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Londrina PR, de 09 a 12 de Junho de 2015.
I CONGRESSO INTERNACIONAL DE POLÍTICA SOCIAL E SERVIÇO SOCIAL:
DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
O PAPEL DA MULHER NO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA:
Contribuições para o debate
Kamila Delfino S. Corgozinho1
RESUMO O Programa Bolsa Família - PBF define as mulheres como, preferencialmente, responsáveis pelo cumprimento de exigências decorrentes da recepção do benefício. Esse conceito parece reforçar o senso comum que trata os cuidados com a família como uma obrigação das mulheres. Nesse sentido, o PBF, desconsiderando prerrogativas conquistadas por lutas feministas no campo dos direitos, não sugere e nem estabelece responsabilidades partilhadas com os homens. O presente estudo apresenta um breve debate acerca do papel da mulher no contexto do PBF e, sem a pretensão de esgotar o assunto, sugere alguns aspectos que poderiam ser incorporados no programa. Palavras-chave: Programa Bolsa Família; Mulher; Cuidados. ABSTRACT The Bolsa Família Program - PBF defines women as preferentially responsible for compliance with requirements of receiving the benefit. This concept seems to reinforce the common sense that comes with family care as an obligation of women. In this sense, the PBF, disregarding rights given by feminist struggles in the field of rights, does not suggest or establish shared responsibilities with men. This study presents a brief discussion on the woman role in the context of the PBF and, without pretending to exhaust the subject, suggests that some aspects could be incorporated in the program. Keywords: Bolsa Família Program; Woman; Care. 1 - INTRODUÇÃO
Modos de vida no Brasil, examinados na longa duração histórica, permitem observar
o quanto tradições de cuidados são, regularmente, atribuídas às mulheres. Apoiadas em
usos e costumes, essas tradições têm reiterado práticas e representações femininas que
associam as mulheres a atividades de proteção de suas famílias, o que, em geral, desobriga
os homens de partilhá-las.
O Programa Bolsa Família - PBF, ao nomear a mulher como responsável pelo
cumprimento das condicionalidades, na maioria dos casos, a valoriza e reconhece sua
importância na organização familiar. No entanto, concomitantemente, apoiado nessas
1 Assistente Social, mestre em Política Social e doutoranda em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro – UFRJ.
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mesmas tradições, pode contribuir, uma vez mais, para a geração de uma desigualdade de
gênero (FREITAS et al, 2012), considerando que as normas deste programa preceituam o
cuidado como atribuição materna. Nesse sentido, ele restringe e enfraquece, em
consequência, a atuação do homem neste papel.
O programa prevê uma ação feminina repetida na qual é possível distinguir
continuidades de valores presentes em ações diversas ligadas aos cuidados, numa
recorrente invenção de tradições, como indica Eric Hobsbawm (1997). O presente estudo,
com base nesse recorte teórico, parte de indícios que sugerem o PBF sendo um programa
que acentua o cuidado como atribuição feminina.
Embora as mulheres tenham conquistado o seu espaço no mercado de trabalho –
isso é inquestionável, principalmente porque as mulheres têm tido mais acesso à educação -
, uma grande parte delas ainda não consegue remunerações equivalentes a de muitos
homens 2. Na falta dos serviços de creche e de escolas de ensino fundamental em tempo
integral, normalmente, é a mulher que deixa o trabalho para ficar com a criança. Nas
camadas mais empobrecidas essa ocorrência é muito comum, dada a inexpressiva
cobertura de proteção social secundária3. Deste modo, essa tradição inventada sugere a
continuidade da experiência que acentua encargos femininos na esfera dos cuidados e
desestimula/impede a chegada das mulheres aos espaços públicos. E o PBF, parece criar
condições para que essa tradição de diferenciação de gênero seja recriada no tempo
presente, acentuando a feminização do cuidado.
Neste sentido, o presente estudo apresenta um debate sobre o papel da mulher
frente ao programa, suas tradições de cuidado e, brevemente, o processo de
implementação dos Programas de Transferência de Renda até o PBF4.
2 – OS PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA NO BRASIL
A partir da década de 1990, as políticas brasileiras de transferência de renda
condicionada passaram a fazer parte da agenda governamental como estratégia de redução
da pobreza. Embora o país tenha conquistado um aparato legal, uma das maiores lacunas
do nosso Sistema de Proteção Social é a sua desvinculação das políticas econômicas,
fazendo perpetuar, portanto, a orientação de políticas compensatórias (SILVA e LIMA,
2010).
2 Podemos citar a Lei de Cotas, como exemplo de acesso à educação. 3 Entende-se por proteção social secundária aquela definida por Castel (1998): a institucionalização da proteção social
através da presença do Estado, que surge na medida em que as sociedades demandam ações à população pobre, de forma
especializada. Para o autor, a proteção social se baseia também na primária, ou seja, aquela onde os vínculos estão
estabelecidos na relação de pertencimento, proximidade e interdependência. 4 Este trabalho é um fragmento de um capítulo da minha dissertação de mestrado em Política Social intitulada “A
feminização do cuidado no Programa Bolsa Família: invenção das tradições?” (CORGOZINHO, 2014).
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A redução da desigualdade social e a erradicação da pobreza são metas de difíceis
alcances sem a implementação de ações de redistribuição de renda, a médio e a longo
prazo. Nos últimos anos, o governo brasileiro vem adotando políticas de transferência de
renda com o intuito de combater a pobreza e reduzir a desigualdade de renda. Esses
programas, que, para Silva (2010) são considerados uma nova tendência de política social
no Brasil, é entendido como mecanismos para o enfrentamento do fenômeno pobreza, pois,
ocupa, na atualidade, centralidade no Sistema Brasileiro de Proteção Social.
O estudo de Lavinas e Varsano (1997) mostra que
As modalidades de adoção de um programa de renda mínima garantida são as mais variadas de um país para outro, quer seja do ponto de vista das restrições à população alvo, através das condições de acesso (idade, tempo de residência, contrapartidas explícitas, como procura de trabalho, ou não), quer se fale em termos de montante de benefício e da sua fórmula de cálculo, do tipo de cobertura (individual ou familiar), do prazo do recebimento do benefício (ilimitado na maioria dos casos, podendo também não ultrapassar seis meses), da forma de financiamento (integralmente coberto pelo Estado ou parcial/globalmente financiado pelos municípios ou outras esferas subnacionais); ou ainda do seu perfil exclusivo ou complementar a outras prestações
sociais. (LAVINAS e VARSANO, 1997:3). A instituição deste programa significou no país uma possibilidade de discussão e
debate acerca do tema, dado que “(...) a temática da renda mínima/bolsa escola, aqui
considerada como Programas de Transferência de Renda, ocupou, até o início dos anos 90,
um espaço marginal do debate brasileiro sobre as questões sociais”. (SILVA et al., 2012:32).
Embora alguns estudos indiquem uma redução da desigualdade social e pobreza no
Brasil, já que uma das prioridades do atual Governo Federal é o combate destes fenômenos
por meio de um Plano Brasil sem Miséria lançado em junho de 2011 por meio do Decreto n.
7.492, a manutenção destas questões sociais ainda persiste no interior do país5. Os
programas de transferência de renda não constituem uma solução única para a erradicação
ou diminuição dos problemas sociais em qualquer país, contudo, é inegável que propostas
de programas desta natureza sejam fundamentais para a promoção de uma sociedade mais
justa e igualitária.
2.1 – O Programa Bolsa Família
Um aspecto que é muito debatido no cenário brasileiro, e, uma crítica ao Programa
Bolsa Família por alguns cientistas sociais, é a variável renda como único critério de
pobreza. Como foi dito anteriormente, a pobreza no Brasil é decorrente, em grande parte, de
um quadro de extrema desigualdade devido à concentração de renda. É preciso
5 Ver http://www.brasilsemmiseria.gov.br/ acesso em 04 de janeiro de 2014.
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compreendê-la também como o não acesso a bens e serviços básicos, ao trabalho e a uma
renda digna6.
O PBF é considerado o principal programa condicionado de transferência de renda
do Governo Federal e é entendido como uma ação de bem estar social, sendo um dos
maiores programas de transferência direta de renda do mundo (CORGOZINHO, 2013). Sua
implantação não ignorou a existência dos outros de transferência de renda.
Estudos e avaliações de impacto do PBF têm mostrado que a transferência de renda
contribui para o empoderamento das mulheres beneficiárias. Como exemplo, o relatório final
da avaliação realizada pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional –
CEDEPLAR/UFMG, que, em outubro de 2007, revelou que a quantia monetária repassada
tem um valor simbólico de barganha para as mulheres, já que há um aumento no poder de
decisão quanto ao emprego do benefício7. Todavia, ainda carece-se de estudos sobre o
programa no que se refere aos significados deste na vida das mulheres, já que lhes cabem
todas as exigências do cumprimento das contrapartidas.
O argumento que apresentamos aqui sobre a possibilidade de as exigências das
condicionalidades recaírem às mulheres está pautado na legislação do Programa. É
preconizado em seu parágrafo 14, do Art. 2 que “o pagamento dos benefícios previstos
nesta Lei será feito preferencialmente à mulher, na forma do regulamento” já que no Decreto
regulamentador da lei de criação do programa, nº 5.209 de 17 de setembro de 2004,
estabelece em seu Art. 23-A “o titular do benefício do Programa Bolsa Família será
preferencialmente a mulher, devendo quando possível, ser ela previamente indicada como
responsável pela unidade familiar no ato do cadastramento” (incluído pelo Decreto nº 7.013,
de 2009). Desse modo, essas disposições legais parecem refundar conceitos do
maternalismo clássico, aquele que associa as mulheres, primordialmente, a obrigações
maternas de cuidados e de família.
2.1.1 - As Condicionalidades
As condicionalidades ou contrapartidas exigidas pelo PBF trazem uma discussão
polêmica, já que “o benefício é um direito social e deve ter caráter incondicional”
(MONNERAT et al., 2007: 9). Os autores chamam a atenção ainda para as fragilidades do
programa e das políticas sociais públicas, no caso da educação e saúde. Além de perceber
a importância do compromisso das famílias – que é o ponto central do desenho do programa
6Sobre esse assunto, ver Silva (s/d) disponível em
http://www.repositorio.ufma.br:8080/jspui/bitstream/1/165/1/OS%20PROGRAMAS%20DE%20TRANSFERENCIA%20DE
%20RENDA%20E%20A%20POBREZA%20NO%20BRASIL.pdf acesso em 31 de dezembro de 2013. 7Ver relatório no portal
http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/avaliacao_impacto_programa_bolsa_familia.pdf
Acesso em 04 de julho de 2013.
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- para o bom desenvolvimento de seus filhos, o objetivo das condicionalidades é também
contribuir para que as mesmas tenham acesso às políticas sociais, que lhes são de direito,
podendo, a médio prazo, superar a situação de pobreza em que se encontram. Porém,
percebe-se que no campo do trabalho, ainda não foi superada a articulação insatisfatória
com programas estruturantes que poderiam visar à inserção social (SILVA, 2010).
É importante citar situações que fogem ao controle das beneficiárias do programa e que
contribuem para o descumprimento das condicionalidades. No caso da saúde, por exemplo,
o horário de funcionamento das unidades de atendimento muitas vezes é incompatível com
o horário das beneficiárias que exercem atividades fora do lar. Também, não é incomum a
existência de equipamentos precários e a ausência de profissionais (na maioria, médicos)
nessas unidades. No caso da educação, é notório a dificuldade das mães em acompanhar
os seus filhos no desempenho escolar e nos deveres de casa, já que a maioria delas possui
baixa escolaridade ou até mesmo não a possui.
Observa-se que a legitimidade das condicionalidades é questionada por alguns autores,
já que “inaugura um sentido paradoxal do direito social” (MONNERAT, 2009) quando “este
benefício é um direito social e deve ter caráter incondicional” (MONNERAT et al. 2007:1461)
e são alvos de uma série de questionamentos sobre sua efetividade em relação à inclusão
social. Diante do exposto, cabe enfatizar alguns aspectos positivos das condicionalidades.
Mesmo reconhecendo a precariedade dos serviços públicos de saúde e de ensino,
consideramos ser um começo o fato de as famílias acessarem e conhecer os seus direitos
dentro da comunidade. No âmbito da educação, mesmo que em passos curtos, o PBF
juntamente com o PETI tem diminuído a evasão escolar. No campo da saúde, tem
observado uma maior responsabilização das mães em relação aos seus filhos, junto às
unidades de saúde.
Cabe ressaltar aqui também a importância das exigências de contrapartidas para o
controle social, uma vez que, através das condicionalidades, é possível perceber o grau de
qualidade desses serviços sociais, buscando assim melhorias e eficácia dos mesmos.
3 – TRADIÇÕES DE CUIDADO: proteção e dependências
Se estudarmos a história das mulheres, podemos perceber que o cuidado, sempre
um dever feminino na longa duração histórica, levou muitas mulheres a circularem noutros
espaços, inclusive nos espaços públicos. Muitas dessas atividades de cuidar, em geral,
consideradas femininas, normalmente não eram remuneradas nem adquiriam valoração
social. Em sua saga sobre a história das mulheres no século XIX, Perrot (1999) contribui
argumentando que a caridade – extensão das atividades domésticas - levou as mulheres
para fora de suas casas, como visitar os pobres, os prisioneiros, os doentes, traçando “na
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cidade itinerários permitidos e abençoados”. (1999: 504). E isso também favoreceu o
processo de transformação da filantropia em trabalho social.
Os papeis tradicionais de mãe e esposa são acentuados, em alguma medida, no
século XVIII com a Revolução Francesa: a definição das esferas públicas e privadas, a
valorização da família, a diferenciação dos papéis sexuais. Perrot (1987) aponta que se
evidencia, nessa experiência, uma oposição entre homens políticos e mulheres domésticas.
Opera-se uma ruptura entre o público e o privado. É importante ressaltar aqui um
acontecimento marcante nessa época: a invasão do público no espaço privado. Um exemplo
é dado pelo casamento civil com participação do Estado na formação da família. O poder
dos chefes de família foi reforçado com o Código Civil: “(...) havia uma preocupação bem
menor com a felicidade e autonomia dos cidadãos - sobretudo das mulheres - e aumentaria
os poderes paternos”. (HUNT, 1987: 32). Conhecido como um fator importante para os
direitos individuais, o divórcio, instituído na França no final do século XVIII, segundo Hunt
(1987), na época, era a lei mais liberal do mundo.
No campo do debate acerca do tema “cuidado” existem várias concepções e pontos
de vista sobre o assunto. Quando pensamos nas ocupações de cuidado que são
consideradas femininas – a Enfermagem, por exemplo; podemos nos remeter ao que Perrot
(1999) resgata:
A filantropia constituiu para as mulheres uma experiência não negligenciável, que modificou a sua percepção do mundo, a ideia que tinham de si mesmas e, até certo ponto, a sua inserção pública. Iniciaram-se no movimento associativo, no quadro de agrupamentos mistos de direção masculina, e depois de agrupamentos femininos. (PERROT, 1999: 505).
É inegável que a filantropia - por amor ao próximo e devido ao crescimento dos
problemas sociais: guerra, desemprego, tuberculose – tenha possibilitado a saída de
mulheres para espaços até então não explorados por elas, o que mais tarde se transformou
em uma profissionalização do trabalho social. É claro que surgem aí as resistências da
sociedade, principalmente de grupos masculinos, já que “as mulheres não devem esperar
qualquer retribuição, cuidar da cidade é tão gratuito como cuidar da casa” (PERROT, 1999:
504).
Embora a maternidade tida como natureza feminina tivesse cumprido um papel de
reforçar a condição da mulher como cuidadora, protetora e como algo fisiológico,
desempenhou um papel fundamental para pensar em uma função de caráter também social,
permitindo a saída de muitas mulheres para outros espaços que não fossem apenas o do
lar. A presença de mulheres nas áreas de atuação que envolve a função do cuidar é ainda
significativa no Brasil, podendo os fatores que determinam a escolha variar de acordo com
as motivações. Montenegro ao debater o assunto, assinala duas abordagens encontradas
em pesquisas sobre o tema cuidado:
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É freqüente encontrarmos uma polarização entre cuidado e racionalidade, que se traduz, ora na valorização de aspectos ditos racionais – como a ênfase na necessidade de as mulheres se tornarem mais competitivas, ou mesmo de perderem o medo de assumir cargos de poder e comando a fim de melhor se adaptar ao mundo racional e competitivo masculino -, ora na valorização das qualidades tidas como femininas, ligadas à afetividade e à intimidade (MONTENEGRO, 2003:493).
As tradições de cuidados fazem parte de um processo de longa duração histórica e,
apoiadas em obrigações domésticas, contam com redes primárias próximas – vizinhos,
famílias, amigos – que, no Brasil, informam muito sobre a feminização dos cuidados. As
atividades de cuidados constituem-se de trabalhos diversos, exercidos no âmbito doméstico
e eles podem desfavorecer a circulação das mulheres no âmbito público, ainda que isso
possa ocorrer. Podemos observar que mães, sob certas circunstâncias, contam com outras
mulheres nos cuidados de sua prole, como tias, avós, cunhadas, irmãs, sogras ou vizinhas.
Há também situações de crianças terem que cuidar de irmãos menores durante a ausência
da mãe.
É importante entender o conceito de Proteção Social, considerando o leque de
variedades existentes sobre o assunto. Costa (1995) se refere à proteção como:
Uma regularidade histórica de longa duração, de diferentes formações sociais, tempos e lugares diversos. Tal orientação permite verificar que diferentes grupos humanos, dentro de suas especificidades culturais, manifestem, nos mais variados modos de vidas, mecanismos de defesa grupal de seus membros, diante da ameaça ou de perda eventual ou permanente de sua autonomia quanto à sobrevivência. (COSTA, 1995:99).
Este entendimento alarga o conceito de proteção social, pois aponta a existência de
outras formas de proteção existentes nas sociedades. Essa defesa grupal citada pela autora
nos remete a contribuição de Castel (1998) que, ao analisar o assunto, definiu a proteção
social como primária, que se refere às relações de interdependência; e secundária, aquela
que é oferecida via ações especializadas. Podemos perceber uma certa aproximação
conceitual quando Costa (1995) analisa a temática trazendo a ideia de proteção em rede,
em comunidade, é o que Castel (1998) vem chamar de proteção primária.
Na cultura em geral e, na brasileira, em particular, o imaginário sobre a figura
feminina a vinculará à emoção, à sensibilidade, à fragilidade e, ao mesmo tempo, ao plano
dos cuidados. E essa ideia de maternalismo restrito ao controle da casa, geralmente, está
associada ao cuidado das crianças, dos adultos e dos doentes. Rodrigues (2005) assinala:
A divisão das tarefas domésticas e do cuidado de crianças e idosos entre homens e mulheres é um dos maiores desafios políticos. Não igualmente menor é o desafio de que o Estado promova políticas públicas que assumam estas responsabilidades. Esta situação é agravada no contexto do ajuste estrutural em decorrência da redução de gastos na área social que os países estão realizando. O fato é que as relações patriarcais e a ausência de políticas públicas produzem uma sobrecarga para as mulheres que passam a assumir, na maioria das vezes, sozinhas, o trabalho doméstico, ficando impedidas de usufruir tempo livre para desenvolver suas habilidades e capacidades. (RODRIGUES; 2005:25)
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Essa realidade apontada pela autora acima é vivenciada por várias mulheres pobres.
Mulheres que não têm tempo para cuidar de suas próprias questões como ir ao médico,
realizar exames de saúde indispensáveis, como os de prevenção de várias doenças, e, até
mesmo procurar trabalho. São mulheres que ficam aprisionadas nas tarefas domésticas,
incluindo, também, aquelas em que o PBF potencializa esse aprisionamento. Classificamos
como um pesado encargo para as mulheres a ausência dos homens na partilha de
responsabilidades e obrigações postas por políticas sociais. E aqui, no caso do PBF, é
observável o tempo gasto por mães no cumprimento das condicionalidades e é notável o
distanciamento dos homens com relação às obrigações do programa.
Ainda que o programa reconheça a sua importância para a autonomia das mulheres,
os mecanismos adotados sequer são compatíveis com a dimensão do desafio que está por
ser enfrentado (CARLOTO, 2010). E, para que haja uma mudança nesse sentido, é preciso
ainda que a nossa Política Nacional de Assistência Social – PNAS seja revista nas suas
bases e conceitos no que se refere à matricialidade sociofamiliar. Isso porque ainda existe a
tendência de atribuírem naturalmente às mulheres as tarefas de cuidados. Essa vinculação
das mulheres aos cuidados vem de processos sociais de longa duração histórica,
associadas à maternidade.
4 – OS DESAFIOS DO PBF E A QUESTÃO DE GÊNERO
Ao nomear a mulher como mediadora entre o programa e sua família, o PBF a
valoriza e contribui para sua autonomia, no entanto, afasta o homem da função do cuidado
podendo estimular assim a desigualdade de gênero. Esse paradoxo também pode ser
notado no modelo de constituição da Política Nacional de Assistência Social – PNAS / 2004
quando preconiza a matricialidade familiar, que de acordo com Corgozinho (2013):
A Política Nacional de Assistência Social ao preconizar a matricialidade familiar traz à tona o debate acerca da família, que por muito tempo, ficou esquecida nos espaços políticos e acadêmicos, entretanto, transfere a responsabilidade para a mulher desta família a regularidade e
o compromisso de atualizações de dados nos programas sociais (CORGOZINHO, 2013: 2).
Ao exigir o cumprimento das condicionalidades à mulher, o PBF pode reforçar uma
tradição de cuidado gerando inúmeras implicações à mesma. Afasta o homem do papel que
também deveria ser de sua responsabilidade. Diante disso, a categoria gênero deveria ser
incorporada nas ações do Estado via programas sociais. Os estudos de Carloto e Mariano
(2009) realizados na cidade de Londrina confirmam esse entendimento. Segundo as
autoras, o PBF neste município cria mecanismos que minimizam a responsabilidade dos
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homens, contribuindo para a cristalização dos papéis de gênero8. Parece que esta realidade
não é vivenciada somente pela população usuária de Londrina.
Estamos em um processo de construção para a conquista de nossa autonomia.
Vários são os desafios, porém não são impossíveis. Em se tratando das mulheres
beneficiárias do Programa Bolsa Família; o valor monetário repassado, embora seja irrisório,
é um caminho para a busca de sua emancipação. Todavia, o programa deveria incorporar a
questão de gênero e rever o papel dos homens e das mulheres frente às condicionalidades.
Mas para que isso aconteça, é preciso rever, também, as disposições legais do programa
que parecem estar apoiadas em tradições maternas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar das dificuldades e limitações, é importante considerar que o programa está
cumprindo, em alguma medida, o seu propósito de uma cobertura significativa e chegando a
populações mais pobres. Nos últimos anos, as políticas de combate à pobreza no Brasil
ganharam centralidade nos debates e agendas políticas, como exemplo, a unificação dos
programas de transferência de renda. A estrutura da política dos programas ampliou e,
através de parcerias com os programas complementares e com as condicionalidades
exigidas, o PBF facilita o acesso destas famílias beneficiárias a outros serviços sociais.
Como foi falado anteriormente, atualmente o programa assume centralidade no
Sistema de Proteção Social e, de acordo com Silva e Lima (2010:40), em dezembro de 2009
o programa já abrangia todos os 5.563 municípios brasileiros e o Distrito Federal e atendia
12.370.915 famílias pobres e extremamente pobres, com um orçamento de R$10,9 bilhões
para este mesmo ano. As autoras apontam ainda que essa cobertura atende hoje quase a
totalidade de famílias pobres no país.
Mesmo que o programa possa atingir a maior parte das famílias de baixa renda, sua
trajetória é marcada por vários questionamentos acerca da focalização e da legitimidade das
condicionalidades.
É inquestionável a legitimidade política e social que o PBF adquiriu junto à sociedade
brasileira, porém, vários são os desafios para que o programa se efetive e, de fato, atinja os
seus objetivos. Ações de programas voltados para geração de trabalho devem ser pensados
de modo a integrar o leque das condicionalidades. Como a sociedade brasileira continua
sendo muito desigual, excluindo sistematicamente determinadas categorias sociais, essas
políticas de transferência de renda são extremamente relevantes para a redução do
fenômeno pobreza.
8 Ver estudo Carloto e Mariano (2009).
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Para não correr o risco de reforçar a desigualdade de gênero é necessário que os
homens também sejam chamados e responsabilizados no processo das políticas públicas
sociais, políticas essas comprometidas com a igualdade de oportunidades e direitos. Um
grande desafio para a ampliação da cidadania da mulher beneficiária do PBF seria a
perspectiva de gênero colocada à questão do programa, considerando as suas histórias de
vida e necessidades, sem perder de vista o histórico marcado pela subalternidade e
dominação.
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