhos escritos, assim

como a insistente intenção de formular hipóteses que pudessem se aplicar

universalmente e a ambiciosa expectativa de explicar a mente humana. A

importância que foi embutida a estas premissas é compreensível, se a

localizamos naquele período histórico, em que havia uma imensa recusa à

Psicanálise. Neste terreno, a possibilidade de que esta teoria contemplasse

todo e qualquer cidadão sustentava a pertinência e a continuidade de suas

formulações.

Por esta razão, o sonho, experiência vivenciada por qualquer ser

humano, foi um excelente ponto de partida. Para introduzir o texto sobre

as piadas, Freud disse acreditar que existia uma íntima relação entre todos

os fenômenos mentais e, nesta perspectiva, estabeleceu estreitas ligações

entre o mecanismo do sonhar e da piada. Sua motivação em explorar os

recursos humorísticos, não estava limitada a captar a essência da ironia e

da piada, mas propunha-se principalmente a revelar a essência do

funcionamento da mente.

Sensível às piadas após coleta das anedotas judaicas, ele amplia a

temática e aprofunda os recursos técnicos, ao produzir O chiste e sua

relação com o inconsciente (1905), assunto que estendeu, como veremos

no capítulo O Humor (1927, volume XXI). Desde o princípio desta

discussão, sustenta que as piadas são assunto profundo e sério, pois dizem

o que não pode ser dito, denunciam a autoridade e as figuras de poder que

a muitos oprimem. As piadas, muito sedutoramente são além de uma

pequena conquista de liberdade em relação às restrições culturais, sociais e

políticas, uma calorosa oferta de prazer ao ouvinte.

Este percurso pelos meandros da vida de Freud nos indica que o pai

da Psicanálise se apropriou da potência humorística em sua própria

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trajetória, como recurso para ressignificar experiências psíquicas, para

explicitar e denunciar determinadas idéias. Seja em seus escritos ou em

seus passos cotidianos, as piadas ganharam peso de argumento. O que,

inclusive, poderia aproximar a formulação da piada às interpretações

analíticas, enquanto revelação do campo e das intenções inconscientes,

idéia que aprofundaremos mais adiante. Estas constatações são

merecedoras de uma aposta: talvez haja uma fundamentação para discutir

o recurso humorístico mais profundamente. É por si só, um convite para

retomarmos como isso foi pensando teoricamente por Freud.

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1.2 - O cômico, o chiste e o humor: a quitanda do riso

A importância que Freud atribuiu ao material dos chistes fica

evidente pela sua extensa produção teórica, as numerosas leituras que

realizou para fundamentar suas teorias, a quantidade de piadas que coletou

para refutar e aprofundar suas hipóteses e, por fim, o grau de

detalhamento, com o qual discute os processos psíquicos envolvidos na

formulação das piadas. Sua insistente busca foi identificar o que faz, afinal,

uma frase, uma cena ou uma lembrança tornar-se algo engraçado, uma

fonte de prazer aos indivíduos.

Em suas obras, O chiste e sua relação com o inconsciente (1905) e O

Humor (1927), Sigmund Freud aponta para os diferentes desdobramentos

do riso, o contexto e os caminhos pelos quais ele se dissemina. Para

disparar sua reflexão apresenta a idéia de que no riso há uma economia de

gasto psíquico que opera na suspensão da inibição de desejos, cuja

satisfação normalmente estaria proibida e que, através deste mecanismo,

acaba por se satisfazer. Isto é, defende que “a ganância de prazer

humorístico provêm da economia de um gasto de sentimento”. (Freud,

1927/2001, p. 157).

Nesta perspectiva, a essência do riso estaria em poupar afetos a que

a situação naturalmente daria origem e afastar, com uma pilhéria, a

possibilidade de tais expressões de emoções. A realização da piada seria

como um desengano na expectativa do ouvinte, no momento em que a

brincadeira ocupa o lugar do sentimento preparado para a ocasião. Nesta, a

graça se dissemina pelo imprevisto, pelo desconcerto e com ele a economia

do afeto preparada para o contexto: o sujeito começa a contar algo, o

ouvinte se prepara para manifestar um sentimento pertinente ao contexto

que esta sendo relatado. No entanto aquele que relata surpreende as

expectativas do ouvinte, contando uma piada. Diante desta mudança de

rumo, logo, pela não necessidade da descarga destes afetos preparados

pelo ouvinte, este é levado ao riso.

Desde o princípio, Freud nos chama atenção para o fato de que o

conceito de piada, segundo a leitura de que representa apenas uma

economia de um gasto de energia tornado inútil que se destina à risada,

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não se aplica, invariavelmente e indiscriminadamente, a qualquer explosão

de riso. O cômico, o chiste e o humor, estabelecem relações de parentesco,

mas, sobretudo de distinção. A seguir, será percorrido o caminho da

comicidade, posteriormente a este, das formulações do chiste e por último

da dinâmica do humor. Para finalizar, será realizada uma breve

comparação entre essas três formulações, para com isso, construir elos de

semelhanças e diferenciações entre elas, introduzir e aprofundar a

temática.

O contemporâneo Luis Campalans Pereda (2005) quando arrisca

fazer esta diferenciação, identifica que o cômico encontra seu território

quanto mais explicitamente a cena se constrói, vamos esclarecer, diz ele

que com a comicidade desfrutamos da graça em sua forma bruta e

inesperada: no click da fotografia. Ilustrações corriqueiras e familiares são

aquelas em que vibramos de rir diante de trapalhadas, escorregões no piso

molhado ou do contundente grito, quando intencionalmente demos um

susto em alguém. O nascimento da comicidade pode ser identificado no

contraste entre o que seria esperado, nos exemplos citados: um

comportamento civilizado; no lugar do que efetivamente ocorreu, os

tropeços e as trapalhadas. Isto é, o cômico se instala na falta de proporção

entre a atitude esperada e o que ao final sucedeu.

A cena cômica, como em qualquer atividade humana, para fazer,

exercitar ou dizer algo investimos certa quantidade de energia psíquica.

Diante desta constatação somos lavados a nos perguntar de que maneira,

no cômico, ocorre a economia de gasto psíquico que nos leva ao riso. A

resposta trazida por Mezan (2005) é que:

Para efetuar uma ação ou dizer algo, é necessário um

dispêndio de energia. O cômico ocorre quando este

dispêndio é a mais (em relação aos movimentos

corporais) ou a menos (com relação ao desempenho

mental), tomando como parâmetro a quantidade de

energia que eu mesmo empregaria naquela

circunstância (...) a comparação entre esses dois

dispêndios engendra uma diferença energética que vai

ser descarregada no riso. (p. 169).

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Mezan (2005) em sua fala reitera o que Pereda (2005) já nos havia

alertado, quanto à desproporção do dispêndio de energia característico do

cômico. Veremos como esta dinâmica ocorre psiquicamente: este processo

pode ser compreendido como uma liberação do inconsciente, na

autorização dos desejos e fantasias na emergência com a infantil. Este

resgate de elementos da infância opera ao oferecer uma abertura aos jogos

e brincadeiras, sob uma lógica que esbarra no tênue limite com o absurdo e

que nos convida a acessar as várias possibilidades de ser. O exagero da

comédia, associado aos múltiplos sentidos que apresenta e à alternância

entre eles, estabelece um ambiente suportável e seguro para que o sujeito

se descole da repressão de seu superego e, com a supressão dos processos

primários do inconsciente, ocorra uma economia de gasto psíquico, o que

explica o prazer que o sujeito experimenta diante de cenas bizarras.

Nas comédias cinematográficas, os passos atrapalhados do herói,

que ora figura o ideal e ora o ridículo, fazem com que, nesta alternância

entre um e outro, o espectador ao mesmo tempo esteja afastado da

personagem e identificado com ela. O cômico se situa na relação do eu com

a imagem do outro, em que a graça se estabelece em ver o outro em

circunstâncias que poderiam ser minhas e vice-versa. Neste

embaralhamento, o semelhante, o outro igual, se vê atingido e

contaminado sob efeito de uma descarga catártica, devido à proximidade

com o puro significado.

O francês Gilbert Diatkine (2006), em seu texto Sobre o Riso, faz

uma interessante analogia do cômico através de um filme do cinema mudo

de Charles Chaplin: descreve a trama e pontua cenas em que identifica a

emergência da comédia. Considera que é no cenário, no enquadramento,

na montagem e nas habilidades mímicas que os atores do cômico podem,

em certas ocasiões, dispensar as formas lingüísticas e expressar-se por

outras operações. O código verbal pode assim, contracenar no cômico,

porém não é indispensável.

A produção da cena, a expressão corporal e facial, os objetos

utilizados, são aqueles que confundem o superego confiando-lhe que é

apenas uma brincadeira, um faz-de-conta, e que pode rir à vontade. Neste

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registro, seja no cômico verbal ou no não-verbal, o pensamento circula pelo

talento de trazer graça e espontâneas risadas à cena.

Bons convidados para compreendermos como o renascimento da

infância nos leva ao cômico, através do qual “podemos ver o mundo sob os

binóculos do riso (...) é deste limiar entre a vida cotidiana e o espetáculo

do mundo que o palhaço faz o convite” (Sampaio, 1992, p. 43) são aqueles

que entram em cena portados de narizes vermelhos. Os palhaços com suas

roupas, gestos, movimentos exagerados e repetições exaustivas nos

convencem de que, sob aquela lona estendida, tudo é brincadeira e

personagens que a princípio vêm a alegrar as crianças não deixam de

desenhar um sorriso nas feições dos pais que acompanham seus tropeços.

Sampaio (1992) nos faz pensar que entre gargalhadas e “palhacices”,

perde-se o controle do destino e a brincadeira nos destina, permitindo que

a espera do que está por vir se torne suportável e a angústia do

desconhecido e enigmático, naquela magia, possa ser tolerada. Os

exageros e “palhacices”, que embaralham e desembaralham, fazem com

que o acento psíquico da platéia se desorganize para organizar-se de outra

forma. Neste movimento a tensão se alivia, o sujeito está no cenário do

circo, vê o palhaço ora como um semelhante e ora como um estrangeiro,

diante da alternância da graça e do ridículo, deixa-se levar e neste caminho

pode se surpreender com outros significados.

Permite-se pensar que, justamente pela razão de tornar-se possível

ver a realidade de “cabeça para baixo”, seja suportável ver nosso porteiro

da alegria em tantas enrascadas e apertos, em geral momento de explosão

da graça. Falamos aqui de um “deixar-se levar” pela palhaçada, pela graça

e pelo imprevisto, entretanto, “o riso é garantido, apenas, porque tivemos

a experiência, pela repetição, de que nada de grave vai realmente

acontecer. É nesse investimento economizado que se descarrega no riso”

(Diatkine, 2006, p. 05). Isto é, devido a experiências anteriores, nas quais

fomos levados a concluir que “debaixo da lona do picadeiro”, a brincadeira

é possível e permitida e que nada de mal sucederá, torna-se possível

relaxar e deixar-se levar.

Seja pela sua circulação despretensiosa, pela possibilidade de

dispensar inclusive do código verbal, por colorir o casual e garantir lugar

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marcado na platéia para todo o público que se propõe, por aqueles

instantes, soltar as amarras e se deixar levar, talvez por tudo isso, o

cômico diferencia-se de outras espécies do riso, sendo capaz de penetrar

tanto e convocar a uma universalização do espetáculo da magia e do riso.

O seguinte processo psíquico que iremos abordar apresenta, desde

já, uma consistente polêmica diante da tradução adotada ao português: no

originário alemão é conhecido como Witz, alguns autores brasileiros

chamam de chiste, no entanto, muitos outros criticam veementemente o

uso deste termo. A crítica sustenta-se pelo fato de que o termo utilizado no

Brasil foi importado do espanhol, idioma no qual a palavra em sua

terminologia carrega em si o efeito mordaz, sagaz e espirituoso,

característico do Witz. Entretanto, o que não se mantêm no português,

onde frequentemente se associa o chiste com a piada, o que pode ser

reduzido apenas a uma anedota ou história engraçada. Justamente a esta

diferenciação, Freud dedicou considerável esforço para que Witz não se

confundisse com cômico. O que proponho para continuidade da leitura da

pesquisa, inclusive reconhecendo a pertinência da observação é que,

realizado o devido esclarecimento, podemos seguir a reflexão, utilizando-

nos do termo chiste, que é o mais difundido e empregado, porém com a

cautela de considerá-lo em seu adequado significado.

Ainda na tentativa de nos apoiarmos no conceito em sua forma mais

consistente e correta, trago a pesquisa realizada por Mezan (2005) para

este aprofundamento:

Diante da dificuldade, procurei investigar qual é

exatamente o sentido do termo alemão, a despeito do

uso que Freud fez dele como conceito. Witz provém do

antigo termo witan, que quer dizer “compreensão,

“entendimento”, e cuja raiz é wiss, presente no wissen

(“saber”), Wissenschaft (“ciência”) (...) em todo esse

campo semântico, predomina a idéia de “inteligência”,

irradiando-se para as de “visão” (meio para conhecer)

e daquilo que visão e inteligência produzem:

conhecimento, saber. (p. 139/140).

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Havendo-nos com a insistente determinação de realizar as

diferenciações necessárias, a primordial delas é que diferentemente do

cômico é no código verbal e no uso das palavras que o chiste se organiza

para produzir o riso. A refinada composição da piada, os recursos textuais e

lingüísticos serão os responsáveis por um significante poder ser escutado

sob várias faces e significados, e com isso, a censura ser anestesiada. O

autor da piada tem a seu dispor todas as fontes de linguagem e, utilizará

de sua habilidade para articular a representação pré-consciente à

elaboração inconsciente.

Tais técnicas nos entregam ao riso, por deslocarem o acento

psíquico, isto é, provocarem um desengano nas expectativas dos ouvintes,

dando margem a outros sentidos. A censura do superego adormece e a

repressão é pega desprevenida justamente pelo fato do significante

remeter o ouvinte a vários significados: num instante, um determinado

elemento pode ser ele mesmo ou seu oposto. O refinado trabalho com a

linguagem é a flexibilização que fornece o relaxamento suficiente para que

se abra uma fresta no inconsciente e o ego permita-se rir.

Freud (1905/2001) deleita seus leitores com diversas anedotas, para

que assim verifiquem que: “a sensação de prazer que experimenta o

ouvinte não pode vir da tendência nem do conteúdo do pensamento do

chiste, não nos fica outra possibilidade senão a de relacioná-la com a

técnica do chiste” (p.89/90). O autor classificou 11 tipos e subtipos de

recursos técnicos pelos quais os chistes podem ser formulados. O desafio

tornou-se então, procurar a unidade dentro da multiplicidade. Com

maestria e bom humor, ele fundamenta tais técnicas, apresentando

inúmeras piadas, garantindo que, através da observação e análise

empírica, possam se construir teorias e formar um juízo sobre a natureza

deste processo psíquico. A repetição que passa a operar quando se tem o

acúmulo de centenas de piadas, possibilita que generalizações possam ser

corretamente realizadas e que o enigma, a unidade na multiplicidade,

encontre algumas respostas. Veremos a seguir, alguns exemplos de chistes

que possam trazer luz às nossas reflexões:

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“O matrimonio X tem uma boa condição econômica. Na opinião de

alguns, o marido deve ter ganhado muito e com isso se acomodou um

pouco, enquanto outros acreditam que sua esposa se acomodou um pouco

e com isso ganhou muito”. (Freud, 1905/2001, p. 33).

Neste exemplo fica evidente que a técnica do reordenamento das

frases (ganhou muito - se acomodou um pouco/ se acomodou um pouco –

ganhou muito), o que foi realizado a partir das mesmas palavras apenas

alterando sua ordem, foi o que trouxe o acento irônico e crítico ao

comentário. Outra técnica, múltiplo significado, pode ser observada no

seguinte chiste:

“Um cavalheiro, suposto parente de Rousseau, também ruivo e com

o mesmo nome é apresentado a uma dama. No entanto seu

comportamento é desconcertado e inadequado e a dama lhe diz: você me

fez conhecer um homem roux (ruivo) e sot (bobo), mas não um Rousseau”.

(Freud, 1905/ 2001, p. 30).

A graça está, pois, roux-sot e Rousseau têm a mesma pronúncia,

assim, a partir de uma mesma sonoridade têm-se múltiplos significados: o

primeiro desqualifica o sujeito diante de si e o segundo refere-se ao

estimável filósofo e poeta. No seguinte exemplo, diferente do anterior, o

chiste se estabelece pelo jogo de palavras que enuncia um duplo sentido:

“O médico vem examinar uma senhora doente, movendo a cabeça

ao marido que a acompanha, diz: não gosto nada do que vejo em sua

esposa. Há tempos que eu também não gosto, se apressa em responder o

marido.” (Freud, 1905/2001, p. 37).

Neste, a fala do médico reflete um duplo sentido, o que fica

evidente quando escutamos a resposta do marido: enquanto o médico se

refere ao estado de saúde que a senhora se encontra, o marido, ao

escutar o diagnóstico, manifesta seus sentimentos em relação à esposa. O

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chiste a seguir evidencia o teor lógico da falácia (falsa verdade), no qual o

cliente troca a torta pelo licor, através de um vínculo inexistente:

“Um senhor chega a uma doceria e pede uma torta, mas em

seguida a devolve e no lugar pede um copo de licor. Bebe-o e quer ir sem

pagar. O dono do estabelecimento o retém: o que o senhor quer de mim?

Deve pagar o licor. Na troca dele já lhe dei a torta. Mas você também não

a pagou. Mas também não a comi.” (Freud, 1905/2001, p. 58).

Muitos são os recursos técnicos - condensação, deslocamento, etc.-

que a partir das construções lingüísticas têm o efeito de provocar prazer

no ouvinte. Assim, sustenta-se que o efeito chistoso se encontra na

maneira em que o pensamento se expressa e não no material em si que é

apresentado. Freud (1905) propõe ao leitor fazer o exercício de formular

de diversas maneiras um mesmo chiste: deparamo-nos com o fato de que

o sentido se mantém, mas a graça se perde, esta que apenas se expressa

sob determinada técnica lingüística. Conclui que, justamente o produto

léxico, o jogo de palavras, causa o caráter chistoso e seu “efecto

risueño”1.

Ao recapitular a obra de Freud, Renato Mezan (2005) faz uma

interessante articulação entre as temáticas: sonhos e chistes. Diz ele:

No sonho, o resto diurno se veicula por algum

elemento fortuito aos desejos reprimidos, e, como um

imã, os atrai para si; o trabalho do sonho consiste

precisamente em disfarçá-los para que possam

penetrar na consciência, e, graças à regressão formal,

ali se estruturam como seqüência de imagens. No witz

(chiste), semelhanças fônicas entre palavras e

analogias inesperadas e entre idéias, desempenham

1 Insisto em manter o termo, rirsueño, no idioma espanhol, através do qual discorro sobre as teorias de Freud, pois me parece que o próprio termo traz elementos de sua teoria. A tradução do termo “efecto risueño” facilmente pode ser compreendida como efeito de riso/ de graça, no entanto, não proponho uma leitura etimológica do termo. Mas sim, pretendo ressaltar que a formulação deste termo traz em si uma condensação de dois significantes: rir+sonho (sueño), analogia extensamente desenvolvida pelo autor.

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função idêntica a do resto diurno para o sonho: as

tendências condenadas pela censura tomam, por

assim dizer, carona naquelas semelhanças e analogias,

o que é possibilitado pela condensação e pelo

deslocamento operantes tanto na técnica quanto no

curso dos pensamentos. (p. 148).

Como já se sabia, o sonho é a realização disfarçada de um desejo

reprimido, restava saber se o chiste operava da mesma forma. Tal

indagação levou Freud (1905) a perceber que alguns chistes operavam a

partir de uma intenção, batizados por ele como tendenciosos e outros que

oferecem prazer apenas pela sua forma, chamados inocentes.

No caso dos chistes da primeira categoria, tendenciosos, o prazer é

resultado da expressão de uma motivação que de outra forma seria

censurada. Nestas, a tendência esquiva-se de alguma imposição, em que

com o auxílio do chiste, cancela-se a inibição, evitando a sufocação e a

estase psíquica. A forma alusiva indireta desta categoria de chistes

possibilita que pensamentos sejam expressos, como um drible à repressão.

Por uma brecha psíquica, pensamentos inconscientes podem tocar a

consciência e, por esta característica singular dos chistes tendenciosos,

esses proporcionam uma satisfação bem mais intensa, carimbados com

risos mais fortes.

Nos tendenciosos se encontram pensamentos morais, obscenos,

preconceituosos, que derivam fundamentalmente das esferas sexuais e

agressivas. Freud enfatizou que componentes singulares da constituição

sexual dos indivíduos podem ser decisivos na construção dos chistes, por

exemplo, os chistes obscenos muitas vezes são de autoria de pessoas com

inclinação exibicionista e, os agressivos, comumente formulado por aqueles

que apresentam um componente sádico, mais ou menos reprimido em suas

vidas.

Nas palavras de Mezan (2005):

Chistes tendenciosos gratificam intenções proibidas: a

vestimenta inocente ou engenhosa engana a censura,

e, quando a piada é entendida, a inibição que pesava

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sobre tais idéias passa a ser supérflua - o inconsciente

se torna consciente. O prazer deriva, portanto, diz

Freud, da economia de um dispêndio psíquico, aquele

que era necessário para manter a inibição - o que, em

termos dinâmicos, equivale ao levantamento de uma

repressão. (p. 148).

Os chistes inocentes, valorizados por Freud (1905) ao longo de sua

obra, não são menos relevantes ou sem substância, podem enunciar algo

muito valioso, pois se apresentam em sua forma mais pura. Uma regra

geral é que a substância do chiste é inteiramente independente dele e, será

na maneira chistosa que apresenta o pensamento que este se torna

engraçado. Estes nos fazem sorrir e não gargalhar, no entanto, têm o

imenso desafio de mobilizar as energias psíquicas dos sujeitos a partir da

destreza no uso dos recursos técnicos.

Freud (1905/2001) aborda os chistes inocentes, ao retomar o

desenvolvimento e apreensão da linguagem de uma pequena criança que

faz suas primeiras tentativas. Localiza nestes passos iniciais em desvendar

o código verbal, a criança acomodando sua postura psíquica na sonoridade

acústica da palavra, sem se ater ao seu sentido ou ao seu significado.

Equívocos entre palavras com uma fonética semelhante são absolutamente

comuns, esses que levam os adultos a rir. Em suas palavras:

Na época que a criança aprende a dirigir o léxico de

sua língua materna, se depara com um manifesto

contentamento de “experimentar brincando” com esse

material e constrói as palavras sem se ater com a

condição do sentido, a fim de alcançar com elas o

efeito prazeroso do ritmo ou da rima. Este

contentamento lhe é proibido pouco a pouco, até que

ao fim somente lhe restam como permitidas as

conexões previstas de sentido entre as palavras. (...)

No último período da infância o poder da crítica

cresceu tanto que na maioria dos casos, o prazer do

“disparate liberado” raras vezes ousa exteriorizar-se

diretamente. (p. 120/121).

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Nesta fala, ressalta-se outro aspecto, que se refere ao fato de que

com o crescimento do sujeito e sua apreensão da linguagem, estes

graciosos enganos e confusões são extintos e não lhe resta outra opção a

adotar o código verbal estabelecido. Nesta perspectiva, a formulação de

chistes inocentes vem a ser uma retomada nostálgica deste período do

desenvolvimento da linguagem infantil, em que se identifica um alívio de

gasto psíquico, pois a relação que o sujeito estabelece com as palavras é

apenas como variações de sonoridades, economizando a elaboração da

compreensão e emprego da palavra como representação de algo. A graça

encontrará maior alcance quanto mais distante estiver do círculo de

representação da palavra, isto é, de seu contexto habitual.

De passagem, sob as características fundamentais dos chistes

inocentes e tendenciosos, poderíamos estabelecer uma extensão entre

esses e o trabalho com os sonhos - conteúdo manifesto e conteúdo latente.

O conteúdo manifesto seria a piada em si e o conteúdo latente, a intenção

ou fantasia à qual se pode aceder à consciência. Através desta analogia

poderíamos identificar que, caso tenhamos um conteúdo latente

insignificante, porém com refinado uso dos recursos técnicos, temos um

chiste inocente; se ele traz conteúdos proibidos e secretos, será

tendencioso e maior será a explosão da risada.

No texto O Humor (1927), publicado pouco mais que duas décadas

após de O chiste e sua relação com o inconsciente (1905), Freud retoma o

tema, porém agora não se trata mais de chiste ou de cômico em geral,

mas de efeitos humorísticos. O que, em 1905, era teorizado como um

relaxamento parcial do recalque, como uma brecha na vigilância e na

coerção por parte da censura psíquica, passa a ser formulado, em 1927,

em termos de um sobreinvestimento do superego.

O autor recupera a organização psíquica dos sujeitos, pela qual,

dentro do núcleo do ego, se encontra o superego, herdeiro da instância

parental, da interdição, lei e função paterna. O superego que, em outros

mecanismos psíquicos se apresenta como inibidor e repressor ou até

mesmo punitivo, na organização humorística herda também um caráter

amoroso e moderador que tolera a obtenção de prazer de sua cria,

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poupando-lhe por alguns instantes das penas da vida. Este superego

bondoso e tolerante mostra que é possível brincar, “que a vida não vale a

pena ser levada tão a sério”, que o mundo foi feito também para se gozar e

não apenas para o sofrimento interminável. O superego propõe um

distanciamento da realidade penosa e introduz a possibilidade de tirar

proveito dos afetos angustiantes implicados na ocasião, o que é em si, a

economia na despesa com o afeto angustiante. Mostra ao eu outra forma

de olhar, uma visão mais leve de mundo.

O êxito na promoção do distanciamento da situação

desfavorável estaria na possibilidade encontrada pelo

humorista de identificar-se até certo ponto com o pai,

consolando assim, do alto da sua nova posição, a

aflição das crianças desamparadas às quais reduziu

seu público. No entanto, a operação não se restringe

aos ouvintes, recaindo sobre o próprio humorista que,

ao rir de si mesmo, é ao mesmo tempo a criança aflita

e o adulto superior em relação a essa mesma criança.

(Kupermann, 2005, p. 33).

Freud compreende a relação do piadista com o ouvinte como uma

relação parental em que o primeiro exerce a função paterna, do adulto,

direcionando o caminho da graça que será percorrido pelo ouvinte, função

do filho, que ingenuamente e despretensiosamente o segue. A atitude

humorística seria o comportamento que o indivíduo tem em relação a si

próprio, como o adulto que procura amenizar uma amarga realidade para a

criança. “Isto quer dizer que o humor surge por um efeito da imaginação,

pelo qual se engendra, para o sujeito, um redimensionamento dos valores

e dos poderes do mundo e que permite ao ego uma pequena vitória, um

alívio imaginário”. (Sampaio, 1998, p. 56).

Este mecanismo ocorre quando a pessoa humorística

debita o acento psíquico do seu ego e o desloca sobre

seu superego. Para esse superego inchado, o ego pode

parecer-lhe diminuto, todos seus interesses sem

importância e a raiz desta nova distribuição de

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energia, ao superego pode parecer-lhe fácil sufocar as

possibilidades de reação do ego. (Freud, 1927/2001,

p.160).

Neste sentido, há um superinvestimento do superego à custa do

ego, em que um pensamento pré-consciente é confiado por um momento

ao inconsciente, e o que resulta deste tratamento é imediatamente

recuperado pela percepção consciente, logo, fornece ao ego uma pequena

parcela de prazer. Portanto, seria o superego o protagonista da cena no

distanciamento promovido pelo humor, fazendo das angústias do ego,

algo à toa, da qual podemos inclusive rir.

Dito isso, vejamos a seguinte piada que apresenta exacerbada

virulência, o que se evidencia pela ira que a perpassa. Esta pode vir a

fundamentar a hipótese que faremos a seguir:

“Um goy [não judeu] pergunta a um judeu: “para que um judeu

precisa de pés? Pois para o bris [circuncisão] ele é carregado, para o hupá

[altar nupicial] ele é conduzido e, para o túmulo ele vai no caixão!”.

Resposta: “Para fugir depressa”. E o judeu retruca: “Para que um goy

precisa de cabeça? Ele não coloca tefilin, não usa peies [os cachos

laterais] e a inteligência não tem mesmo!”. (Mezan, 2002, p. 292).

Ao acompanhar os desdobramentos psíquicos através dos quais o

humor atinge a vida dos sujeitos e a ilustração acima, nada nos impediria

de levantar a hipótese de que este fosse, eventualmente, um manejo

indevido da realidade e uma postura defensiva do sujeito. A possibilidade

de burlar a realidade poderia ser compreendida como o triunfo do

narcisismo, um escapismo, como uma insistente tentativa de defender-se

do fato de estar à mercê do envelhecimento, debilidades, necessidades

orgânicas, frustrações e falências.

O humor, nesta perspectiva, poderia estar associado ao

enraizamento da onipotência humana, recusa a sentir o sofrimento causado

por determinada situação, se opondo a que traumas o toquem, o afetem e

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mostrando que para ele são apenas focos de obtenção de prazer, rindo e

burlando, através do comentário humorístico. Isto não poderia ser

considerado diferente de uma psicopatologia e um intenso mecanismo de

defesa.

Assim constatado, Freud (1927/2001) nos indaga:

Em que consiste a atitude humorística, pelo qual o

sujeito se recusa ao sofrimento, põe em destaque que

o ego é indomável ao mundo real, sustenta com

triunfo o principio do prazer, mas tudo isso sem

comprometer, como fazem outros procedimentos de

igual propósito, o terreno da saúde anímica. (p.159).

Para responder à pergunta, Freud (1927/2001) escreve sobre a

metapsicologia do humor, em que diz que a dificuldade que encontramos

em nos entregar a uma cena engraçada está na emergência de

sentimentos conflitivos presentes na mesma. Defende que a escolha pelo

humor é a mais saudável delas, pois se economiza o dispêndio de afetos

penosos e, neste movimento, diminuem-se as agruras da vida. Tais afetos

dolorosos são economizados através do humor: para a pessoa que o

produz, nada mais é do que a poupança da energia dos afetos geradores de

desprazer, uma vez que “o superego condescendente, identificado com o

papel paterno, permite uma burla controlada do princípio da realidade,

favorecendo o princípio de prazer e, com isso, a transposição da barreira do

inconsciente” (Calich, 2006, p. 75).

Abrão Slavutzky (2005), ao retomar o Mal Estar na Civilização,

apresenta a questão de forma mais concreta:

A realidade humana é ameaçada pelo próprio corpo,

pela sua dor e envelhecimento, pelo mundo exterior,

que pode abater suas fúrias sobre o homem; e

finalmente pelos vínculos entre os homens. Em face

dessas exigências, surgem as defesas contra o

sofrimento, como são as neuroses, os delírios, as

drogas, o abandono de si, o êxtase e as sublimações.

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(...) O humor se aproxima desses caminhos, mas

com uma vantagem, pois o triunfo do princípio de

prazer é feito dentro do terreno da saúde psíquica.

Logo, se a piada é o modelo para se pensar o

inconsciente, o humor é uma forma sublimada de

reagir às dores da existência: um modelo para

pensar as contradições humanas sem perder a graça.

(p. 209).

Abordar uma passagem humorística talvez seja recomendável

para esclarecermos o que aqui procuramos vislumbrar: os contornos do

humor. Resisti bravamente em trazer a esta pesquisa o exemplo que

vem a seguir, devido ao fato de ser um gesto de pouca originalidade. Ao

me encontrar com autores que retomaram as obras de Freud, esses em

sua grande maioria, apresentam esta passagem em suas linhas. Porem,

me deixei vencer, quando concluí que este exemplo, sem desqualificar

sua capacidade explicativa da dinâmica humorística, investida com os

anos, deixou de ser apenas um exemplo para tornar-se cauda, isto é,

uma extensão da teoria. Vamos lá: um condenado à morte é levado à

forca em uma segunda-feira e exclama: “A semana começa bem!”.

Este exemplo nos mostra que o humorista em seu comentário

irônico é capaz de separar-se de si por alguns instantes e rir de sua

própria desgraça. O herói renuncia a ocupar o lugar privilegiado da

desejada perfeição e “diante de uma falha, de uma queda, de um

fracasso, o eu é capaz de duplicar e debruçar-se sobre o narcisismo

ferido com benevolência, como um pai que, que vez de criticar, acha

graça nas bobagens dos filhos” (Kehl, 2005, p. 62). Em sua fala recupera

a fragilidade perdida e esbanja que o que aos outros seria desprazer,

para ele é uma fonte de obtenção de prazer e que, muito mais além das

vicissitudes da vida, ele, o piadista, perdeu tudo que tinha a perder e

aprendeu a rir de si mesmo.

Em contrapartida, para aqueles que escutam, também é um dito

humorístico, pois “se ele próprio não se preocupa com o que vai lhe

suceder, nos também, que já tínhamos preparado nossa compaixão, não

precisamos mobilizá-la, ela se torna inútil, e podemos descarregá-la rindo”

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(Mezan, 2005, p. 171). A extraordinária clareza deste exemplo, em colocar

em descoberto a economia de um gasto psíquico, nos traz explicações pelo

qual esse caso frequentemente é utilizado pelos contemporâneos para

retomar essas teorias.

A seguir, uma piada mais contemporânea, a qual apresenta uma

dinâmica semelhante à do condenado, além do fato de abordar a questão

da morte, esta que aqui é apenas uma casualidade:

“Três homens são condenados à morte e têm direito a um último

desejo. “Quero que minhas cinzas sejam jogadas sobre o túmulo de

Pilsudski”, diz o polonês. “As minhas, sobre o túmulo de Masaryk, diz o

tcheco. “E eu quero ser enterrado lado a lado do grande camarada

Brezhnev”, diz o judeu. Mas Brezhnev ainda não morreu! “Perfeito. Eu

posso esperar.” (Mezan, 2002, p. 293).

Para finalizar nossas reflexões acerca do humor e verificarmos as

sutilezas e a destreza pela qual atinge os sujeitos, convido para subir ao

palco o personagem Mister O:

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O leitor que observa a história em quadrinhos pode mostrar-se, a

princípio, interrogativo ou espantado com a originalidade da história. Após

alguns quadrinhos, se dará conta que o desafio de Mister O é atravessar o

abismo. O que temos em jogo para esta descoberta são as expressões do

personagem, suas tentativas, erros e acertos. À medida que Mister O tem

idéias e as coloca em prática, acompanhamos seus efeitos, a partir de seu

sorriso, espanto, dúvida, cansaço e até mesmo a morte, quando chegamos

no último quadrinho. Sendo que, através destas expressões, nos

encaminha a conclusões.

Ao acompanhar a história, talvez sem nos darmos conta, temos

indícios temporais: quando Mister O joga uma pedra no abismo, esta

demora cinco quadrinhos para chegar ao chão, com isso, imediatamente

temos a percepção que este é bastante profundo, mesmo sem vê-lo. Passa

sol, passa chuva, o relógio movimenta os ponteiros: na cena seguinte o

nosso personagem está com a barba branca, ou seja, não estamos falando

de segundos, minutos ou horas, como concluímos quanto à queda da

pedra, agora falamos de anos ou mesmo de toda uma vida.

Talvez por tanto esforço físico, talvez pela solidão, talvez pela

monotonia na qual se manteve durante os últimos anos de vida, Mister O,

quando finalmente preenche o abismo com pequenas pedrinhas, morre com

o coração partido. Uma considerável dose de angústia é suscitada nos

leitores, enquanto acompanham seqüencialmente os quadrinhos: seja por

não saber o que lhe vai acontecer, seja pela nossa impaciência de observar

um quadrinho por vez, respeitando sua seqüência, no lugar de direcionar a

vista para o fim (e então não entender o que se passa) ou pela

solidariedade em ver alguém diante de uma missão tão exaustiva.

Nesta história, com 60 quadrinhos, um personagem pouco

requintado em detalhes e fisionomia, um mesmo cenário que sofre poucas

alterações, essas que acontecem apenas quando finalmente Mister O

provoca alguma mudança é capaz de nos transmitir muitos significantes,

intenções, percepção temporal e inclusive, graça. Esta estaria no

desengano das expectativas dos leitores: aqueles que acompanham os

quadrinhos esperam, muito provavelmente, um merecido final feliz, quando

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Mister O após tantos anos, consegue atravessar o abismo. Porém, o que

verificam não é bem isso: Mister O chega a comemorar, esbanjar um

grande sorriso de alegria, entretanto, a felicidade dura pouco, pois em dois

quadrinhos a seguir, isto é, rapidamente, já se tornou um defunto. O leitor

prepara-se para comemorar com o personagem a vitória, quando o vê,

repentinamente, de olhos esbugalhados recostado sobre o chão. É no

contra-circuito da expectativa do leitor em relação ao que sucede que está

a economia do gasto psíquico, somado à elaboração que dispensa por

completo a representação embutida na palavra: as imagens se explicam

por si só.

A graça se reafirma quando continuamos a ver as seguintes páginas

de Mister O, em que 30 outras histórias acompanham suas tentativas de

lidar com o abismo e se estabelece a garantida e repetida frustração. Suas

idéias e iniciativas são outras, assim como se realiza o desfecho,

entretanto, se repete o fato de em todas elas, ele tem a intenção de

atravessar o abismo e em todas termina mal. Para deleite e constatação

dos efeitos desta repetição, que sugere angústia, que não se realiza,

entretanto, que convoca os leitores; apresento mais uma aventura de

Mister O:

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Percebe-se que em alguns aspectos, essas três categorias delineadas

por Freud (1905/1927), o cômico, o chiste e o humor, conversam entre si.

A primordial semelhança entre os mecanismos psíquicos descritos é o fato

de que em todos eles ocorre uma economia de gasto psíquico, isto é, uma

surpresa nas expectativas do ouvinte que lhe permite rir em lugar de outra

reação preparada para a ocasião. Tais mecanismos se caracterizam por

uma forma de diversão, que ficam sem graça uma vez explicados. Afinal,

explicar uma piada é quase uma piada em si.

O riso, efeito dos processos descritos, é costurado na suspensão da

inibição, uma vez que para desfrutar da graça é fundamental que haja um

desprendimento por parte do sujeito, que lhe permita “descansar a sua

vista” e apreender o mundo em outra perspectiva. A desproporção, a

inversão, o desequilíbrio, o trocadilho, o inesperado são estimados

convidados, que contribuem para que a realidade seja construída sob

diferentes pilares, mesmo que apenas por alguns instantes: momento em

que há relaxamento, há movimento, há ruído, há risadas.

Apesar das relações de parentesco, como acompanhamos, tais

mecanismos apresentam, sobretudo, importantes distinções. No destaque

das diferenças fundamentais, está a localização psíquica através da qual

se obtém prazer, uma vez que na elaboração humorística, o prazer

provém do levantamento de inibição de um material inconsciente, pelo

qual se ordenam os fantasmas sexuais e agressivos no campo dos desejos

inconscientes. Seu enunciado é uma experiência da transgressão, pois o

desejo inconsciente se manifesta e se realiza externamente na relação

com o outro, apesar dos limites impostos pelo recalque. Enquanto no

cômico, o prazer provém da comparação de dois dispêndios e a resposta

do interlocutor, está em contrapartida inserida no pré-consciente.

Identificamos como uma característica do condicionamento subjetivo

do chiste e do humor, o fato de que ninguém se satisfaz em elaborar um

chiste para si próprio; está articulado a estes o esforço de comunicá-los.

Diferente do cômico, em que a presença do outro não é uma condição, uma

vez que podemos desfrutar do cômico em quais circunstancias estivermos,

inclusive a sós. No cômico, será de grande desfrute o sujeito entregar-se à

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graça e ainda melhor se provocar o mesmo em outro que com ele esteja.

No entanto, no chiste e no humor, a possibilidade de rir sozinho não existe,

seu processo de formação requer a comunicação a outro: a platéia torna-se

uma instância fundamental para encerrar seu processo.

No processo do cômico bastam apenas duas pessoas: o eu, aquele

que elabora o cômico e a pessoa objeto, que será o objeto da gozação.

Nesta dinâmica, é possível adicionar mais uma pessoa, o ouvinte, apesar

de não ser necessário. Já no chiste que, joga com as palavras e

pensamentos, é fundamental uma primeira pessoa, aquela que terá a

atividade de elaborar o chiste e uma terceira pessoa, aquela a quem irá

comunicar o chiste. A presença desta terceira pessoa assegura ao primeiro

se houve ou não o efeito chistoso em de sua elaboração, isto é, o público

comprova ao piadista que este alcançou seu propósito.

O chiste necessita invariavelmente do código verbal e do

deslizamento de significados adquirido a partir deste manuseio. As

palavras, as expressões e o vocabulário estão no bolso do piadista que as

recolhe com admirável destreza, fazendo com que a composição seja

hilária. No cômico, apesar das palavras poderem colorir a cena, são

absolutamente dispensáveis, uma vez que esta modalidade de risada se

desenvolve no registro da imagem, no contraste entre o esperado e o

absurdo. Esta determina uma fundamental característica do cômico, que

por ter um menor refinamento em sua formulação, pode ser uma mera

descarga catártica gerada pelo contágio social, tendo assim, um impacto

mais amplo, que tenderia à massificação de sua graça. “Há uma tendência

à universalização, que se acentua à medida que se afasta da propriedade

significante da palavra e se aproxima do puro significado: a torta na cara,

o escorregão na banana e etc.” (Pereda, 2005, p. 117). O cômico fala a

multidões, em contrapartida, o humor fala ao seu público fiel, aqueles

seletos que entendem o que quer transmitir, são da sua “tribo”. O humor

cria o laço social, fala a poucos, mas com tremenda profundidade. Isto

atribui aos ditos humorísticos a potência de formular críticas, transgredir,

combater conceitos e valores sociais.

Seja no chiste ou no humor, ambos se situam como um fenômeno

especificamente humano e dependente do discurso; no entanto, o

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primeiro é identificado como um amplo leque de técnicas lingüísticas, que

em seu embaralho resultam em composições chistosas. O efeito

humorístico é mais do que isso, pode estar a serviço do deboche, da

agressão, da violação. “O efeito humorístico não é exclusividade do chiste,

pois abrange operações de linguagem que lhe são afins, tais como alusão,

o ato falho, a ironia, a casualidade, a gozação e o jogo de palavras”

(Slavutsky, 2005, p. 118).

A distinção entre essas diferentes formas de desfrute de graça, o

cômico, o chiste e o humor, faz-se pertinente neste cenário introdutório

do tema para construirmos e nos aproximarmos das diversas maneiras em

que a risada penetra os sujeitos, os meandros pelos quais se utilizam para

chegar a seus fins e, sobretudo, para identificarmos suas peculiaridades e

os efeitos que terão nos processos criativos humanos. A percepção mais

ampliada destas três formas de piada nos presenteia com o dispositivo de

identificar singularidades em seus efeitos e desdobramentos para se

chegar ao riso.

Entretanto, apesar das diferenciações desta “metapsicologia” da

piada se fazerem necessárias para o acompanhamento de algumas

passagens desta leitura, não nos ateremos rigidamente às exigências de

distinções entre as várias modalidades de riso. Inclusive, em muitos

momentos esta diferenciação se fará dispensável e, se teimosamente nos

aventurarmos a tal, encontraremos imensas dificuldades neste exercício.

Apenas a faremos, se efetivamente encontrarmos necessidade para tal.

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1.3 - As risadas aplaudem o espetáculo: O outro

imprescindível

O fenômeno humorístico aponta para uma extraordinária

ambivalência, pois na estrutura da piada podemos encontrar, por um lado,

a vitalidade e, por outro, a mortificação. Esta estranha oscilação entre

vida e morte nos traz explicações ao corriqueiro fenômeno de ver alguém

chorar diante de algo cômico, rir diante de algo trágico ou mesmo chorar

de rir ou rir em lugar de chorar. O chiste apresenta em si uma potência

criadora de ambivalência, o que torna possível transitar entre a angústia e

o riso, amor e ódio em relação a um mesmo objeto.

Diante da sedução imposta pela piada, pelo convite que nos faz

para entrada no gozo e no prazer, facilmente alcançadas através do riso,

ainda mais, como outra possibilidade no lugar da angústia, poderíamos

supor que esta fosse uma atividade desejada e possível a todos os

indivíduos. Desejada talvez o seja, mas possível não, pois sabemos que

nem todos são capazes de desfrutar deste recurso: o humor é um “dom

raro e precioso”, a que apenas uma pequena minoria tem acesso. Muitos

ainda são incapazes de provocar ou até mesmo gozar do prazer

humorístico que lhes é oferecido.

O mestre Sigmund Freud (1905/2001) já havia identificado que

possivelmente haveria particularidades na natureza psíquica dos seres

humanos que têm a seu alcance o prazer humorístico. Apesar de seus

esforços encontrou no exercício de definir as características pessoais

necessárias para o proveito das piadas, um imponente obstáculo, mas

deixou como herança a observação de que uma postura alegre, algum

grau de cumplicidade com o piadista ou certa indiferença em relação ao

material da piada são predisposições necessárias para que o ouvinte

desfrute da graça. A prontidão daquele que se encontra pessoalmente

envolvido ou com sentimentos intensos relacionados com a temática do

chiste ou objeto de gozação encontrará grande dificuldade para ser tocado

por ela.

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Ainda às voltas de compreender em qual instância e circunstância

uma frase lacônica dita por alguém se transforma em um estrondoso riso

por parte de outro, identificou que a primeira das aptidões necessárias

para se desfrutar da piada é que o ouvinte tenha suficiente concordância

psíquica com aquele que conta a piada para que a partir disso possa ser

acometido da mesma maneira como este o foi. Isto é, o cancelamento de

sua inibição interna deve ser superado, assim como o foi na primeira

pessoa no momento que ouviu a piada. O sucesso da piada dependerá do

encontro destas duas partes, a sintonia que haja entre elas e sua

especifica concordância psíquica.

No chiste, o sujeito precisa da presença do outro

como testemunho e parceiro, para que o desejo em

processo de realização no chiste possa ser

reconhecido pelo interlocutor, pelo riso que é capaz

de provocar. O chiste seria então da ordem do prazer

preliminar para a experiência do riso, que seria assim

da ordem do gozo final, isto é, daquilo que foi

tramado inconscientemente pelo locutor. (Birman,

2005, p. 102).

Desta forma, o dito espirituoso ocorre na esfera da linguagem e

pressupõe a presença de três pessoas: aquele que inventa a piada, o que

é objeto dela e o terceiro, o ouvinte, a quem é contada. Existe, no prazer

que o chiste provoca um compartilhamento de sentimento, o que

escancara a inscrição da piada no cenário social. Uma determinada

formulação lingüística apenas poderá se localizar no campo do humor se

tiver algo a comunicar a outrem. Esta é a primeira exigência que se impõe

à experiência da articulação da piada, caracterizada pelo prazer

descomprometido que, ao mesmo tempo em que convida, autoriza e

contagia, se dissemina rapidamente pelo espaço social.

Deparamo-nos com o cerne, o eixo fundamental e primordial da

circulação da piada: sua potência de liderança no cenário social. Apesar

das inúmeras e pertinentes aproximações entre a experiência dos sonhos

e a dos chistes, neste aspecto, escancara-se uma grande diferença, pois o

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humor é um efeito eminentemente social, uma vez que envolve o sujeito

e mais alguém, seja como objeto de hostilidade, seja como aliado contra

tal objeto e, em contraposição:

O sonho ocorre na solidão do sonhador, não é social,

não tem nada a comunicar ao outro. Já a piada é a

mais social de todas as operações anímicas cuja

meta é o ganho de prazer. (...) A piada é um jogo

desenvolvido; já o sonho é sempre um desejo

irreconhecível, que serve para economizar um

desprazer, a piada produz um ganho de prazer.

(Slavutzky, 2005, p. 208).

O quinto capítulo de O chiste e sua relação com o inconsciente,

intitulado “Os motivos do chiste - chistes como um processo social”

(1905/2001), apresenta a temática que invariavelmente é abordada por

todo e qualquer autor que se proponha discorrer sobre o tema: o chiste

inexiste sem a presença da platéia. A descrição detalhada realizada por

Freud acerca de que modo ocorre o encontro entre piadista e ouvinte é

pertinente de ser retomada para ao fim compreendemos de que forma a

piada converte-se em moeda de troca no espaço social.

Aquele que conta a piada está concentrado em relatá-la

exatamente como a escutou e com isso produzir o mesmo efeito do qual

foi vítima. Nesta perspectiva, comporta-se de forma a não tropeçar no

efeito de sua graça e apenas ao final testemunha seu prazer diante da

risada de outro. Em contrapartida, o terceiro experimenta uma risada que

nasce em si quando uma significativa energia psíquica, antes empregada

da investidura de certo caminho psíquico veio a ser inaplicável e com

sorte pode desfrutar de uma livre descarga. O prazer adquirido converte-

se em risada, a partir economia de gasto psíquico.

Evidentemente, aquela que ocupa o papel da primeira pessoa na

ocasião é herdeira da terceira pessoa, na ocasião que era ouvinte da

piada. Nesta teve a oportunidade de descarga do sentimento

economizado, desfrute ao qual não tem acesso neste momento. Sabemos

que não somos assaltados pela mesma surpresa por duas vezes, nem pela

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possibilidade de descarga ou completude na ganância de prazer, com isso,

fica excluída da primeira pessoa a possibilidade da espontânea explosão

do riso.

Mesmo que a descarga não se consuma, uma vez que esta já

ocorreu, para que a primeira pessoa pudesse elaborar ou relatar o chiste é

necessário que a resistência seja suspensa e para tal sabe-se que é

necessário que o investimento de inibição seja cancelado. A primeira

pessoa não pode rir arrebatada pela surpresa, porém a esta lhe

corresponde um novo gasto psíquico, que se refere a contar a piada.

Uma ganância de prazer fica garantida pelo ato de reproduzir aquilo

que uma vez lhe deu prazer e, com o cancelamento da inibição, ri sob um

efeito contagioso de desfrute da risada alheia produzida a partir de sua

fala. Assim, a comunicação do chiste completa o prazer daquele que conta

a piada sob efeito retroativa do outro sobre ele e remedia o “desânimo”

que experimenta pela ausência da novidade.

Neste encontro passamos de ouvinte para piadista, transitamos

entre os diferentes papéis: posteriormente a nos surpreendermos e rirmos

com o conteúdo da piada temos um prazer especial por partilhar com os

demais e repassar a mensagem. “deslocamo-nos assim da posição de

seduzido para a de sedutor, isto é, da posição de público para de ator, da

mesma forma que fará o nosso interlocutor, certamente, logo que seguida

se possível, disseminando a boa-nova.” (Birman, 2005, p. 88).

Birman (2005) enfatiza que há um sutil e saboroso prazer exclusivo

ao piadista: este se engrandece, infla seu ego diante do poder e prestígio

que recebe da platéia, sendo nada mais, nada menos, que o catalisador

do gozo dos demais. Neste jogo, os risos aparecem como aplausos pelo

excelente espetáculo. Esta súbita glória, automaticamente infla o

narcisismo do piadista, que não à toa se torna o sedutor da platéia e por

este registro deseja ser reconhecido.

O locutor protagoniza a cena, o receptor é primordial, afinal, quem

define o que é uma piada, o contador ou quem escuta? Uma história deixa

de ser uma história e passa a ser uma piada quando alguém ri dela. Esta

premissa nos leva a concluir que quem define o que é uma piada é

sempre o ouvinte, pois apenas teremos a garantia de que o chiste foi bem

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sucedido a partir da risada de alguém e, se isso não ocorrer, saberemos

que a piada fracassou, logo não foi uma piada. “O chiste é compartilhado,

sancionado e festejado pelo outros, cuja participação é condição. (...) A

ressonância ou a reprodução desta satisfação em outros é o que dará

sustento à questão da transmissão de uma piada” (Pereda, 2005, p.

121/122).

Apenas podemos disseminá-las e sermos nutridos pelos efeitos que

elas causam ao nos depararmos com alguém que não a conheça, ou que,

mesmo a conhecendo, se disponha a ser novamente “pego” a rir. A

circulação da piada exige, portanto, a primordial presença de outro, pois:

O processo psíquico da formação do chiste não

parece acabado com sua ocorrência; ainda falta algo

que mediante a comunicação da ocorrência, quer

encerrar esse desconhecido processo (...) do chiste

que me ocorreu e que eu transmiti, não posso rir eu

mesmo, apesar do inequívoco gosto que tenho por

ele. Quem sabe, a necessidade de comunicar o chiste

a outro se entranhe de algum modo desse efeito de

risada negado a mim, porém manifesto no outro.

(Freud, 1905/2001, p. 137).

A discussão de Freud é justamente em torno da função que é

atribuída a esta terceira pessoa na dinâmica do chiste, aquela para a qual

são transmitidas as piadas, sempre com a imensa expectativa de como

esta irá reagir, pois se sabe que, sem a sua autorização, a graça não pode

circular.

Kupermann (2005) aponta que o encontro do piadista com seu

ouvinte reforça os laços identitários existentes naquele grupo social, pois,

através da piada, ao expor, caçoar ou ridicularizar o objeto de gozação,

essas duas partes dão as mãos e se deixam levar aos risos. A comunhão

entre eles faz com que, ao centralizar na segunda pessoa da dinâmica da

piada o ódio e a agressividade, possam desfrutar da identificação ao

próximo e se abraçar mutuamente. A possibilidade de comunhão na

graça, estaria, portanto, ao gozar aquele que ocupa o mesmo grupo a que

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pertencem o piadista e o público, porém neste, o objeto da graça não

passa de um estrangeiro, de um diferente, excluído e alheio.

O alvo da piada é por ela ridicularizado, quando não ofendido ou

humilhado. Inúmeras são as piadas que se referem a grupos étnicos,

aproveitando-se de algum traço marcante e característico como temática

dos chistes. Esse gênero de piada, reflete imagens preconceituosas que

outros têm em relação a ele. Por esta razão, “aquilo do que se ri” pode

nos dar referências significativas sobre a organização de dado

agrupamentos, bem como a estrutura psíquica de seus componentes.

Piadas elaboradas acerca de seus costumes, crenças, instituições, valores,

rituais e outros, trazem indícios do que os singulariza e como esses se

relacionam com outros agrupamentos.

O humor, desta forma, é um fenômeno eminentemente social, pois

o mesmo efeito não se encontraria sem a presença do público, sem o qual

o piadista ficaria solitário e sua percepção e opinião acabaria em si,

destino absolutamente “sem graça”. A piada encontra seu rumo para

circular diante da platéia, uma vez que esta autorize a transgressão do

comediante, demonstrando que também desfruta desta traquinagem e

apóie-o através da demonstração de seu agrado.

Uma leitura alternativa, no entanto, indica uma

eficiência bem mais complexa e valiosa, que

configura uma autêntica política do Witz (chiste): a

dimensão transgressora do recalcamento viabilizando

novas possibilidades identificatórias e sublimatórias,

ou seja, novos modos de sociabilidade. Neste

sentido, ao se transmitir um chiste ou um dito

humorístico, busca-se compartilhar a critica social e a

denúncia das hipocrisias que sobrevivem em

qualquer agrupamento (...) favorecendo uma

libertação temporária das imposições sociais

anacrônicas. (Kupermann, 2005, p. 24).

Esta citação auxilia-nos a estender nosso campo visual e vislumbrar

o humor mais além da picuinha e fofoca, em que esses recursos nos

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servem apenas para excluir o outro, na tentativa de nos diferenciarmos.

Por uma causa mais nobre, o chiste, amparado pelo código lingüístico, se

torna uma ferramenta para compartilhar questionamentos, denúncia,

protesto, crítica social, hipocrisia, ao expor ao divertimento público os

modelos questionáveis e negativos da sociedade, sob os contornos do

humor.

“Fritz Rabinovittch é levado à presença de Hitler, o qual está

furioso. “É você, judeu imundo, que anda fazendo piadas ao meu

respeito? Como aquela [conta], aquela [conta] e aquela [conta]?!”. “Sim,

sou eu”, responde Fritz. “Mas você não sabe que eu sou Adolf Hitler, o

Führer do Reich que vai durar mil anos? “. E Fritz: “Essa não fui eu que

inventei, não!””. (Mezan, 2002, p. 293).

A piada acima se refere a um marco histórico que poderá ajudar-

nos a iluminar nossa compreensão. A política de extermínio à cultura

judaica foi um movimento tresloucado que ascendeu ao poder na

Alemanha em 1933 e instalou a perseguição aos judeus, num anti-

semitismo cujas origens são difíceis de serem explicadas. Os judeus

passaram a serem vistos como um fator de corrupção do povo alemão,

sendo que a pureza da raça ariana deveria ser defendida através da

impiedosa perseguição ao povo judeu. Daí surgiu o regime totalitário e

militarista que se baseava numa mística heróica de regeneração nacional,

segundo a qual os homens eram desiguais por natureza. Utilizando-se de

espetáculos de massa e dos meios de comunicação, o partido nazista

conseguiu mobilizar a população por meio do apelo à ordem e ao

revanchismo, o que resultou no massacre de grande parte da população

judaica da Europa perpetrado pelos nazistas entre 1941-45.

As ressonâncias deste terrível acontecimento são inumeráveis:

famílias foram ensangüentadas, cidades assassinadas, a cultura judaica foi

dilacerada. Por sorte, alguns poucos sobraram e era necessário se

recompor. Um aspecto constituinte da cultura judaica, inclusive como uma

resposta bem humorada à marca de sangue em sua herança, são os

chistes judaicos: aquilo que havia de violento e mortífero no discurso

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nazista transformou-se em franco e irônico objeto de riso para os judeus e

uma brilhante resposta ao anti-semitismo. Abandonaram a posição

passiva de vitimização e apoiados em um dispositivo criativo e

ressignificante, encontraram no chiste a via de desconstruir a realidade

sanguinária e recolocar-se no circuito social.

Roustang (1984) compartilha que “gosta muito dos judeus porque é

o único povo do mundo a utilizar, contra eles próprios, um humor tão

reconfortante” (p.32). Veremos a seguir uma piada que faz, com grande

graça, uma critica as autoridades não-judaicas e à hostilidade delas

quanto aos judeus:

“Um judeu encontra seu amigo sentado em um café em Berlim,

lendo placidamente Der Stürmer [o jornal do partido nazista]. “Como!

Você está lendo esta porcaria! Por acaso virou masoquista?”E o outro:

“Veja, se eu leio a imprensa judaica, só fico sabendo das desgraças: lojas

destruídas, pessoas presas e humilhadas... Mas neste jornal só dão boas

notícias: os judeus dominam o mundo, são os maiores financistas, os

intelectuais mais destacados... É lógico que prefiro ler isto”. (Mezan,

2002, p. 293).

Ou a seguinte piada, muito bem humorada:

“Quando se conta uma piada para um camponês, ele ri três vezes:

quando a ouve, quando ela lhe é explicada e quando ele a compreende.

Quando se conta uma piada a um conde russo, ele ri duas vezes: quando

a ouve e quando ela lhe é explicada: entendê-la, ele não vai nunca. E

quando se conta uma piada a um oficial do exército [russo], ele só ri uma

vez: quando a ouve, porque entendê-la está fora de questão e ele jamais

vai deixar que a expliquem. Mas quando se conta uma piada a um judeu,

primeiro ele diz “essa eu já conheço!”e em seguida ele conta uma

melhor”. (Mezan, 2002, p. 292).

Birman (2005) enfatiza que o humor judaico foi uma das formas

criativas de reação da cultura judaica ao anti-semitismo, não incorporando

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a crueldade ou a mortificação passiva, pelo contrário, se organizaram para

desmontar o dispositivo de aniquilamento colocado em cena pelo anti-

semitismo. A desconstrução da realidade através do chiste possibilitou a

circulação do desejo, pois o dispositivo anti-semita de destruição da

tradição judaica se constituiu efetivamente no campo político e social. Foi

possível dar a volta por cima através do chiste, pelo humor e pelo riso,

para desconstruir politicamente em ato o gesto de destruição colocado

imperativamente na cena social. Assim se realizou a tradição judaica,

constituindo a sua cultura pelo reconhecimento do trágico.

É preciso sempre rir e produzir chistes

cotidianamente para desconstruir a crosta dos

interditos instituídos pelo poder, para que assim o

sujeito possa afirmar o seu desejo e restaurar então

certos direitos para manter a existência de sua

comunidade social. (Birman, 2005, p. 106/107).

Observa-se que há neste processo uma dimensão libertária, pela

qual o espírito se posiciona diante das experiências de angústia e abusos,

não sendo através do grito ou força física sua manifestação, mas sim, no

processo criativo da elaboração e expressão do chiste. A piada se

caracteriza pelo prazer descomprometido que ao mesmo tempo em que

convida, autoriza e contagia, se dissemina rapidamente pelo espaço

social.

O impacto que a piada tem diante do público no qual é disseminada

está integralmente relacionado com a implicação, o contexto, o local, o

idioma e outras variáveis do terreno em que é contada. Bérgson

(1978/1983) chama a atenção para o fato de que se deve ser da paróquia

para compreender a piada, isto é, evidencia a necessidade de haver um

laço social que articule o ouvinte à temática e contextualização do que é

relatado. Os múltiplos significados que podem ser criados, reinventados e

renovados através do humor, assim como os deslizamentos de sentidos,

mais se potencializarão quanto mais próximos e envolvidos estiverem dos

interlocutores da piada a tais significantes.

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Sob este prisma, seria pouco pertinente definir como alvos rígidos e

fixos quem são aqueles que vestem o segundo papel, lugar daquele que é

ridicularizado, pois é contextualizado na época em que este é elaborado e

disseminado, relacionado com os hábitos, costumes, idioma e demais

características da sociedade em questão, que este encontrará seu

delicioso recheio. Por esta razão, o chiste interdita veementemente

qualquer possibilidade de ser traduzido “por outras palavras”.

Ernest Gombrich (1995) em, As teorias estéticas de Sigmund Freud,

faz precisões sobre a evolução da teoria estética, segundo ele,

influenciada pelas pesquisas do mestre. Faz interessantes aproximações

entre a obra de arte e o material do chiste, afirmando que estes, para que

sejam eficazes, requerem uma incursão nos subsolos do inconsciente,

mas também uma elaboração pré-consciente daquilo que pudemos

descobrir. Deixa com isso subentendido que a criação artística é a

expressão de uma consciência subjetiva e um meio de comunicação

ímpar, a qual qualquer tentativa de tradução é fadada ao fracasso.

A própria leitura de Os chistes e sua relação com o inconsciente

(1905/2001), nos traz indícios desta constatação, pois, apesar de

identificarmos as técnicas apresentadas pelo autor para os diversos

chistes, muitas deles não nos levam nos dias de hoje à graça. Com isso,

compreendemos que a contextualização do chiste, em termos dos valores

de seus ouvintes, será indispensável para que provoque os esperados

risos.

Também pelo fato do chiste e o inconsciente partilharem de uma

estrutura comum, as possibilidades e formulações de piadas se tornam

inesgotáveis. Poderíamos dizer que “o chiste está estruturado como uma

formação do inconsciente é por isso mesmo uma transação na qual

alguma coisa do recalcado abre passagem sem pagar o preço” (Pereda,

2005, p. 120). A piada acompanha o movimento, as novidades, as

tendências, as particularidades dos diferentes contextos, povoações,

épocas e sujeitos, pois ela tem a seu favor a possibilidade de se renovar e

reinventar. As elaborações e formulações advindas do inconsciente

ganham o acréscimo e o privilégio de serem infinitas e múltiplas.

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As historietas permeadas pelo chiste e pelo humor, por provocarem

riso, ficam martelando como um estribilho risível na memória do público.

Devido a sua concisão significante e ao bom humor, o que Birman (2005)

irá chamar de argamassa mágica, o chiste manifesta sua potência de

fixação no psiquismo, o que faz com que as mensagens sejam registradas.

Não por acaso, as propagandas publicitárias, refrões de música e os meios

comunicativos de maneira geral, fazem um freqüente uso desse recurso.

Sem dúvida: as piadas têm uma produção infinita e se fixam no

psiquismo, entretanto não deixam de serem efêmeras, possuem o “tempo

limitado pela ampulheta”. O tempo de permanência para cada uma delas,

não se pode generalizar, cada uma possui o seu efeito e a sua vida útil.

Porém são poucas as piadas que se mantêm por um período mais longo.

Quem não experimentou se impulsionar para contar uma ótima que

escutou o outro dia e, de repente, se dar conta de que alguns dos

importantes fragmentos já se perderam? O curioso é que justamente esta

característica permite a renovação. Se eu contar duas vezes a mesma

piada, perde a graça. Na terceira já sou expulso do ambiente. Então, sua

marca efêmera e de transitoriedade, carrega o teor de “boa nova”, muito

boa, mas que dura pouco.

Além do fato de nascer em um fértil terreno, a natureza da piada

apresenta alguns recursos que favorecem que o seu objetivo, o riso, seja

alcançado. A brevidade da expressão garante que, sem muitos contornos,

o ouvinte seja exposto à temática do chiste e seja rapidamente penetrado

por ela. Outro aspecto favorecedor é o fato de o sentido ser facilmente

inteligível, isto é, não requer de longos questionamentos, reflexões ou

indagações: apenas exige a suspensão da inibição para seu desfrute. E,

finalmente, pelo fato do piadista apropriar-se dos benefícios do intrigante

relato e suspense, as lacunas que se interpõem na escuta do chiste,

minimizam-se com o aumento da expectativa do ouvinte, que dedica

considerável atenção para que a narrativa chegue ao glorioso fim.

Esses três aspectos, brevidade da expressão, fácil intelecção e vigor

no relato se articulam no processo da piada: apenas começamos a refletir

sobre o que ouvimos quando já fomos ligeiramente surpreendidos e

arrebatados pelo chiste. Porém nem tudo são flores, ou melhor, nem tudo

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são risos. Existe uma grande parcela de imprevisto ao contarmos uma

piada a alguém: foge-nos ao controle como o outro irá reagir, mesmo

após pronunciar-lhes nossa expectativa de produzir graça.

Com isso, delineia-se um fundamental desafio, pois é fundamental

que o montante de energia do ouvinte seja corretamente deslocado e não

ocorra que ela se dissipe para outros fins ou se perca no processo. Para

que este encaminhamento ocorra de maneira desejável e que resulte na

espontânea risada, algumas articulações acerca da maneira que o chiste

penetra o ouvinte devem ser relevadas. Dentre elas, a harmonia ou as

contradições do material do chiste, os pensamentos que predominam no

ouvinte e a atenção que mantém e extrai do processo do chiste. Essas

peculiaridades tornam imprevisíveis os efeitos do chiste, sendo diferentes

a cada vez que são contados aos diferentes ouvintes.

Muito provavelmente, os leitores que chegam ao final deste

capítulo, devem ter algumas hipóteses, que respondam o porquê da

escolha do título: As risadas aplaudem o espetáculo: o outro

imprescindível. Na temática do humor, identificamos que apenas a partir

manifestação do outro, diferente de mim, percebo que a piada foi uma

piada, isto é, que alcançou seus fins. Neste caso, sem o aplauso destas

risadas, não encontro indícios que me orientem a concluir se a piada se

concretizou e que, como piadista, fui bem sucedido. Esta dinâmica que,

impreterivelmente, envolve ao menos dois agentes é o que, como

concluímos, insere o chiste no contexto social. Cenário em que, a

presença do outro, legitima ao piadista que suas expectativas foram

correspondidas diante da tentativa de provocar graça nos demais.

No próximo capítulo, A infância no jardim do riso, iremos abordar

de que forma o olhar deste outro faz com que o sujeito, em seus

primeiros passos de vida, reconheça suas vontades e desejos e, desde já,

é feita a provocação e o convite para pensarmos se existe ou não riso no

jardim das crianças.

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A INFÂNCIA NO JARDIM DO RISO

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2.0 - A infância no jardim do riso

Durante os anos de graduação, mergulhei na leitura de obras de

grandes pensadores e filósofos, mestres e gurus que há muito se

aprofundavam na compreensão do desenvolvimento e desejo humano,

diante de suas vicissitudes, da cultura e da lei. Atravessei as diferentes

abordagens psicológicas às quais os alunos são expostos, entretanto,

inquietantes perguntas não calavam. Intrigada com o universo de

descobertas e incógnitas que me penetrava, na sala de aula, como

professora de um grupo de crianças encontrei no olhar, no gesto, na

espontaneidade dos pequenos os maiores aprendizados.

No centro da espaçosa classe, um espaço era destinado para a roda

de novidades que ocorria dia-a-dia, matinalmente. Sentada lado a lado

com eles, durante os últimos quatro anos, não se esgotavam as

descobertas, as surpresas e as estrondosas risadas. De mãos dadas, pude

acompanhar os passos das crianças pré-escolares e é com elas que me

sento novamente para escrever sobre as particularidades da natureza do

humor infantil.

Françoise Dolto (1996) rememora uma pequena história verídica de

um bebê, de um chapéu e de uma primeira gargalhada. Com a leitura,

convida-nos a passear no parque onde, quando jovem, se encontrou com

um bebê de nove meses. Não o conhecia, sua mãe o descreveu como

arisco e lento. Dolto portava um vistoso chapéu, que a ela lhe pareceu

haver despertado a atenção do bebê que, deitado estava no carrinho

diante de si. Apesar do pequeno não dominar o recurso lingüístico, Dolto

não se intimidou: com o chapéu em mãos brincava com o bebê,

apresentando e ausentando o objeto de seu campo visual. O pequeno que

a princípio não se mobilizou com o gesto, passou a fixar o olhar,

acompanhar o movimento, esticar sua mão para pegá-lo, e quando o

tinha, experimentou jogá-lo inúmeras vezes no chão, testando sua

ocorrência. A jovem não se cansava de voltar a colocar o chapéu no colo

do bebê, mesmo sabendo que em instantes voltaria ao chão. A cada etapa

da brincadeira, Dolto nomeava e localizava o objeto através das palavras.

Desgastada de recolher o chapéu no chão, propôs outra brincadeira:

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apresentava o chapéu e em seguida o fazia desaparecer. Fez isso com a

mesma insistência que o pequeno havia jogado o chapéu no chão, mas

desfrutava de uma reação incrível por parte do bebê: este atentamente a

olhava e acompanhava a movimentação do objeto. Observando sua

reação, arriscou “pregar uma peça” no pequeno: a princípio, com a

presença do chapéu dizia “chapéu”, com a ausência dizia “não tem mais

chapéu”. Como um desengano na expectativa do bebê, passou a mostrar

o chapéu e dizer “não tem mais chapéu”, e ausentar o chapéu e dizer

“chapéu”. A resposta a essa brincadeira poderá arrepiar os que lêem

essas linhas, pois, pela primeira vez em sua vida, o pequeno pôs-se a rir

às gargalhadas e reprisava frequentemente essa hilaridade com a

continuidade da brincadeira.

Esta cena nos remete a um bebê que, apesar de pouco

comunicativo e sem a aquisição da linguagem, encontrou com a

brincadeira a possibilidade de reconhecer seu desejo de brincar do chapéu

para a palavra, experimentar a realidade através da exploração sensorial.

Porém, mais do que isso, algo do sujeito se pronuncia através da

linguagem, pois ele percebe que brincar com esta lhe possibilita estar

“acima das coisas”. Isto uma vez que, a liberdade da fala e o uso das

palavras inauguram o jogo com a realidade: podemos dizer que um objeto

está presente, sem que o mesmo esteja e vice-versa. A palavra descola-

nos da realidade concreta, dá-nos a possibilidade de subvertê-la,

contrariá-la, invertê-la e com esta atividade desfrutar de genuíno prazer.

Não seria a liberdade fornecida pelo jogo com as palavras o que nos faz

rir?

Marie-Christine Laznik (2000) ajuda-nos a compreender este

processo no artigo, A voz como primeiro objeto da pulsão oral, em que

observa os picos prosódicos maternos como primeiros objetos da pulsão

oral. Em sua pesquisa aponta que a primeira manifestação pulsional do

bebê é em relação ao objeto, seja a mamadeira ou o seio materno,

chamado por ela como ativo. O segundo, reflexivo, seria tomando uma

parte do seu próprio corpo como objeto de prazer, como chupar o dedo ou

observar os movimentos de suas mãos. E o terceiro tempo, aquele que

iremos aprofundar, é quando o bebê faz de si um objeto de outro. Isto é,

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comporta-se na direção de suscitar o olhar, o reconhecimento e a atenção

de sua mãe ou aquele que represente este papel na vida do sujeito.

Porém, para quais fins este bebê se comportaria de uma ou outra forma

para despertar esta atenção no outro?

Apoiada nas pesquisas de psicolingüísticos, Laznik, identifica a

emergência da prosódia do “mamanhês” (motherease) que se designa a

uma determinada construção lingüística: a pronúncia regular das palavras,

com a devida acentuação, entonação, pontuação e especificas

características gramaticais, das quais os bebês manifestam exacerbada

apetência e que as fazem reconhecíveis por ele.

Ilustra a prosódia do mamanhês a partir de uma experiência

frequentemente vivida entre mães e bebês, esta que, revela o jogo dos

tempos pulsionais: nus no trocador, ainda com pouco controle de seu

corpo, os bebês movimentam involuntariamente seus pezinhos. Diante

disso, observam uma particular manifestação em sua mãe, que interage

brincando que vai lhe morder os pés. Esta movimentação é acompanhada

pela voz materna, característica do mamanhês, que lhe diz: “bilu-bilu”,

“pequeno da mamãe”, “seu brincalhão” ou outras expressões singulares

desta relação. O bebê, desperto a essa alegria que se inscreve no olhar

materno, para a qual ele é “bom de morder”, goza da situação e

novamente lhe dá os dedinhos a serem mordidos. Identificando o gesto e

a intenção do pequeno, a mãe volta a lhe morder os pés e, repetir o jogo

de palavras. Nesta cena, que se evidencia prazerosa para ambos,

observamos que a fala do mamanhês é um eixo fundamental para que se

estreitem os laços entre mãe e bebê.

O que estaria ocorrendo nesta brincadeira em que o bebê oferece

seus pezinhos para serem mordidos? Quando a mãe sorri de prazer pelo

gesto de seu filho, ela retribui com seu olhar, o que faz com que o bebê se

reconheça como disparador de prazer do outro, como um sujeito

diferenciado da figura materna.

Essa prosódia lhe possibilitaria identificar sua

presença como o objeto causa de um gozo materno.

Ele vai procurar o rosto que corresponde a esta voz

particular. E ele procurará também fazer-se objeto

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deste olhar, no qual ele lerá que ele é o objeto causa

dessa surpresa e dessa alegria que a prosódia da voz

e os traços do rosto materno refletem. (Laznik, 2000,

p. 90/91).

No próprio artigo, Laznik recupera a leitura de Freud (1905) em, O

chiste e sua relação com o inconsciente, texto no qual, como vimos

anteriormente, identifica-se a emergência e a necessidade do outro. No

entanto, neste terreno ou neste jardim, como o capítulo pretende se

situar, falamos da presença do outro especificamente na vida infantil e os

efeitos que este, o outro, encarna como aquele que legitima a presença do

sujeito e que lhe possibilita reconhecer seus desejos. Porém, não apenas

isso.

Vale ressaltar que na cena descrita, o bebê faz graça à sua mãe,

provoca o olhar dela com um pezinho que intencionalmente se movimenta

dentro de seu campo visual. Será na surpresa dos rituais de troca de

fraldas, entre o talco e o algodão, que o bebê se lembrará dos efeitos de

sua graça e surpreenderá sua mãe. Na dinâmica daquele repetitivo ritual

de higienização, haverá um desengano nas expectativas desta mãe, que

não terá diante de si um sujeito passivo, aguardando, com maior ou

menor paciência o processo da troca de fraldas. A mãe será convocada

pelo pezinho que se move na direção de provocar-lhe graça e prazer.

Podemos, assim, verificar a emergência da graça em um sujeito

que, antes mesmo da linguagem, já ensaia as suas primeiras risadas.

Essas aparecem como preparatórias e fundamentais para a construção de

um sujeito que reconheça seus desejos, com ímpar subjetividade e que

possa desfrutar das tiradas humorísticas. Com este ensaio, o indivíduo

caminha na direção de tornar-se um sujeito desejante, porém mais do que

isso, percebe, através da graça e do riso, uma forma de manifestação.

Pereda (2005) nos chama a atenção para os requisitos que devem ser

cumpridos para que haja a presença do humor efetivamente:

Para que haja piada é preciso também que já se

tenham estabelecido o recalque, a denegação, a

educação e a culturalização no sujeito, que exista

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racionalidade, controle do pensamento e um eu que

instale as vias do discurso intencional e do senso

comum, dos valores admitidos e da moral. A

satisfação do humor tem lugar justamente quando

essas vias são subvertidas ou transgredidas pela

operação humorística. (p. 121).

Não é pouco. Haverá humor na vida das crianças? Freud

(1905/2001) nos defronta com a idéia de que as crianças estariam muito

além ou aquém da necessidade do humor. Compreende que na vida

infantil não há lugar para o humor, considera que essas têm ao seu

dispor, sem nenhum esforço, o benefício da leveza característica da

imaturidade, como se a felicidade fosse uma condição natural da infância,

em que não há reveses, angústias que justifiquem a necessidade do

relaxamento e alivio de dor oferecido pelo humor. Justifica que o cômico,

o chiste e o humor que procuramos ter ao nosso lado como aliados na

vida adulta é a re-experimentação de um prazer que tínhamos garantidos

na infância, quando a piada não nos fazia falta, pois não necessitávamos

dela para sermos felizes da vida.

A psicanalista Maria Rita Kehl (2005) contrapõe esta observação,

afirmando que talvez na idade infantil seja o momento que o humor se

faça mais necessário como ferramenta para a criança lidar com penosos

obstáculos que tem de enfrentar: a dissolução do complexo de Édipo, o

desamparo dolorosamente sentido quando a mãe se ausenta, as

frustrações e limitações de compreender a realidade e nela ser

reconhecida, as fantasias angustiantes ante a castração, as rivalidades

edípicas, as restrições e incompreensões por parte dos adultos, entre as

diversas outras dores e penas do percurso infantil. Empiricamente,

identificamos que as crianças, muitas vezes, fazem a escolha de rir no

lugar de chorar e com isso gozam do humor.

Caso contrário, o que lhes restaria diante da dor de ser depositado

pela mãe no colo da professora na entrada da escola, do colega que a

ridiculariza, da dura missão de compartilhar o que lhe pertence, de

esperar a sua vez para falar quando quer toda a atenção para si, ou talvez

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a pior de todas, quando chega um belo bebezinho para disputar o seu

lugar no colo materno?

Esta indagação fez-me lembrar da ocasião em que um aluno de seis

anos, retornando à escola depois de alguns dias na maternidade após o

nascimento de sua irmã, foi indagado pela sua amiga de classe:

- “E então, ela nasceu?!”

Prontamente lhe respondeu:

-“Sim, ela é bonitinha, gostamos dela. Mas não vamos ficar por

muito tempo. Logo mais iremos trocá-la no supermercado por

balas.”

E riram juntos do absurdo que ele havia dito.

O trecho acima demonstra-nos que rimos do que pode ser falado,

ainda que, não possa ser feito. Novamente, defrontamo-nos com a

liberdade conferida pela palavra à imaginação, através da qual, podemos

criar e inventar, independentemente da realidade concreta. Entretanto,

quais recursos essa criança tem ao seu dispor para apropriar-se desta

liberdade do uso das palavras e compor, brilhantemente, esta piada?

As crianças tendem a ser rigorosas em relação às normas e leis que

aprendem dos adultos que a amam e a cercam. Qualquer professora que

possua afinada proximidade com seus alunos saberá que para estruturar

normas de sociabilidade dentro da classe, poderá recorrer a elaborar com

eles uma “lista de combinados” que, uma vez reconhecidos pelos

pequenos e autorizados pela autoridade do grupo, com muito respeito

será obedecida. Quem alguma vez ousou passar no semáforo vermelho

com uma criança de aproximadamente quatro anos, deverá haver sido

repreendido pela infração, o mesmo diante da mãe que diz pequenas

mentirinhas para safar-se de situações desconfortáveis e etc. As crianças

tendem a levar muito a sério o mundo que os cerca, pois confiam na

seriedade de suas razões.

A rigor temos duas formas de nos relacionar com as regras: a

primeira é pela suposição de que foram impostas por uma figura suprema

e superior, motivo pelo qual, independentemente à nossa compreensão,

não podemos burlá-las, sendo que, muitos dos preceitos religiosos partem

desse pressuposto para instaurar seus rituais e mandamentos. A segunda,

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característica das sociedades laicas, é que somos sujeitos livres e

responsáveis pelas escolhas éticas que norteiam nossos atos, portanto,

estamos diante de regras construídas para serem refletidas, cabendo a

nós a escolha de respeitá-las ou não.

Quando se impõem a severidade, a rigidez e a submissão em

relação à norma, exclui-se a possibilidade do riso. O humor e a

irreverência caminham na contramão a esta postura enrijecida. O que

teríamos que ter a nosso dispor, como a criança que brinca com a idéia de

trocar a sua irmã recém-nascida por balas, para desfrutar desses

recursos? Para tal, exige-se um distanciamento quanto à verdade

absoluta, sendo preciso rebaixar a autoridade e a onipotência para

desfrutar destes prazeres.

Talvez a percepção da falta de seriedade das

escolhas paternas, as quais a determinação

inconsciente priva de uma boa parcela de livre-

arbítrio, inaugure para a criança uma primeira brecha

entre o que é e o que deveria ser. Por essa brecha se

introduz a ironia. (Kehl, 2005, p. 70).

Compreendemos que, para desfrutar do prazer humorístico é

necessário produzir-se um distanciamento afetivo da situação, ou seja,

quando não há brecha à regra não há riso, pois a regra não pode ser

rebaixada, o sujeito não se distancia dela. A inversa é verdadeira: quando

se abre uma brecha, há erro, há também a possibilidade da emergência

de um sujeito que desfrute do humor. Entretanto, como se faz possível a

abertura desta brecha, o distanciamento com relação à regra?

Os recursos humorísticos se tornam possíveis na infância quando a

criança tolera a queda, mesmo que parcial, da onipotência de seus pais,

passagem que se dá com significante dose de sofrimento. O mesmo que

pode abrir-lhe a possibilidade de obtenção de prazer, em outra medida,

representa o desamparo, a queda de um ideal, uma vez mais, a

incansável aparição da castração. Supor a queda das figuras paternas

significa questionar, de certa forma, a continência e o amor que esta

relação sela. Kupermann (2003) aprofunda a posição de órfão em que se

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encontra esta criança e que o leva a desfrutar de sua capacidade

humorística:

Contrariamente à figura do herói, que ambiciona

substituir efetivamente o pai falante (...) o órfão é

aquele que, sabendo que sua existência não se reduz

aos limites impostos pelo seu narcisismo, crê na

potência do seu erotismo e do seu desejo, e pode

enunciar, junto ao humorista: tudo pode me

acontecer, a mim que já perdi o que tinha para

perder e que aprendi a rir com a vida. (p. 28).

Não diferente, foi o que observei nos meninos e meninas que

acompanhei no ambiente escolar. A cena que trago para falar da

gargalhada contagiante desses é a ocasião em que a escola convidou uma

trupe de palhaços para divertir a molecada. Neste momento em que me

ocupo de memorar este dia, invadem meus pensamentos as “palhacices”

dos competentes atores e ao fundo as estrondosas gargalhadas dos

pequenos, que não sabiam se olhavam para o sapato exagerado, os

movimentos desconcertados, os tropeços dos palhaços ou para o colega

ao lado, que igualmente a ele procurava um intervalo para respirar entre

as risadas.

Senhoras e Senhores, respeitável público, apresento-lhes o “risonho

porteiro do circo”:

No palhaço encontro, encarnada e restaurada, uma

dimensão positiva e criadora do riso, que faz renascer

um mundo múltiplo e fervilhante. É ele o risonho

porteiro do circo que, com seu humor nos convida

para o espetáculo da vida, espetáculo de um mundo

convertido em picadeiro (...) [apresenta-se no] tênue

limite com o absurdo, no sentido de permitir uma via

de acesso as múltiplas possibilidades de ser. (...) O

cômico procede embaralhando e desembaralhando a

realidade, invertendo, trocando, realizando,

desfazendo e refazendo mundos que se transmutam

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em comédias e ativam a experiência e a vibração do

riso. (...) [O palhaço] brinca, na superfície das coisas e

de si próprio, lançando e recriando sentido com os

quais a vida é reinaugurada. (Sampaio, 1992, p.

43/44).

O palhaço tem a potência de fazer o grandalhão voar pelos ares, do

fracote dar tortas na cara, do desavisado escorregar na casca de banana,

do bonitão levar um tapa da mocinha, nas quais a crueldade infantil pode

se expressar sem culpa. A criança, através deste convidado, debocha de

sua própria falta de jeito, dos seus medos e de suas próprias trapalhadas

no mundo que lhe é apresentado dia-a-dia. O palhaço é sempre um

adulto, que se movimenta com hilária rigidez mecânica, entretanto,

sempre suscetível aos tropeços em suas próprias pernas, às travessuras

de seus próprios colegas com narizes vermelhos, que esperam a primeira

oportunidade para ridicularizá-lo. O eixo da comicidade está na exaustiva

repetição de um gesto normal, na produção intencional de um movimento

automático, e logo, no ‘inumano’ que se traduz em graça.

O enorme prazer com que as crianças riem do

ridículo que se revela na rigidez e no automatismo

corporal talvez se explique porque este é justamente

o aspecto da vida adulta que elas estão tentando, a

muito custo, assimilar. É porque para as crianças, a

automatização da rotina e a rigidez corporal ainda

lutam para se impor contra as expressões

espontâneas do desejo, contra o gozo desordenado

das descargas pulsionais, que ela ri gostosamente

quando o palhaço denuncia a vã pretensão do

controle que domina o mundo adulto. (Kehl, 2005, p.

57).

Birman (2005) complementa a idéia:

Neste contexto, o chiste foi enunciado como algo da

ordem do infantil, que se desdobraria na dimensão

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francamente libidinal que se faz presente nas

explosões risíveis de gozo. Na tessitura dos registros

do infantil e do gozo, é o jogo que se importaria

nessa cena, de maneira triunfal, com o seu

inconfundível estilo de faz-de-conta e de que até

mesmo o impossível poderia se tornar possível. Nisso

tudo, o desejo é o vetor fundamental na cena lúdica

do chiste. (p. 98).

A orfandade simbólica da qual nos fala Kupermann (2003), à qual

nos remonta Maria Rita Kehl (2005) é também o passaporte para a

liberdade, para o descolamento do ideal das figuras parentais, para a

inscrição como sujeito desejante, senhor de suas vontades. O palhaço ou

mais amplamente o cômico, torna-se uma via, absolutamente acessível às

crianças, para elaborar os desajustes que vêem na realidade que as

convida insistentemente a posicionar-se. As atrapalhadas lhes permitem

tolerar e ao mesmo tempo ridicularizar o rigor que rege a vida adulta, e

assim, desnaturalizar a condição humana. Um pequeno deslize no acento

afetivo ou na rigidez mecânica da cena pode tornar tragédias em

comédias, situações conflituosas em “comédias da vida real”.

O livro, Pequeno tratado das pequenas virtudes, nos enaltece com

um de seus tratados, como se propõe, que finaliza com doçura este

capítulo:

Não ter humor é não ter humildade, é não ter

lucidez, é não ter leveza, é ser demasiado cheio de

si, é estar demasiado enganado acerca de si, é ser

demasiado severo ou demasiado agressivo, é quase

sempre carecer, com isso, de generosidade e de

doçura. (Comte-Sponville, 1995, p. 229).

Certamente, entraremos no acordo de que nossas crianças, apesar

dos pesares, das dificuldades, das angústias com as quais se deparam, se

propõem, ainda que com pedidos de ajuda, a atravessá-las com a leveza e

a espontaneidade infantil. Estão nutridas, talvez não do certificado da

felicidade absoluta como se pensava, mas certamente, nutridas de

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vitalidade, coragem e inquietude. Resulta ser incoerente não reconhecer o

bom humor das crianças!

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OLHAR A VIDA ATRAVÉS DA LENTE DO HUMOR

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3.0 - Olhar a vida através da lente do humor

Percorremos até aqui alguns dos aspectos fundamentais sobre o

riso, abarcando suas interferências na vida do pai da psicanálise, suas

diferentes espécies, características singulares, sua dinâmica psíquica,

dentre outros traços significativos. Retomo, porém, a pergunta que esta

pesquisa busca se interrogar: se afinal, o humor atua de uma forma

defensiva, como um manejo da realidade ou se, ao invés, apresenta uma

potência elaborativa e ressignificativa. O campo da clínica psicanalítica é

um espaço privilegiado para buscar respostas para essa indagação. Desta

forma, convido alguns autores que abordaram fulgurações e relances do

humor para abrirem suas clínicas e iluminarem nossas reflexões.

Freud, em 1905, como vimos, dedicou bastante investimento à

temática dos chistes, tornando sua obra uma referência ímpar para os

leitores e escritores que se aventuraram no mesmo circuito. Porém, suas

inquietações em seguida foram interrompidas e, apenas brevemente

retomadas em 1927, quando complementa o primeiro texto (O chiste e

sua relação com o inconsciente) com um capítulo sobre o humor. Um

efeito semelhante pareceu contaminar os pensadores contemporâneos por

um longo período, pois a temática ficou abandonada e desinvestida. Uma

possível explicação para este fato é a de que a psicanálise sempre esteve

“associada mais a seriedade do que a brincadeira, ao sofrimento que ao

humor, à tragédia do que à comédia, ao triste que ao alegre” (Slavutzky,

2005, p. 204).

Em meados do século, discutia-se, com preocupação, a respeito da

tendência dos analistas a se comportarem com excessiva obediência

diante dos dogmas da teoria. Considerado por Freud (1905) como um

dom raro e precioso, “o humor foi justamente uma dádiva desprezada ao

longo do processo de instituição da psicanálise” (Slavutzky; Kupermann,

2005, p. 07).

Apenas mais tarde, psicanalistas se dedicaram a produzir uma visão

de mundo mais irônica e bem humorada. Recentemente, encontramos

uma grande frota de analistas que se aventuraram a dar continuidade a

essas reflexões e fazer interessantes aproximações entre a teoria e a

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prática. Para apresentar a clínica psicanalítica e escutar o que os analistas

têm a nos contar, temos que anteriormente, discutir o conceito de

transferência.

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3.1 - Uma nota sobre a transferência

O setting da clínica psicanalítica é composto por diversos temperos

que tornam aquele espaço absolutamente singular e acolhedor para a

pessoa que se recosta sobre o divã. O analista o recebe como único em

sua subjetividade, porém ao mesmo tempo com recheadas pitadas que

garantem o enquadre necessário para que a abordagem seja eticamente

respeitada. Este vínculo que se estabelece desde o início da relação

terapêutica entre analista e analisando é primordial para o progresso da

análise, pois a partir desta construção, isto é, da disponibilidade de escuta

do paciente e do depósito de conteúdos de sua realidade psíquica, será

possível que as intervenções do analista o toquem e o modifiquem no

sentido que a seguir vamos abordar.

Como se sabe, vivências, cenas e impressões penosas à realidade

do sujeito que há muito foram esquecidas, tornaram-se inacessíveis a ele

e mantidas no inconsciente. Este bloqueio, em que atos e palavras são

reprimidos, faz o recordar ser substituído pelo atuar e, sob o império da

resistência, o analisando reproduz tais eventos. Freud (1914/2001)

enfatiza que “o analisando não recorda, em geral, nada do que foi

esquecido e reprimido, mas sim o atua. Não o reproduz como lembrança,

sim como ação, sem saber o que faz.” (p. 152).

Será no tratamento analítico que o analista conduzirá o analisando

a resgatar tais eventos em sua história, na tentativa de reconstituí-la a

partir do questionamento e ressignificação dos sintomas. Esses conteúdos

que não foram elaborados em seu momento podem vir a ocupar a

consciência, manifestando-se através de sonhos, atos-falhos, atuações,

expressões de humor, entre outros mecanismos. O combate à resistência

apenas se iniciará quando o analista colocá-la em evidência para o

paciente, tornando possível o recordar do analisando, pois até então, este

não a discerne, nem se refere a ela.

Freud, no texto, Recordar, Repetir e Elaborar (1914/2001) enfatiza

a postura do analista na prática clínica:

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Valendo-se da arte interpretativa (...) para discernir as

resistências que se recortam no doente e fazê-las

conscientes (...) o médico coloca em descoberto as

resistências desconhecidas para o doente (...) sendo estas

denominadas, o paciente narra com facilidade as situações

e os nexos esquecidos. (p. 149).

A análise se constituirá de “bons questionamentos”, que

encaminhem o sinuoso percurso do analisando a elaborar suas

resistências, mergulhando em vivências passadas, que muitas vezes

podem se configurar como dolorosas e angustiantes. Nas palavras de

Freud (1914/2001) “o médico atua enchendo as lacunas da lembrança”

(p. 150) e vencendo as resistências da repressão. Esta disponibilidade

poderá possibilitar que a repetição e atuação desses eventos sejam

substituídas pela possibilidade de recordar, retirando esses episódios do

plano da ação para o âmbito psíquico da associação livre.

Apesar do rápido percurso sobre este conceito fundamental e

extenuadamente desenvolvido na psicanálise, podemos caminhar para,

tendo em consideração os contornos da transferência, compreender a

partir de quais circuitos e instâncias é possível ou não identificar a

presença do humor na clínica psicanalítica. Para nos introduzir neste

íntimo e protegido espaço analítico, faremos uma leitura aprofundada do

que os analistas observaram em suas práticas e das reflexões que se

desencadearam a partir daí.

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3.2 - A clínica bem-humorada

A temática desta pesquisa, assim como a pergunta por que se

interroga, recebeu nos capítulos anteriores um tratamento basicamente

teórico, o que foi planejado para que, a partir destes, tivéssemos a

amplitude e o embasamento conceitual necessário que nos possibilitasse

olhar para a experiência vivida do riso. Isto é, sabemos o que é sermos

capturados abruptamente por uma gargalhada, sentirmos a ansiedade de

relatar uma piada a um bom amigo, assim como, escutarmos alguma e

não acharmos a menor graça. Entretanto, o aprofundamento teórico tem

como perspectiva contribuir para que algumas das características

fundamentais do chiste ganhem destaque, assim como seus efeitos no

contexto social e sua movimentação psíquica e simbólica nos sujeitos.

Pretende-se apresentar conceituações teóricas, cenas, exemplos e

especialmente, casos clínicos, que possam fazer aproximações entre o que

viemos discutindo e a contextualização prática dos efeitos do humor na

vida dos indivíduos. O que sustenta a determinação desta pesquisa em

trazer ilustrações é a concepção de que a articulação entre teoria e prática

se faz necessária, uma vez que, uma sem a outra, nenhuma pode

progredir sozinha, isto é, a prática só encontra o seu sentido na teoria e a

teoria encontra sua verdade na prática.

Alguns autores referem-se ao humor como uma ferramenta,

vislumbrando a possibilidade de que possa ser “empregado” em

determinada situação, outros o vêem como uma presença inevitável e

incontestável e, em contrapartida, outros não o prescrevem ou nem

mesmo se referem a ele como possibilidade. Diante desta ampla

variedade de concepções, procuraremos, a partir do aprofundamento,

compreender ao menos tais controvérsias e quando muito, esboçar a

possibilidade de entender a serviço de quais funções psíquicas coloca-se o

humor.

Perante o recém desabrochar de minha experiência profissional e

imaturo percurso na prática clínica, convoquei profissionais, mais

experientes, para ilustrar e relatar experiências que enriqueçam nossas

reflexões. Com eles, poderemos discutir quais os efeitos humorísticos que

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verificam em sua prática clínica, de que forma e para quais fins se

estabelece, se o recomendam na atuação e demais observações sobre sua

incidência. A aposta é que esta conversa possa fundamentar ou refutar,

ou ao menos, enriquecer nossas perspectivas em direção à indagação

desta pesquisa.

François Roustang (1984) em seu modesto texto, Meu caro amigo,

reconhece os efeitos da transferência como fundamentais, ao afirmar que

apenas a partir da constituição desta, se tornará possível o

estabelecimento do processo analítico. Entretanto, amplia o circuito

transferencial, propondo um novo critério de analisabilidade para

pacientes e competências para analistas. O texto é uma carta endereçada

para publicação, entretanto, é destinada a um colega, ao qual Roustang

relata uma grande descoberta que realizou. Solicita insistentemente que o

conteúdo desta se mantenha em segredo, mas que por sorte, chegou às

nossas mãos. Na intimidade desta relação com seu caro amigo relata qual

seria o critério que define se uma pessoa é capaz de análise:

A pessoa que me vem ver é ou não dotada de

humor? [A questão] vem a ser a de saber se a

pessoa em questão será capaz, dentro da maior

seriedade, de zombar um pouco de si mesma. Não se

trata de zombaria aguda, venosa ou irônica, pois a

seriedade se tornaria trágica. Trata-se de uma

zombaria doce, afetuosa e terna. (...) Na curva de

uma frase, o paciente tropeçaria numa palavra mal-

colocada ou num lapso. O problema é de saber se

quem tropeça nos próprios pés andando no tapete de

sua língua vai criar um drama ou se vai sorrir,

constatando que mesmo a sua infelicidade pode ter

para ele próprio algo de enternecedor. (Roustang,

1984, p. 30/31).

O autor apresenta que o fato do sujeito que procura análise portar

humor é o que permitiria aos psicanalistas definir se a pessoa esta apta a

fazer análise. Em sua exposição, apresenta a contraposição que há entre a

postura humorística e a postura séria, na qual verifica que aqueles que

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são dotados de impenetrável seriedade são incapazes de análise. Esta é

uma imponente afirmação, fundamentada diante da observação de que

aqueles que se levam excessivamente a sério não se permitem estar em

outro lugar diferente de onde se encontram. Isto limita ou até mesmo

impossibilita a condição de ver a tragédia como comédia ou a angústia

como solução. Preferem aborrecer-se com explicações pedantes que,

frequentemente, aparecem como verdades universais. O humor ocuparia,

diferente desta perspectiva, “o máximo de distância dentro do máximo de

proximidade, um máximo de amor com um mínimo de paixão em relação

a si próprio” (Roustang, 1984, p. 31). A partir do seguinte exemplo,

temos um sujeito, que poderíamos arriscar ser a princípio, apto ao

processo analítico:

“Um judeu entra no consultório de um analista e se queixa:

“Doutor, estou com um problema sério. De uns tempos para cá, comecei a

falar comigo mesmo em voz alta”. O analista: “Bem, isso não é tão grave

assim....”. E o judeu: “Mas se o senhor soubesse como sou chato!””.

(Mezan, 2006, p. 298).

O que se pode perguntar frente a essa idéia é se este critério de

analisabilidade é aplicável apenas ao paciente, ou igualmente ao analista.

Como poderia o paciente zombar com gentileza de si próprio, se o

psicanalista não o faz também?

O humor poderia substituir com boa vantagem a

mania do corte que encontramos em muitos

analistas. Falam de corte epistemológico, de corte

significante, de corte interpretativo e mesmo de corte

puro. (...) Creio, porém, ser perigoso deixar todas

essas facas nas mãos de psicanalistas. Correm o

risco de acabarem por se machucar e, o que é mais

grave, de machucarem seus pacientes. O senso de

humor afasta o individuo de si mesmo e da fatalidade

da qual se mantêm. É um instrumento indolor por ser

terno: e se por ventura cortar algo, tem a imensa

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vantagem de não deixar cicatrizes. (Roustang, 1984,

p. 31/32).

Roustang, em sua fala, faz uma explícita recomendação do uso do

humor, seja na perspectiva do analisando como do analista. Mannoni

(1992) em, O Riso, traz ricas contribuições para este desdobramento,

uma vez que apresenta em qual cenário psíquico o humor encontra uma

fresta para comparecer. Para tal, retoma o processo transferencial

descrito por Freud, relação através do qual o analisando encontra suporte

para que um material descole-se do inconsciente e habite o consciente. O

autor estende esta perspectiva, remontando a natureza da lembrança em

cada um dos campos psíquicos, consciente e inconsciente e o faz, com

invejável destreza, contextualizando e potencializando suas reflexões

associadas a possibilidades do paciente rir.

Desta forma, propõe retomar a temática muito banal e, segundo

ele, insuficientemente explicada do riso. Recupera a formulação de

Spencer, na qual o pai da psicanálise se apoiou, ao formular sua obra:

pensa-se que “o riso é uma libertação de certa quantidade de energia cuja

acumulação se revelou inútil (...) nós riríamos por termos feito provisões

de energia psíquica que se revelaram inúteis e que são liberados no riso”

(Mannoni, 1992, p. 128). Apesar de não defini-la como falsa, o autor

afirma que esta teoria é vaga, uma vez que desconsidera a possibilidade

de explicar o riso em seu significado e sentido. Isto é, argumenta que

Spencer, em sua leitura, remete o riso exclusivamente à sua formulação

mecânica, levando em consideração apenas sua causalidade e não o seu

sentido. Mannoni (1992) complementa ainda que, um lapso, sem

atribuição de sua significação, resulta em inquietação, enquanto, revelado

o sentido, traduz-se em riso.

Para nos familiarizar com sua teoria e fundamentar sua extensão à

teoria de liberação de energia, introduz uma espécie de riso: o de

cócegas. Afirma que essas produzem um prazer ambíguo, pois, diante da

significativa dose de angústia, o riso surge como um recurso para o

sujeito defender-se, dizendo através do riso: “pára com isso, chega!”.

Com as cócegas estaria combinado o ato de defender-se e o ato de rir.

Afirma que uma característica peculiar no riso de cócegas é a inibição,

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pois se esta não se impusesse, se converteria em uma gritaria. Ilustra o

assunto com o comportamento do gato, que, frente às cócegas, finca suas

unhas e dentes, defendendo-se. No entanto, não chega a machucar

aquele que o acaricia: nesta manifestação, há a inibição da agressividade,

junto à manifestação desta.

Observamos nestes exemplos que há mais uma retenção de

inibição, do que uma descarga de excitação, como diria Spencer, equívoco

devido ao fato de reconhecer o fenômeno apenas em sua perspectiva

causal. Mannoni caminha no sentido de averiguar os significados

embutidos nos afetos psíquicos para que seja possível a reação do riso.

Enquanto o afeto é inconsciente, o sujeito não pode diferenciá-lo

entre real e imaginário, neste limiar, reconhece-o como absolutamente

real. Quando este sentimento se descola do inconsciente e passa a habitar

a consciência, transforma-se em imaginação, fantasia consciente e, com

isso, revela-se sua irrealidade, ao ponto de fazer rir.

Esta formulação teórica, significantemente complexa, é ilustrada

pelo autor: quando um adulto se disfarça de fantasma com um lençol

diante de uma criança, esta apresenta medo e efetivamente se assusta,

pois a figura diante de si para ela é real. Se ela se encoraja a retirar o

lençol, e vê que atrás daquele medo apenas há um adulto brincalhão,

aquela figura passa a ocupar o plano da imaginação. O riso da criança que

se manifesta após a descoberta é conseqüência da percepção de que,

aquele fantasma vivido como real, quando desfeito, passa a ser apenas

imaginário.

A maioria dos pacientes que submeto a tratamento

psíquico tem o hábito de confirmar rindo os

resultados da análise, quando consigo apresentar-

lhes uma imagem fiel das acepções escondidas em

seu inconsciente. E riem mesmo quando o conteúdo

do que é desvendado não justifica tal hilaridade. Isto

é uma decorrência natural do fato de que eles estão

bastante próximos do material inconsciente para

apreendê-lo quando o médico os conduz até aquele.

(Freud, 1905/2001, p. 129).

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A fala de Freud evidencia que se conscientizar do sentimento é o

requisito para poder rir deste, pois este deixa de estar submetido à

fatalidade do real, para ganhar a leveza da imaginação e fantasia. Esta

dinâmica pôde ser observada pelo autor, em um atendimento clínico, no

qual acompanhou um paciente que riu à gargalhadas no momento em que

veio à sua consciência um desejo de morte.

No tocante ao riso do meu paciente, a explicação é

mais acessível. O desejo de morte torna-se inocente

ao passar a ser consciente? Sem dúvida,

inconsciente, ele era igualmente inofensivo. Mas

muda a natureza, ou de lugar, quando se tem

consciência dele – ao ponto de fazer rir. (...) Ao se

tornar consciente, torna-se imaginário. (...) Isto quer

dizer que ele é orientado para aquele gênero de

existência que é o da fantasia consciente. (...) O

saber, em relação com o consciente, revela sua

irrealidade. (Mannoni, 1992, p. 133).

Por este fato, o estado inconsciente ou consciente de um desejo de

morte faz grande diferença, pois o que antes era vivido como uma

sensação real de desejo da morte, ao ocupar a consciência, foi

compreendido como um desejo imaginário. Com isso, adquire-se o

controle do sentimento, possibilitando a explosão de um riso. O fato de

ser “apenas fantasia” não desqualifica a descoberta: a gargalhada

evidencia que o sentido da fala liberou algo do inconsciente e que um

obstáculo foi transposto; convenhamos, não é pouco.

O mesmo paciente relata, após algumas sessões, que teve um

sonho, no qual seu pai havia falecido e ele se ocupava de suas papeladas

e negócios. Justifica seu riso na sessão anterior e anula a importância do

sonho, pois compreende que este é um reflexo de uma interpretação de

seu analista e que sem esta, nunca teria tido descabido sonho ou risada.

Mannoni (1992) compreende que sim, sua fala teve efetivamente um

efeito e como resultado a esta, o sonho figura-se como uma tentativa

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terapêutica de transformar o real do inconsciente em imaginário da

consciência. Porém, como vimos, não desvaloriza o processo psíquico de

seu analisando, pois ele efetivamente deu um importante passo. Sabemos

que um sonho, um lapso, um ato-falho ou mesmo a risada já são uma

primeira tentativa de transformar um sentimento angustiante em

imaginação e transferi-lo ao consciente:

Qualquer situação que possa provocar a angústia, ou

a cólera, ou o medo, pode suscitar o riso, se for

reconhecida como uma coisa diferente daquela em

que se acreditava antes. (...) O riso é sempre a

reação a algo hostil, assustador ou angustiante –

mas de tal modo que se possa aceitar como uma

brincadeira sem importância. Há sempre um meio de

recorrer ao riso, e este recurso desesperado se

chama humor. (Mannoni, 1992, p.135).

Para finalizar, diz que a postura séria é aquela que determina o

analista em uma posição de controle e o paciente, ansioso, não desfruta

das mesmas virtudes. Assim como Roustang (1984) havia sugerido aos

seus leitores, debruça também aos analistas a possibilidade do uso do

humor em suas atuações. Mannoni (1992) recomenda enfaticamente que

evitem qualquer espécie de relação terapêutica sustentada na rigidez e

profunda seriedade.

Abrão Slavutzky (2005) apresenta um caso bastante gracioso que

sustenta a recomendação realizada por Mannoni: conta a história de um

paciente artista, que há muito realizava sessões com diversos

psicanalistas para observar suas posturas, uma vez que contracenaria em

uma peça teatral, sendo um deles. Diante desta circulação entre

consultórios decidiu que não mais queria atuar sendo um psicanalista,

uma vez que a seu ver, estes profissionais mais se pareciam a vacas

atoladas, sempre dizendo hummm, hummm.

A história coloca em descoberto que a postura mecânica e o mugido

da vaca atolada ocupavam o cenário, assim como a postura rígida, até na

musculatura. Slavutzky (2005) afirma que este enquadre posiciona o

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analista detentor do saber e da verdade, atitude que apenas vem a

diminuir o paciente e colocá-lo em uma posição de perdedor, contribuindo

que sua baixo-estima se exacerbe.

Gilbert Diatkine (2006) parece concordar com seus colegas quando

retoma os efeitos que podem produzir-se quando, ao revés da rigidez, o

analista se apropria da potência do humor. Exemplifica sua fala, com a

ocasião em que a atenção flutuante do analista depara-se com uma

expressão de duplo sentido, característico da formulação humorística, por

parte do paciente. Enfatiza apenas que, para qualquer aproveitamento

desta circunstância por parte do analista é fundamental haver uma

disponibilidade para tal. Neste caso:

Ocorre no analista uma suspensão de repressão que

lhe permite ver, de um só golpe, lembranças do início

da sessão e do começo do tratamento, elementos de

sua análise pessoal, fragmentos da teoria e ainda

uma antecipação do que acontecerá se ele se calar

ou se ele intervir. (Diatkine, 2006, p. 07).

Miriam Debieux (2007), em sua prática na clínica evidencia confiar

nos benefícios provenientes do uso do humor: contextualiza sua fala em

um cenário que encoraja o analista a utilizar-se do humor na prática

psicanalítica. A realidade social é detalhadamente descrita pela autora

para que, ao fim desta descrição, possamos identificar de que forma o

humor traz contribuições. Vamos lá.

Situa o sujeito inserido em uma sociedade democrática conquistada

e instaurada já há décadas, que promete direitos políticos e sociais para

toda a população, porém que, infelizmente, traduz isso por um alto grau

de ilusão nesta premissa. Afirma que tal discurso igualitário provoca

efeitos nocivos à população que, diferentemente do que foi prometido,

está excluída socialmente e, além de não ter acesso aos equipamentos

que a sociedade diz disponibilizar, é privada de se legitimar de sua

condição. Isto é, o desamparo discursivo e o convite a sustentar-se em

uma promessa igualitária que não ocorre, faz com que os sujeitos não se

apropriem de sua realidade, mas calem-se diante da injustiça e da

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mentira e, com isso, não há reivindicação, não há indignação, não há

subjetividade, não há discurso. Com pressa, a autora questiona: como

daremos voz para que essas demandas ganhem contornos e se

aproximem do sujeito? Como dar-lhe a possibilidade de construir a

dimensão do sujeito como alguém que sonha, deseja e existe, o que se

torna possível através da escuta, da apropriação de si?

Debieux, em sua fala, volta-se para a figura do analista e identifica

que o encontro com o outro, muitas vezes em condições exultantemente

miseráveis e impensáveis ao estrangeiro, causa a resistência deste

analista que se vê diante de um sujeito com faltas concretas e simbólicas

que jamais pensou conhecer. A posição de total desasistido do paciente

assusta o analista, que se afasta pela dificuldade de escutar o outro como

semelhante. Interessante destacar que, a posição de estrangeiro na qual

se localiza o analista é aquela que pode criar um distanciamento e

dificuldade de acesso, mas também é o que permite que a questão trazida

pelo paciente seja vista e escutada pelo estrangeiro, justamente pelo que

está de fora e alheio. Possibilita que surjam perguntas e inquietações,

através das quais, o que é apresentado como pulsão de morte, no

processo da análise, caminhe a tornar-se vida.

A construção de uma relação que vá além desta diferença não é

imediata, reforça a psicanalista, solicitam-se novas posições diante da

ordem do poder. A posição fálica do analista que tudo tem e tudo pode

aos olhos do paciente, caso se mantenha, apenas reafirmará a condição

de inferioridade e de vazio do paciente, reforçando a dura realidade da

desigualdade. A analista abre mão deste prestígio, de poder e do saber

para que o outro possa comparecer, para que sua dor possa se

transformar e produzir algum efeito.

A disponibilidade da escuta, possível na clínica psicanalítica ou no

contexto institucional, inaugura a possibilidade de que o sujeito seja

inserido no campo simbólico. Neste, torna-se possível descolar-se do

campo das necessidades básicas, para reconhecer-se como sujeito

desejante, usuário do recurso lingüístico, este que lhe permite refletir e

falar de suas angústias e faltas. Recomenda que o analista não se intimide

em funcionar como espelho deste paciente, que o ajude a construir os

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elos, dar-se valor, espaço e palavras para que possa se apresentar. A

riqueza de detalhes nos faz compreender o circuito social descrito,

entretanto, qual é a contribuição do humor?

Esta fala de Debieux (2007) foi extraída na ocasião em que

lecionava na graduação de psicologia, cuja leitura sugerida, esta que daria

sustentação para compreensão dos efeitos do humor se encontravam no

capítulo Frente e verso: o trágico e o cômico na desconstrução do poder,

de Joel Birman (2005). Reconhecendo a estratégia da professora em sua

recomendação bibliográfica, retomaremos o que Birman tem a nos dizer.

Neste, o autor afirma que a atmosfera do bom humor tem efeitos

positivos nas práticas psicoterápicas e que nas circunstâncias de paralisia

da ordem psíquica e de inflamada escassez, pode ser uma via de acesso

possível para o analista que busca guiar seu paciente no atravessamento

do campo das necessidades básicas para o campo da elaboração simbólica

constituinte do sujeito.

Com o deslocamento das defesas, novos canais se abrem para

circulação do discurso, pois a presença do humor na condução da

psicoterapia esvazia o teor fatal e dramático que os pacientes costumam

narrar seus males e impasses psíquicos, reconhecendo o devido tamanho

desses. Afirma que “é a desdramatização narrativa que se impõe de forma

a retirar momentaneamente a intensidade negativa que alimenta a

resistência, possibilitando então a melhor circulação psíquica das

experiências dolorosas” (Birman, 2005, p. 89).

A possibilidade de rir de si mesmo, seja por um movimento interno

ou devido a um comentário chistoso da parte do psicoterapeuta, é o

indício de uma mobilização, a tal ponto que as peças do tabuleiro

começam a se modificar, abrindo novas possibilidades na experiência

analítica. O paciente que se propõe a caminhar sobre os meandros de sua

psique portado de bom humor, afirma o autor, se conduz bastante melhor

na experiência analítica do que aquele que é excessivamente sério, se

aprisionando em sua severidade. Isto, pois, através do humor na

condução da psicoterapia, torna-se possível ao sujeito “desdramatizar”

sua própria condição.

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O humor tem a potência inequívoca de esvaziar o

estilo de seriedade e de fatalidade a que os pacientes

costumam atribuir aos males que os acossam, de

forma a afirmá-los de forma mais escarnada e

tangível (...) para se aproximar dos territórios

desencantados do horror e do registro trágico do

terror, é preciso uma postura do bom humor que nos

possibilite circular pelo campo do não-familiar com

certa familiaridade. (Birman, 2005, p. 89/90).

Vejam que curioso: novamente, o humor é recomendado e

contraposto com a postura rígida e séria, como fizeram Roustang (1984),

Mannoni (1992), Slavutzky (2005) e Diatkine (2006). Porém, com Birman

(2005), aprofunda-se o aspecto da onipotência e seriedade, por parte do

analisando, como impossibilidade de se reconhecer com maior leveza

diante de suas marcas psíquicas dolorosas. Diz o autor que, através do

bom humor, se torna possível esvaziar o teor fatal e dramático de suas

próprias vulnerabilidades e falhas. Apropriando-nos das diferentes

contribuições dadas pelos autores citados acima, verificamos que quando

a relação terapêutica é permeada pela presença humorística, verifica-se

uma maior aproximação entre o paciente e o psicoterapeuta, uma vez que

o analisando fica mais desarmado e descolado de suas amarguras e, o

analista mais livre em sua atenção flutuante.

Abrão Slavutzky (2005), em O precioso dom do humor, apóia

Birman a respeito dos efeitos do humor na prática psicanalítica, como

possibilidade de desdramatizar a condição humana. Diz que o

esvaziamento da relação dramática consigo próprio é o que permite ao

sujeito se defrontar de outra maneira com o que há de horror em sua

experiência psíquica, sendo este o paradoxo imposto e sustentado pela

experiência analítica.

Mas não é tão simples: em sua formulação, levanta a hipótese pela

qual se explicaria a grande resistência de alguns analistas para se

apropriarem do humor em suas práticas. Acredita que sustentar-se nas

teorias e práticas psicanalistas, nos conceitos e nos parâmetros que a

contornam, garante aos analistas um espaço definido e seguro para atuar

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e existir. A partir dele, o que pensar, falar ou manifestar está pré-definido,

diminuindo o risco e garantindo a aceitação. O enquadre, a formalidade da

formação molda a prática delineando a identidade do psicanalista. A única

falha desta inflexibilidade e rigidez é o muito ou tudo que se perde com

ela: este enquadre constitui-se a partir da obsessiva formalidade em que

os psicanalistas são formados e deformados. A convicção diante dos

benefícios da escolha pelo humor faz com que o caminho mais

convencional seja interceptado pela alternativa de que o humor e a

análise possam caminhar de mãos juntas, mesmo que em situações

difíceis.

Ungier (2005), por outro lado, entusiasma seus leitores com o

modo em que inicia seu capítulo, Vende peixe-se: uma clínica com humor,

no qual introduz uma novidade: a perspectiva do humor ser reconhecido

como objeto transicional. Para iniciar, deleita seus leitores contando como

ela, pessoalmente, se sensibilizou com a emergência do humor e quais os

efeitos que verifica na prática clínica. Diz ela:

O humor surgiu espontaneamente em meu trabalho

como fruto inesperado da relação transferencial. Sua

virtude reside em não pretender concluir, doutrinar,

encerrar o discurso; ao contrário, abre, para este,

novas vias de fluxo. Não raro, venho recorrendo a

poemas, provérbios ou jogos de palavras como

intervenções (p. 234/237).

Legitima, com seu depoimento, o declarado uso do humor em sua

prática clínica, ao partir do princípio de que a emergência do humor, na

relação transferencial, cria outros circuitos pulsionais, como alternativas

ao gozo sintomático. Teoriza que o uso da ferramenta humorística na

clínica psicanalítica pode ser pensada como objeto transicional. Para

acompanharmos seu raciocínio e compreendermos de que forma esta

dinâmica se desenvolve e de que forma o humor pode ser entendido como

tal, retoma brevemente Winnicott, quando introduz a noção de brincar

que se estabelece entre mãe e bebê.

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A presença materna se oferece como continente frente a excitações

e estimulações que afetem o bebê. A brincadeira que se estabelece entre

eles inaugura o terceiro espaço, isto é, a cultura e o terreno de

simbolização. Este ambiente possibilita que o pequeno eleja algum objeto,

gesto ou som que o possibilite criar uma ponte entre si e o outro, e que

possa recuperar este elemento na transição que vai da absoluta

dependência para a independência. O uso deste objeto transicional

testemunha a jornada no tempo e no espaço em que se processa a

separação e, o resgate ao objeto na falta materna, simboliza a união da

dupla. Entretanto, de que forma o humor seria um objeto transicional do

encontro analista e analisando?

Kupermann (2005) apresenta a idéia de que a liberdade e a alegria

apenas são possíveis de serem alcançadas através do brincar: para que

este exercício torne-se possível na clínica “é necessário que o analista

possa bascular entre a posição de suporte da ilusão e a de sobrevivente

de sua destruição deste lugar, acolhendo, sem ameaça de abandono e

retaliação, a agressividade e a onipotência de seu analisando”

(Kupermann, 2005, p. 44). Como complementa Augier (2005) quando diz

que, o humor e a possibilidade de brincar com as palavras, são uma

criação desta dupla e que, quando presente, oferece continente para as

demandas pulsionais suscitadas. Em suas palavras:

Neste encontro, analista e analisando produziram, no

espaço potencial da relação transferencial, um

cardume de idéias que ganhou sentido a partir do

anuncio arrevesado, promotor de uma narrativa

original para a história do paciente. As palavras

tomadas, por ambos, como um objeto que simboliza

a distância entre um e outro não tinham por

finalidade desvendar o passado, e sim, reinventá-lo.

(p. 244).

Poderíamos assim, supor que a presença do humor apresenta-se

como possibilidade para que analistas façam interpretações? Diríamos

que sim, existem algumas convergências entre ambas as formas

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discursivas. A primeira delas é que interpretação compartilha com o

humor a característica de que a explicação anula seu efeito, isto é,

qualquer tentativa de traduzir por outras palavras, extingue seu efeito.

Assim como, a fugacidade da permanência de seu enunciado na memória,

bem como seu anonimato, o seja, o desvanecimento de seu autor. A piada

está estruturada como uma formação ou expressão inconsciente, assim é

por si mesma uma interpretação, na medida em que há um dizer, alguma

coisa mais (sobre o recalcado) conotada no denotado ou efetivamente

dita. Está claro desse modo, que a interpretação ou o humor sem a

“escuta” do outro, não existem.

Surgem algumas inquietações: será que o único destino possível do

humor é o riso? Ao procurar um analista, devemos solicitar: “O sexo do

sujeito, abordagem ou local de atendimento não tenho preferência, mas

faço questão de que ele seja ao menos engraçado?!”

Não estamos propondo que um analista deva ser

engraçado ou divertido, mas que outorgue à piada -

não importa de quem provenha na circulação do

dialogo analítica – o status de interpretação,

elemento principal da intervenção analítico. (...) A

piada pode ser considerada como um modelo de

interpretação analítica, não porque esta deva

necessariamente fazer graça, mas sim porque opera

e obtém sua eficácia, pelo seu efeito a posteriori.

Nem tanto pelo que diz, mas pelo que dá a entender;

pela forma inequívoca de seu texto mais do que pela

explicitação inequívoca do seu sentido. Ilumina-se

alguma verdade, esta surgirá depois, sendo seu

caráter mais o de uma tirada que o de uma aplicação

de um saber “sério” preexistente. (Pereda, 2005, p.

125/126).

Esclarecida a questão referida aos analistas, seja diante de suas

ressalvas, inquietações ou incontestáveis recomendações, para concluir,

esboça-se a seguinte provocação: será que o bom humor pode se

incorporar à experiência analítica?

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Podemos pensar no humor como destino, segundo o qual, o final de

uma análise bem sucedida aponta como um elemento onipresente. Como

vimos, não necessariamente ao riso, mas a certa possibilidade humorística

na vida. Roustang (1984) tem algo a nos dizer quanto a este horizonte do

percurso da análise bem humorada:

Caso consigamos ao final de uma análise sorrir não

apenas, como no começo, de um cantinho de nós

mesmos, mas de tudo que nós conhecemos e

especialmente das implacáveis repetições,

poderíamos então dizer que a vida se modificou.

Teremos saído do trágico para entrar em uma

seriedade aliviados por uma zombaria simpática. (p.

31/32).

Entretanto como fazê-lo? Será que os analistas contagiam seus

analisandos com a epidemia do humor? Claro que a idéia não é contagiar

o outro com humor, “olha como sou bem humorado, logo você vai

aprender, vai se identificar com isso e também poderá fazê-lo”. Inclusive,

pois, não se apresenta a todo o momento e com todo analisando. O que

não exclui que se vitalize em certo entusiasmo, que a presença do humor

enalteça a psicoterapia e circunscreva sua potência criadora e renovadora,

sendo um bom calçado para percorrê-la.

O humor remete à fonte pulsional na linguagem, que possibilita

transitar entre os vários registros da palavra e da psique. No

compartilhamento clinico entre analista e analisando, observa-se que

existe uma espécie de gratuidade no humor, uma vez que ele não se

apresenta "a propósito", de forma calculada propriamente dita.

Manejado cautelosamente, pode ser proveitoso para o analisando,

uma vez que o humor denota uma atmosfera de acolhimento, constitui

uma relação especial com o superego. O humor aparece como esperança

de outra possibilidade, como o pai que acompanha o filho e endossa seus

desejos, lhe dizendo que as coisas podem ser diferentes e menos

amargas. Por outro lado, se mostra favorável ao exercício do analista, ao

qual se pressupõe uma escuta flutuante, que acolha os deslocamentos, as

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condensações, as metáforas e as metonímias, que se possa transitar do

inteligível ao sensível, do intelectual ao afetivo, do consciente ao

inconsciente. Talvez seja o humor, a maneira mais evidente deste

funcionamento, na perspectiva do analista como na do paciente.

Quando há humor, há a possibilidade de rir de si próprio, sendo

que, no humor analítico compartilhado, ambos riem. O analista ri de si

mesmo, talvez até do analisando, o mesmo na inversa, deste modo não

há a pretensão de onipotência e de superioridade. A presença do humor,

tanto na atenção flutuante como no espaço analítico, mesmo que não seja

risível nem engraçado, pode ser compreendida segundo o conceito de

acolhimento. A emergência do humor na clínica favorece que os agentes

ocupem lugares subjetivos diferentes, que possam se olhar de outros

pontos de vista.

É evidente que, na leitura dos consistentes argumentos

apresentados pelos autores, encontramos uma aceitação quanto à função

interpretativa do humor. A escassa produção sobre esta temática, que

ocorreu nas últimas décadas, foi retomada pelos psicanalistas

contemporâneos com grande entusiasmo. No desenvolvimento teórico,

alguns deles trouxeram casos clínicos ilustrativos e metáforas que em

muito contribuíram para nossa compreensão, em que, após um período de

recalque, o riso se apresenta na cena.

Uma vez tendo isto constatado, no próximo capítulo teremos o

privilégio de nos aprofundarmos em alguns fragmentos clínicos, no intuito

de que nossa presença nos meandros do tratamento analítico seja ainda

mais próxima, possibilitando ou não a aplicação dos conceitos teóricos

apresentados pelos autores e favorecendo a observação dos efeitos

humorísticos na vida dos sujeitos.

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3.3 - Vinhetas Clínicas

No capítulo, A clínica bem humorada, pudemos transitar entre os

diferentes espaços analíticos, seja na poltrona do analista ou no divã do

analisando, diga-se de passagem, uma dinâmica absolutamente coerente

com a temática do humor. Os diferentes autores convidados para esta

conversa nos iluminaram com suas singulares reflexões e versões do

mesmo. Pudemos inclusive, delinear com maior nitidez, de que forma o

humor se faz presente para cada um destes analistas. A intrínseca

articulação entre humor e riso foi desvendada, segundo a fundamentação

de que o humor está mais além do que uma piada, poderíamos dizer que

é um estado de espírito.

Para se ter um maior aprofundamento da forma em que o

desenvolvido teoricamente ocorre na prática, conversaremos com alguns

autores que abordam a questão. Resgataremos fragmentos de casos

clínicos apresentados na bibliografia utilizada na pesquisa, assim como os

obtidos diretamente em entrevistas com analistas. A partir destes,

poderemos realizar análises que enriqueçam e afinem nosso olhar em

relação aos efeitos do humor, diante do que viemos desenvolvendo até o

momento.

Maria Stela de Godoy Moreira (2006) assinala, em seu texto Função

integrativa do humor, que a aplicação do humor na clínica psicanalítica é

uma proposta controvertida para muitos, pois este recurso oferece uma

grande amplitude de efeitos para os sujeitos. Diante desta constatação, a

autora afirma que muitos psicanalistas operam essa ferramenta de

maneira cautelosa ou até mesmo cética, no temor de despertar o oposto

do que desejam, sendo esta, uma rigorosa resistência. Apóia a aposta de

Slavutzky (2005), segundo a qual se acredita que profissionais enrijecidos

diante às exigências do enquadre hesitam em esboçar risos e muito

menos gargalhadas, temendo contaminar ou prejudicar a transferência,

perdendo com isso, a possibilidade de se aproveitar dos positivos efeitos

do humor.

Entretanto, a psicanalista acredita que a utilização do humor na

clínica “cria condições necessárias à reorganização da constelação psíquica

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do paciente, porque modifica o teor das identificações introjetivas e

proporciona ao analisando novas possibilidades de relação objetal”

(Moreira, 2006, p.95). Identifica em sua prática clínica que os efeitos do

humor evoluem como se um nível emocional mais profundo tivesse sido

alcançado, em que, quando o riso é despertado, um tipo de ativação

intrapsíquica é ativado, podendo permanecer até a próxima sessão.

Apresenta em seu texto a seguinte vinheta clínica:

Ichtus, de 19 anos, queixa-se de dificuldades para compreender o

que lê e de sua memória fraca. Não consegue se expressar: observo

pausas freqüentes em que perde o fio da meada, as frases são

incompletas e reticentes. Somente no decorrer da análise consigo

organizar os dados esparsos de sua história.

Ichtus desistiu de estudar e passava os dias deitado, no quarto,

sem ler e sem ouvir música. A única coisa pela qual se interessava eram

os peixes, estando corretamente informado sobre os nomes científicos,

dados de alimentação e procriação. Desde nossos primeiros encontros,

fala com uma voz monótona sobre tópicos fragmentos que não seguem

qualquer lógica ou seqüência temporal.

Durante o trabalho se permitia sentir de tal maneira desconectado,

que eu me sentia confusa e sonolenta, como se também estivesse isolada

e submersa em águas profundas. Ichtus não respondia às minhas

interpretações. Depois de dois meses de análise ele se tornou ainda mais

quieto, até que tivemos somente sessões silenciosas, nas quais ele

permanecia fora de contato, imóvel e rígido. (...) [Em uma das sessões],

Ichtus veste uma camiseta da mesma cor que a blusa que estou usando.

Essa coincidência me fez lembrar um tipo de peixe colorido que eu havia

observado numa loja perto do meu consultório, chamado “cromato-pélvis”

e considerado muito bonito devido à sua pélvis vermelha. Depois de

quarenta minutos de silêncio, uma imagem insólita surgiu na minha

mente: parecemos dois peixes mudos num aquário. Se eu lhe

“emprestasse” a minha cabeça, será que ele falaria comigo? Decidi então

empregar esse recurso bem rudimentar, metonímico, para me dirigir a ele

e disse sorrindo:

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- Parecemos dois “cromato-tórax”, com nossas camisas vermelhas.

A ilustração deste caso mostra-se especialmente rica para o

encaminhamento de nossas reflexões, uma vez que traz em si diversos

aspectos dos quais estamos abordando: uma das primeiras características

que se destaca, quando vamos analisar mais profundamente o caso, é que

a analista, para elaborar seu chiste, apropriou-se de uma temática que

estava absolutamente articulada com os parâmetros transferenciais

daquela exclusiva relação terapêutica: a linguagem e os interesses que

nela circulam. A produção do comentário humorístico surgiu como produto

da construção daquele encontro e dificilmente se poderia aplicar a outra

circunstância, ou mesmo a outro paciente. O que enfatizo é que a piada

encontrou pertinência naquele específico contexto, isto é, a iniciativa para

realizar o comentário surgiu de uma “coincidência”, devido ao fato de

estarem ambos com camisetas vermelhas, o que lhe remeteu a lembrança

dos peixes com similar pélvis. Sua fala considerou e reconheceu o sujeito

que estava diante de si, não era um comentário qualquer, mas sim, uma

piada elaborada, alinhada com o cenário e suas personagens.

No relato, é interessante notar que a iniciativa de apresentar este

chiste surgiu da inquietação da própria analista diante do constante e

interminável silêncio. Surge, assim, da analista em direção ao analisando,

entretanto, em sua formulação, ela está absolutamente implicada, isto é,

a piada designa-se a dois peixes no aquário, e não apenas um, não

apenas a uma referência ao paciente. A analista, aparentemente, não

teme mergulhar no aquário e ocupar a mesma cena que seu paciente. Sua

intervenção não aparece descolada e desconectada da situação que se

evidencia, pelo contrário, ela comparece em sua interpretação,

poderíamos sugerir, que ela se propõe estar “em outro lugar”, rir de si,

para então, também oferecer outro lugar a seu paciente. A posição séria e

inflexível, combatida por alguns dos autores que lemos anteriormente,

aqui não se configura, uma vez que ela se dispõe “se molhar”, “sair do

terreno seguro” e provocar algum movimento na cena paralisada. Esta

postura coincide plenamente com o que André Comte-Sponville (1995)

apresenta no livro Pequeno tratado das grandes virtudes: “o humor ri de

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si, ou do outro como de si, e sempre se inclui, em todo o caso, no

disparate que instaura ou desvenda” (p.232).

Finalmente, como ela bem diz, aplicou um recurso bastante

rudimentar, uma divertida brincadeira com as palavras, dizendo cromato-

tórax, ao invés de cromato-pélvis: “na metonímia, a base para a

substituição não é a semelhança subentendida entre o sentido próprio e o

figurado; é resultado da analogia e do deslocamento entre palavra em

uma relação seqüencial, pela substituição de sons ou imagens adjacentes

ou contíguas” (Moreira, 2006, p. 98). É possível levantar a hipótese de

que a intervenção bem humorada teve como efeito abrir o campo

simbólico e permitir outras associações. Diante da leve modificação de

palavras, a analista imanta seu paciente, uma vez que reconhece a

presença da pélvis entre eles. A interpretação assume um teor vital.

Supomos, então, que a leve modificação das palavras, pode ou não,

ter causado algum efeito. Aliás, como será que o paciente reagiu à piada?

Será que gargalhou, será que se ofendeu, será que se manteve

estagnado? Será que a analista quando arriscou sua piada previa a

reação? Poderemos conferir no trecho seguinte:

Apesar de Ichtus permanecer em silêncio, pude observar, algumas

semanas mais tarde, que minha intervenção foi eficiente (...) pois

propiciou o início de uma conversa e, mais tarde, de um sonho. (...) Uma

coisa dita hoje, pode ter efeito uma semana ou meses depois. Fragmentos

desse momento, dispersos no espaço, surgem numa sessão posterior em

que descreve ver, na sala onde estávamos, peixes com cara brava e

cheios de dentes grandes na boca aberta. (...) Mais uma vez tomo a

palavra e relembro o que ele já me falou inúmeras vezes sobre o cromato-

pélvis, que, quando assustado, “come os filhotes”. Então ele chega à

conclusão: “é necessário transferir o pai para outro aquário”.

Uma estrondosa risada não pôde ser observada, nem mesmo uma

aparente ofensa por parte do paciente. Mas, certamente, não permaneceu

a paralisia: a analista, ao averiguar os efeitos de sua intervenção, observa

que os medos de seu paciente diminuíram, ele retomou a fala, contando

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que sua mãe e ele tiveram que fugir da casa de seu padrasto, pois

temiam pelas suas vidas.

Poderíamos dizer que o paciente respondeu à piada? Que ela teve

efeitos sobre ele? Seria difícil negar. Talvez não tenha sido com uma

risada, manifestação mais comum e não tenha sido imediato. Mas o efeito

é explicito. A noção temporal, neste paciente, não pode ser medida pelo

tempo cronológico e, este fato também foi reconhecido pela analista,

quando ela avalia que sim, sua piada teve efeito, apesar da resposta

apenas chegar após algumas sessões. Neste contexto, o que seria então o

humor?

Despropósito que estabelece ligações entre

elementos habitualmente desunidos, inverte

deliberadamente uma relação entre fatos, valores ou

preposições, exagera a realidade existente até o

paradoxo ou o insólito, coloca problemas e métodos

contrários ao bom senso ou lógica. (...) Humor como

ponte ou ruptura pode ser utilizado com intuição e

sensibilidade clinica pelo analista, criando uma nova

abertura para a curiosidade e para a dúvida,

aumentando a tolerância à frustração e

desenvolvendo as possibilidades do pensamento

(Moreira, 2006, p. 94).

A seguinte vinheta clínica, recolhida a partir de entrevista com um

psicanalista, ilustra brilhantemente os efeitos do humor enquanto potência

de provocar um distanciamento da situação dolorosa e possibilitar novos

olhares sobre a mesma:

Tenho uma analisanda, uma jovem mulher, que passou por perdas

fortes, sobretudo a morte do pai quando tinha quatro anos, além de

outras perdas importantes na família. Essas, que marcaram a mãe, o

próprio pai, enfim, ela tem uma história familiar bastante trágica e traz

um fundo melancólico muito forte. Ela inicia todas as sessões com a

apresentação de uma dor muito intensa. Ela tinha um projeto profissional

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para sua vida, que implicava uma prova, e nesta fracassou. Em várias

situações da vida ela se vê fracassada. Um fracasso cultivado de um modo

muito cruel.

A paciente fala dessa dor, que traz um fundo melancólico forte. Na

relação com ela, quando o humor emerge, porque isso não é uma coisa

deliberada, não é uma técnica que eu digo – “vou usar o humor, vou ser

engraçadinho agora”. Entretanto, quando se apresenta, a analisanda

consegue ficar um pouquinho mais nômade, sair de uma posição

totalmente unívoca, consegue abandonar por algum tempo a versão

construída do fracasso.

Devido aos rigores éticos psicanalíticos quanto ao sigilo dos relatos

de casos clínicos, nesta temos uma menor amplitude de detalhes,

entretanto, igualmente valiosa. Este vinheta nos contempla com uma

característica que extensamente desenvolvemos na parte teórica, porém

que ainda não havia sido explicitamente apresentada na prática. Esta se

refere ao descolamento e distanciamento que o humor propõe em

situações que há uma paralisia na posição dramática e uma atrofia na

elaboração simbólica do sujeito.

Como relata o analista, “ela inicia todas as sessões com a

apresentação de uma dor muito intensa”, a breve descrição nos evidencia

que esta jovem teve um percurso marcado por intensas dores e perdas. A

dimensão traumática que acomete os sujeitos e que vem a ocupar a

completude do espaço psíquico impossibilita que outros sentidos sejam

atribuídos, ao reconhecer estritamente o doloroso. A paralisia da ordem

psíquica é desorganizadora, justamente porque o sujeito não consegue

contorná-la através da palavra.

A escuta e a palavra inauguram a possibilidade de uma dialética, ao

se construir uma necessária distância da emergência. A busca pela análise

é em si, uma grande predisposição para que um novo circuito psíquico se

instale, para tornar-se possível o resgate da subjetividade e a integração

do indivíduo. Entretanto, é necessário um empenhado trabalho de ambas

as partes para que o relato dramático possa ser reconhecido e substituído

por outros meios de enfrentamento. Apesar de não descrever de quais

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formas, explicitamente, o humor se apresentou, o analista afirma que, a

partir dele, a paciente pôde se imaginar em outros lugares que não os

fundadores de sua condição sofrida. Mesmo que por apenas alguns

instantes, o traje dramático foi substituído por outro melhor humorado e

vital.

Quando o humor se apresenta “a analisanda consegue ficar um

pouquinho mais nômade, sair de uma posição totalmente unívoca,

consegue abandonar por algum tempo a versão construída do fracasso

(...) cultivado de um modo muito cruel”. A própria interpretação embutida

na fala do analista, já é em si, uma afirmação do que vínhamos

desenvolvendo teoricamente, quanto à possibilidade do humor, inverter,

subverter e transformar a realidade estagnada e concreta do sofrimento.

Com o descolamento das defesas, novos canais são abertos para a

circulação do dircurso, para o reconhecimento de outras possibilidades de

ser, de estar e de se relacionar consigo próprio e o mundo que o circunda.

A “desdramatização discursiva”, termo utilizado por Birman (2005),

esvazia o teor fatal da amargura, provoca um desengano na paralisia da

ordem psíquica e da escassez simbólica. A capacidade de ver a porta de

saída da posição dramática, mesmo que pelo rápido intervalo de uma

graça ou de uma risada, é o ‘estopim’, é o começo fundamental para

entrada em outra posição psíquica. Rir de si mesmo é por si só, o

certificado de que a ordem simbólica foi mobilizada. Identificamos neste

relato, a potência libertária conferida ao humor, na qual, o sujeito ganha

asas, se apropria do discurso e pode se desatar das rígidas amarras da

posição psíquica imposta. Suas verdades absolutas podem ser refutadas e

revistas. Através disso, sua visão pode se estender para além do

estabelecido.

A importância da contextualização da piada ou do comentário

humorístico também foi destacada pelo psicanalista, quando diz: “não é

uma coisa deliberada, não é uma técnica que eu digo – vou usar o humor

- vou ser engraçadinho agora”. Como vimos com Moreira (2006), a fala do

analista deve estar encadeada, ou até mesmo enraizada, no singular

universo de cada analisando. Não pode ser aplicada invariavelmente,

descolada de seu contexto. O impacto do comentário, os múltiplos

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significados que podem ser criados, reinventados e renovados, assim

como os deslizamentos de sentido, mais se potencializarão, quanto mais

proximamente estiverem relacionados com a vida psíquica do paciente,

assim como ocorre em qualquer interpretação do analista.

A predisposição por parte da paciente diante da busca pela análise,

mencionada há pouco, é fundamental para que a fala do analista possa

atravessar a barreira da resistência e penetrar a psique da analisanda.

Supõe-se que muitas são as tentativas de interpretações, nem todas

recepcionadas ou compreendidas pelos pacientes. Inclusive, pois, estar

em análise não é o suficiente para provocar movimentos na regulação

psíquica. Faz-se necessário uma implicação no processo. O desafio é posto

também diante do analista, caso este considere que, lançar

despropositadamente interpretações, fará com que aquele que se recosta

no divã, caminhe em suas elaborações.

Ambos os casos apresentaram os aspectos fundamentais para que

uma pertinente análise da inferência do humor na vida psíquica dos

sujeitos seja realizada. Apesar de nos sustentarmos a partir da

observação que os analistas fazem de seus pacientes, seus relatos, nos

permitem fazer as articulações entre a conceituação teórica do humor e

sua incidência na prática. Ao focar alguma das intervenções dos analistas

e respostas dos pacientes, pudemos identificar o que vínhamos apontando

teoricamente até aqui.

O desafio que é proposto para adiante é afinar a ótica dos ditos

humorísticos aos outros ambientes pelos quais os indivíduos circulam, isto

é, nos distanciaremos do setting clínico, para averiguar quais são os

reflexos dos recursos humorísticos no cotidiano da sociedade e de seus

habitantes.

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3.4 - O humor no cenário social

Navegar pelos meandros da clínica psicanalítica trouxe-nos alguns

indicadores da forma em que o humor se faz presente na vida dos

sujeitos, assim como um delineamento mais nítido de seus efeitos.

Pudemos avançar alguns passos diante da interrogação desta pesquisa,

assim como o aprofundamento das fundamentações e recomendações

para sua presença na relação terapêutica, espaço este, especialmente

fértil e privilegiado para a discussão desta temática. A observação da

dinâmica do humor é favorecida no setting clínico, uma vez que neste há

a implicação de um processo percorrido por esses dois tripulantes,

analista e analisando, que nos traz significativos esclarecimentos e

contribuições diante de nossa inquietação em colocar uma lupa em nossas

reflexões. As formalidades do enquadre, a relação estreita entre as partes

e o ambiente íntimo e preservado que se constitui, faz com que se torne

mais acessível isolar as demais variáveis e afinar a ótica do humor.

Entretanto, faz-se necessário uma ampliação de horizontes para

tornar-se possível navegar por outros mares e conhecer outras belezas.

Queremos saber como o humor atua na vida dos indivíduos; para tal, nos

aproveitaremos do abastecimento construído a partir das reflexões no

ambiente acolhedor da clínica psicanalítica, para então, verificar seus

efeitos nos outros âmbitos da vida dos sujeitos. Ou seja, a proposta é

que, apoiados no que descobrimos até o momento, nos dediquemos a

verificar como este ocorre em outros ambientes sociais e culturais pelos

quais os sujeitos circulam.

José Carlos Calich (2006), no artigo A psicanálise bem temperada:

humor, estilo e metáfora no processo psicanalítico, afirma que “o riso

social raramente resulta numa busca ou promove um novo significado. Ele

instala uma atmosfera de acomodação, de partilhamento, de ação - jogos,

abraços, beijos, sexo -, da vivência do mito cultural, da mentalidade

grupal.” (p. 83). É sua opinião, então, que o riso partilhado em grupo, no

convívio social, através da troca de piadas e gracejos, não tem uma

função de elaboração, mas serve mais propriamente à descarga e à

diversão. Já Slavutzky (2005) no texto, O precioso dom do humor, diz que

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“o humor abre portas, corações e mentes. Muitas aproximações sexuais

começam com uma frase engraçada, que podem despertar um sorriso (...)

[O humor] põe água na fervura das paixões – enfim, só não é um estraga

prazeres, pois goza com inteligência de tudo” (p. 219).

Esta discussão nos apresenta um novo cenário, uma vez que, a fala

destes autores está contextualizada no ambiente social e abordam a

temática do humor inserida nas relações sexuais e amorosas, no

compartilhamento de afetos, nas relações profissionais e demais inter-

relações sociais. Situamos-nos, nesta etapa, para além do setting clínico;

estamos na sala de estar da casa de família, na cama dos amantes, na

conversa de bar entre amigos, nas brincadeiras entre pais e filhos e

demais momentos da realidade humana. Uma vez bem acomodados neste

novo cenário, retomo a pergunta desta pesquisa: quais são os efeitos do

humor na vida das pessoas?

Uma vez que desfrutamos do ambiente social, convoquemos, para

atuar como mediador desta reflexão, uma personagem que vem ganhando

ímpar destaque, o humorista. A escolha por este convidado não é

aleatória, vejamos o que Biman (2005) tem a nos dizer:

Os piadistas e os humoristas são tão valorizados por

todos nós, pois conseguem não apenas desarmar os

espíritos numa situação considerada excessivamente

grave, como também nos revelar, num breve

comentário, a dimensão cômica daquilo que quer se

apresentar como sério. (p. 86).

Quem são os humoristas na sociedade de hoje? São aqueles que

captam as fragilidades dos homens, que os apresenta para o debate como

grandiosos e miseráveis, sofredores e gozadores, amados e repudiados,

desejando o infinito e caindo no mortal. O humorista é aquele que

contempla as contradições humanas, podendo rir delas em vez de chorar.

“Num mundo com falta de teses, é ele, o humorista, que não advoga nada

e está sempre a caminho, que traz à tona nossa precariedade e o valor da

dúvida” (Slavutzky, 2005, p. 206/207).

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Reconhecidos como sábios de uma sociedade perplexa e absurda, os

criadores humorísticos, com suas críticas bem humoradas, fazem com que

a pompa e a superioridade pareçam frágeis e nuas. Com isso, aliviam os

contornos rígidos e tensos de uma situação que nos parece grave e nos

revelam a dimensão cômica do que aparentemente é unicamente sério.

Rir, no cenário social, possibilita ironizar personagens e acontecimentos

da vida cotidiana.

Gley Silva de Pacheco Costa (2006), no texto A psicanálise diante

do trauma, do humor e da esperança, reconhece que, mais além de seu

objetivo de fazer graça e divertir aos demais, o humor tem como objetivo

convencer que a realidade é suportável, isto é, de que é possível

sobreviver às adversidades da vida. Com ele, as vicissitudes da existência

se tornam mais toleráveis. O humor é, segundo ele, uma expressão da

criatividade que tem como objetivo mitigar o sofrimento. Destacamos

desta frase, a referência que o autor faz a uma dose significativa de

angústia, de sofrimento a ser mitigado. Uma vez, situados no contexto

social, entretanto, de qual angústia estamos falando?

A cidade de São Paulo por diversas vezes tem vivido conturbações

sociais, governamentais, populares, entre outras, de grande mobilização e

entusiasmo. Para ilustração desta reflexão, destaco a apavorante situação

vivida pelos brasileiros, na qual ônibus foram incendiados,

estabelecimentos públicos invadidos por uma facção de presidiários que

manifestavam sua revolta, enquanto a população, temendo uma invasão,

se certificava se os trincos das portas estavam devidamente fechados. Em

meio ao caos, no entanto, alguém conta uma piada, ou o jornal do dia

seguinte refere-se ao fato com uma tirada humorística, o que nos permite,

submersos na angústia e insegurança, o riso de alívio e o escorrer de

lágrimas de solidariedade e desespero.

Estas manifestações emocionais, aparentemente antagônicas, nos

levam a questionar se o humor estaria vinculado apenas a um superficial

contato com a realidade, na maioria das ocasiões como mecanismo de

defesa, alienação e afastamento, ou se ele propõe uma via de encontro e

possibilidade de elaboração de angústias.

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Costa (2006) nos traz respostas, quando afirma que o recurso

humorístico nos oferece uma válvula de escape das exigências da

realidade, pois mesmo reconhecendo as imposições da lei, encontramos,

através do humor, uma brecha para ao mesmo tempo estar com ela e

acima dela. Identificamos a norma, porém sob o apelo do humor,

atravessamo-la. Nesta perspectiva, o humor se situa entre o fantástico e a

realidade, neste entre parênteses, em que se pode inventar, relaxar e

flexibilizar, o que potencializa a criatividade de outras possibilidades de

ser. A afirmação da invulnerabilidade do ego, que através do humor se

comporta em relação a si mesmo como um adulto que procura amenizar a

dura realidade experimentada pela criança, opera como um suporte à

sensação de ameaça e desproteção humana. Isto, pois o humor se vale de

uma regressão formal, um salto do pré-consciente ao funcionamento

inconsciente, com o aval do superego.

A morte, destino final de todos os indivíduos, é o momento

previsível e temido por todos nós. Basta estar vivo para morrer e esta

premissa ninguém pode negar. Mas a que nos serviria carregar esta

verdade no bolso, dia-a-dia, corroendo-nos a cada minuto a menos em

nossos relógios? O humor nos dá uma resposta pautada na pulsão de

vida, na chance de rir apesar dar amarguras, “permite um olhar sobre a

vida e a morte, o sucesso e o fracasso meio alegre e meio triste,

integrando as máscaras, construindo assim um mundo mais leve para si e

para os demais” (Slavutzky, 2005, p. 227).

Seria então, uma ilusão provisória e necessária, que nos possibilita

suspirar, mesmo que o caos não deixe de bater em nossas portas. Deixá-

lo-emos entrar e novamente poderemos nos aliar através do humor,

mecanismo moderador que, além de favorecer a elaboração dos

conteúdos, propicia ao ego recuperar sua função de continente dos

objetos internos, dos projetos e da percepção. O humor pode configurar-

se como uma única saída ao aprisionamento na própria angústia.

O humor nos poupa da fadiga de viver. Que alívio

dispor deste artifício que torna, pelo menos por um

instante, mais leve o fardo de enfrentar os reveses

da vida, o peso de calcular nossos passos, refletir

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sobre nossas escolhas e tentar prever as

conseqüências delas. (...) Relaxamos quando nos

autorizamos a pensar o impensável, sob uma forma

socialmente aceitável. Relaxamos, “entramos no

jogo” que consiste em abordar o recalcado por

atalhos surpreendentes, para em seguida

retornarmos à seriedade habitual. (Kehl, 2005, p.

53).

A autora enfatiza o precioso bem que representam os ditos

humorísticos em momentos de profunda angústia, esses que nos

oferecem outras saídas, “atalhos surpreendentes” ao fardo da vida. Costa

(2006) contextualiza essa idéia, apoiado nos filmes “A vida é bela” e “Um

sinal de esperança”, que abordam, ambos, a temática do holocausto. O

autor comenta que, quando um sujeito sobrevive a uma situação

traumática, mobiliza com freqüência o que chama de ressentimento, isto

é, um modo de não sentir ou se instala uma falta que faz o sujeito

estagnar-se no tempo e no espaço. Não encontra assim, outra via que não

seja a de se identificar com a figura do agressor, somado a uma

impossibilidade de situar a experiência traumática no tempo e no espaço.

No lugar da castração simbólica, na possibilidade de elaborar, dar novos

sentidos as suas frustrações e com isso construir seu percurso social, o

sujeito se paralisa e com isso perde sua identidade, sua potência de

crescimento.

O humor seria, como nos mostra o cinema, um recurso para manter

o ânimo de uma criança em condições limites e para reanimar um gueto

desesperançado. Ao se valer da mentira para alcançar seus elevados

objetivos, fazem jus às palavras de Bion, quando diz que “a raça humana

deve sua salvação a esse pequeno grupo de mentirosos geniais que, ainda

diante de fatos que sem dúvida o contradizem, estavam preparados para

manter a veracidade de suas falsidades” (Bion, 1970/1974, p.98/apud,

Costa, 2005, p. 90).

Segundo o autor, há uma transparente diferença entre a imaginação

consoladora e a negação da realidade e a esta diferença temos que estar

alertas. Fundamenta que a segunda representa uma forma de mentir para

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si próprio, diferente da primeira, em que se busca uma saída engenhosa e

prazerosa, que não implica desconhecimento da realidade, mas uma

valorização dela com base ética. Diz que o uso do humor como ferramenta

é o oposto do ressentimento, verificamos assim, que o ressentimento não

é a única saída. Através do humor, é possível historiar o trauma, elaborar

aliado ao tempo, permitindo que o sujeito assimile as experiências que lhe

acometeram e reconstrua sua identidade.

Surpreendentemente, na busca de bibliografia pertinente para esta

temática, deparei-me com Renato Mezan (2002), quando escreve sobre:

“Humor judaico: sublimação ou defesa?”. Interessante notar que, apesar

de definir um foco de observação, a cultura judaica, faz uma interrogação

bastante próxima à que se faz esta pesquisa.

O autor retoma o contexto social, no qual se encontravam os

judeus, quando nasce o humor judaico. Enfatiza que é difícil precisar a

data de seu nascimento, mas uma aproximação possível é que tenha

ocorrido na Rússia, no século XIX. Relata que, a comunidade de judeus da

Europa Oriental se encontrava oprimida e diante de dificuldades

econômicas extremas; pertenciam à terceira classe, sofrendo restrições

em ingressar nas instituições escolares, morar fora do distrito de

residência ou qualquer mobilidade social. Comunicavam-se através do

ídiche e eram alvos de discriminação e preconceito por parte das

populações locais. A breve descrição deixa em evidencia a grande miséria

e as dificuldades enfrentadas.

Entretanto, diz ele, desfrutavam de atributos de importante

reconhecimento: eram escolarizados, o que lhes possibilitava uma ampla

compreensão da regra e das leis, favorecendo a capacidade de

memorizar, raciocinar, perceber analogias e apropriar-se do recurso

lingüístico, isto é, culturalmente havia uma grande valorização do

conhecimento e da educação. A facilidade verbal e a estimulada

inteligência favoreceram a apropriação do humor como forma de

defender-se. Entretanto, Mezan (2002) nos interroga: será que apenas

esses dois fatores foram os fundadores do humor judaico?

A agudeza do raciocínio e a hostilidade do ambiente

são fatores talvez necessários, mas não suficientes,

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para dar conta da gênese do humor judaico (...) é

preciso levar em conta mais um fator para

compreender a gênese do jüdischer Witz (chiste): a

mudança na relação com a autoridade trazida pela

Revolução Francesa e pelo racionalismo que a

procedeu (p. 291).

Em seguida, o autor retoma alguns fatos históricos que em seu

desfecho comprovaram aos cidadãos da época, inclusive aos judeus, que a

autoridade aparentemente imutável e incontestável poderia não o ser.

Isto é, constatou-se que a figura de poder temida e inalcançável também

poderia tropeçar e cair. Neste cenário, o humor se revelou uma arma

poderosa para fazer críticas e possibilitar um ambiente de esperança

diante da sufocante realidade. Pelo fato do idioma pelo qual se

comunicavam ser incompreensível aos demais, desfrutavam de um humor

anônimo e secreto. Isto apenas se modificou com a emigração para as

Américas e posteriormente ao holocausto essas comunidades se diluíram e

se segregaram.

Como herança da solidez cultural, permaneceu a vivacidade do

humor, o qual se caracteriza pela sobriedade e sutileza. Qual seria, então,

o papel do humor nas comunidades judaicas?

Talvez a função primordial do humor judaico já não

seja, hoje, a de oferecer canais para a libertação das

repressões, nem para a manifestação socialmente

admitida da agressividade. (...) Seu papel é o de

oferecer uma plataforma identificatória para os

judeus seculares, que se reconhecem nas piadas a

seu próprio respeito. (Mezan, 2002, p. 301).

Veremos a seguir como a piada abaixo sustenta esta

argumentação:

Taoísmo: “Shit happens” [Merda acontece].

Islamismo: “If shit happens, é a vontade de Alá”.

Budismo: “If shit happens, não é o que parece”.

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Protestantismo: “Shit happens porque você não trabalha o suficiente”.

Catolicismo: “Shit happens porque você pecou”.

Hinduísmo: “This shit já aconteceu antes”.

Estoicismo: “This shit não me interessa”.

Judaísmo: “Por que shit sempre acontece conosco?”.

(Mezan, 2002, p. 300).

Sem dúvida, não poderíamos ter acesso a melhor ilustração. Para

cada religião, elabora-se, com uma pequena variedade de palavras e

breve designação, um complemento que é absolutamente particular e

ímpar a cada agrupamento. Mesmo que, em certa medida os ridicularize,

não deixa de fortalecer os vínculos existentes em cada comunidade,

justificando o humor ao lado dos recursos identificatórios. O que faz com

que, o autor conclua em seu desfecho que, o humor judaico não pode ser

interpretado nem apenas como sublimação, nem apenas como defesa. O

desenvolvimento e a fundamentação realizada por Mezan (2002), mesmo

que focada na cultura judaica, pode ser, em boa medida, estendida à

nossa reflexão.

Quando nos indagamos se o humor atua por vias defensivas ou

criativas, talvez estejamos excluindo outras respostas possíveis: a

perspectiva de observar o humor em eixos excessivamente polarizados e

antagônicos, como se relacionam sublimação e defesa, pode ser

repensada a partir deste trabalho. A possibilidade de vislumbrar um leque

mais amplo de possibilidades e variedades de efeitos dos ditos

humorísticos foi uma proposta ao longo da reflexão, através da qual

podemos extrair algumas respostas.

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Considerações Finais

O humor, em seu estatuto conceitual, refere-se a transformações

de alguns afetos, segundo o Dicionário de Psicanálise: “diz-se que no

humor a pulsão é sublimada na medida em que é derivada a uma

produção que sugira grandeza e elevação” (Laplanche & Pontalis, 1970, p.

638). Esta definição do humor em direção à “grandeza e elevação”, cria

uma cisão em relação aos risos eminentemente defensivos, risos

desesperados, risos cínicos, que não são, conceitualmente, do estatuto do

humor.

Uma distinção se faz necessária: humor e ironia. Esta, quase

sempre, é voltada a outro, contra outro. Gera o riso ácido, sarcástico,

destruidor, o riso do ódio, o riso do combate. Neste contexto, a ironia

nada mais é que plena tristeza, com ela, apenas se pode rir contra,

acusando, condenando e desprezando. O humor, em contrapartida, pode

até rir do outro, mas antes ri de si, abandona por instantes a seriedade

para transmutar a tristeza em alegria, há coragem, grandeza,

generosidade e liberdade. No humor há algo de sublime, de elevação,

enquanto na ironia, há o rebaixamento e avareza.

O humor é uma conduta do luto (trata-se de aceitar

aquilo que nos faz sofrer), o que o distingue de novo

da ironia, que seria antes assassina. A ironia fere, o

humor cura. A ironia pode matar; o humor ajuda a

viver. A ironia quer dominar; o humor liberta. (...) A

ironia é humilhante; o humor é humilde. (André

Comte-Sponville, 1995, p. 236).

Esta contextualização esclarece o que não é humor, quem são os

intrusos nas festas bem humoradas, naquelas em que a brincadeira tem

espaço a ocupar, nas quais as flexibilizações são permitidas, o faz-de-

conta é proposto e que a rigidez e a seriedade são convertidas na leveza e

na doçura que se pode extrair, apesar e mais além, das penas e dos

pesares.

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Descobrimos, a partir das provocações e indagações desta

pesquisa, que o humor atua para diferentes fins. Conhecemos o humor

irreverente e rebelde, o humor libertário, o humor identificatório, o humor

sublimatório, entre outros. Por que definir apenas um, se podemos nos

beneficiar de todos? E esta já não é uma predisposição do humor? Por que

enrijecer se podemos flexibilizar? Por que nos amargurarmos, se podemos

nos encantar? Por que reduzir, se podemos ampliar?

Encontramos, dentre os autores apresentados, Roustang (1984)

identificando o humor como uma zombaria doce, afetuosa e terna, em que

a possibilidade de rir de si mesmo configura-se como sinal de mobilização

psíquica; Mannoni (1992) compreende que desfrutar do humor é aceitar o

sentimento angustiante e hostil como uma brincadeira sem importância,

ao incorporar à consciência um fantasma inconsciente; Birman (2005)

apresenta o termo “desdramatização narrativa”, isto é, o humor como

esvaziamento da fatalidade e da seriedade, possibilitando a melhor

circulação psíquica de experiências dolorosas; Slavutsky (2005), na

mesma direção, afirma que a possibilidade de retirar o teor trágico em

relação a si próprio é o que permite ao sujeito defrontar-se de outra forma

com o que há de horror em sua experiência psíquica, podendo rir, ao

invés de chorar; Auguier (2005) enfatiza que através da brincadeira com

as palavras, é possível inventar, criar e construir novas vias de fluxo;

Kupermann (2005) nos traz a imagem do humorista como órfão que,

constatando que já lhe ocorreu tudo que poderia acontecer, não tem outra

saída a não ser a de aprender a rir com a vida; Sampaio (1992), de mãos

dadas com os palhaços, nos apresenta a potência do humor de

embaralhar e desembaralhar a realidade, o que ativa a vibração do riso,

ao brincar com a superfície do mundo e de si próprio; Kehl (2005) nos

confronta com a idéia de que o humor denuncia a vã pretensão do

controle a que os sujeitos se propõem e permite abordar o recalcado por

atalhos surpreendentes, mesmo que em seguida, retorne a seriedade

habitual; Moreira (2006) afirma que o humor estabelece ligações entre

elementos desunidos, o que aumenta a tolerância à frustração e

desenvolve as possibilidades de elaboração; Costa (2006) entende que,

através da criatividade possibilitada pelo humor, nos convencemos que a

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realidade é suportável; por fim, Mezan (2002) apresenta o papel do

humor na oferta de uma plataforma identificatória para os sujeitos.

Muitos são os efeitos e fins pelos quais o humor está presente na

vida dos sujeitos, esta é uma importante abertura desenvolvida pelo

trabalho, na qual a visão polarizada e antagônica pôde ser descartada.

No humor há uma circulação afetiva, é um signo de acolhimento,

que permite o sujeito rir de si e do outro, em um movimento que, ao

desnaturalizar o pensamento, diferentes facetas da nossa experiência de

viver possam aparecer, possibilitando revisar e suspender as certezas

absolutas. A vida, quando invertida, nos faz ver ao contrário, ao revés,

por cima e por baixo, o que pode inaugurar um novo destino, um novo

rumo. Onde apenas se esperava dor e angústia, pode brilhar o riso. O

caminho que se pode trilhar através do humor, permite ao sujeito aliviar-

se do tédio do cotidiano, ao criar um estado de graça que alivia as

desgraças.

Driblar o pânico, espantar os medos, aliviar as angústias, “olhar a

vida pelos binóculos do riso”, integrar as máscaras, gerar potência e

alegria onde poderia produzir-se dor, aceitar que a verdade é parcial,

cultivar e mimar o espírito, manter a capacidade de brincar e construir a

realidade.

No humor, há paródia de si mesmo, e com ela, se estabelecem as

distinções. A liberdade do pensamento conferida pelo humor faz com que

as idéias dêem piruetas, chacoalhem os ânimos, desatem as amarras,

escandalizem as censuras. Um novo estilo pode surgir, com a

incorporação dos paradoxos e a produção a partir deles.

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