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1 I. A FILOSOFIA NO PERÍODO ROMÂNICO DA IDADE MÉDIA LATINA PROF. MARCOS AURÉLIO FERNANDES O século X foi um século de consolidação do projeto de Estado e de civilização, começado com Carlos Magno. A França é o centro da Europa. Do ponto de vista religioso, um fato que marca a história é a fundação da Abadia de Cluny. As reformas monásticas vão se seguindo, no século XI, com uma renovação feita pelos beneditinos, com o apogeu de Cluny e com o surgimento de novas ordens, como os cartuxos (1084) e os cistercienses (1098). Os anos 1000 são para a cristandade medieval o auge do regime feudal, baseado fundamentalmente nos laços de vassalagem. Do ponto de vista político, emerge o protagonismo da França, liderada por reis da dinastia capetíngia: Henrique I (1031- 1060) e Filipe I (1060-1108). Neste tempo, Paris se torna a capital da França; antes, a capital dos francos era Aquisgrana. Também se assiste a uma expansão da dominação normanda na Itália e na Inglaterra. O século XI é o século das maiores confrontações violentas entre a cristandade e o Islã, com a reconquista espanhola promovida por Afonso VI (tomadas de Valência e Toledo) e com a Primeira Cruzada ao oriente, que levou à tomadas de Antioquia (1098), de Edessa e de Jerusalém (1099). Ainda no plano político, acontece a “guerra das investiduras” episcopais, travada entre o papa (Nicolau II e Gregório VII) e o imperador da Alemanha (Henrique IV). Este conflito, porém, só vai terminar com a concordata de Worms (1122), ficando decidido que a investidura temporal – pelos quais os bispos são investidos como senhores dos feudos episcopais – é feita pelo Imperador e a investidura espiritual – pelos quais os bispos são nomeados como autoridades eclesiásticas nas dioceses – é feita pelo Papa. No campo cultural, o século XI é o auge da arte românica.

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I. A FILOSOFIA NO PERÍODO ROMÂNICO DA IDADE MÉDIA

LATINA

PROF. MARCOS AURÉLIO FERNANDES

O século X foi um século de consolidação do projeto de Estado e de civilização,

começado com Carlos Magno. A França é o centro da Europa. Do ponto de vista religioso,

um fato que marca a história é a fundação da Abadia de Cluny. As reformas monásticas

vão se seguindo, no século XI, com uma renovação feita pelos beneditinos, com o

apogeu de Cluny e com o surgimento de novas ordens, como os cartuxos (1084) e os

cistercienses (1098).

Os anos 1000 são para a cristandade medieval o auge do regime feudal, baseado

fundamentalmente nos laços de vassalagem. Do ponto de vista político, emerge o

protagonismo da França, liderada por reis da dinastia capetíngia: Henrique I (1031-

1060) e Filipe I (1060-1108). Neste tempo, Paris se torna a capital da França; antes, a

capital dos francos era Aquisgrana. Também se assiste a uma expansão da dominação

normanda na Itália e na Inglaterra. O século XI é o século das maiores confrontações

violentas entre a cristandade e o Islã, com a reconquista espanhola promovida por

Afonso VI (tomadas de Valência e Toledo) e com a Primeira Cruzada ao oriente, que

levou à tomadas de Antioquia (1098), de Edessa e de Jerusalém (1099). Ainda no plano

político, acontece a “guerra das investiduras” episcopais, travada entre o papa (Nicolau

II e Gregório VII) e o imperador da Alemanha (Henrique IV). Este conflito, porém, só vai

terminar com a concordata de Worms (1122), ficando decidido que a investidura

temporal – pelos quais os bispos são investidos como senhores dos feudos episcopais –

é feita pelo Imperador e a investidura espiritual – pelos quais os bispos são nomeados

como autoridades eclesiásticas nas dioceses – é feita pelo Papa. No campo cultural, o

século XI é o auge da arte românica.

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Para compreender o pensamento medieval, é preciso intuir o espírito do tempo que

constitui o seu “medium”, o seu elemento e atmosfera. Por sua vez, para intuir este

espírito, nada melhor do que considerar a arte, pois esta dá materialidade plástica e

visibilidade a todo um modo de ser histórico, ou seja, a toda uma ideia de civilização e

cultura. Por isso, vamos partir da consideração da arte românica, para entender o

pensamento dos séculos XI e XII.

III.1. O ROMÂNICO

O românico é um estilo artístico de arte, reconhecível especialmente nas artes

figurativas – arquitetura, escultura e pintura –, cuja vigência pode ser datada dos

primeiros dois séculos do segundo milênio (séculos XI e XII). É irrupção, na história, de

algo original em arte, que espelha algo de original também na cultura e no espírito do

tempo. Poder-se-ia dizer que este algo de original emerge do encontro de dois mundos:

o romano e o germânico, daí o nome “românico” (usado pela primeira vez em 1824 pelo

arqueólogo francês De Caumont). Contudo, esta arte integra também elementos

bizantinos, armênios e islâmicos. Mas, enquanto algo de original, ela não é a simples

soma ou mescla destes elementos, mas é algo mais. Poder-se-ia identificar este estilo

pelas suas características, mas as características por si só não fazem um estilo. Elas

precisam de uma ideia central que as vivifique num todo único e original. Se tomarmos

a arquitetura como exemplo privilegiado, talvez possamos intuir os contornos deste

estilo, seus traços essenciais e a ideia central que vivifica este todo. Em primeiro lugar,

a igreja é o edifício onde este estilo se deixa mostrar mais caracteristicamente. Ela é uma

evolução e uma transformação da basílica romana, só que configurada em forma de

cruz. Ela é a concreção da ideia de “Cidade de Deus” (Civitas Dei). Trata-se de uma ideia

universalizada e espiritualidade de “civitas” (cidade, Estado), um arquétipo ideal, que a

Igreja e o Estado medievais tentam reproduzir no real. Em segundo lugar, a cobertura

do edifício se faz mediante a construção de abóbadas, isto é, de estruturas curvilíneas

de pedra; sendo que os arcos se constituem em elementos característicos. Em terceiro

lugar, são construções articuladas e maciças, com fortes efeitos de claro-escuro e luzes

radiantes que penetram a partir de escassas e estreitas aberturas. Em quarto lugar, a

subordinação das outras artes à arquitetura: pintura, escultura e mosaico.

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Do ponto de vista estilístico, o edifício é uma síntese de arcos. A superfície curva recebe

um peso na sua parte mais alta e o transmite à sua parte mais baixa. Pequenas partes

de pedra estão em equilíbrio, cada uma recebendo um impulso daquela que lhe é

superior e transmitindo este mesmo impulso àquela que lhe é inferior. O impulso que

vem do alto, porém, finalmente se descarrega sobre os apoios, que recebem, por sua

vez, um impulso lateral, que tende a voltar-se para fora. Portanto, o que caracteriza o

todo é precisamente o mútuo e férreo jogo de impulsos e contra-impulsos gerado pela

abóbada, isto é, pela força que vem do alto.

A igreja românica, na verdade, dá expressão figurativa ao espírito de seu tempo (séculos

XI e XII). A ideia central que move tudo é a da “Civitas Dei”: a cidade de Deus. A igreja

românica não é somente um templo, ela é a imagem do mundo, do universo estruturado

a partir da cruz. Toma-se a basílica romana e se o reconstrói segundo a forma da cruz.

Trata-se de uma imagem paradoxal, uma conjunção de opostos: cidade e cruz. O

crucificado é alguém que morre fora da cidade, expulso, excluído como malfeitor. É

imagem da impotência. A cidade é uma imagem de poder. A basílica é um edifício

imperial (basileia = reino, império). Mas, agora, a cruz é o que lhe estrutura e configura.

A Cidade de Deus é a ideia de uma ordem civilizatória, constituída a partir da cruz, isto

é, da fé cristã, a mesma fé que era dos excluídos, dos escravos, dos marginalizados do

império romano. A Igreja e o Estado, na Idade Média, tentam construir esta ordem

civilizatória. A Igreja Romana e o Império Carolíngio se unem em vista deste projeto.

A cultura românica é uma expressão de sua construção. A igreja românica não é

somente um templo, a morada de Deus, mas é também expressão ideal de um mundo,

de uma ordem que aspira à universalidade. Na fachada da Igreja Românica, em forma

de escultura, pode-se ver o Cristo que domina desde o alto, como o “Senhor” e “Juiz”

universal. Os Apóstolos são seus ministros, os evangelhos, sua lei. O seu Reino é do alto.

Os justos são os cidadãos desta cidade, que é denominada de “Jerusalém”, que, segundo

uma etimologia medieval, significa “visão de paz”. Os cidadãos desta construção, que

compõem a “comunhão dos santos”, estão unidos uns aos outros como pedras vivas,

que se sustentam mutuamente, recebendo e transmitindo o impulso que recebem do

alto. A construção espiritual que resulta daí é maciça, tem o peso, a densidade e a

consistência da pedra.

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Algumas abóbadas típicas das igrejas românicas são formadas como arcos que se

cruzam. É a conjunção de opostos: o círculo e a cruz. O círculo significa plenitude da vida,

unidade, eternidade; a cruz, quebra, divisão, tempo: vida que vem da morte, unidade

que se conquista a partir da decisão (corte, ruptura, quebra), eternidade que se decide

a partir do tempo. Dentro da igreja românica vigora o claro-escuro: a penumbra da fé,

que é iluminação e obscuridade, ao mesmo tempo. A luz penetra a partir do alto, através

de estreitas aberturas, cujos vitrais são de acabamento rústico. A luz da verdade vem do

alto, da revelação divina, e entra no mundo humano através de estreitas aberturas, as

do intelecto, cuja transparência é sempre rústica, diante da luminosidade sutil e

esplendorosa do divino. Esta é a imagem ideal que a cristandade medieval procura

reproduzir no real da história.

Se a arquitetura românica, que recolhe em si a escultura e a pintura, dão concreção

plástica e visibilidade ao espírito do tempo na pedra, a literatura faz o mesmo na palavra

poética. É neste século que surge a mais famosa canção de gesta da Idade Média: a

“Canção de Rolando”. Escrita por um anônimo, em francês antigo, a canção celebra de

modo poético e lendário, os feitos heroicos de Rolando, ou Orlando, apresentado como

sobrinho de Carlos Magno. A história tem um fim trágico, pois Rolando, que liderava a

retaguarda do exército de Carlos Magno, é morto pelos sarracenos, graças à traição de

seu genro, Ganelão, perto de Roncesvales (Navarra, Espanha). Carlos Magno, então,

vinga a morte de Rolando vencendo, junto ao rio Ebro, a luta contra os sarracenos,

liderados pelo emir da Babilônia. Embora o poema épico tenha um núcleo histórico,

relacionado com uma batalha de Carlos Magno contra bascos cristãos, em Roncesvales,

no ano de 778, ele reflete muito mais o espírito cavalheiresco daquele tempo e o

confronto com o Islã. O poema era recitado para os cavaleiros que partiam para as

cruzadas e também para os peregrinos que faziam o Caminho de Santiago de

Compostela, os quais tinham que passar por regiões próximas aos domínios dos

muçulmanos.

O pensamento dos séculos XI e XII só pode ser compreendido a partir deste horizonte,

que é configurado pelo espírito do tempo.

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III.2. A FILOSOFIA NO SÉCULO XI

O século X é um século obscuro na história da filosofia. Após Eriúgena, o pensamento se

cala. Eriúgena parece ter sido a última ressonância da antiguidade na Idade Média. A

filosofia antiga, que tinha começado com os poemas sobre a “Physis” termina com um

tratado sobre a “divisão” da physis (Natureza). Há uma certa continuidade, de

Parmênides a Eriúgena. Entre Eriúgena e Anselmo, o maior representante do

pensamento no século XI, há o silêncio, um hiato que separa dois mundos. Eriúgena é a

consumação do pensamento antigo na Idade Média, Anselmo, a abertura de um novo

pensamento, de um pensar original, que vai ganhando forma e densidade no século XII

e que rebenta no século XIII.

III.2.1. A QUESTÃO DA DIALÉTICA E DE SUA RELAÇÃO COM A TEOLOGIA. O

PROBLEMA DA ONIPOTÊNCIA DIVINA E DE SUA RELAÇÃO COM O PRINCÍPIO DE

NÃO CONTRADIÇÃO

O contexto filosófico-teológico dos séculos X e XI é dominado pela questão do estatuto

da dialética, de sua relação com a teologia e da sua aplicabilidade nas controvérsias

teológicas, como as da eucaristia, da predestinação e da onipotência divina. Ora, já

Agostinho tinha considerado a dialética a arte das artes, a disciplina das disciplinas,

porque ensinava a ensinar e a aprender, isto é, ela não somente quer tornar o homem

ciente como também o torna. Alguns, porém, exaltaram tanto a dialética que a

colocaram acima da própria fé.

No século X, dois nomes se destacam: Gerberto de Aurillac e Fulberto de Chartres.

Gerberto de Aurillac, que se tornara o papa Silvestre II (1003), procurou aplicar a arte da

dialética à teologia, especialmente nas discussões sobre a eucaristia. Ele tinha uma

concepção realística da dialética, semelhante à concepção de Eriúgena. A dialética é arte

da “divisio” e da “resolutio”: ela divide os gêneros em espécies e reconduz as espécies à

unidade do gênero (dividit genera in species et species in genera resolvit). Ela não tem

sua origem em construções fictícias (machinationes) da mente humana, mas sua origem

é o próprio Deus, o autor de todas as coisas, em cuja mente estão as leis da natureza

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das coisas e as leis de todas as artes. Os sábios não produzem a dialética como uma

ficção pura e simples da mente humana. Eles a “inventam”, no sentido medieval do

verbo “inventar”, que significa encontrar, achar algo que já estava ali, mas que estava

despercebido (invenire). Fulberto de Chartres (960-1028) aplicou a dialética na teologia,

mas salientou também os seus limites. A altíssima sabedoria dos desígnios divinos não

pode ser compreendida com os recursos da razão humana. Os mistérios divinos se

abrem aos olhos da fé e não às humanas disputas da razão. A estes dois nomes podemos

acrescentar um terceiro: Abão de Fleury (945-1004), que redescobriu os textos lógicos

de Boécio e providenciou para que o conhecimento aí veiculado pudesse ser transmitido

de maneira didática.

No século XI, os grandes entusiastas da dialética eram chamados de philosophi

(filósofos), sophistae (sofistas), peripatetici (peripatéticos). Anselmo de Besate, também

chamado de Anselmo Peripatético, foi um mestre que procurou cultivar a dialética pela

dialética, sem conexão com a teologia. Outros, porém, postularam uma aplicação

decisiva da dialética ao campo teológico. Acreditavam que a razão podia tudo e que

estaria acima da autoridade da Bíblia e dos Padres da Igreja. Queriam, pois, submeter a

teologia à dialética. Berengário de Tours (1005-1088) é o principal representante desta

tendência racionalista. No contexto das controvérsias sobre a eucaristia, afirmou que o

pão e o vinho não mudavam de essência ou natureza, mas que a presença de Cristo se

dava apenas por um sentido espiritual (intelectual), constituído pelos fiéis. Do lado

contrário, ouve uma reação de tipo fideísta, advinda sobretudo dos círculos dos

mosteiros reformados. Assim, Geraldo de Czanád (+ 1046), que tinha sido grande mestre

da dialética, se converteu, se tornou monge camaldulense, e a partir de então afirmava:

Pedro, João, Tiago e Paulo são mais do que Aristóteles e Platão. Sua oposição, porém,

não era tão forte como a de Pedro Damião (1007-1072). Dedicou grande parte de sua

vida à ascese monástica e à reforma eclesiástica. Participou das controvérsias sobre a

onipotência divina em relação ao princípio de não contradição. A pergunta que se

colocava nesta controvérsia era se Deus pode fazer que o que aconteceu não tenha

acontecido. Por exemplo, a fundação da cidade de Roma. Deus pode fazer que, uma vez

fundada Roma, Roma não tenha sido fundada? Segundo seu parecer, Deus não se

submete a nenhuma regra, pois está acima de tudo. Logo, não se submete nem mesmo

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ao princípio de não contradição. Também o princípio de não contradição não constitui

um limite para a onipotência divina. Ele vale para a lógica e para o que está submetido

às leis da natureza (na natureza nem tudo está submetido a leis). A dialética não está

acima da teologia, mas é sua serva (ancilla).

O problema da onipotência divina e do princípio de não contradição prosseguiu nos

séculos futuros da Idade Média. Gilberto Porretano, Pedro Lombardo e Guilherme de

Auxerre se colocaram do lado de Pedro Damião. Anselmo da Cantuária e Honório

Augustodunense, porém, ficaram contra ele. O princípio de não contradição não pode

ser abolido: nem mesmo Deus poderia fazer que o que aconteceu não tivesse

acontecido. No entanto, para Anselmo, a razão disso está na própria vontade de Deus,

em sua vontade de verdade. Hugo de São Vitor, por sua vez, diz claramente que Deus

não pode fazer o que é logicamente impossível. Do mesmo parecer são Boaventura e

Tomás de Aquino. Este último diz: sub omnipotentia dei non cadit aliquid, quod

contradictionem implicat (sob a onipotência de Deus não cai aquilo que implica

contradição) (Suma Teológica I, q. 25 a. 4).

Numa posição intermédia, entre Berengário e Pedro Damião, está Lanfranco de Pádua

(c. 1010-1089). Lanfranco foi um célebre mestre da dialética que também entrou para a

vida monástica. No mosteiro, trocou a dialética pela teologia. Lutou energicamente com

Berengário na controvérsia sobre a eucaristia. Para ele, a teologia não se fundava sobre

a arte da razão, mas sobre as autoridades da fé: a Escritura e os Padres da Igreja. Quando

se trata dos mistérios da fé, como é o caso da eucaristia, a investigação da razão é

impotente. Entretanto, Lanfranco não combatia o uso da dialética em si mesma, mas o

seu abuso. Não existe um abismo entre a dialética e a teologia. Aluno e herdeiro de

Lanfranco foi, então, o mais célebre pensador do século XI: Anselmo de Cantuária.

III.2.2. ANSELMO DE CANTUÁRIA (1033/34? -1109)

Anselmo nasceu em Aosta, no Piemonte (Itália), entrou para o mosteiro de Bec, na

Normandia (França), onde foi aluno de Lanfranco, e se tornou, desde 1093 até a sua

morte, arcebispo de Cantuária (Canterbury, Inglaterra).

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Um feito importante de Anselmo foi a união de lógica e gramática, em sua obra De

Grammatico (Do gramático). Nesta obra, Anselmo une a semântica de Aristóteles com

a gramática de Prisciano, elaborando uma teoria da significação e da denominação. Esta

teoria parte do problema da paronímia. Paronímia (Parônymía) é a característica de uma

palavra que deriva de outra, ou seja, que recebe de outro a sua denominação, como

gramático vem de gramática, e corajoso de coragem, segundo os exemplos dados por

Aristóteles no primeiro capítulo das Categorias. O problema que Anselmo se põe é como

“gramático” pode ser, ao mesmo tempo, uma qualidade e uma substância. A palavra

“gramático” é um nome que recebe sua denominação de “gramática”. Portanto, a ela

se atribui a paronímia. Trata-se de um nome ambíguo. “Gramático” significa,

propriamente, isto é, “per se”, um acidente, mais claramente, uma qualidade, a saber,

“conhecedor da gramática”. Mas, de uma maneira indeterminada, esta expressão

remete a uma substância, isto é, a um indivíduo que tem esta qualidade: a de ser

conhecedor de gramática. “Gramático”, portanto, significa “per aliud” (por outro), isto

é, de maneira indireta, uma substância: este homem, que tem a qualidade de ser

conhecedor de gramática. O termo “homem” denomina e significa direta, principal e

propriamente a substância: este indivíduo. Já o termo “gramático” é ambíguo: por um

lado, denomina a substância significando-a de modo indireto e indeterminado (per

aliud): designa um indivíduo, que é conhecedor de gramática; por outro lado, o termo

“gramático” recebe a sua denominação de “gramática” e significa “per se”, isto é, por si

mesmo, um acidente, isto é, uma qualidade: conhecedor de gramática.

A partir desta teoria da denominação e significação, Anselmo aplica à gramática as

categorias da ontologia aristotélica. Parte do seguinte estado de coisas: o conhecimento

da gramática não é essencial ao homem, embora seja essencial ao gramático. Todo

homem pode entender a linguagem sem precisar da gramática; mas nenhum gramático

pode expor uma compreensão da linguagem sem a formação própria da gramática. Os

conceitos de “gramático” e de “homem” são diferentes. “Homem” nomeia um “quid”,

um determinado “quê”, uma substância. Designa uma substância primeira (substantia

prima) enquanto significa este homem, este indivíduo. Designa uma substância segunda

(substantia secunda) enquanto significa a espécie chamada “homem”, a espécie

humana. O nome “homem” é, por isso, chamado de substantivo. “Gramático” nomeia,

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diretamente, um “quale”, uma qualidade. O nome “gramático” é, por isso, um adjetivo.

Ele só significa um “quid” (substância) por meio de um “quale” (qualidade). O dialético

se ocupa diretamente com as palavras (voces: vozes) e só mediatamente, por meio das

palavras, com as coisas (res). Neste sentido, ele deve levar em consideração o que as

palavras significam direta e imediatamente (per se). Por isso, à pergunta – quid est

grammaticus? (o que é “gramático”?) – deve responder: vox significans qualitatem

(uma palavra que significa uma qualidade), um adjetivo. “Grammaticus” designa, pois,

diretamente uma “res” (coisa/algo de real), que é um acidente, um “quale” (uma

qualidade) e equivale a “habens grammaticam” (tendo conhecimento da gramática).

“Grammaticus” designa, então, de modo indireto (per aliud) e de modo denominativo

(per apellationem) o homem.

Pode-se ver, pois, que, na obra “De grammatico”, Anselmo molda a gramática segundo

a lógica e a metafísica, mais precisamente, segundo a ontologia da substância. Esta

iniciativa possibilitou, por sua vez, o surgimento de uma lógica da linguagem, no século

XII, com Gilberto Porretano e Pedro Abelardo, e, no século XIII, de uma gramática

especulativa, que tratava dos modos de significar (De modis significandi) das palavras.

Assim, as categorias aristotélicas foram aplicadas à morfologia e à sintaxe. As

abordagens da linguagem de Roger Bacon, Martinho e João de Dácia e Tomás de Erfurt

vão nesta direção. Deste último é a obra “Grammatica Speculativa” (Gramática

Especulativa), que, no século XX, foi objeto de estudo do doutorado de Martin

Heidegger, ainda quando o texto era atribuído a Duns Scotus.

O mote de Anselmo é: “fides quaerens intellectum” (fé buscando entendimento). Trata-

se de uma retomada do mote de Agostinho: “credo ut intelligam” (creio para

compreender). Assim se dá o método especulativo de Anselmo: A “ratio” (razão), como

pensamento que se exerce pela “meditatio” (meditação), busca, no horizonte da “fides”

(fé), o “intellectus” (a compreensão, o entendimento, o “insight”). Como, porém,

entender melhor a relação entre “fides” e “ratio” (razão) em Anselmo? Não se trata de

chegar à fé a partir da razão, como queriam os entusiastas da dialética. Isso é impossível

e danoso. Mas, trata-se de chegar a uma compreensão da fé a partir do exercício da

razão, um exercício que não põe em questão a própria fé, mas a supõe, como horizonte

irrenunciável. Pois, o que está em jogo na fé, é mais do que uma crença ou opinião, ou

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mesmo a adesão a uma doutrina, é, acima de tudo, a fidelidade a alguém: ao Deus fiel e

à sua auto-revelação. A fé, aqui, é entendida em duplo modo: como “fides qua”, o ato

de crer, e como “fides quae”, o crido, o conteúdo do que se crê. A teologia é “intellectus

fidei”: empenho de intelecção que se dá a partir da fé (do ato de crer, fides qua) e que

se volta para a compreensão do crido (do conteúdo da fé, fides quae). A “fides” (fé) é

dom de Deus. O “intellectus” (intelecto), empenho do homem. Por isso, “fides quaerens

intellectum” pode significar também, em nível mais originário: o dom de Deus que, a

priori, ama, busca e quer, no homem, o empenho de compreender, que é empenho de

receber. Teologia é, assim, o saber de um encontro que se dá entre o Deus que se dá a

revelar e o homem que se dispõe a acolher e a compreender tal auto-revelação de Deus.

Do mesmo modo que o conceito de “fides” (fé), também o conceito de “ratio” (razão) é

duplo. Por um lado, “ratio” denomina a razão como capacidade do homem de processar

a compreensão e apreensão de sentido das coisas (intellectus). Por outro, “ratio” é

entendido como o fundamento e o fundo essencial de alguma coisa (ratio rei). A teologia

consiste em ser a investigação das “rationes necessariae” (razões necessárias) daquilo

que é crido (fides quae). Ela procura encontrar e expor as razões da fé, ou seja, o

fundamento essencial e racional daquilo que é crido. É neste sentido que Anselmo busca

realizar algumas investigações teológicas “sola ratione” (somente com a razão), isto é,

expondo unicamente argumentos de razão, sem recorrer a argumentos de autoridade

(da Escritura ou dos Padres da Igreja).

A busca do “intellectus” (compreensão) ou das “rationes necessariae” (razões

necessárias) no horizonte da fé pressupõe, contudo, a verdade como possível. Mas, o

que é a verdade? Anselmo dedica uma obra em forma de diálogo a esta questão (De

Veritate). Trata-se de uma questão essencial. Ela pergunta pela essência da verdade –

quid sit veritas? (o que é a verdade?). Anselmo parte da experiência: dizemos que há

verdade está ali onde se dá o verdadeiro. Há a verdade de uma indicação (significatio) e

a verdade de uma enunciação (enunciatio); a verdade de uma opinião (opinio), por um

lado, e a verdade de uma vontade (voluntas) ou de uma ação (actio), por outro; há ainda

uma verdade dos sentidos (sensus) e uma verdade da essência das coisas (essentiae

rerum). Muitas são, pois, as formas de verdade: há uma verdade do conhecer, a verdade

lógica; uma verdade do agir, a verdade ética; e uma verdade do ser, a verdade

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ontológica. A verdade ontológica é o fundamento da verdade lógica. Com efeito, causa

da verdade do juízo ou enunciado está no ser ou não ser da coisa enunciada (res

enunciata). Mas, o que faz com que todas estas formas de verdade sejam verdade? A

resposta de Anselmo é: a “rectitudo” (retidão), ou seja, que algo seja como ele deve ser.

Verdade é, portanto, a coincidência ou identidade entre o ser e o dever-ser da coisa.

Mas, de onde a coisa haure o seu dever-ser? O que é normativo para o real é o ideal,

normativo para a coisa é a ideia da coisa. Conhecimento e ação estão sempre

mensurando o fático (o ser real) a partir da essência, ideia ou norma (o ser ideal, o dever-

ser). Isto quer dizer: a verdade lógica e a verdade ética pressupõem a verdade

ontológica. Mas a ideia da coisa se funda e se fundamenta, originariamente, na mente

de Deus. A verdade das coisas (verdade ontológica) consiste em elas serem aquilo que

eram na mente de Deus, ou seja, em corresponder ao projeto criador divino. As coisas

são imagens concretizadas dos pensamentos de Deus. A “ratio necessaria” (razão

necessária) de uma coisa é justamente a exposição desta verdade essencial das coisas,

a verdade da essência da coisa. Deus é a verdade originária, suprema e infinita, a partir

da qual as coisas recebem o seu ser verdadeiro e as formas de verdade se concretizam.

Com efeito, a “rectitudo” da Verdade, que é Deus, é diferente da “rectitudo” das formas

de verdade derivadas desta verdade originária. A verdade das coisas recebe sua medida

da “summa veritas per se subsistens” (verdade suprema que subsiste por si mesma), que

é Deus mesmo. A verdade de Deus não recebe medida de nenhuma outra, pois ela

mesma é o parâmetro, a partir donde se mede a verdade das coisas (ontológica), e, por

conseguinte a verdade do conhecimento (lógica) e a verdade da ação (ética). Esta

verdade, por conseguinte, não pode se dar de modo plural. Ela é singular: única em si

mesma, e una em todas aquelas outras formas de verdade.

Mas, voltando à pergunta pela essência da verdade, como caracterizar um conceito

formal de verdade, que vale tanto para as formas de verdade derivadas quanto para a

verdade absoluta, una, infinita e suprema? Para Anselmo, a essência da verdade se deixa

dizer nesta indicação: “Veritas est rectitudo mente sola perceptibilis” (verdade é a

retidão perceptível só com a mente). A retidão segundo a qual a coisa é o que deve ser,

ou seja, é o que ela é no pensamento ou no projeto criador de Deus, constitui a verdade

ontológica. Tanto a retidão predicativa, de uma significação ou de um enunciado, bem

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como a retidão de um conhecimento dado pela experiência ou pela razão, que

caracteriza a verdade lógica; quanto a retidão de uma opinião, vontade ou ação, que

caracteriza a verdade ética; quanto, ainda a retidão segundo a qual uma coisa é o que

ela deve ser, isto é, correspondendo ao pensamento dela no desígnio criador de Deus;

todas estas formas de retidão recebem sua medida da verdade originária, infinita,

absoluta e incriada: Deus. Verdade é a percepção da retidão, percepção que se dá “sola

mente” (com a mente somente), isto é, numa apreensão puramente inteligível.

A investigação sobre a verdade remeteu à verdade absoluta e originária, Deus. Mas,

como demonstrar “sola ratione”, isto é, só com a razão, as “rationes necessariae”, ou

seja, os fundamentos racionais da fé na existência de Deus? Numa primeira obra, o

“Monologion”, Anselmo tenta demonstrar a existência de Deus por meio de dois

argumentos a posteriori, isto é, partindo da experiência. Ele o faz seguindo a via

platônico-agostiniana. Num primeiro argumento, Anselmo toma em consideração

conceitos transcendentais: bonum (bom), ens (ente), unum (uno). Anselmo parte da

existência de bens no mundo, que são mais ou menos bons. Alguns bens nós

consideramos bons pela utilidade (propter utilitatem); outros, pela sua beleza (propter

honestatem). Estes bens são medidos e valorados como mais ou menos bons. Deve

haver, então, uma medida pelas quais se medem os bens. Esta medida deve ser um bem

absoluto e não um bem relativo, algo que é um bem por si mesmo (bonum per se ipsum)

e não um bem por participação, algo que não é um bem, mas o bem. Trata-se, portanto,

do “summum bonum” (sumo bem), que nós chamamos Deus. Este mesmo raciocínio

vale para a grandeza e para a dignidade. Vale, por fim, para o ser. Tudo o que é parece

ser através e a partir de algo que ele não é. Deve haver algo, através do que e a partir

do que tudo o que é, é: o ente que é a partir de si mesmo, o sumo ente. E este sumo

ente não pode ser senão um só: uma vez que a própria verdade exclui que sejam muitos,

aquilo por meio do que tudo é, é necessário que seja um, aquilo pelo que tudo o que é,

é. O segundo argumento toma em consideração uma ordem gradativa no ser de tudo o

que é: a natureza da árvore é menos digna do que a natureza do cavalo, que é menos

digna do que a natureza do homem. Numa há somente o ser, noutra o ser, o viver e o

sentir, noutra, por fim, o ser, o viver, o sentir e o pensar. Esta gradualidade de naturezas

aponta para uma única natureza suprema. Esta é o que ela é, por si mesma, e tudo o

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que é, é o que é por ela. Melhor: trata-se de uma natureza, que é por si mesma boa e

grande; que é por si mesma aquilo que ela é; que é por si mesma o que é sempre

verdadeiro, bom e grande; e que é o sumo bem, a suma grandeza, o sumo ente ou a

suma substância, ou seja, que é o Altíssimo, de tudo aquilo que é. Esta argumentação

pressupõe, pois, o ser por participação (participatio), que é sempre relativo, a saber, o

ser da criatura; e o ser em sentido absoluto, que é o ser de Deus. O relativo é por outro

(ens ab alio). Já o absoluto é por si mesmo (ens a se). Os muitos relativos pressupõem,

contudo, um único absoluto.

Já no Proslogion (alocução), Anselmo busca um argumento único (unum argumentum),

que possa demonstrar de modo a priori a existência de Deus. Trata-se de um argumento

que não precise de outros argumentos para demonstrar, mas que seja suficiente para

demonstrar por si mesmo que Deus em verdade existe. Este “argumento único” de

Anselmo foi chamado por Kant de “argumento ontológico”. No capítulo II, a partir do

espírito do “credo ut intelligam” (creio para compreender) ou do “fides quaerens

intellectum” (a fé buscando a compreensão) – que, aliás, é o subtítulo da obra –,

Anselmo diz: “et quidem credimus te esse aliquid quo nihil maius cogitari possit” (o certo

é que cremos que tu és algo, acima do qual não se pode pensar nada de maior). Esta

denominação assinala a transcendência de Deus. Que ela fale do Deus da fé e da

revelação torna-se claro pelo fato de Anselmo orar a este Deus, cuja existência ele quer

provar (!). Mas, será mesmo que se trata de uma prova, em sentido apologético? Ou se

trata mais de demonstrar, melhor, de mostrar a racionalidade daquilo que se crê? Neste

caso, seria a penumbra da fé buscando a clareza da compreensão. Em todo o caso, a

expressão “aliquid quo nihil maius cogitari possit” (algo, acima do qual não se pode

pensar nada de maior) não é nova: está enraizada na tradição latina (Sêneca, Cícero,

Agostinho, Boécio). Nova é a explicação que se segue. O insipiente diz em seu coração:

não há Deus, Deus não existe (cfr. Salmo 13, 1). A proposição “Deus existe”, como

enunciado de algo crido, ou seja, de um conteúdo da fé, não é evidente por si mesma. É

preciso, pois, que intervenha a razão. Pois bem: o insipiente entende o que significa a

expressão “aliquid quo nihil maius cogitari possit” (algo, acima do qual não se pode

pensar nada de maior). Enquanto esta expressão é entendida, ela está em seu intelecto:

“intelligit quod audit, et quod intelligit, in intellectu eius est, etiam si non intelligat illud

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esse” (entende o que ouve, e aquilo que entende está em seu intelecto, mesmo se não

entende aquele ser). Uma coisa, porém, é ser no intelecto (esse in intellectu), outra é ser

real (esse rem). Por exemplo, o pintor tem em mente uma obra. Esta obra, enquanto

simplesmente pensada e intencionada pelo pintor, só tem o ser no intelecto do pintor.

Agora, se esta obra é produzida e levada a cabo, ela passa a ser realmente, a ter um ser

real, um ser na realidade efetiva (esse in re). Assim, o que existe somente no intelecto é

menor do que aquilo que existe efetivamente na realidade. Ora, é certo que aquilo acima

do qual não se pode pensar nada de maior não pode ser somente no intelecto: “si enim

vel in solo intellectu est, potest cogitari esse et in re, quod maius est” (de fato, se existe

só no intelecto, se pode pensa-lo existente também na realidade e este é ainda maior).

Negar que Deus exista na realidade, portanto, conduz a uma contradição: “por

conseguinte, se aquilo acima do qual não se pode pensar nada de maior, existe só no

intelecto, aquilo acima do qual não se pode pensar nada de maior é aquilo acima do qual

se pode pensar uma coisa maior”. Isso feriria o princípio de não-contradição: seria

afirmar e negar ao mesmo tempo o mesmo predicado do mesmo sujeito: “Deus é aquilo

acima do qual não se pode pensar nada de maior e Deus é aquilo acima do qual se pode

pensar algo de maior”. A negação da existência de Deus é racionalmente absurda. A

afirmação da existência de Deus é racionalmente evidente. A conclusão é, pois: “sem

dúvida, portanto, algo acima do qual não se pode pensar nada de maior existe, quer no

intelecto, quer na realidade”. Mas, porque então o insipiente diz em seu coração que

Deus não existe? Anselmo distingue entre o simples pensar (cogitare) uma palavra, que

é uma voz significativa (vox significans) e o entender o que é significado com ela, ou seja,

entender a coisa mesma, aquilo que ela é (intelligere id ipsum, quod res est) (Capítulo

IV). Se se entende aquilo que se pensa, quando se nomeia “aquilo acima do qual não se

pode pensar nada de maior”, não se pode pensa-lo como não existente (Capítulo III).

Um monge contemporâneo de Anselmo, de nome Gaunilo, porém, não ficou convencido

com a demonstração. Por isso, escreveu um livro intitulado “Liber pro insipiente” (Livro

em favor do insipiente). Para ele, a passagem do “esse in intellectu” (ser no intelecto)

para o “esse in re” (ser na realidade) não é evidente. Há uma diferença entre o ser

pensado e o ser real. Eu posso pensar uma ilha no oceano que ultrapasse a todas as

outras em seus atributos e essa ilha não existir realidade. A resposta de Anselmo é que

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Deus não é uma ilha. Isto quer dizer que Gaunilo não observou a singularidade deste

ente cuja existência está em questão nesta demonstração. O argumento de Gaunilo

poderia valer para um ente qualquer, mas não para o ente supremo. Entretanto, a

objeção de Gaunilo abre a perspectiva de uma objeção que sempre de novo se repetiu

contra o argumento único do Proslogion: o argumento de Anselmo faria um salto

indevido da ordem do pensar para a ordem do ser, pois afirma que, pelo fato de não se

poder pensar Deus como não existente, deve-se concluir que ele existe realmente.

Entretanto, Anselmo distingue, sim, estas duas ordens e afirma que a ordem do ser é

maior do que a ordem do puro pensar. É justamente tendo isso como pressuposto, que

ele afirma que não se pode dizer que Deus existe só no pensamento e não na realidade

e que se deve dizer que Deus existe, quer no pensamento, quer na realidade.

O argumento de Anselmo provoca uma reflexão relevante sobre pensar e ser. Parece

pressupor uma identidade entre pensar e ser: as leis do pensar seriam também as leis

do ser. Não se pode pensar Deus como não existente, logo, Deus existe. Uma tese assim

teria sentido se fosse pressuposta a identidade de pensar e ser. Entretanto, Anselmo

supõe uma diferença entre o ser-pensado (esse in intellectu) e o ser realmente (esse in

re). O que ele afirma que Deus não pode ser pensado como algo que existe apenas no

pensamento. Quem entende aquilo que está dizendo, quando fala de Deus, não pode

pensa-lo como não existente. Essa impossibilidade não é somente psicológica; nem

somente lógica; mas é ontológica; ou seja, ela não é fundamentada somente na “ratio”

(razão) do homem, mas também na “ratio rei” (no sentido da coisa mesma) e trata-se

de uma “ratio necessaria” (razão necessária). Com este argumento, será que Anselmo

pretende encerrar Deus no limite de um conceito e da razão humana? A resposta é: não.

A própria expressão usada para designar Deus – aquilo acima do qual não se pode pensar

nada de maior – aponta para a grandeza transcendente do sujeito em questão. Anselmo

sabe que Deus é maior do que aquilo que o homem pode pensar dele: quod maior sit

quam cogitari possit (que é maior do que aquilo que se pode pensar). Deus não é um

primeiro ente no universo dos muitos entes. Entre o ente supremo e o fundamento pelo

qual tudo o que é, é, há uma diferença abissal. Dizer que Deus é o ente supremo,

entendendo esta excelência em sentido relativo e ôntico, é ainda pouco. É preciso dizer

muito mais, isto é, é preciso apontar para a sua excelência no ser, enquanto aquilo pelo

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que tudo o que tem o ser, ou melhor, enquanto “vere esse”, ser em sentido verdadeiro,

ou seja, o ente que tem a singularidade de ser a pura, simples e absoluta perfeição do

ser. Quem pensa Deus não pode somente chegar ao limite do pensável, deve também,

em pensando-o, ultrapassar esse próprio limite. A expressão “aquilo acima do qual não

se pode pensar nada maior” é um convite a pôr-se no limite do pensável e a ali intuir o

que ultrapassa todo o pensável: a plenitude pura e simples, absoluta do “ens a se” (ente

que é a partir de si), melhor, do “vere esse” (ser em sentido verdadeiro e próprio).

O modo como Anselmo abordou a relação entre fé e razão se tornou paradigmático para

a teologia escolástica. Sua teoria da significação e da denominação influiu na elaboração

de uma doutrina da “analogia entis” (analogia do ente), que iremos estudar em Tomás

de Aquino. Sua abordagem lógica da gramática influiu na lógica linguística do século XII

(Gilberto de Poitiers e Pedro Abelardo) e sua abordagem ontológico-categorial da

gramática influiu na elaboração de uma gramática especulativa no século XIII (Roger

Bacon, Tomás de Erfurt). Mas, o que fez história mesmo ao longo dos séculos foi o

“argumento único” do Proslogion. Na Idade Média, estão a seu favor Guilherme de

Auxerre, Boaventura, Mateus de Aquasparta, Egídio Romano e Duns Scotus. Já Tomás

de Aquino e Guilherme de Ockham não o aceitam. Descartes o assume, desligado do seu

contexto. Kant o critica e rejeita. Hegel o apoia. Cada um, a partir de sua perspectiva de

pensamento. O que não se pode negar é que Anselmo foi uma autoridade para os

medievais e constitui também um pensador respeitado também pelos pensadores

modernos. E, se os continentais hoje o consideram devido aos seus temas, os analíticos

o retomam devido ao rigor formal lógico de suas exposições e devido à sua teoria lógico-

semântica.

III.3. O SÉCULO XII

Os homens do século XII respiram ares de modernidade: já não se acham simplesmente

como herdeiros dos antigos, mas também como iniciadores de algo novo. Coisas novas

vão acontecendo em todos os campos da vida destes homens. Por toda a parte sopram

novos ares. Para entendermos bem o contexto da filosofia no século XII, vamos tentar

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descrever as principais correntes de renovação e as confluências culturais, intelectuais

e espirituais que estas correntes, não sem tensões e conflitos, sofrem no dinamismo que

marca a vitalidade do espírito deste tempo.

III.3.1. CORRENTES DE RENOVAÇÃO HISTÓRICA NO SÉCULO XII

Politicamente, o século XII assiste ao nascimento da rivalidade franco-inglesa e à

continuação dos confrontos entre cristandade e islã (II e III cruzadas). A aristocracia,

composta pelos cidadãos nobres ou cavaleiros, são ainda a classe dominante. As cortes

dão origem a toda uma cultura dos relacionamentos de vassalagem entre vassalos e

suseranos, entre cortesãos e reis. A cultura cortesã assiste ao surgimento dos romances

de cavalaria, que exaltam o “fin’amour” (fino amor) dos franceses ou a “hohe Minne”

(alto amor) dos alemães. Ficção poética ou não, trata-se de uma concepção muito

própria do amor. O “amor cortês” (amor curialis) se distingue do amor conjugal. Dá-se

no relacionamento de um cavaleiro com uma dama, que não é sua esposa. Era

apresentado um exercício de nobreza, pois implicava um relacionamento

desinteressado, que não estava em vista de uma sociedade conjugal e familiar, nem de

descendência. Não obstante, tal amor era visto como perigoso por muitos, pois era

nitidamente erótico e parecia induzir ao adultério. Nos romances de cavalaria, as regras

de devotamento e devoção do vassalo para com o seu senhor se transferem para a dama

ou senhora (cortesia).

Já no fim do século XII aparecem na coorte de Aquitânia poemas destinados a cavaleiros,

que desenvolvem uma nova concepção da relação homem-mulher, ao menos no plano

poético, se não no plano real. A fonte de inspiração é tirada no De amicia, de Cícero. O

maior poeta e trovador francês do século XII foi Chrétien de Troyes, entre outras coisas,

foi autor de um ciclo de histórias relacionadas com o Santo Graal, com o rei Artur e os

cavaleiros da távola redonda, como Lancelote e Percival. Emergem, assim, romances

como o de Erec e Enida, Lancelote e Guinevere, Tristão e Isolda. No século XIII, o “Roman

de la Rose” (Romance da Rosa), de Guilherme de Lorris, completado por João de Meun,

vai representar as vicissitudes e peripécias, as venturas e desventuras da “ars amandi”

(arte de amar) em forma de poema alegórico.

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O século XII é também o tempo do renascimento das cidades: é a hora da revolução

comunal. Com as comunas, aparecem também as escolas urbanas: as escolas de

dialética, com a de Abelardo, e as escolas catedrais. Se nas escolas monásticas, os

estudos estavam voltados para a contemplação, e o pensamento trabalhava no silêncio

do claustro, nas escolas urbanas, estão voltados pra a comunicação, para a “doce e

frutífera conexão entre a razão e a palavra”, isto é, para a linguagem, que funda e

fundamenta o convívio entre os homens das cidades. As artes liberais revigoram-se. No

campo do trivium, a gramática e a dialética são cultivadas apaixonadamente. No campo

do quadrivium, o estudo da natureza, cultivado numa perspectiva platônica, sugerida

pelo Timeu, recebe novo impulso. Erguem-se, assim, as escolas de São Vitor e de

Chartres, como representantes, respectivamente, de uma e outra tendência.

Nesse tempo, a própria vida monástica se renova, com a fundação de numerosas

abadias cistercienses. O representante mais insigne desta espiritualidade é Bernardo de

Claraval. Ele renovou os estudos monásticos, assumidos na linha da tradição de Anselmo

e Agostinho. Promoveu o estudo das letras latinas. Com ardor cavalheiresco, levantou

as armas da eloquência em favor da “Scola Christi” (Escola de Cristo) contra a Babilônia

cultural de seu tempo, sob cuja ótica via os mestres da dialética, como Abelardo.

Mas a mística deste tempo é também feminina. Desponta em primeiro plano a figura de

Hildegarda de Bingen (1098-1179). A abadessa de Bingen (Renânia, Alemanha) foi uma

mulher culta, que conhecia as letras latinas, e, além disso, foi compositora, poetisa e

grande observadora da natureza: das pedras, das plantas e dos animais. Numa época

em que os mosteiros femininos dependiam dos masculinos, ela rompeu com o costume

e fundou o seu próprio mosteiro. Manteve correspondência com papas, imperadores,

bispos, abades e reclamava veementemente uma reforma dos costumes, dominados

pela corrupção e pela simonia. Sua obra prima, intitulada “Scivias” (Conhece os

caminhos), apresenta entre visões e especulações, as vias da união mística entre o

humano e o divino. Ela abrirá um caminho que será trilhado por outras mulheres

extraordinárias da Idade Média: Hadewich de Amberes, Clara de Assis, Ângela de

Foligno, Catarina de Siena, Matilde de Magdeburgo, Juliana de Norwich, entre outras.

Através delas, o fin’amour se transpõe e se expressa com voz feminina para o campo da

mística.

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Enquanto isso, são envidados esforços para sistematizar o saber deste tempo. Nascem,

a partir do método dialético do sic et non (sim e não) de Abelardo, os livros das

Sentenças, que tem em Pedro Lombardo, o principal autor. Nasce também a literatura

das Sumas, que irá ter tanta importância no século seguinte.

É na segunda metade do século, porém, que outro movimento de renovação cultural se

despontará. Trata-se da apropriação dos escritos árabes e aristotélicos. O epicentro

deste movimento, levado a cabo por cristãos moçárabes e por cristãos do norte, estava

em Toledo, que tinha sido retomada na empreitada da reconquista no ano de 1085. Um

século depois desta retomada põe-se em movimento toda uma atividade de tradução

do corpus filosófico greco-árabe. Os principais tradutores eram: Gerardo de Cremona,

João Hispano e Domingo Gundissalino. Outra corrente de tradução vem da Itália,

especialmente da Sicília. Trata-se da atividade de helenistas que tinham contato com

Bizâncio e que traduziram textos de Aristóteles diretamente do grego. Destes,

destacam-se Tiago de Veneza e Henrique Aristipo. Foi a partir da atividade destes

homens que, no século seguinte, foi possível uma imensa e decisiva renovação do

pensamento medieval, em cuja vanguarda estiveram Alberto Magno e Tomás de

Aquino.

III.3.2. HERMENÊUTICA DA HISTÓRIA NO SÉCULO XII

O primeiro milênio do cristianismo foi marcado por uma consciência histórica vivida às

portas do Juízo final. O sentido escatológico da história dava à vivência do tempo um

caráter de decisão eterna. Era tempo de vigilância e discernimento contínuo, pois, a

qualquer momento, o Anticristo podia iludir os homens sobre o bem e o mal e seduzi-

los. Em todo o momento se vivia a experiência da decadência e do declínio. “Cadit

mundus” (o mundo cai), já dizia Jerônimo, em plena época da decadência do Império

Romano (séc. V). No século XII, Hugo de São Vitor ainda fazia uma leitura da história,

percebendo no Ocidente o lugar do declínio, não só do sol, mas também da humanidade

terrena. A história caminha do oriente para o ocidente, como o sol. No oriente estava o

primeiro homem. Dos grandes impérios orientais, que inclui Assírios, Caldeus e Medos,

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o movimento da história chega ao ocidente, primeiro com os Gregos e por fim com os

Romanos.

Na leitura do Apocalipse de Hildegarda de Bingen, porém, a aterrorizante imagem do

Juiz que está às portas cede lugar para a revigoradora imagem do Esposo que retorna e

que traz a primavera, após longo inverno. Hildegarda lê o tempo da Igreja como um

tempo de viuvez, em que a Esposa (a Igreja) e o Espírito anseiam pelo retorno do Esposo

(Cristo). Ela lê o Apocalipse à luz do Cântico dos Cânticos de Salomão, o poema de amor

do Antigo Testamento. A história já não é vista como a marcha dos tempos para o fim

glorioso, isto é, para o triunfo do Reino de Deus, mas muito mais como as vicissitudes e

peripécias do encontro, desencontro e reencontro de amor entre Deus e a humanidade.

O mistério tremendo da história esconde no seu bojo o mistério fascinante do amor

divino que busca o amor humano.

Toda vitalidade espiritual e o sentido de renovação do século XII irrompe, enfim, na

consciência histórica do controvertido monge calabrês Joaquim de Fiori (c. 1132-1202).

Nele a consciência da história se transforma em profetismo. Como ele mesmo

reconhece, em seu caráter e estilo há algo de “rusticus et impolitus”, isto é, algo de

tosco, áspero, solitário, quase selvagem. Foi monge cisterciense, mas quis fundar o seu

próprio mosteiro e conseguiu a aprovação do papa Celestino III. Encontrou apoio Junto

do papa Clemente III, que o incentivou em seu projeto de escrever comentários

exegéticos à Bíblia. Contudo, no pontificado de Inocêncio terceiro seus escritos

começaram a ser alvo de suspeitas, sobretudo no tocante à teologia trinitária. Quando

ocorreu a condenação de algumas de suas opiniões, no Concílio Lateranense IV (1215),

Joaquim já estava morto (morreu em 1202).

Depois da “Cidade de Deus” de Agostinho, a obra de Joaquim de Fiori representa a

segunda grande teologia da história. Tendo peregrinado à Jerusalém terrena,

reconquistada pelos cristãos, Joaquim era um homem que considerava iminente a

descida dos céus da Jerusalém Celeste, ou seja, o fim apocalíptico da história. Não por

acaso que uma de suas obras principais tenha sido a sua Expositio in Apocalipsim

(Exposição sobre o Apocalipse). Outra importante obra de Joaquim intitula-se Liber

concordiae Novi et Veteris Testamenti (Livro da Concordância entre o Novo e o Velho

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Testamento). Nesta obra, Joaquim desenvolve o seu método exegético, o método da

“concórdia”, que, calcado sobre o sentido literal do texto bíblico, procura descobrir

concordâncias entre três tempos da história, lida teologicamente como “história da

salvação”, a saber, o tempo do Velho Testamento (Antiga Aliança), do Novo Testamento

(Nova Aliança) e da Igreja. Nas interpretações bíblicas de Joaquim, a história de Cristo

reproduz a história de Israel e a história da Igreja, a história de Cristo. E ele procura

descobrir paralelismos entre estas três histórias de uma única história. No passado há

uma força de futuro, exposta pelos profetas, que são os hermeneutas do presente e os

guardiões da iminência. Por isso, o passado retorna sempre de novo. Contudo, aos

poucos, a perspectiva cristológica vai cedendo lugar a uma chave de interpretação

trinitária. A história se transforma numa teofania da Trindade. À era do Pai, o Antigo

Testamento, sobreveio a era do Filho, que é o Novo Testamento. Por sua vez, à era do

Filho deve advir a do Espírito Santo. Nesta nova era (aion/aevum), a Igreja deveria passar

por um processo de espiritualização, de um retorno ao evangelho, à humildade e

pobreza do início. A voz de Joaquim se erguia, assim, como uma entre outras que, nos

séculos XII e XIII vão apresentar ideias evangelistas e pauperistas de renovação do

cristianismo. Não à toa, muitos dos homens do século XIII vão ler à luz da esperança

joaquinista o aparecimento, no século XIII, de Francisco de Assis e sua proposta de um

retorno radical à pobreza evangélica. Este seria o anjo da paz que vem anunciar a nova

era, a do Espírito. Esta será, por exemplo, a leitura de Pedro de João Olivi e dos

chamados “espirituais” franciscanos, como Ubertino de Casale e Ângelo Clareno,

grandes propugnadores de uma conversão da Igreja para o evangelho e a pobreza

evangélica.

Há ainda um vínculo entre esta concepção da história e aquela do idealismo alemão, em

plena modernidade. Schelling cita expressamente o abade calabrês Joaquim de Fiori. Em

“Filosofia da Revelação”, toma o tríptico Pedro-Paul-João como imagem da Trindade na

história. O Pai reina no passado, o Filho no presente e o Espírito Santo no futuro. Assim

como o Antigo Testamento foi dominado pela figura de Moisés, Elias e João Batista,

também o Novo Testamento é dominado pelas figuras de Pedro-Paulo-João Evangelista.

Moisés e Pedro representam a Lei e a estabilidade da Tradição (Tese); Elias e Paulo, a

antítese, ou seja, a liberdade e o dinamismo criativo; João Batista e João Evangelista, a

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síntese, quer dizer, a superação e reconciliação entre os opostos, a consumação no amor

plenamente espiritual. Hegel não cita Joaquim de Fiori, mas é sabido que haure o

método dialético das leituras teológicas e teosóficas especialmente de Jacob Böhme,

cujas influências medievais são notórias. Na juventude, Hegel mostra preferência pelos

escritos de João. Este representaria a síntese da religião do espírito e do amor. A história

não é outra coisa que o desenvolvimento do reino do Espírito, ela é fenomenologia do

Espírito, assim como era para Joaquim de Fiori uma teofania da Trindade. Para Hegel, a

fenomenologia é a marcha do Espírito que caminha para o conceito de si mesmo. O

Reino do Pai seria, assim, a Idéia indeterminada; o reino do Filho, a Idéia estranhada; e

o reino do Espírito, a Idéia que retorna a si mesma no conhecimento de si (conceito).

III.3.3. BERNARDO DE CLARAVAL

Enquanto especulativa, a teologia mística do século XII guarda vínculos íntimos com a

filosofia. Como contraponto ao empenho de uma teologia dialética, ela acentua o

caráter afetivo do conhecimento de Deus, ou seja, que, em relação a Deus, conhecer e

amar são o mesmo. O conhecimento é, assim, interpretado em termos de um espiritual

experiri (experimentar), sentire (sentir) e videri (ver). Esta impostação afetiva e

introspectiva, por sua vez, produziu finas observações psicológicas e antropológicas,

além de consistentes reflexões teológicas.

Bernardo de Claraval (1090-1153) foi um abade cisterciense de grande influência na vida

política e eclesiástica de seu tempo. Opôs-se à suavidade da reforma monástica de

Cluny. Teve um papel importante no incentivo à Segunda Cruzada (1146). Para o seu

primo Hugo de Payns, mestre da Ordem militar dos Templários, escreveu um elogio da

nova cavalaria. Foi ferrenho opositor dos dialéticos, especialmente de Pedro Abelardo e

de Gilberto de Poitiers. Com a ajuda de seu discípulo Guilherme de Saint Tierry,

Bernardo escreveu um Tratado sobre alguns erros de Abelardo. Com o apoio do

arcebispo de Reims, Joscelino, conseguiu a condenação de Abelardo (1141). Pedro o

Venerável, porém, abade de Cluny acolherá Abelardo até a sua morte em seu mosteiro.

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Entretanto, para além de suas lutas e polêmicas, Bernardo é um teólogo da mística e um

fino conhecedor da psicologia e da antropologia. O homem foi criado à imagem e

semelhança de Deus, apto a participar de sua glória e felicidade e da abundância de seus

bens. Ele é “capax Dei” (capaz de Deus). O que torna o homem capaz é, porém, a sua

vontade livre. A liberdade é a nota distintiva da imagem e semelhança de Deus no

homem. Mas, em que consiste a liberdade da vontade? Antes de tudo, é liberdade da

necessidade (libertas a necessitate) e liberdade da coação (libertas a coactione). Esta

liberdade-de é a condição de possibilidade do poder de consentir ou dissentir. Enquanto

livre arbítrio, porém, o exercício da liberdade requer conhecimento e julgamento. Neste

sentido, o ato volitivo vem sempre acompanhado de um ato cognoscitivo. O livre arbítrio

não é somente autodeterminação, mas também autojulgamento. Esta liberdade do livre

arbítrio não pode ser cancelada por nada, nem pelo pecado. Contudo, embora condição

necessária para a liberdade, o livre arbítrio não é suficiente. É preciso outras duas formas

de liberdade: a “libertas consilii” (liberdade de conselho), que consiste na faculdade de

ponderar os motivos da própria decisão; e a “libertas complaciti” (liberdade de

comprazer), que consiste em ponderar aquilo que agrada e aquilo que desagrada. Estas

duas formas, porém, o homem pode perder. O pecado, com efeito, leva o homem a

perder ambas estas formas de liberdade. Só a posse destas três formas de liberdade

torna o homem livre. Por isso, para ser livre, o homem precisa usar de seu livre arbítrio

para alcançar a sua libertação do pecado.

O primeiro passo na libertação é a renúncia à “vontade própria” (vontade egoísta). Em

segundo lugar, o homem precisa submeter sua vontade à verdade e elevá-la nos degraus

do amor espiritual. Somente assim a “anima magna” (alma grande) do homem deixa de

ser uma “anima curva” (alma curva) para ser uma “anima recta” (alma reta). Quando o

homem se encontra encurvado sob o peso do pecado, o amor que ele conhece é

somente o amor carnal, que é o amor egoísta. É este amor que se degenera em

concupiscência (cobiça), que é o amor egoísta a extravagar os limites da necessidade.

Para que o homem alcance, pois, a libertação e se erga a si mesmo, ele precisa superar

o amor egoísta e se pôr no movimento do amor desinteressado, a caridade, abdicando

à “vontade própria” e abraçando a “vontade comum”. A caridade é, enfim, a força que

eleva o homem restaurando nele a semelhança divina. O caminho de retorno do homem

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para Deus passa, segundo Bernardo, por três estágios. Ele começa com a humildade, ou

seja, o reconhecimento da própria miséria. O segundo estágio consiste em o homem se

compadecer com as misérias dos outros homens. O terceiro estágio acontece quando o

homem, purificado, volta o seu olhar para a contemplação das coisas invisíveis.

Bernardo fala também de quatro degraus do amor. No primeiro degrau, o homem ama

a si mesmo sob o império da necessidade (amor carnal). No segundo, o homem ama a

Deus, mas não por Ele mesmo e sim por seu próprio interesse. No terceiro, o homem

ama a Deus por Ele mesmo, mas também tem em vista o seu próprio interesse. Raros

são os que, nesta vida, ultrapassam este degrau e alcançam o quarto e último, onde o

homem ama-se a si mesmo única e exclusivamente por causa de Deus. Aqui o homem

se torna uma perfeita semelhança a Deus. Nesta perfeita assemelhação ou deificação o

amor de Deus e o amor do homem não se excluem, mas se identificam, tornando-se

uma só coisa.

Importante notar, nesta teologia mística de Bernardo, a concepção que ele tem da

humildade. Na sua abordagem a clássica definição da humildade como “desprezo de si

mesmo” é reinterpretada ontologicamente como “aniquilação do criado”. No século XIII,

a questão De humilitate (Da humildade), disputada por Boaventura (1255) e o tratado

de um anônimo franciscano intitulado “Compendium de virtute humilitatis” (Compêndio

da virtude da humildade) dão prosseguimento à perspectiva aberta por Bernardo. Há

dois tipos de ser: o da natureza e o da graça. Na ordem da natureza, a humildade é

conhecimento da verdade de nós mesmos, que vem da consideração de nossa niilidade

(do nosso nada criatural). Na ordem da graça, a humildade é o reconhecimento severo

da consciência, que nasce do conhecimento de nossa própria niilidade como pecado. A

humildade da verdade é a raiz de outras virtudes, como a paciência, a magnanimidade

e a constância. Considera como um nada tudo aquilo de que o homem se gaba em sua

soberba. Esta elevação que a humildade traz consigo é a fonte da verdadeira

magnanimidade, tão louvada na ética aristotélica e estoica. Neste escrito franciscano,

pela primeira vez na história da língua latina, aparece o termo “nihileitas”, niilidade, cuja

ideia será retomada mais tarde também nos escritos de outro grande místico

especulativo medieval: Mestre Eckhart. Bernardo de Claraval, portanto, deixará marcas

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profundas na mística medieval, nos vitorinos, nos franciscanos e em Eckhart. Dante o

escolherá como guia, na Divina Comédia, para o caminho da união mística.

III.3.4. A ESCOLA DE SÃO VITOR

A escola claustral de São Vitor foi fundada junto de uma capelinha nos arredores de

Paris, por Guilherme de Champeaux, ex-mestre de Abelardo, que, após ter sido

derrotado pelo discípulo, ali se refugiou. Dentre os grandes nomes que despontaram

naquela escola, sobressaem os vitorinos: Hugo de São Vitor (+ 1114) e Ricardo de São

Vitor (+ 1173).

Hugo, saxão, é o maior representante da escola de São Vítor. Suas obras mais

importantes são: o Didascalikon de studio legendi (Instrução a cerca do empenho de ler),

traduzido em português como “Da arte de ler”, uma exposição sobre o estudo das

ciências (artes, disciplinas), bem como sobre a leitura da Sagrada Escritura; e o De

Sacramentis fidei christianae (Dos mistérios da fé cristã), uma das primeiras sumas

teológicas da Idade Média ocidental. Hugo também comentou a obra Hierarquia Celeste,

do Pseudo-Dionísio Areopagita, e seu comentário serviu de referência para toda a

escolástica. Do Didascalikon podemos ressaltar sua compreensão da filosofia e de todas

as artes (disciplinas ou ciências) que ela abrange.

Hugo denomina de “ars” (arte) aquilo que é objeto de aprendizagem (disciplina) ou de

ensinamento (doctrina, institutio, didascalikon). “Ars” traduz a palavra grega “techne”.

“Techne”, em grego, ou “ars”, em latim, é, originariamente, um saber, que é um saber

fazer, um saber produzir. Trata-se de um saber que é poder: habilidade, competência.

Junto com a “techne” costuma aparecer a “episteme”, que os latinos traduziram por

“scientia”, “disciplina”. “Episteme” significa, porém, originariamente, habilidade e

denota também conhecimento. A palavra vem do verbo “epistamai”, que significa ser

capaz, ser hábil; e, daí: saber, no sentido de poder, ou seja, de dominar um assunto, de

entender de algo, de ser perito em um determinado campo de conhecimento. Ambos

os sentidos de “techne” e “episteme” convergem para a palavra latina “ars”, que é da

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mesma raiz das palavras gregas “areté” (competência, excelência, virtude) e “aristós” (o

melhor, o excelente). Enfim, “ars” significa um saber excelente, que tem a característica

de poder, ou seja, de competência ou domínio de um determinado âmbito de

conhecimento. Arte é, enfim, técnica e ciência, saber fazer e poder compreender alguma

coisa. Era assim que os medievais denominavam tudo aquilo que o homem podia

aprender e ensinar. No Didascalikon Hugo apresenta uma exposição das artes que

compõem a filosofia.

A origem de todas as artes é a Sapiência, na qual reside a forma do bem perfeito. Trata-

se da Mente de Deus, de seu Pensamento, melhor ainda, do Logos, que é a segunda

pessoa da Trindade: o Filho. A Sapiência, portanto, não é algo, mas alguém, o filho de

Deus, o Logo ou Verbo em que todas as coisas foram pensadas e ditas, de antemão, na

eternidade; em que reside o saber criador divino, pois é por meio desta Sapiência que

todas as coisas foram, de antemão, projetadas. Ela é a própria Arte eterna de Deus. Nela

estão os arquétipos de todas as coisas que foram, são ou serão no universo. A Sapiência,

por sua vez, ilumina o homem para o conhecimento de si mesmo. Hugo recorre, no

princípio, ao imperativo apolíneo, retomado por Sócrates, do “gnoti seauton” (conhece-

te a ti mesmo). Para o homem, porém, conhecer-se a si mesmo é conhecer a todas as

coisas. De fato, a mente do homem traz impressa em si mesma a semelhança de todas

as coisas. O semelhante conhece o semelhante, diz um antigo princípio grego. A mente

pode conhecer todas as coisas, pois ela traz em si a semelhança de todas as coisas. Mais:

ela é, de certa maneira, todas as coisas, como dizia Aristóteles. Hugo diz que a mente

contém virtualmente ou potencialmente todas as coisas. Ela pode convir com tudo e

conhecer tudo. Ela é uma abertura ao Todo. Este é o fundamento de toda aprendizagem

e de todo o conhecimento, enfim, de toda arte.

A filosofia é o amor da Sapiência. Este amor é, antes de tudo, procura. O filósofo é

alguém que busca, procura, investiga a Sapiência. Depois, este amor é também amizade,

afinidade, acordo, harmonia com a Sapiência, que é a Mente Divina. Filosofia é, assim,

amizade com a divindade e com a sua mente pura. Esta amizade conduz o homem à

assemelhação com a divindade. O amante torna-se semelhante ao amado, identifica-se

com ele. A semelhança ou identidade com Deus, ressaltada por Platão e pelo

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neoplatonismo, é a consumação da busca filosófica. Graças a esta assemelhação ou

identificação, a mente humana é iluminada e retorna à sua fonte.

A filosofia tem a sua raiz na transcendência do espírito humano, ou seja, na sua

capacidade de, pelo conhecimento, ultrapassar todas as coisas sensíveis e apreender

todas as coisas em sua inteligibilidade. Ela realiza a potencialidade da mente humana de

abranger todas as coisas intelectualmente. “Philosophia est disciplina omnium rerum

humanarum atque divinarum rationes plene investigans” (filosofia é a aprendizagem

que investiga de modo pleno as razões de todas as coisas, das coisas humanas e das

coisas divinas). Ela é, portanto, uma ciência universal. Nenhum saber ou arte está

excluído dela. O que decide se um saber é filosófico não é, portanto, o conteúdo do que

é estudado, mas a forma. À medida que se interroga pelas razões das coisas, tudo

pertence à filosofia. Por exemplo, a agricultura, enquanto o exercício da arte de cultivar

o solo é um saber que pertence ao agricultor, já a investigação racional sobre esta arte

e seus princípios ou razões pertence ao filósofo. Desta maneira, a filosofia abrange todos

os atos do homem: ela é a “moderatrix actionum”, a moderadora das ações dos homens.

As ações dos homens têm, por sua vez, dois escopos: prover às necessidades da vida e

reparar a imagem divina na própria alma. As ações que visam reparar a imagem divina

no homem são chamadas de atos divinos e sua forma de compreensão se chama

inteligência. As ações que visam prover às necessidades da vida são chamadas de atos

humanos e sua forma de compreensão se chama ciência. Portanto, a Sapiência abrange

tanto a inteligência, voltada para o divino, quanto a ciência, voltada para as

necessidades da vida. A filosofia investiga, pois, as razões das coisas divinas pela

inteligência e das coisas humanas pela ciência. A inteligência trabalha na investigação

da verdade e na reflexão dos costumes. O primeiro trabalho corresponde à dimensão

teórica ou especulativa da filosofia; o segundo, à dimensão prática ou ética da filosofia.

A ciência, por sua vez, trabalha nas obras humanas, que têm por escopo prover às

necessidades da vida.

Os saberes da ciência, que são um determinado saber fazer e saber produzir, chamam-

se artes. Toda arte é uma forma de produção (em grego, poiesis), mas nem toda

produção é arte. A produção consiste em fazer passar algo da não vigência (não-ser)

para a vigência (ser). Em toda a produção, o que está em jogo é a atuação e consumação

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de uma obra. Há três obras: a obra de Deus (opus Dei), a obra da natureza (opus naturae)

e a obra do artífice, que imita a natureza (opus artificis imitantis naturam). A obra de

Deus consiste em criar o que não existia. A obra da natureza, em trazer para a realidade

(ad actum) aquilo que estava escondido. A obra do artífice consiste em unir as coisas

separadas (disgregata coniungere) e separar as coisas unidas (coniuncta disgregare). A

obra do homem imita a da natureza. A natureza provê àqueles que não podem prover a

si mesmos os recursos para satisfazer às suas necessidades. O homem, porém, que pode

prover a si mesmo as condições da satisfação de suas necessidades naturais, nasce

desprovido pela natureza. Por isso, o homem precisa inventar, isto é, encontrar com a

razão as formas de satisfazer às suas necessidades. Desta capacidade inventiva ou

engenhosidade do espírito humano é que nascem as artes que proveem às necessidades

da vida humana, que são o tributo que o homem paga à sua mortalidade corporal. Elas

visam, pois, administrar o que nutre a vida, o que fortalece contra as moléstias que

podem sobrevir à vida, ou ainda oferecer remédio contra as moléstias já sofridas. Estas

artes que socorrem a indigência corporal do homem são chamadas de “mecânicas”.

Hugo enumera sete artes mecânicas: lanificium, armatura, agricultura, venatio,

navigatio, medicina, theatrica, ou seja, as artes de produzir o vestuário, seja para o uso

civil seja para o militar, nomeadas como lanifício e armadura; as artes de produzir o

alimento, seja vegetal seja animal, nomeadas como agricultura e caça; a arte mercantil

de providenciar, através do comércio, aquilo que não se tem à mão para o uso cotidiano,

nomeado como navegação; a arte de prevenir e de curar as doenças, de vir em socorro

da enfermidade do corpo, nomeado como medicina; e, por fim, a arte do divertimento,

de produzir espetáculos que venham de encontro à indigência da alma, à tristeza,

nomeada como arte do teatro. No século XIII, em lugar do teatro vai-se colocar a

alquimia (Vicente de Beauvais) ou a arte da adivinhação (Arnaldo da Provença). Estas

artes mecânicas visam, portanto, o útil, o agradável e o cômodo. O nome “mecânico”

vem do verbo grego mekhanaomai, que significa ser engenhoso, isto é, ter esperteza

para bolar um plano, saber preparar e executar bem uma obra, manufaturar com

habilidade e competência alguma coisa. É a habilidade de maquinar, tanto no sentido

da esperteza de projetar um artifício, quanto no sentido de tramar com astúcia um ardil.

Daí a aproximação que alguns medievais fizeram com o verbo latino “moechari”, que

significa ser adúltero. Hugo denomina as artes mecânicas de adulterinas. Ele diz que a

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obra do homem é adulterina em relação à obra da natureza da mesma maneira como é

chamada de “mecânica” uma chave furtiva, isto é, aquela cópia que o adúltero tem para

entrar na casa de sua amante. Adulterar tem, aqui, em primeiro lugar, o sentido de

imitar furtivamente uma coisa, como quando se adultera um produto, imitando o

original e fazendo passar a falsificação por algo de verdadeiro. Ora, Hugo observa que

inventividade ou engenhosidade humana, presente e atuante nas artes mecânicas,

consiste na imitação da criatividade da natureza. Além disso, ela traz um risco consigo,

pois ela pode encantar o homem, de modo que o homem passe a procurar e amar as

coisas que estão fora dele e a buscar fora a felicidade que ele só pode encontrar dentro

de si mesmo. Assim, se por um lado, as artes mecânicas são necessárias, por outro, elas

são também sedutoras e podem prender o homem com o seu encantamento, fazendo-

o esquecer-se do autoconhecimento e do conhecimento de Deus. Assim, por causa da

ciência, o homem esquece e abandona a inteligência e, assim, não alcança a Sapiência e

a felicidade que nela se encontra. Ele trai, assim, o amor nupcial da Sapiência pelo amor

adúltero da ciência.

Três dimensões de saber, portanto, compõem a filosofia: a teórica, a prática e a

mecânica. A estas três acrescenta-se uma quarta, que é a lógica. Ela é a última a ser

descoberta pelo espírito humano, que, primeiro investiga a natureza das coisas (filosofia

teórica) e os costumes dos homens (filosofia prática) e só depois se dá conta da

necessidade de se investigar também o modo de falar correta e verdadeiramente sobre

tudo isso (filosofia lógica). A lógica é a disciplina que investiga o logos. Este, por sua vez,

pode ser entendido tanto no sentido da ratio (razão: pensamento discursivo), quanto

no sentido do sermo (discurso, linguagem). A lógica é, assim, composta de “logica

rationalis”, estudo do pensamento discursivo ou raciocínio, e “logica sermocinalis”,

estudo do discurso ou da linguagem. Na lógica está, enfim, presente o trivium: a

gramática pertence à “logica sermocinalis”; e a dialética com a retórica pertencem à

“logica rationalis”. Embora seja a última forma de saber a ser descoberta, a lógica,

entretanto, deve ser a primeira a ser aprendida, pois nela é ensinada a natureza das

palavras e dos conceitos, sem as quais nenhum saber racional (que indaga as razões das

coisas) é possível.

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As artes ou saberes que possibilitam ao homem transcender o horizonte da necessidade,

no qual se movem as artes mecânicas, e se pôr no horizonte da liberdade, prática e

teórica, foram chamadas de artes liberais (artes liberales) ou artes livres. Como sete

eram as artes mecânicas, também sete são as artes liberais: o trivium (ciências da

linguagem: gramática, dialética e retórica) e o quadrivium (ciências matemáticas:

geometria, música, aritmética e astronomia). Hugo coloca o trivium na quarta forma de

saber filosófico: a lógica. E o quadrivium ele faz situar na filosofia teórica.

As duas primeiras formas de saber filosófico são a filosofia prática e a filosofia teórica.

A filosofia prática é também chamada de filosofia moral. Ela visa formar o homem justo

e tem por objeto o exercício da virtude. Ela se articula em três dimensões: a ethica (ética)

concerne ao indivíduo e ensina ao homem ordenar a própria vida pela honestidade dos

costumes e pelo ornato da virtude; a oeconomica (econômica) concerne à casa e aos

domésticos (oikos + nomos = lei da casa, administração da casa) e ensina ao homem

ordenar a vida da família, dos consanguíneos e daqueles que compõem juntos uma

instituição privada; a politica (política) enfim concerne ao povo ou ao reino e ensina a

reger a coisa pública (Estado). A primeira é da responsabilidade do indivíduo como tal e

por isso é também chamada de solitaria (solitária); a segunda é da responsabilidade dos

pais de família; enfim, a terceira é da responsabilidade dos chefes de Estado.

A filosofia teórica ou especulativa começa contém a física, a matemática e a teologia. A

physica (física) investiga as causas em seus efeitos e os efeitos a partir das causas. Hugo

observa que às vezes é denominada de physica toda a filosofia teórica, à medida que

estuda a natureza (physis) das coisas; e, então, a filosofia se divide em física, ética e

lógica, não se incluindo aí a mecânica.

A mathematica (matemática) é chamada de doctrinalis scientia (o saber doutrinal). Em

latim, doctrina (doutrina) vem docere (ensinar); assim como disciplina (disciplina) vem

de discere (aprender). Em grego, matemática remete a mathesis (aprendizagem). O

matemático (elemento ou objeto da matemática) é, neste sentido, aquilo que o homem

por primeiro aprende ou apreende de inteligível no sensível. Ela é o ensino (doctrina)

que se ocupa da quantidade abstrata. Abstrair é, aqui, separar pelo intelecto o que na

natureza está unido. É apreender a forma invisível das coisas visíveis. Segundo a

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linguagem de Boécio, ela é uma atividade inteligível e um meio entre o sensível e o

intelectível. O inteligível é a dimensão suprassensível em contato com o sensível, como

a alma em contato com o corpo. Já o intelectível é o suprassensível puro, sem contato

com o corpo, como os espíritos ou Deus. O suprassensível, por sua vez, é o metafísico. A

matemática é, pois, uma passagem para e uma introdução na metafísica. Por isso que

Platão mandou colocar no frontispício de sua academia uma advertência, que dizia que

quem não fosse “geómetra”, ou seja, quem não fosse capaz de apreender a forma

invisível das coisas visíveis, não deveria entrar ali. A matemática se divide, por sua vez,

nas quatro disciplinas do quadrivium: a aritmética, a música, a geometria e a

astronomia. Hugo diz que a aritmética estuda a quantidade que é tal por si mesma (o

número); a música estuda a quantidade relativa a alguma coisa, ou seja, em relação à

sonoridade; a geometria estuda a grandeza imóvel, ou seja, aquela que se dá na

mensuração das coisas da terra; por fim, a astronomia estuda a grandeza móvel, quer

dizer, aquela que se dá na mensuração dos movimentos dos corpos do céu. Hugo

salienta a força (virtus) do número, pois todas as coisas foram formadas à sua

semelhança. Dentre os números, ele ressalta a importância do número quatro, o

quaternário, pois ele é o retorno à unidade e simplicidade do um, a mônada. Por isso, a

alma e o corpo são regidos pela quaternidade.

Hugo entende, enfim, a theologia (teologia) no sentido que Boécio empresta ao termo,

ou seja, como o estudo do intelectível, quer dizer, de Deus e das substâncias espirituais.

Ele cita Boécio: “o intelectível é aquilo que, permanecendo sempre um e o mesmo por si

em sua divindade, nunca é alcançado por algum dos sentidos, mas somente pela mente

e pelo intelecto. Esta atividade comporta indagação sobre a especulação de Deus, sobre

a imortalidade do espírito e sobre a consideração da verdadeira filosofia, e os gregos –

diz Boécio – denominam isso de teologia” (Didascalicon II 2). Portanto, aqui não se trata

da teologia da fé, mas da teologia como metafísica. A teologia como saber da fé provém

da leitura da Sagrada Escritura.

Após expor as diversas partes da filosofia, Hugo fala da importância de se ter método

no estudo. Segundo ele, três coisas são necessárias aos estudantes: 1) as qualidades

naturais; 2) o exercício; 3) a disciplina. Uma coisa se torna sobremaneira importante na

arte de estudar: a leitura. Há a leitura do docente, a do discente e a do autodidata. Cada

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disciplina deve ter a sua ordem de leitura, dependendo daquilo que se estuda. Quanto

à exposição de um texto, ela deve abranger três níveis: a frase (litteram), o sentido

(sensum), o pensamento (sententia). A frase corresponde à literalidade do texto; o

sentido, ao significado mais acessível e fácil do texto à primeira vista; o pensamento ou

sentença é o entendimento mais profundo, adquirido pela interpretação. No seu

caminho intelectual, o homem deve galgar três níveis: o da cogitatio (cogitação), o da

meditatio (meditação) e o da contemplatio (contemplação). A cogitação consiste na

apreensão intelectual das realidades do mundo. A meditação é um pensar frequente

com discernimento, que investiga prudentemente a causa e a origem, o gênero e a

utilidade de cada coisa. Por fim, a contemplação é a visão do divino. A meditação se faz

especialmente pela leitura. A leitura que por excelência deve ser procurada é a dos

escritos que falam do divino. Há escritos divinos na literatura filosófica, mas, acima

destes escritos estão os textos da Sagrada Escritura. É para o estudo da Sagrada Escritura

que culmina todo o empenho investigativo da “ratio studiorum” (ordem dos estudos) de

Hugo no Didascalicon.

Os estudos culminam na fé, isto é, acima do que a razão por si mesma pode apreender

e compreender. Em relação à razão, o que o homem pode estudar pode ser assim

classificado: há o que é “ex ratione” (a partir da razão), ou seja, as verdades necessárias

(necessaria); há o que é “secundum ratione” (segundo a razão) e isto são os

conhecimentos prováveis (probabilia); há o que é “contra rationem” (contra a razão), ou

seja, aquelas coisas que não são dignas de serem acreditadas (incredibilia); e há, por fim,

o que é “supra rationem” (o que é acima da ou o que transcende a razão), e isto é o

maravilhoso (mirabilia). O maravilhoso, porém, só pode ser apreendido com os olhos

da fé. A fé não é uma falta de visão, mas a visão do que ultrapassa toda a visão da razão.

As coisas da fé, porém, não são irracionais ou antirracionais. Elas são suprarracionais.

Ao homem, com efeito, foram dados três olhos da mente: o oculus carnis (olho da

carne), que é a capacidade de apreensão do sensível; o oculus rationes (olho da razão),

que é a apreensão do inteligível e do intelectível; e o oculus contemplationis, que é a

apreensão do que é secundum rationem (segundo a razão) e supra rationem (sobre a

razão), isto é, do maravilhoso. É aqui que se move o ato da fé.

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Os vitorinos, especialmente Hugo e Ricardo, foram muito bem considerados em seu

século. No século XIII, a teologia e a mística de ambos irá influenciar especialmente o

pensamento franciscano, mormente a São Boaventura que o considerou o maior doutor

dos últimos tempos. Segundo ele, Agostinho foi excelente na ciência da fé; Gregório

Magno, na moral da fé; Dionísio, na mística da fé. Anselmo seguiu a Agostinho; Bernardo

a Gregório; e Ricardo de São Vitor a Dionísio. A autoridade de Hugo, porém, abrange as

três esferas (ciência, moral e mística) e supera o saber dos três grandes mestres do

século XI e XII: Anselmo, Bernardo e Ricardo.

III.3.5. A ESCOLA DE CHARTRES

A escola de Chartres foi fundada já no século XI por Fulberto (+1092), que foi aluno de

de Gerberto de Aurillac (o papa Silvestre II), que teve particular predileção pelo estudo

da matemática e da medicina. O estudo das ciências naturais, da medicina e da

matemática já tinha experimentado um impulso novo na primeira metade do século XII.

O que os latinófonos sabiam de ciências naturais se recolhera na obra de Honório

Augustodunense, que pode ter sido um pseudônimo de um monge que viveu em

Regensburg, na primeira metade do século XII. Este enigmático personagem é autor de

uma obra intitulada “Clavis Physicae” (A chave da física), inspirada em João Escoto

Eriúgena, e de uma outra intitulada “De Imagine Mundi” (Da imagem do mundo) que

expõe a cosmologia de seu tempo. O mundo está em perpétuo movimento. “Mundus”

(mundo) e “motus” (movimento) se identificam. O mundo é redondo e é comparável

com um ovo. A casca seria o céu. Semelhante à clara seria o éter ou fogo. A gema seria

a terra. No centro da terra está o inferno. A terra está no centro por ser o mais pesado

dos elementos. Circundando a terra está a água, que é mais leve, pois escorre sobre a

terra ou, em forma de vapor, sobre para o ar. O ar é um elemento ainda mais leve e se

estende da terra à lua. Da Lua até o firmamento, estende-se o fogo ou éter, que é um

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elemento ainda mais leve e tênue. Dentro do envoltório criado pelo fogo ou éter estão

os sete planetas. A Lua é o primeiro deles. Depois vêm Mercúrio e Vênus. Em quarto

lugar vem o Sol, aquele que sozinho (solus) reina sobre a terra, luzindo sobre todas as

coisas. Depois do Sol vêm mais três esferas celestes: as de Marte, Júpiter e Saturno. A

oitava esfera, depois das sete dos planetas, que se movem no elemento do fogo ou éter,

é a do Céu das estrelas fixas, que é chamado de firmamentum (firmamento) por dar

firmeza a tudo. A nona e última esfera é o céu dos espíritos, inacessível aos homens, o

lugar onde habitam os anjos e os espíritos humanos bem-aventurados. Este é o primeiro

céu, o primeiro móvel (primum mobile), que move todos os outros céus. A revolução das

esferas celestes produz sons maravilhosos, cuja harmoniosa consonância resulta na

mais admirável melodia: a música do universo. Esta música, no entanto, é inaudível aos

ouvidos humanos, pois os sons que ela produz se propaga além do ar e o ouvido humano

só escuta os sons que se propagam no elemento do ar.

Já na primeira metade do século XII, Constantino o Africano prestou um grande serviço

a novos impulsos aos estudos, traduzindo do árabe, escritos de ciências naturais e de

medicina. Constantino nasceu em Cartago e viveu no Egito e no oriente, mas se

estabeleceu em Salerno, na Itália. Depois foi monge em Monte Cassino (mosteiro

fundado por Bento de Núrsia). Adelardo de Bath (+ 1142) também tinha viajado à Sicília,

à Grécia e por terras árabes e traduzira diversos escritos sobre matemática e escrevera

sobre ciências naturais (Quaestiones naturales). Outro tradutor da ciência dos árabes foi

Hermann da Dalmácia, que chegou a traduzir, em 1143, o Alcorão para o latim, tendo

dedicado a sua tradução a Pedro o Venerável, abade de Cluny.

A escola de Chartres absorveu os saberes antigos e os mais recentes em seus estudos.

Grande ímpeto de investigação ela recebeu com Bernardo de Chartres (+ c. 1126). Este

dá grande importância à doutrina platônica das ideias. As ideias são eternas e imutáveis,

são as essências eternas das coisas e se encontram como pensamentos na mente divina.

As ideias são os exemplares segundo os quais tudo ganha forma no mundo do devir.

Imagens destes exemplares são as formae nativae (formas nativas), que atuam na

configuração dos entes naturais como princípios concriativos ou formas imanentes das

coisas materiais e sensíveis.

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O irmão de Bernardo, Tierry (ou Teodorico) (+ c. 1150), tentou explicar o livro do

Gênesis, segundo não pela via tradicional da interpretação alegórico-mística, mas pela

via da interpretação literal, aplicando ali os conhecimentos de física ou cosmologia

(secundum physicam et litteram: segundo a física e o sentido literal do texto). Na sua

cosmologia, entram elementos neoplatônicos e neopitagóricos. Elabora uma teoria

cinética dos elementos. A leveza do fogo e do ar é a causa do seu movimento; este, por

sua vez, é a causa da dureza e espessura, isto é, do peso da água e da terra. Tierry

também elabora uma visão matemática do universo seguindo uma metafísica do

número, de tradição platônico-pitagórica. Ele distingue entre a Unidade (unitas) e o

número. A unidade não é número, mas princípio do número. Ela é o domínio do que é

sempre o mesmo, do idêntico e do imutável, enfim, de Deus. O número, por sua vez, é

o domínio da alteridade (alteritas), do que é sempre diverso e mutável, enfim, da

criatura. Deus, a Unidade, é a forma de ser (forma essendi) de tudo, isto é, todas as

múltiplas coisas que compõem o mundo só são, à medida que recebem o ser da

Unidade, que é Deus. Em Deus, o Pai é a Unidade, o Filho é a Igualdade da Unidade

consigo mesma, e o Espírito é a Verdade, pois uma coisa é verdadeira à medida que ela

é igual à sua unidade. Clarenbaldo de Arras (+ 1170) foi aluno de Tierry e dividiu a

speculatio physica (o estudo especulativo da natureza) em três partes: o estudo das

coisas terrestres (terrestris), o estudo das coisas que estão no ar (sublimis), e o das coisas

que estão nos céus (celestis). Acima da speculatio physica (o estudo da natureza móvel)

vem o a speculatio mathematica (o estudo da quantidade abstrata e imóvel) e, por fim,

a theologia (especulação teológica), ou seja, o estudo dos seres espirituais e de Deus. A

teologia é a parte suprema da filosofia. Theologizare est philosophari (teologizar é

filosofar). Bernardo Silvestre escreveu uma obra, em Tours, entre os anos 1145 e 1153,

que dedicou a Tierry, e que se intitulava De mundi universitate sive Megacosmus et

Microcosmus (Da universidade do mundo ou megacosmo e microcosmo). No Nous ou

Intelecto divino estão, desde a eternidade, as ideias ou formae exemplares (formas

exemplares) de todas as coisas. Do Nous nasce a natureza e, por ela, o “mundus

intelligibilis” (mundo inteligível) se torna “mundus sensibilis” (mundo sensível), onde as

coisas que surgem e perecem são imagens dos exemplares ou ideias que estão na mente

divina, melhor, no Filho de Deus.

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Aluno de Bernardo de Chartres foi Guilherme de Conches (+ 1154). Escreveu uma obra

intitulada “Philosophia” (filosofia). Na sua filosofia da natureza decide, contra o

platonismo e sob influência árabe, pela teoria atômica de Demócrito. Os quatro

elementos, a partir dos quais tudo surge no mundo visível, são compostos de partículas

simples e mínimas, os átomos. Como Bernardo Silvestre e Thierry, identificava a anima

mundi (Alma do mundo) dos neoplatônicos com o Espírito Santo dos cristãos. Guilherme

de Conches foi combatido ferrenhamente por Walter de São Vitor e, por isso,

encarcerado.

Aluno e sucessor de Bernardo de Chartres foi também Gilberto (bispo) de Poitiers

(Gilberto Porretano ou ainda Gilberto Porreta) (+ 1154). Em 1141, ensinou dialética e

teologia em Paris. Assim como Abelardo, foi perseguido por Bernardo de Claraval. No

concílio de Reims, Gilberto e Bernardo travaram um combate acirrado. Difícil foi saber

quem foi vencedor e quem foi o vencido. Sua posição é importante no tocante ao

problema dos universais, levantado por Porfírio e transmitido por Boécio. Na sua

posição, tenta conciliar Platão e Aristóteles. Deus é o artífice e a forma essendi, isto é,

forma que dá o ser a tudo o que é. O que quer que seja, dele recebe o ser e o ser tal

coisa, o ser alguma coisa (aliquid). Na mente de Deus estão as ideias, que são os

exemplares ou arquétipos de todas as coisas. Imagens destes exemplares ou ideias são

as formae nativae (formas nativas). Estas não estão na mente de Deus, mas nas coisas

criadas. Elas se relacionam com as ideias como o exemplo com o exemplar, ou seja,

como a cópia com o modelo, quer dizer, elas guardam uma relação de conformidade

(conformitas) com as ideias. A forma nativa é chamada de eidos e é o princípio

determinante e configurador da coisa sensível. Ela é, portanto, imanente à coisa;

encontra-se nela de forma não abstrata (inabstractae), pois con-cresce com a coisa, quer

dizer, é concrescida, concreta (concretae). Este con-crescimento, por sua vez, se dá junto

com outro princípio: a matéria (hyle). A matéria primeira, informe, é a pura disposição

de receber uma forma. No mundo sensível, toda matéria é formada, isto é, configurada

segundo a força da forma que a modela. Todos os corpos provêm de quatro substâncias

materiais simples, que são os quatro elementos: o fogo, o ar, a água e a terra. Daí vem

os minerais, os vegetais e os animais.

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Como, porém, os universais, isto é, os conceitos de gênero e espécie, são se relacionam

com as formas? Voltando às perguntas de Porfírio: gêneros e espécies subsistem em si

mesmos, isto é, são substâncias? São separados das coisas sensíveis ou se dão nelas e

com elas? Gilberto distingue dois sentidos da palavra substância: 1. Quod est sive

subsistens (que é ou subsistente); 2. Quod est sive subsistentia (que é ou subsistência).

Os gêneros e espécies são subsistências gerais e especiais, mas não coisas subsistentes.

Eles não subsistem de verdade (non substant vere). Nem todas as subsistências, porém,

são universais. Há subsistências universais, como as gerais e especiais, e há subsistências

individuais também, ou seja, aquelas que se encontram somente nos indivíduos. Os

indivíduos se diferenciam uns dos outros não de modo acidental, mas a partir de

propriedades da sua forma. Entretanto, são as coisas subsistentes que dão o ser às

subsistências (res subsistentes sunt esse subsistentiarum). Os conceitos de gênero e

espécie são o produto da abstração que o nosso intelecto realiza. A abstração consiste

em prestar atenção (attendere) à forma, prescindindo do que é material. O intelecto

recolhe, ajunta (colligit) as semelhanças formais entre as coisas e das coisas com os seus

arquétipos. Os conceitos universais são coleções de notas formais distintivas e comuns

entre as coisas. Assim, as formas que são concretas e imanentes às coisas, passam a ter

um ser no intelecto, como universais e abstratas. As coisas são (sunt) e subsistem

(substant). Elas se dão como verdadeiras substâncias, entendendo substância como o

que se dá como res per se subsistens (coisa subsistente por si mesma) e como substrato

ou sujeito (subiectum) dos acidentes. O universal, porém, é (est), mas não subsiste por

si mesmo nem é substrato de acidentes (non substat). Ele é um produto da abstração,

que apreende e recolhe a substantialis similitudo (semelhança substancial) ou a

conformitas (conformidade) entre as coisas individuais.

Um discípulo de Gilberto Porretano, Otto de Freising (+ 1158), dedicou-se especialmente

ao estudo da história. Inspirando-se em Agostinho e em Orósio, Otto escreve uma

Chronica sive historia de duabus civitatibus (Crônica ou história das duas cidades). Esta

obra abraça toda a história da humanidade até o século XII. Traz toda uma história da

filosofia. A história da filosofia recente de seu tempo é contemplada, ao invés, em outra

obra: Gesta Friderici Imperatoris (Feitos do Imperador Frederico), onde o autor vê

acontecer uma “translatio imperii” (translação do império) para os germânicos, na

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dinastia dos Hohenstaufen. Na segunda parte de sua obra aparecem as principais

personagens de seu tempo: Bernardo de Claraval, Abelardo, Roscelino, Guilherme de

Champeaux, Anselmo de Laon, Bernardo e Tierry de Chartres. O mais celebrado de

todos, porém, é Gilberto Porretano.

Outro nome ligado a Gilberto Porretano é o de João de Salisbury (+ 1180). Nasceu em

Sarum, no sul da Inglaterra, mas deixou sua terra e foi para Paris, onde estudou uns doze

anos, inclusive com Abelardo. Depois de escutar vários mestres da dialética, voltou à

Inglaterra, onde participou ativamente da vida política. Foi secretário de Tomas Becket.

Foi feito, enfim, bispo de Chartres. Escreveu um obra política, intitulada “Polycraticus”.

Inspira-se no capítulo XIII da Epístola aos Romanos. Há uma ordem estabelecida que

vem de Deus e se impõe a todos, fracos e poderosos. É preciso obedecer ao princípio,

pois a sua autoridade vem de Deus. Mas o príncipe precisa servir ao povo. A diferença

entre um tirano e o príncipe está em que este se submete à lei e, por meio do seu

julgamento, governa o povo, do qual se estima servidor. O príncipe, detentor do poder,

deve também ser o fiador da equidade. O príncipe é o servidor do bem público e o

guardião da equidade, e é nesse sentido que ele tem um papel público, reparando os

erros e danos e punindo com justiça imparcial e com serenidade os crimes. É em

decorrência dessa função de punir que a ele é dado o “poder do gládio” (espada).

Entretanto, o príncipe é detentor de um poder temporal e, por isso, deve se submeter à

classe sacerdotal, detentora do “poder espiritual”. João de Salisbury escreveu também

uma obra intitulada “Metalogicus”, sobre o valor e a utilidade da lógica. Esta obra traz

diversas notícias sobre questões lógicas de seu tempo, especialmente as posições no

debate sobre os universais. Fala de Roscelino e Abelardo, primeiramente. Roscelino

considera os universais como meras vozes. Abelardo, como termos significativos

(sermones). Além destas posições nominalistas temos também uma terceira posição,

conceptualista. Os que têm esta posição consideram os universais como noções ou

conceitos da mente. Já os realistas afirmam que os universais são reais. Dentre as

variantes, a preferência de João de Salisbury tende para a posição de Gilberto Porretano.

Para este a universalidade baseia-se na semelhança ou conformidade entre as formas

imanentes às coisas individuais (formae nativae) e seus respectivos arquétipos (as

ideias) na mente divina. Para João também, a universalidade decorre das semelhanças

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das coisas entre si e das coisas com os seus arquétipos em Deus. Deus, porém, não cria,

concretamente, coisas universais. Em si mesmas, as coisas são individuais. Elas só são

universais enquanto pensadas. A semelhança entre diversos indivíduos se chama

espécie; a semelhança entre diversas espécies se chama, por sua vez, gênero. Os

universais são ficções (figmenta) do pensamento, mas não são criações arbitrárias, pois

possuem um fundamento nas coisas individuais e em suas formas. João de Salisbury foi

contra o cultivo unilateral e formalista da dialética. Para ele, a dialética era a ciência do

provável e, como tal, mediava entre a sofística e a ciência demonstrativa. Ele propôs

também o estudo das letras clássicas como importante na formação do teólogo.

Alano de Lille (Alanus ab Insulis) (+ 1203) também foi ligado à Escola de Chartres,

especialmente a Tierry, a Bernardo Silvestre e a Gilberto Porretano. Deste último, Alano

levou adiante a proposta de desenvolver um método matemático-dedutivo na teologia.

Esta tentativa já tinha sido tentada por Orígenes e por Boécio. Alano experimenta esta

possibilidade na sua obra De arte catholicae fidei (Da arte da fé católica). A proposta é

partir de axiomas, ou seja, de proposições supremas, máximas ou regras sobre os

mistérios da fé e deduzir daí o conteúdo da ciência teológica. Outro que seguiu Alano

nesta empreitada foi Nicolau de Amiens. Partindo de definições (descriptiones),

postulados (petitiones) e axiomas (communes conceptiones), ele deduz os teoremas

(theoremata) da teologia enquanto ciência da fé. Assim, no fim do século XII, a escola

de Chartres, tão voltada para o estudo da física e da matemática contribui para o

surgimento de uma teologia more geometrico demonstrata (demonstrada ao modo

geométrico). Mais tarde, Spinoza vai seguir este mesmo método para a sua Ética. Assim,

também a teologia se tornou uma ars, um saber racional todo próprio, que articula

razões necessárias, razões prováveis e que se ancora no ensinamento das autoridades:

a Sagrada Escritura e os Padres da Igreja.

III.3.6. PEDRO ABELARDO

Pedro Abelardo (1079-1142) é aquele homem em que a modernidade do século XII, isto

é, a irrupção de um novo modo de ser histórico, se faz visível. Pedro o Venerável o

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saudou como o Aristóteles de seu tempo. Por outro lado, foi ferrenhamente combatido

por Bernardo de Claraval e condenado por dois concílios por causa deste embate.

Abelardo nasceu no Burgo Les Pallet, perto de Nantes, filho do cavaleiro Berengário e

de sua esposa Lucia. Foi aluno de Roscelino de Compiègne, o grande representante do

nominalismo do século XII e de Guilherme de Champeaux, que representava uma

posição de extremo realismo na querela dos universais.

Uma concepção nominalista dos universais já aparece no século XI. Hermann de Tournai,

na primeira metade do século XII, cita alguns nomes de mestres, que ensinavam a

dialética juxta quosdam modernos (segundo o modo dos modernos), ou seja, não

segundo Boécio. Estes consideravam que o estatuto dos universais – qual o tipo de ser

se deva atribuir a eles - se encontrava in voce (na palavra) e não in re (na coisa). Anselmo

afirma que estes “heréticos da dialética” consideravam que os universais não fossem

nada mais do que flatus vocis (sopro da voz). A estes modernos e heréticos da dialética

pertence, sem dúvida, Roscelino de Compiègne, que foi mestre de Abelardo. João de

Salisbury, em seu Metalogicus, diz que a posição segundo a qual os universais, isto é, o

gênero e a espécie, se dão na voz, ou melhor, que as palavras mesmas, em sua sonância

física, é que são universais, surgiu e desapareceu com o próprio Roscelino. O próprio

Abelardo, com efeito, rejeitou a posição extrema do seu mestre. Em vez da tese

“universale est vox” (universal é a voz), Abelardo apresentou outra tese: “universale est

sermo” (universal é o discurso, a linguagem).

Abelardo não aceitou também a posição contrária, a do realismo de seu outro mestre,

Guilherme de Champeaux, o amigo de Bernardo, que, mais tarde, após ter sido

derrotado na disputa com Abelardo, abandonou a dialética e fundou a Escola de São

Vitor. Guilherme ensinava que uma e mesma coisa (res), essencialmente universal,

encontrava-se ao mesmo tempo nos vários indivíduos da mesma espécie, de sorte que

estes não se distinguem quanto à essência, mas apenas pelo conjunto de acidentes.

Depois da disputa com Abelardo, porém, mudou a formulação de sua tese e, em vez de

dizer que a mesma e única coisa (res) existir essencialmente (essentialiter) nos vários

indivíduos, diz que esta mesma e única coisa (res) existe indiferentemente

(indifferenter) nas coisas individuais. Em todo o caso, para ele, o universal era uma coisa

(essencial ou indiferente) que existia nas coisas individuais. Numa perspectiva tão

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realista (realis = aquilo que diz respeito à res, coisa), a dimensão do conceito e do

pensamento se retira completamente.

Abelardo reformula o problema de Porfírio. Este formulou o problema dos universais

com três perguntas. Abelardo apresenta uma quarta pergunta. Na perspectiva de

Abelardo, o problema se apresenta assim: 1. Se os universais (gênero e espécie) têm

verdadeiro ser ou se eles consistem somente em algo pensado e dito (in opinione). 2.

Caso se admita que os universais tenham verdadeiro ser, isto é, existência real, são eles

de natureza corporal ou incorporal? 3. Eles existem separados das coisas sensíveis ou

são imanentes a elas? 4. É necessário que exista alguma coisa correspondente à

denominação dos gêneros e espécies, ou o universal continua a existir “ex significatione

intellectus”, ou seja, a partir da significação do conceito, mesmo se não houvesse mais

nenhum indivíduo que correspondesse àquela denominação? Ex.: se não houvesse mais

nenhuma rosa, a palavra rosa continuaria a ter significado?

Abelardo rejeita a posição realista segundo a qual o universal é uma coisa

essencialmente idêntica na diversidade dos indivíduos. Argumenta ele: se nos indivíduos

existe uma coisa essencialmente idêntica e se eles se distinguem apenas pelas formas,

segue que uma e mesma coisa toma formas opostas. Por exemplo: a “animalidade”,

essencialmente idêntica no homem e no bicho, apresenta as formas opostas da

racionalidade e da irracionalidade. O que é impossível. Abelardo rejeita também a

posição ainda realista segundo a qual o universal é uma coisa indiferentemente idêntica

na diversidade dos indivíduos. Esta tese entende que uma mesma coisa é universal e

individual. A singularidade se funda numa diferenciação (discretio), já a universalidade

consiste numa indiferenciação (indifferentia), ou seja, numa convergência de

semelhanças (convenientia similitudinis). A objeção principal de Abelardo se volta

contra a pressuposição desta tese, de que universalidade e individualidade poderiam

ser compreendidas de maneira puramente acidental. Isto acarretaria a consequência de

que a individualidade pudesse ser definida por si mesma, o que é contraditório.

Abelardo rejeita também a tese de que o universal é uma coleção (colletio) ou soma de

objetos individuais que caem sob um conceito. Assim, todos os homens constituem o

universal “homem”. Esta tese tem o inconveniente de exigir que o universal como todo

devesse estar em cada indivíduo.

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Entretanto, qual a resposta que Abelardo dá à questão dos universais? Já dissemos que

há uma diferença entre a posição de Roscelino e a de Abelardo. A do primeiro diz:

“universale est vox” (universal é voz). Voz é a palavra como ocorrência física de um som,

de um ruído, como algo natural. A posição de Abelardo diz: “universale est sermo”

(universal é discurso, linguagem). O discurso, ao contrário, é uma “institutio hominum”,

uma instituição dos homens. A voz é algo de natural, a palavra ou o discurso é algo de

humano, cultural. Embora a palavra seja também voz, ela é mais do que voz, ela é uma

voz significativa. O ato de significar, porém, é sempre um ato humano, que se funda na

convivência dos homens entre si e no seu mundo cultural. Além disso, Abelardo define

assim o universal: “est autem universale vocabulum quod de pluribus singillatim habile

est ex inventione sua praedicari” – universal é um vocábulo que, com base numa

instituição ou invenção humana, é apto a ser predicado individualmente de muitos

(Lógica para iniciantes 16). O universal é, pois, algo que diz respeito à linguagem e não

a coisas. O universal, porém, não é simples “vox”, som da boca humana, mas é um

“vocabulum”, vocábulo, isto é, uma “vox significativa”, uma voz que significa alguma

coisa. Mais ainda: o universal é “sermo”, algo que se dá no exercício concreto do

discurso, no falar uns com os outros. Neste sentido, o universal já foi sempre encontrado

pelo homem no exercício histórico, social e cultural do discurso. O homem o encontra

(invenit) e à medida que o encontra no exercício concreto do discurso (sermo), quer

dizer, do falar humano no mundo da convivência, o universal é uma invenção (inventio)

ou uma instituição, isto é, uma fixação ou estipulação, sócio-cultural-histórica

(institutio).

Na verdade, Abelardo apreende uma dupla função do universal. A primeira é a da

“apellatio” (denominação), entendida como a capacidade de indicar objetos

perceptíveis sensivelmente. A segunda é a da “significatio”, quando se trata de se referir

a objeto que não é perceptível sensivelmente. Assim, quando uso o nome “Pedro” para

este homem aqui, o que está acontecendo é uma denominação. Mas, quando uso o

nome “homem” como conceito de uma espécie, o que está acontecendo é uma

significação. É que “Pedro” é uma res (coisa), mas “homem”, não. “Homem” é um

conceito (intellectus). A coisa é singular, individual. O conceito é universal. A palavra

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pode designar uma coisa, mas pode também designar um conceito. O erro do realismo

está em entender o conceito como coisa universal.

Entretanto, como se dá a gênese do conceito? Resposta: através da abstração. O

conceito é um produto da capacidade abstrativa do intelecto humano. A sensibilidade

(sensus) oferece a coisa em sua individualidade; o intelecto (intellectus), ou seja, a razão

(ratio) ou a mente (animus) produz o conceito em sua universalidade. Abstrair é ater-se

unicamente à semelhança formal entre as coisas. Abstrair é uma questão de atenção: é

levar em consideração somente a semelhança entre coisas diferentes individualmente.

Esta semelhança é expressa no conceito. O conceito é uma “res imaginaria quaedam et

ficta”, uma coisa imaginária e fictícia, uma imagem ou representação do real. O universal

é uma imagem comum e indistinta de muitas coisas. Como quando eu digo “casa” não

tenho em vista esta ou aquela casa na sua singularidade e com suas qualidades

particulares, mas eu tenho em vista algo de comum e de indiferenciado que pode ser

dito de todas as casas individuais. O conceito “casa” expressa aquilo que é comum e

semelhante em relação a todas as casas individuais, realmente existentes. O conceito,

portanto, enquanto universal, tem em vista a “forma communis”, a forma comum das

coisas individualmente diversas. A representação imaginária que é produzida pela razão

(figmentum) serve de intermediação entre o real e o conceito. Aquilo que o intelecto

intenciona no conceito universal não é algo realmente existente, mas a forma comum.

Por isso, mesmo quando não existe a coisa individualmente dada, realmente existente,

o conceito permanece capaz de significar alguma coisa. Por exemplo, se não existe mais

nenhuma rosa neste mundo, o conceito de rosa continuaria significativo, pois ele se

referiria não a rosas existentes, mas à forma comum, abstrata, de todas as rosas, que já

existiram ou que poderiam existir. A posição de Abelardo, pois, está entre o

nominalismo puro e simples de Roscelino e o realismo extremo de Guilherme de

Champeaux. Em busca de um nome para esta posição, ela poderia ser chamada de

conceptualismo.

Outra contribuição importante de Abelardo para a história do pensamento medieval é

o método dialético do “Sic et non” (Sim e não), nome de uma de suas obras. Este

método, que consiste em contrapor dialeticamente as opiniões das “auctoritates”

(autoridades, autores significativos da tradição), foi doravante amplamente aplicado na

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teologia medieval. Trata-se de uma nova forma de investigação, que consiste

fundamentalmente na colocação de questões (quaestio, interrogatio) e na busca da

resposta por meio da confrontação entre tese e antítese. Trata-se também de uma nova

concepção sobre a relação entre “auctoritas” (autoridade) e “ratio” (razão), pois confia

a esta a incumbência de dar a resolução às contradições entre os ditos das autoridades

da tradição.

Não obstante, Abelardo é favorável ao uso da dialética e não ao seu abuso no campo

teológico. A “ratiuncula humana” (razãozinha humana) não pode compreender nem

dizer o mistério divino. Ele distingue entre intelligere seu credere (entender e crer), por

um lado, e o cognoscere e comprehendere (conhecer e compreender), por outro. Aqui

na terra o homem não pode conhecer e compreender o mistério divino, pode somente

entender e crer algo dele. Por isso, o poder da dialética é limitado nesta esfera. O

homem deve sempre se recordar do que Platão dizia a respeito do Sumo Bem, quando

o comparava com o Sol, que não pode ser fitado por muito tempo pelo olhar do homem.

Com efeito, o homem não pode fitar diretamente o mistério divino. Deus é, aqui,

incompreensível para o homem e este pode somente entender algo dele por meio de

imagens e semelhanças (similitudines).

Abelardo aplicou-se, no campo teológico, sobretudo ao estudo da Trindade. O Pai se dá

a conhecer, segundo ele, como potentia (potência), o Filho como sapientia (sapiência) e

o Espírito Santo como benignitas (benignidade) de Deus. a princípio, Abelardo

considerou que os filósofos conhecessem algo da Trindade, pois entre os platônicos,

falava-se de três hipóstases constituidoras de todas as coisas: o Uno (hen), o Intelecto

(Nous) e a Alma do Mundo (Psyche). Depois, sob a invectiva de Bernardo de Claraval,

Abelardo retrocedeu nesta opinião, que era comum entre os pensadores da Escola de

Chartres também. Entretanto, não abdicou de identificar a Anima Mundi (alma do

mundo) com o Espírito Santo. O ensinamento trinitário de Abelardo, porém, foi

condenado como modalismo, graças à impugnação de Bernardo, em 1140 no Sínodo de

Sens. Depois disso, Abelardo teve que se retirar no claustro de Cluny, acolhido por Pedro

o Venerável. Característico é também o entendimento teológico da encarnação de

Abelardo, que foge ao de Anselmo e de Agostinho. Segundo estes, o Filho de Deus se

tinha feito homem para libertar o homem do poder do diabo e tinha sofrido para dar

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satisfação à justiça divina. Para Abelardo, não é este o motivo central da encarnação.

Deus se faz homem no Cristo por amor. Sua encarnação e paixão são para o homem um

exemplo de amor e o homem é salvo à medida que adere a este amor e o pratica em

relação a Deus e ao próximo.

Abelardo deu uma conotação menos objetivista e mais pessoal também à sua ética. A

obra intitulada “Scito te ipsum” (Conhece-te a ti mesmo) é uma monografia incompleta

sobre os princípios éticos do cristianismo, que retoma o princípio délfico ou socrático do

autoconhecimento. Na ética, o que vem em primeiro plano não são valores objetivos

nem normas, não é nem mesmo obras ou feitos exteriores, mas as intenções e as

atitudes do homem. Somente a intenção é o decisivo para a moralidade dos atos

humanos. Deus julga o homem não segundo suas obras exteriores, mas segundo suas

intenções interiores. As obras são indiferentes em seu valor ético. O que dá valor às

obras é a intenção. O pecado não é uma transgressão objetiva de uma norma moral,

mas é um agir contra a própria consciência.

Abelardo também deu uma contribuição importante para uma compreensão medieval

do diálogo intercultural. Sua obra intitulada “Dialogus inter Philosophum, Iudaem et

Christianum” (Diálogo entre um filósofo, um judeu e um cristão) é testemunho desta

postura aberta e dialogante de Abelardo. Os três são caracterizados como adoradores

do Deus único, mas cada qual à sua maneira. Eles dialogam e buscam a arbitragem do

autor, isto é, de Abelardo. Neste diálogo Abelardo retoma a concepção trazida por

Justino, segundo a qual o Logos é o mestre universal, aquele que ilumina toda a

humanidade em sua busca pela verdade. A abertura católica (universal) desta concepção

se expressa na convicção de que nenhum ensinamento é tão falso que não contenha

algo de verdadeiro, ainda que seja um pequeno vestígio da verdade. O filósofo de

Abelardo tem traços árabo-muçulmano. Ele é nascido em terras do Islã e criado na

tradição islâmica, mas procura a verdade por meio de argumentos e segue mais a razão

do que as opiniões dos homens. A partir dessa postura, ele estuda criticamente as

“seitas” (divisões religiosas) de seu mundo. Abelardo vê na investigação da razão por

um fundamento comum de verdade a base para um diálogo inter-religioso e

intercultural. Como se pode ver, a fisionomia do filósofo de Abelardo não corresponde

somente ao filósofo árabo-muçulmano, cujo perfil cai bem com o de Avempace (Abu

Page 46: I. A FILOSOFIA NO PERÍODO ROMÂNICO DA IDADE MÉDIA · A França é o centro da Europa. Do ponto de vista religioso, um fato que marca a história é a fundação da Abadia de Cluny.

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Bakr ibn al Saigh), contemporâneo de Abelardo, mas esta fisionomia cai bem também

com a do próprio Abelardo e dos filósofos que, a partir de então, vão apresentar traços

de modernidade em meio à Idade Média. O diálogo de Abelardo foi interrompido por

sua morte. Neste tempo, estavam chegando ao ocidente as primeiras influências dos

árabes na filosofia.

Abelardo assinala uma guinada na autocompreensão do homem ocidental em pleno

século XII. Entretanto, ele não deixou uma escola. Sua posição sobre o problema dos

universais vai repercutir no nominalismo e do conceptualismo do século XIV, que será

responsável pela autodestruição da grande síntese escolástica do século XIII e pela

irrupção de uma nova época, marcadamente pelo desenvolvimento da ciência moderna.

Seu método dialético, porém, foi decisivo para o desenvolvimento da escolástica no

século XIII.

No fim do século XII, sob o impulso dado por Abelardo e por Hugo de São Vitor, começam

as primeiras tentativas de colecionar os ditos das autoridades da tradição com o fim de

promover uma disputa dialética em torno deles. É a época da “Summa sententiarum”

(Suma das sentenças) e dos “Libri sententiarum” (Livros das Sentenças). A obra mais

famosa neste sentido ficou sendo a de Pedro Lombardo (+ 1160): “Libri quatuor

sententiarum” (Os quatro livros das sentenças). O primeiro livro trata da doutrina sobre

Deus; o segundo, sobre a criação; o terceiro, sobre a redenção; e o quarto, sobre os

sacramentos e a escatologia. Até o século XVI será costume entre os candidatos ao

doutorado em teologia, ler e comentar, durante dois anos, os quatro livros das

sentenças de Pedro Lombardo. De início os comentários produzidos serão mais

aderentes ao texto. Depois, o texto vai se tornando apenas o pretexto para a discussão

das questões (quaestiones), que vão sendo desenvolvidas com cada vez maior

autonomia por parte dos comentadores. O peso vai passando da autoridade da tradição

para a força autônoma da razão. E isso foi decisivo para o desenvolvimento do

pensamento medieval.