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I PRÊMIO LIBERTAS 2010 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA

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I Prêmio Libertas - Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas

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I PRÊMIO LIBERTAS

2010

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA

SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA

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Ministério da Justiça

Presidente da República Federativa do brasilluiz Inácio lula da Silva

Ministro de estado da Justiçaluiz Paulo Teles Ferreira Barreto

Secretário Nacional de JustiçaPedro Vieira Abramovay

Coordenação de enfrentamento ao Tráfico de Pessoas CoordenadorRicardo Rodrigues lins

ColaboradorMaurício Correali

TécnicosAlcides Gomes de Araújo FilhoEduardo de Araújo NepomucenoEliene Xavier MoreiraGiuliana Biaggini diniz BarbosaHélia Maria P. de Andrade GomesJulyana Cristina Alves da SilvaMarcos Wollakay Christo de CarvalhoRosemeire de lourdes SilvaTírcile Martins dos Santos Morais

estagiáriodanilo Santos Costa

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I Prêmio Libertas - Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas

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Tiragem - 1000/distribuição gratuita

RevisãoSecretaria Nacional de JustiçaAna Cláudia Mariano de CastroSimone das Graças Silva de Campos

É permitida a reprodução total ou parcial desta publicação desde que citada a fonte.

Ministro de Estado da Justiça Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto Secretário Nacional de Justiça Romeu Tuma Júnior Coordenação de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas Coordenador Ricardo Rodrigues Lins Técnicos Alcides Gomes de Araújo Filho Eliene Xavier Moreira Hélia Maria P. de Andrade Gomes Julyana Cristina Alves da Silva Khathia Margareth Granja Machado Marcos Wollakay Christo de Carvalho Rosemeire de Lourdes Silva Estagiários Danilo Santos Costa Gleis Alves de Freitas Tiragem 2.000 Distribuição Gratuita É permitida a reprodução total ou parcial desta publicação desde que citada a fonte.

I Prêmio Libertas: Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Série Pesquisas e Estudos. Secretaria Nacional de Justiça, Ministério da Justiça. 1ª ed. Brasília: 2010. Total de páginas: 336. I. Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. II. Coordenação de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. III. Secretaria Nacional de Justiça.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO............................................................................................7

1º COlOCAdO - GRAdUAdOS A diversidade na pauta de discussão das diásporas contemporâneas – Migração, travestilidade e prostituição...........................9

2º COlOCAdO - GRAdUAdOSContribuições para o debate sobre o tráfico de pessoas a partir da experiência do escritório de prevenção e combate ao tráfico de seres humanos no Estado do Ceará...........................41

3º COlOCAdO - GRAdUAdOSTráfico de pessoas em perspectiva histórica: Uma análise do papel da imprensa..............................................................107

MENÇÃO HONROSA (1)Mulheres vulneráveis e meninas más...........................................................147

MENÇÃO HONROSA (2)Especialmente mulheres: Reflexões sobre a autonomia individual e a caracterização do tráfico de pessoas...................................189

1º COlOCAdO - ESTUdANTESO descompasso entre as políticas públicas brasileiras relacionadas ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas.........................215

2º COlOCAdO - ESTUdANTESAspectos da tutela jurídico-penal no tráfico de pessoas...........................237

3º COlOCAdO - ESTUdANTESTráfico de pessoas: Questão das relações internacionais.........................263

MENÇÃO HONROSA (1)Situações de vulnerabilidade para ser traficada..........................................289

MENÇÃO HONROSA (2)Tráfico de pessoas: proposições para uma atuação governamentalconsoante à defesa dos direitos humanos.................................................319

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ANEXOS1 - PORTARIA No 12, de 11 de março de 2008 ..................................... 3412 - AVISO dE AdIAMENTO ................................................................. 3423 - PORTARIA Nº44, de 25 de novembro de 2008 .............................. 3434 - PORTARIA Nº45, de 25 de novembro de 2008 .............................. 344

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aPReSeNTaÇÃO

O crime de tráfico de pessoas abrange um conjunto de práticas ar-ticuladas extremamente lucrativas, com alcance territorial cada vez mais ampliado e que, com o aumento dos fluxos e trocas internacionais, ganha novas proporções nos últimos anos. Essa complexidade demanda uma re-ação à altura por parte dos governos – federal e estaduais – e da sociedade. Articulação em rede, troca de informações, conscientização da sociedade e produção de conhecimento contribuem para ações preventivas e repres-sivas mais eficazes.

A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, institu-ída pelo decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006, e o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, aprovado pelo decreto nº 6.347, de 8 de janeiro de 2008, incorporam essas noções e estruturam prioridades de ação, atividades e metas para seu acompanhamento. Entre seus eixos se encontram a produção e difusão de pesquisas, estudos e experiências sobre o combate ao Tráfico de Pessoas.

Com esse espírito foi instituído o Prêmio libertas: Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, a cujos resultados da primeira edição, de 2008, se dá publicidade com esta edição. O Prêmio visa a estimular o meio acadêmi-co a refletir sobre as diversas nuances do tráfico de pessoas, impulsionar novas pesquisas na área, promover sua divulgação e incorporar seus resul-tados como subsídio para a elaboração e a revisão da política pública de enfrentamento ao tráfico de pessoas.

Saudamos todos os parceiros desta política, dentre os quais a Orga-nização Internacional do Trabalho (OIT) e o Escritório das Nações Uni-das contra drogas e Crime (UNOdC) tiveram especial participação na feitura desta iniciativa. Saudamos a comunidade engajada na reflexão, na conscientização e nas ações de repressão ao tráfico de pessoas do Brasil e do mundo. O empenho para erradicar esse crime significa restaurar a condição de humanidade e de cidadania de milhares de vítimas e, nesse empenho, reafirmamos nossa própria condição de humanos e cidadãos. Que esta publicação se some a esses nobres esforços.

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Meus agradecimentos a todos os parceiros que contribuíram com esta iniciativa, dentre os quais cito a Organização Internacional do Tra-balho (OIT) e o Escritório das Nações Unidas contra drogas e Crime (UNOdC). Agradeço, em especial, a todos que enviaram trabalhos abor-dando o tema a partir das mais diversas perspectivas, o que foi determi-nante para o sucesso desse projeto.

PedRO VIeIRa abRaMOVay

Secretário Nacional de Justiça

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1º COLOCadO GRadUadOS

A DIVERSIDADE NA PAUTA DE DISCUSSÃO DAS DIÁSPORAS CONTEMPORÂNEAS – MIGRAÇÃO,

TRAVESTILIDADE E PROSTITUIÇÃO

Michelle Barbosa Agnoletti

INTRODUÇÃO

O trabalho que ora se apresenta propõe um novo olhar sobre as cau-sas e consequências da migração Brasil-Europa empreendida por travestis brasileiras para exercício da prostituição e a constatação da existência ou não de vínculo entre tal empreitada e o delito de tráfico de pessoas, tipifi-cado no art. 231, do Código Penal Pátrio, e objeto do Protocolo de Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças (mais conhecido como Protocolo de Palermo), aditado à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional.

Abstenho-me de apresentar estatísticas, pois dados oficiais lidam com a perspectiva do sexo biológico, não da orientação sexual; além disso, assumo a escolha de não ceder ao apelo fácil da fabricação de fatos a partir de dados desconexos, inconsistentes (matriz de muitos alarmes sociais), apenas para fundamentar quantitativamente a pesquisa, armadilha base-ada na noção de que “os números falam por si”. Apropriar-me-ei do artigo feminino para referir-me a travestis, flexão gramática e cultural de gênero, contrariando a prescrição dos padrões da norma “culta” da linguagem, pelas seguintes razões: ela é basicamente heteronormativa; valorização do esforço por elas empreendido na transformação de seus corpos e de suas identidades, respeito à forma como as próprias referem-se a si e às demais, além da afirmação social do feminino nelas esculpido constituir uma de-manda antiga de movimentos e organizações de travestis e transexuais.

A prostituição apresenta-se a muitas travestis não só como alternati-va de obtenção de renda e garantia de sustento, mas também como possi-bilidade de expressão da feminilidade que continuamente vão inscrevendo em seus corpos, exteriorizando identidades e desejos díspares da hete-ronormatividade. Tal vivência no mercado do sexo costuma representar

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uma trajetória de aceitação, experimentação, aprendizado dessa sexuali-dade diversa, reconhecimento de uma referência positiva, estabelecendo uma interação, e, portanto, de uma relação de pertencimento ao universo trans. Exercer a prostituição na Europa confere-lhes status, pelo capital material e simbólico que agrega, marcando um distanciamento da pobreza e da marginalização experimentadas no Brasil. A olho nu, em aeroportos, locais de expedição de passaportes e em redes virtuais de relacionamento (plataformas de sociabilidade disponibilizadas via internet), tal fenômeno migratório é bastante perceptível; a despeito disso, é forçoso constatar que pouco se tem discutido institucionalmente sobre o assunto quando se trata de travestis.

Paralelamente a isso, nos países que formam a União Europeia, há um repúdio crescente a migrantes oriundos de países periféricos e um controle fronteiriço cada vez mais forte. Somando-se o recorte da prostituição e da travestilidade, à xenofobia se juntam o moralismo, o machismo e a homo-fobia, além do envolvimento com o crime organizado transnacional, dando vazão às mais diversas formas de violação dos direitos humanos.

Políticas e normas sobre o tráfico de pessoas para o mercado do sexo, geralmente associado às migrações transnacionais, priorizam mulheres e crianças. Remontam ao início do século XX, desde a edição do Acordo conclu-ído em Paris entre várias potências em 18 de maio de 1904, para a repressão do tráfico de mulheres brancas,1 tal ênfase da cor branca acaba por fortalecer uma ques-tionável “supremacia racial” até o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças.2 Ao longo desse século de evoluções normativas, pânicos morais3 foram engendrados pelos mais diversos grupos de interesse, impondo, cada qual em seu tempo e em seu lugar, um discurso calcado nas próprias conveniências e refletindo, não exatamente a realidade, mas percepções manipuladas desta.

1 Promulgado no Brasil pelo decreto nº 5.591/1905.2 decreto nº. 5.017/2004, mais conhecido como “Protocolo de Palermo”.3 Expressão cunhada por Stanley Cohen em “Folk Devils and Moral Panics: The Crea-tion of Mods and Rockers”. london: MacGibbon & Kee, 1972, e que, em linhas gerais, representa temores coletivos produzidos a partir de incentivo a preconceitos já exis-tentes na população, produzindo alarme social, muitas vezes por meio da distorção de fatos.

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As discussões empreendidas atualmente a respeito do tráfico de pes-soas apontam para conceitos vagos e amorfos. Os dados colhidos refle-tem a inconsistência dos conceitos sobre os quais foram formulados (v.g., “outras formas de coerção”, “abuso de poder ou de uma situação de vulnerabilidade”, “exploração sexual dos outros” ou “outras formas de exploração sexual”), todas es-ses presentes em uma única alínea longamente descritiva do Protocolo de Palermo, a qual insere, no artigo 3, uma definição fragmentada e imprecisa do tráfico de seres humanos, e são transformados em fatos. Confundem-se causa e efeito, de modo que muitas das ações que hoje se apresentam como combate ao tráfico em verdade resultam na repressão à prestação de serviços sexuais.

A pretexto de proteção, mascaram-se sob essas ações uma clara op-ção política pela reafirmação de valores sexuais tradicionais, resgatando uma cultura conservadora religiosa pró-abstinência, patriarcal e homofó-bica, que rechaça a prostituição como forma de vitimização, de opressão, da qual urge resgatar as pessoas envolvidas, ou de demonização, vilania, que, sem demora, precisa ser neutralizada. Essa situação acaba por sone-gar a seus agentes a condição de sujeitos, opondo entraves à articulação e à visibilidade das prostitutas, mulheres ou travestis, como estratégia de promoção de valores de liberdade e autonomia.

Empreendedores morais promovem verdadeira cruzada que, no caso específico das travestis, exacerba a hostilidade que se atribui a uma pos-tura homofóbica por parte do aparato policial destinado à proteção dos cidadãos, assim como dos serviços de imigração de diversos países, coadu-nados com interesses de grupos xenófobos que vêm ganhando força em países ocidentais desenvolvidos.

O presente trabalho visa esboçar algumas considerações sobre a pro-blemática das migrações transnacionais empreendidas por travestis adultas para o exercício da prostituição, analisando as contradições presentes nos documentos legais e políticos atinentes ao tráfico de pessoas, os pânicos morais que lhes orientam a elaboração e a realidade que tais normas pro-põem regulamentar. Também pretende apontar a necessidade de criação de mecanismos eficazes de proteção jurídica e social de cidadãs travestis no que tange à liberdade de locomoção em âmbito internacional, e tam-bém à possível vitimização pelo crime organizado transnacional.

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1 - JUSTIFICATIVA

O enfrentamento do tema é de importância incontestável. É sabido por muitos que dentre as principais causas propulsoras do preconceito estão o desconhecimento e a falta de informação. lida-se aqui com dois fatores de exclusão: a prostituição e a travestilidade, temas que muitas ve-zes não recebem a atenção que lhes é devida.

A escolha do objeto baseou-se em observações feitas a partir da atu-ação profissional enquanto servidora do departamento de Polícia Federal (dPF), com lotação na delegacia de Polícia de Imigração. Em curso pro-movido pelo Ministério da Justiça sobre Tráfico de Seres Humanos para servidores de órgãos a ele vinculados, foi possível debater experiências e impressões com pessoas de outras Regionais do dPF, e também verificar a ausência de debates sobre a migração de travestis. No cotidiano do aten-dimento ao público requerente de passaportes, é imperativo constatar o despreparo dos agentes da segurança pública para lidar com o preconceito e o medo que comumente pautam contatos entre policiais e GlBTT4 de uma forma geral.

Ultimamente, tem-se verificado uma preocupação cada vez maior com a exploração do comércio sexual junto à opinião pública, também expressa pela atuação de organismos de defesa dos direitos humanos e do poder público, que busca estratégias legais de coibir violações de direitos fundamentais. O foco das atuações das diversas entidades envolvidas no combate ao tráfico são crianças e mulheres, pelo que se constata a existên-cia de mencionada lacuna no que concerne a travestis.

Paradoxalmente, apesar de ostentarem uma aparência muitas vezes chamativa, travestis enfrentam uma certa ‘invisibilidade social’, oriunda de um preconceito nefasto ao progresso científico e à paz social. Tal situação demonstra-se com clareza na escassez, ao longo do tempo, de políticas públicas voltadas para a proteção desse segmento populacional, que, reco-nhecendo as diferenças, promovem a igualdade.

Muitos documentos foram editados ao longo do século XX por or-ganismos internacionais de proteção aos direitos humanos, visando nor-matizar a repressão ao tráfico de pessoas. O mais recente, denominado Protocolo de Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mu-

4 Gays, lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais.

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lheres e Crianças (Protocolo de Palermo), determina medidas a serem toma-das pelos signatários para o combate a essa atividade, aditando a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional.5 Já em seu título, o Protocolo de Palermo enfatiza a necessidade de proteção de mulheres e crianças, sem conter em seu texto qualquer alusão à orientação sexual. Excluem-se travestis não só das abordagens sobre o tráfico, mas também dos discursos convencionais sobre a prostituição, uma vez que o conceito de mulher com o qual lida o discurso hegemônico é o biológico. A inco-erência das exclusões geralmente é justificada pelos argumentos de que são poucos os casos ou de que são situações diferentes. Não são poucos os casos, e a alegada diferença não encontra respaldo na realidade, visto que todos os aspectos de prazer e sofrimento possíveis no trabalho sexual independem das distinções de gênero. (AGUSTÍN, 2005, p. 7). Trata-se de fato por demais evidente para ser ignorado, trancado em armários.

A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (decreto nº 5.948/2006), elenca, em seus princípios, dentre outros, a não discriminação por motivo de gênero ou orientação sexual (art. 3º, II), promoção e garantia da cidadania e dos direitos humanos (art. 3º, IV), a transversalidade das dimensões de gênero, orientação sexual nas políticas públicas (art. 3º, VII); entre as diretrizes especiais de atenção às vítimas, foi contemplada a atenção às suas necessidades específicas, especialmente a questões de gênero, orientação sexual, situação migratória, atuação profissional ou outro status (art. 7º, VI). Apesar de grupos diretamente ligados à promoção da cidadania GlBTT não terem sido indicados para comporem o Grupo de Trabalho instituído pelo referido decreto, o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP - decreto nº 6.347, de 8 de janeiro de 2008) estabeleceu, no eixo estratégico de prevenção ao tráfico, como prioridade 1 o levantamento, a sistematização, a elaboração e a divulgação de estudos, pesquisas, informações e experiências sobre o tráfico de pessoas. dentro dessa prioridade, a atividade 1.B.6 deve desenvolver metodologias para identificação de interfaces do tráfico de pessoas com outras situações de violências ou vulnerabilidade para subsidiar ações de prevenção e atenção às vítimas. Uma das metas propostas, cuja execução restou sob a responsabilidade da Secretaria Especial de direitos Humanos da Presidência da República, foi a de desenvolver uma metodologia que

5 Essa Convenção e o Protocolo foram ratificados pelo Brasil em março de 2004.

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identifique a vulnerabilidade à discriminação homofóbica, lesbofóbica e transfóbica e o tráfico de pessoas.

A produção de conhecimento a respeito do tema constitui valiosa contribuição para trabalhar as múltiplas dimensões do tráfico, a distinção existente entre este e a migração voluntária para a prostituição, mitigar a exclusão condicionante e resultante, desconstruindo estereótipos, e para fornecer subsídio para pautar atuações que visem à efetivação dos direitos humanos desses atores sociais, garantindo-lhes assim a dignidade.

2 - DESTINO: EUROPA – AS MIGRAÇÕES TRANSNACIONAIS

A integração da Europa em um espaço sem fronteiras internas torna tortuoso conceber as migrações como há cinquenta anos (primórdios dos meios de comunicação em massa e dos debates sobre coexistência e gestão da diversidade), somente na noção de discricionariedade estatal e sobe-rania nacional. Houve uma restrição na autonomia política dos Estados, unificando o controle do tráfego internacional de pessoas procedentes de países não pertencentes à União Europeia, e que, por esta razão, não gozam da liberdade de circulação conferida aos nacionais dos estados-membros daquela comunidade.

Em um mundo globalizado, onde a conglomeração de mercados fi-nanceiros promove a circulação de investimentos à velocidade de um cli-que, no qual o conceito de transnacional reconfigurou o de multinacional, marcado pela expansão de ativos, volatilização de capital, internacionali-zação de operações, desmaterialização das riquezas, avanços da tecnologia de transportes, integração econômica mundial, com as reavaliações dos mercados comuns e das chamadas zonas de livre comércio, não há mais que se falar em ampliação de fronteiras, mas em abolição. Conforme a sempre arguta observação de HABERMAS (2002, p.138), “no passado, o Estado nacional guardou de forma quase neurótica suas fronteiras territoriais e sociais. Hoje em dia, processos supranacionais irrefreáveis malogram esse controle em diversos pontos”.

A soberania, tendo cumprido seu papel histórico de fortalecimento dos Estados modernos aos quais deu respaldo ideológico, necessita ser re-pensada dentro da nova ordem política global, firmando-se cada vez mais como garantia dos direitos e das identidades locais dos povos, e cada vez

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menos como pretexto para ingerências culturais, econômicas e/ou territo-riais indevidas (RÉGIS, 2006), acirramento de disputas nacionalistas, fo-mento a guerras, e mais especificamente no âmbito do presente trabalho, retrocessos políticos e recrudescimento de controles migratórios.

Verifica-se uma lógica perversa na imposição da rigidez de limites territoriais: eles flexionam-se para permitir abertura a fluxos de capital, de bens, de serviços, de infraestrutura, de cultura, de informação, mas se fecham à circulação de pessoas. O fenômeno da transmigração denota a incoerência dessa lógica e subverte-se. Imigrantes agregam valor à or-ganização política dos países de destino. Em alguns setores, há mesmo preferência pela contratação de trabalhadores clandestinos por seu baixo custo econômico e social, uma vez que a proteção de normas trabalhistas reservam-se aos cidadãos, aqui compreendidos como os autóctones e os estrangeiros em situação legal – aos ilegais, o temor da deportação e/ou do cárcere. (SANTORO, 2007). Por esta razão, imigrantes são acusados de ocuparem vagas de emprego dos nativos, de oferecerem concorrên-cia desleal aos trabalhadores nacionais, de disseminarem doenças tropicais (entre oriundos da África e América latina), sexualmente transmissíveis e AIdS (no caso de profissionais do sexo), e cometerem crimes que põem em xeque a ordem social. Os desequilíbrios de classe e a precarização das relações de trabalho nos países de destino fortalecem a ação de empreen-dedores morais, que fomentam o ódio àqueles que exercem a prostituição, e muitas vezes ganham mais do que trabalhadores nativos de outras cate-gorias profissionais. O encarceramento de imigrantes pode não diminuir a incidência do crime, mas passa a ilusão de que algo está sendo feito para restaurar a ordem, ou, nas palavras de STRECK (1997, p. 28-29):

No imaginário social, a repercussão do problema da criminalidade é super-dimensionada e acaba por sustentar uma ideologia do repressivismo sane-ador, representado por medidas de caráter meramente instrumentalizador. Há um pânico coletivo, surgido a partir da construção desse discurso.

Tal atividade simbólica repressiva marginaliza imigrantes e incita mo-vimentos xenófobos, fomentando a exclusão. Aqueles contra os quais tal medida não obtém sucesso em imputar crimes podem ter a “sorte” de ser contemplados com regularização ou asilo, a depender da situação política do local de origem, o que proporciona a aquisição de um status legal ge-ralmente precário. Isso pouco ou nada altera sua condição de “cidadãos de

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segunda classe” e não implica aceitação social; no entanto, também podem ser condenados à clandestinidade perene que provê uma força de trabalho domesticada pelo medo da saída compulsória. Há os que obtêm a con-cessão de vistos permanentes; as situações fáticas sobre as quais incide tal amparo legal estão cada vez mais restritas nos países que formam a União Europeia. Ainda existem, em número cada vez maior, os sequer admiti-dos, os deportados e os expulsos, aqui apresentados em ordem crescente de complexidade de procedimentos para enviá-los de volta a seu lugar de origem. de acordo com HABERMAS (2002, pp. 259-260):

[...] desde a descoberta da América, e tanto mais desde o crescimento ex-plosivo da imigração em todo o mundo, no século XIX, a grande massa de pessoas dispostas a imigrar tem se constituído de trabalhadores imigrantes e de fugitivos da pobreza, que tencionam escapar de uma existência mi-serável em sua terra natal. Hoje se dá o mesmo. É contra essa imigração das regiões de pobreza do Leste e do Sul que o chauvinismo europeu de bem-estar social trata de se precaver.

Em geral, os lugares de destino são centros de capital e antigos importadores de força de trabalho, que polarizam fluxos migratórios e representam, no inconsciente coletivo, ilhas de prosperidade econômica e paraísos de oportunidades. Políticas anti-imigração vêm travando uma interação conflituosa com projetos pessoais de imigrantes, na medida em que lhes nega o acesso aos países em que escolheram viver e trabalhar. Essas políticas são fruto de uma democracia desvirtuada, posto que arbi-trariamente seletiva daqueles aos quais conceda os “favores” da cidadania plena (a qual, por definição, dever-se-ia aplicar a todos, indistintamente), e que fez da migração o bode expiatório de um mal de dimensão bastante superior àqueles aos quais eventualmente ela possa ter dado causa ou con-corrido. Empreendedores morais apropriaram-se do que a princípio era um sentimento vago de inquietação diante do diferente. Tal sentimento foi trabalhado coletivamente de modo a deformar a percepção de pertenci-mento, desvirtuar os mecanismos de inclusão/exclusão, até materializar-se no ódio declarado às experiências circulatórias em espaços transnacionais, que são vistas como novas invasões bárbaras.

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3 - MIGRAÇÃO PARA EXERCÍCIO DA PROSTITUIÇÃO

Ao longo do tempo, pouca coisa mudou no que concerne ao tra-tamento dispensado às pessoas que migram para exercer a prostituição fora de seu lugar de origem. Elas seguem sendo consideradas, pelos do-cumentos normativos e pelas práticas institucionais reiteradas, como co-agidas, forçadas e, portanto, vítimas. Pessoas que subsidiam esse projeto de migração são vistas como criminosas, mesmo que sejam familiares ou amigos.

Isto se deve em muito à clássica divisão de trabalho fundada no gê-nero - tradicionalmente, a mulher deve ficar em casa, enquanto ao homem compete a tarefa de provedor, nem que para isso seja necessário submeter-se a riscos. Tal visão nega sistematicamente à mulher a autodeterminação de migrar, de buscar novas perspectivas para além das fronteiras de seu país, além de passar ao largo de novas configurações do modelo de família. Até mesmo a expressão usada para designar um e outro é distinta: homens são migrantes, e podem ser contrabandeados; mulheres são traficadas, en-ganadas, vendidas como escravas. Tal distinção não leva em conta a orien-tação sexual, senão o sexo biológico - homossexuais masculinos, travestis e transexuais são tidos como homens, e como tal inseridos nesse contexto de trabalho, embora exerçam normalmente as mesmas atividades que as mulheres, e sejam tratados com mais rigor e violência que estas normal-mente experimentam.

É preciso considerar que um trabalho tido como por uns pode ser uma oportunidade ímpar para outro que tenha diferentes projetos e am-bições.

É certo que nem todas as experiências são bem sucedidas, mas nem mesmo isso tende a ser definitivo - muitas vezes são dificuldades enfrenta-das num período inicial de adaptação, onde, por vezes, há um sentimento de deslocamento, de inadequação, uma dívida a ser paga, uma cultura a as-similar e um novo código de conduta a apreender. Mas essa realidade não é exclusiva de mulheres, nem de quem migra para exercer a prostituição.

As migrações não ocorrem simplesmente, como é bastante difundi-do, pela situação de pobreza experimentada por quem migra. Em todo o mundo, agências de turismo vendem, mais que passagens, sonhos, refina-mento, possibilidades de conhecer novas culturas. Veem-se pessoas com mesmo nível socioeconômico tomarem decisões distintas, umas permane-

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cendo, outras aventurando-se, e há pessoas de níveis distintos empreen-dendo as mesmas incursões de migrarem – estas têm uma maior aptidão a enfrentar riscos. São questões de caráter pessoal, não imperativos de uma situação financeira desfavorável. Na Europa, travestis depositam seus so-nhos de ascensão, buscando:

• Emancipação: a estadia no velho continente permite-lhes ocupar uma posição privilegiada na hierarquia travesti, em que tal experiên-cia é valorizada pela possibilidade de apreenderem novos códigos de conduta, ampliarem o leque de práticas eróticas, travarem contato com uma cultura que julgam mais refinada, uma língua diferente, marcando, dessa forma, um distanciamento da pobreza e da mar-ginalização experimentadas no Brasil. (PElÚCIO; 2005a, p.29-30). Conforme SIlVA (2007, p.71-72).

Na incursão fantasiosa ao território do feminino, impregnada pelos vetores da transgressão, seria redutor perceber o alvo europeu apenas na pauta da dicotomia local x universal, província x cosmópolis, Mais do que a ex-periência cosmopolita, a Europa enseja o coroamento de uma experiência toda rendilhada por cruzamentos de fronteiras. Esses países trazem euros, língua estrangeira, requinte, délicatesse. Um adensamento no mergulho progressivo nas experiências de autoemulação de sensualidade e sensibili-dade, que em todos os sentidos são espicaçados e todas as invenções convo-cadas para a produção de um ser que parece abrir mão da epiderme para se deliciar mais plenamente do contato com o mundo.

• Um ideal de feminilidade e sucesso: consubstanciado no acesso a so-fisticadas tecnologias estéticas, que vão desde intervenções plásticas destinadas ao arredondamento de formas (suavização de angulosida-des que reputam inerentes a corpos masculinos) (PElÚCIO, 2005b, p. 97) até a transgenitalização, no caso específico das transexuais.

• Um mercado mais receptivo à diversidade; em vários países europeus foram aprovadas leis que contemplam alguma forma de positivação da união entre pessoas do mesmo sexo. dinamarca, Noruega, Ho-landa, Alemanha, Suécia, França, Reino Unido, Espanha e Bélgica são alguns exemplos (esta lista não assinala diferenças entre as es-truturas adotadas por estes países para regulamentar a união homos-

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sexual, se casamento, se parceria civil ou qualquer outra forma de disciplina legal dos vínculos afetivos homorientados). Somado a isso, estudos recentes mostram GlBTT como um nicho de mercado a ser explorado de uma forma específica, visto que cada vez mais se desenvolvem-se produtos e serviços adequados às suas necessidades, gostos e padrões.

• Sociedades mais tolerantes e plurais: para travestis, o lugar de origem costuma ser hostil e o anonimato nos grandes centros urbanos lhes parece mais seguro. demais, para muitas delas, a ideia de proteção revela-se na distância físico-geográfica da violência percebida no lar. Eventuais riscos nessa empreitada são calculados em uma relação custo x benefício, relativizados, ponderados como aceitáveis ou su-portáveis na busca de uma vida melhor, e, uma vez superados, con-ferir-lhes-ão experiência e maturidade imprescindíveis para trabalhar e sobreviver na noite.

• Afirmação identitária: aspiração alimentada pelas artes, espaço pri-vilegiado de desconstrução de estereótipos, que permite expressões mais livres de sentimentos e ideias. Filmes como o do cineasta es-panhol Pedro Almodóvar retratam travestis como pessoas bem re-solvidas em suas relações sociais, conscientes de suas sexualidades e corporalidades (a apresentação de Agrado, personagem de Antonia San Juan no drama “Tudo sobre minha mãe” exemplifica esse empode-ramento).

• Status: denotado no uso de roupas e acessórios de grifes famosas, per-fumes caros, incursões na noite a bordo de carros próprios e compra de imóveis; essas aquisições remetem à ascensão social obtida com bem sucedidas transformações corporais, em um ciclo no qual a be-leza possibilita maiores ganhos, dos quais uma significativa parcela é investida em beleza, retroalimentando um infindável processo de reinvenção de si mesma, que as orienta na direção do prestígio – este tanto maior será quanto mais se parecerem com mulheres.

• Possibilidades de ganhos improváveis no Brasil. Isso se dá não só pela valorização da moeda, mas pelos investimentos maciços na construção corporal, subjetiva e social da imagem de um feminino

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glamourizado (BENEdETTI, 2005), o que agrega capital simbóli-co ao serviço prestado, aumentando a cotação do programa. Nesse momento, verifica-se a não definitividade da ruptura com o ambien-te doméstico, vez que muitas ajudam suas famílias como forma de obter aceitação e reconquistar o afeto perdido (PElÚCIO; 2005a, p. 30).

A prostituição, na grande maioria dos países ocidentais, não constitui crime, tampouco a orientação homossexual (no Brasil, após a edição do Código Criminal de 1830, de nítida influência iluminista, foi eliminada a tipificação penal da sodomia. Pretendeu-se a novatio criminis da prática homoerótica masculina no projeto do atual Código Penal, intenção que não logrou êxito) na décima revisão do Código Internacional de doenças (CId 10), a Organização Mundial de Saúde retirou o homossexualismo da lista de distúrbios mentais, e a Resolução 01/99, do Conselho Federal de Psicologia, proíbe o exercício de qualquer ação que favoreça a patologi-zação de comportamentos ou práticas homoeróticas, divulgação de tra-tamento clínico da homossexualidade, e ainda prescreve abstenção pelos profissionais de pronunciamentos públicos que reforcem os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qual-quer desordem psíquica. Entretanto, ainda é grande o preconceito sobre as práticas a elas associadas, posto que são encaradas como desvios de va-lores sexuais ditos “normais”, quais sejam, heterossexuais, monogâmicos, estáveis, não profissionais. Segundo RABENHORST (2001, p. 111),

Essa fragmentação moral, além de produzir grande desorientação, gera também enormes suspeitas quanto à legitimidade de determinadas políticas públicas moralizantes. Afinal de contas, de que maneira o Estado pode, coerentemente proibir, ou desestimular, determinados comportamentos des-viantes, principalmente aqueles que estão ligados à sexualidade humana?

documentos normativos e políticos driblam os instrumentos de va-lidação de comportamentos sociais que fogem à aludida “normalidade”, associando-lhes contravenções e condutas criminosas, denunciando-os como ameaça a ordem. (MISKOlCI; 2007, p. 112). A estrutura de substi-tuição mais utilizada atualmente na repressão à prostituição travesti é a que a liga ao tráfico internacional de pessoas. Enquanto às mulheres em geral costuma-se dispensar um tratamento paternalista, pregando-se o resgate

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da degradação moral, a restituição da dignidade (argumentos permeados por um forte apelo emotivo) e partindo da premissa de que não lhes era conhecida a destinação para a prostituição, inferindo que não há volunta-riedade em relações sexuais desvinculadas do amor ou do instinto procria-tivo, cristalizando-lhes uma imagem santificada, às travestis o tratamento costuma ser marcado pelo deboche ou pela violência. Tais características são apontadas por SIlVA (2007, p. 205):

Quando a irrupção do braço armado da violência se alterna com manifes-tações aparentemente desarmadas de chacota e de desdém, não estariam as segundas apenas criando o ambiente propício para que a primeira irrom-pa? Existiriam formas benignas de preconceito ou tais formas seriam, ape-nas, o cadinho do qual irrompem as formas extremas? O que se esconde no deboche contra o travesti?

Nas dificuldades de acesso das organizações travestis a mecanismos de articulação que lhes permita coordenar demandas e normas, ações, po-líticas públicas com as esferas deliberativas do poder, na falta de uma dis-ciplina legal própria, que responda pontual e adequadamente aos anseios, motivações e perspectivas sociais, aqui e alhures, das prostitutas travestis migrantes, pode-se apontar uma terceira forma de violência: a invisibili-dade social. O que se tem verificado ao longo do tempo são omissões, conforme denunciam SANTOS e VIEIRA (2004, p. 626-627):

A violação dos direitos humanos por via da orientação sexual processa-se sobretudo na esfera da inacção, dos silêncios e das ausências. Nesta maté-ria, como noutras, analisar o que não existe é tanto ou mais significativo do que constatar o que é efectivamente realizado para garantir o respeito pelos direitos humanos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, tran-sexuais e transgêneros).

Se fossem efetivamente ouvidas, engrossariam o coro formado por mulheres prostitutas que recusam a universalização de categorias no mer-cado do sexo pago. Essa massificação coloca em um mesmo contexto de análise crianças e pessoas adultas que fazem sexo com livre consentimen-to. Não faz distinção entre uma ampla variedade de práticas, condutas e serviços, tão vasta quanto os desejos sexuais humanos, legítimos ou não – tráfico, turismo sexual, prostituição, pornografia, crimes contra os cos-tumes, pedofilia, exploração sexual de trabalhadores domésticos, casamen-

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tos fraudulentos, etc. sem uma análise das circunstâncias, em uma con-fusão conceitual tão despropositada quanto perigosa (MATTAR; 2006). Também rejeitariam a vitimização, demonstrando que a prostituição pode ser, sim, pretendida, escolhida de forma mais ou menos livre6 ou decidida como válida e legítima prestação de trabalho de natureza sexual (SIlVA, BlANCHETTE, PINHO et al: 2005, p. 161) por pessoas plenamente ca-pazes7 e também reivindicariam o atendimento de demandas específicas, como o combate à homofobia omissiva e comissiva.

Apesar de a maioria das empreitadas migratórias para a prostitui-ção enfrentarem apenas os riscos comuns a todo e qualquer migrante, há histórias trágicas que, embora ocorram em bem menor escala, são ampli-ficadas nas vozes de empreendedores morais, que totalizam resultados e universalizam experiências. Ademais, o campo com que se trabalha pode conduzir a conclusões diversas: quem trabalha em ONGs de apoio a víti-mas do tráfico não lida com aqueles que migraram por vontade própria, uma vez que esses não lhe procuram os serviços. Quem trabalha junto a trabalhadores de espaços privados, como clubes, boates e bordéis ignora os problemas enfrentados pelas prostitutas que exercem suas atividades na rua.

É desejável que todas essas informações sejam cruzadas, de modo a buscar uma visão mais plural do trabalho sexual em suas múltiplas possibi-lidades. É também preciso que os(as) migrantes tenham voz e expressem suas reais necessidades e anseios.

4 - TRAVESTILIDADE E DIÁSPORAS CONTEMPORÂNEAS

“Ser travesti” é uma contínua construção subjetiva e social de gênero. Na arguta percepção de PElÚCIO (2007, p. 274), “ser travesti não é uma aventura, algo efêmero, uma fantasia que se tira ao chegar em casa, mas uma transfor-

6 defendo que nenhuma decisão é inteiramente livre. Ela é informada e condicionada por diversos fatores que, na maioria das vezes, podem ser muito bem administrados e resolvidos de forma autônoma por quem efetua tal escolha dentro da margem de liberdade possível, sendo uma pessoa adulta e minimamente cônscia de seus atos e das previsíveis consequências destes.7 A capacidade aqui aludida é a civil, que estabelece limites etários e psíquicos para a autodeterminação dos indivíduos.

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mação que passa por um profundo processo”. Os códigos da sociabilidade e da sexualidade das mulheres vão sendo por elas apropriados, ressignificados, expressando-se nos seus desejos, no modo de vestir, de andar, de falar, no gestual, nas transformações a que submetem seus corpos na busca de um modelo de feminilidade (dENIZART, 1997).

Esse ideal feminino próprio passa necessariamente pela construção de seus corpos e vidas

[...] na direção de um feminino, ou de algo que elas chamam de feminino. Em sua linguagem êmica, elas querem ser mulher ou se sentir mulher. Se sentir mulher é uma expressão que por si só já traz algumas pistas de como este feminino é concebido, construído e vivenciado pelas travestis. De fato, a maior parte não se iguala às mulheres, nem tampouco o deseja fazê-lo. O feminino travesti não é o feminino das mulheres. É um feminino que não abdica de características masculinas, porque se constitui em um constante fluir entre estes polos, quase como se cada contexto ou situação propiciasse uma mistura específica destes ingredientes do gênero. (BENEDETTI, 2005, p. 84-85)

Nascer condicionado a ser homem e tornar-se mulher transgride e desessencializa a dicotomia feminino-masculino socialmente imposta. Na medida em que as amplas possibilidades da diversidade sexual, esse bina-rismo de gênero é descrito como artificial por BUTlER (1990, p. 25-26):

For Foucault, the substantive grammar of sex imposes an artificial binary relation between the sexes, as well as an artificial internal coherence within each term of that binary. The binary regulation of sexuality supresses the subversive multiplicity of a sexuality that disrupts heterosexual, reproduc-tive and medicojuridical hegemonies.

Muitas travestis passam por experiências de abusos ainda na infân-cia e aprendem desde cedo a desenvolver resistências e defesas a essas agressões. Ao assumirem uma identidade sexual e social fora dos padrões convencionais, são comumente reprimidas, e muitas delas são expulsas de casa ou optam por sair em busca de liberdade.

Baixos índices de instrução em virtude da evasão escolar provocada pela discriminação redundam em dificuldades de acesso ao mercado de trabalho formal. Entretanto, interpretar a escolha pela prostituição como falta de opção seria por demais reducionista. O mercado do sexo avulta para muitas travestis como possibilidade concreta, não só de obter renda

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e sustento, mas de socialização e expressão de uma sensualidade feminina coerente com suas identidades e desejos. A rua orienta-lhes condutas, prá-ticas e aprofunda transformações, tanto físicas quanto psicológicas. Fora do ambiente doméstico, elas são aceitas, estabelecem referências positivas, experimentam a dinâmica dos jogos eróticos, testam seus poderes de se-dução, vivenciam situações de prazer e sofrimento que lhes conferem ma-turidade, são acolhidas e aprendem a se vestir-se, a ingerir hormônios que lhes arredondam os corpos, a desenvolver cuidados estéticos tidos como típicos de mulher, como maquiagem, depilação, tratamento de pele, cabe-los, unhas. É na rua que se lhes mostram os caminhos para “se tornarem mulheres” (BENEdETTI; 2005; PElÚCIO; 2007; SIlVA; 2007).

Essa experiência adensa-se quando surge a oportunidade de exer-cerem tal atividade na Europa. Tal empreendimento permite-lhes ocupar uma posição privilegiada na hierarquia travesti – a de “europeia”.

Essa mesma Europa idealizada por travestis como paraíso de pros-peridade econômica e tolerância tem sido palco de manifestações massi-vas de repúdio aos imigrantes oriundos de regiões como América latina, África, Ásia e leste Europeu. Políticos de extrema direita ascenderam ao poder acusando estrangeiros de práticas terroristas, narcotráfico, disse-minação de doenças sexualmente transmissíveis e AIdS, degradação de valores morais, culturais e religiosos. Aos imigrantes foi atribuída a res-ponsabilidade pelas crises sociais, constituindo o ódio importante elo de agregação na luta contra “a horda bárbara invasora”.

Paralelamente a isso, tem-se verificado ultimamente uma preocupa-ção cada vez maior com a exploração do comércio sexual junto à opi-nião pública em âmbitol global, traduzida nos esforços empreendidos no combate ao chamado tráfico internacional de pessoas por parte de órgãos governamentais e ONGs. Apontado como vertente do crime organizado transnacional, o tráfico de pessoas, segundo o Protocolo de Palermo, con-siste no

[...] recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhi-mento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração

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sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos; (Art. 3, “a”, do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. (Sem grifos no original)

No tocante às ações governamentais de repressão ao tráfico de seres humanos, as operações da Polícia Federal aparecem em lugar de desta-que, com ampla cobertura dos veículos de comunicação. dentre as mais de quinze operações policiais que foram deflagradas nesse sentido desde 2004, duas merecem destaque no âmbito dessa pesquisa, por terem sido especificamente destinadas ao combate do tráfico de travestis: a Operação Tarantela (março/2006) e a Operação Caraxué (outubro/2006).

Políticas anti-imigração e ações antitráfico vêm travando uma inte-ração conflituosa com projetos pessoais de travestis, na medida em que lhes nega o acesso aos países em que escolheram para viver e trabalhar. As experiências circulatórias em espaços transnacionais são vistas como novas invasões bárbaras ou situações de exploração, escravidão. Cumpre verificar a validade dos mecanismos de associação intrínseca entre a pros-tituição e o crime organizado, de modo a garantir às cidadãs travestis não somente proteção, mas também liberdade e respeito.

5 - NORMAS ATINENTES AO TRÁFICO DE PESSOAS

As primeiras normas que visam tratar do chamado tráfico de pessoas remontam ao início do século XX. Ao longo do tempo, o que se verifica por trás desses documentos legais e políticos são preocupações outras, em cujos contextos as migrações são elevadas de fatores circunstanciais a causa principal. Senão, vejamos:

1. acordo concluído em Paris entre várias potências em 18 de maio de 1904, para a repressão do tráfico de mulheres brancas (convolado em Convenção em 1905): há uma menção exclusiva às mulheres – em um momento histórico no qual elas buscam emanci-pação política, além de outros direitos, o paternalismo e a vitimiza-ção são flagrantes, atuando como forma de negação da autonomia feminina. O alarme social é criado para conter a mobilidade inter-nacional de mulheres europeias (as “brancas”), usando para isso do

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apelo vocabular da escravidão ao apropriar-se do termo “tráfico”, até então presente exclusivamente nos discursos pró-abolição, sem que houvesse relação de consequencia entre ambos os fenômenos, apenas metafórica. Mulheres que empreendessem a travessia pelo Atlântico desacompanhadas eram nessa época presumidas coagidas à prostituição – nota-se que o movimento antitráfico começou sua trajetória em sentido inverso ao atual. O art. 2º prescreve a insti-tuição de uma verdadeira “polícia portuária de costumes”, reduzindo a adoção de ações repressivas a mera suspeita. O grande objetivo é a repatriação. Travestis não têm, então, qualquer visibilidade social para projetarem influência em documentos normativos.

2. Convenção para repressão do tráfico de mulheres e crianças, firmada em Genebra, em 30 de setembro de 1921: com o fim da Primeira Guerra Mundial, a hegemonia da Europa como centro das decisões mundiais foi se pulverizando-se. Com a morte de grande parte da população masculina jovem nos países envolvidos, a crise econômica do pós-guerra sinalizava seu impacto nas famílias. Afora a mudança no cenário político, o diferencial desta Convenção em relação àquele Acordo foi a inclusão das crianças em seu texto. No mais, como em qualquer período de crise, as pessoas empreendem a busca por trabalho em que vislumbram oportunidade (também na prostituição). Travestis não têm, então, qualquer visibilidade social para projetarem influência em documentos normativos.

2.1 Protocolo de emenda da Convenção para a Repressão do Trá-fico de Mulheres e Crianças concluída em Genebra, a 30 de se-tembro de 1921, e da Convenção para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores, concluída em Genebra, em 11 de outubro de 1933, adotada pela assembleia Geral das Nações Unidas, em 1947, em Lake Success, Nova york: um grave colapso econômico (1929), uma nova guerra (1939-1945), e as consequentes perdas hu-manas, sociais e financeiras dessa conjuntura. Em meio a tudo isso, o principal objetivo desse aditamento à Convenção foi sinalizar a transição da liga das Nações para a Organização das Nações Unidas enquanto instituição internacional encarregada de promover a manu-tenção da paz, segurança, intermediação (pretensamente) imparcial

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entre os países que a compõem e difusão das ideias e das práticas de defesa dos direitos humanos, não modificando definições, apenas adequando as Convenções à nova ordem mundial pós-guerra. O êxo-do das regiões que serviram de palco aos conflitos é, naturalmente, bastante intenso. Travestis não têm, então, qualquer visibilidade so-cial para projetarem influência em documentos normativos.

3. Convenção Para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Leno-cínio, concluída em Lake Success Nova york, em 21 de março de 1950 e Protocolo Final: aqui a prostituição é tratada de forma bastante veemente como violência em si mesma, a partir de argu-mentos fundados em uma moral vitoriana, contrapondo-se-lhe a dignidade da pessoa humana, o bem estar do indivíduo, da família e da sociedade, já a partir do Preâmbulo. Ignora por completo a au-todeterminação das pessoas envolvidas. Há um forte movimento de resgate de valores morais tradicionais, típico de períodos tensos e turbulentos, e a propagação, principalmente por meio da televisão e do cinema do “american way of life”, estilo e projeto de vida “tipo ex-portação” que acentuava as desigualdades de gênero ao definir uma conservadora divisão de papéis masculinos e femininos, em que a prostituição era inconciliável com a ideia de felicidade nele concebi-da e por ele imposta, e a homossexualidade não cabia, por ser uma transgressão a essa dualidade. Cria-se uma rudimentar noção de co-operação internacional de combate ao tráfico no art. 14, na medida permitida pelos meios de comunicação de dados disponíveis naquele momento. O art. 15 sugere uma sistematização de informações, mas não fornece uma base muito adequada de qual deva ser-lhes os con-teúdos: suspeitas e presunções são misturadas a práticas aparentadas, tentadas e consumadas de cometimento do assim chamado delito de tráfico. O art. 16 sugere medidas de prevenção, suporte a prostitutas na forma de reabilitação e ressocialização, como se a prostituição fosse uma degradação moral, um perigo, um mal intrínseco. No art. 17, esboça-se o verdadeiro objetivo de tal cruzada moral: o controle migratório. O que se entende por propaganda “apropriada destinada a advertir o público dos perigos desse tráfico” é bastante questionável, visto

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que, até os dias de hoje, a publicidade oficial não contempla a diver-sidade (nem sequer deu contornos precisos à definição de tráfico). Apesar de a menção à adoção de medidas para combate ao “tráfico de pessoas de um ou outro sexo para fins de prostituição”, travestis não têm, então, qualquer visibilidade social para projetarem influência em do-cumentos normativos.

4. Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, adotada em Nova york, em 15 de novembro de 2000; O fluxo do tráfico se inverteu; o panorama mundial que se descortinava era a globalização, com grave acentuação das diferen-ças econômicas e sociais entre os países. A popularização da internet permitiu sua consolidação como veículo de comunicação em massa e armazenagem de dados, e a globalização da informação atinge um ní-vel sem precedentes históricos, em uma velocidade de comunicação nunca antes vista, integrando pessoas, culturas e costumes. Na Euro-pa unificada, diversos países foram obrigados a impor controles mais severos sobre a circulação de pessoas, notadamente aquelas prove-nientes de países periféricos. Políticos de extrema direita ascenderam ao poder criminalizando estrangeiros, associando-os ao terrorismo, fenômeno que ganhou grande repercussão no início do milênio, bem como ao narcotráfico. Aos imigrantes foi atribuída a responsabilidade pelas crises sociais, constituindo o ódio importante elo de agregação na luta contra o inimigo bárbaro comum. Movimentos anti-migração (a exemplo de neonazistas e skinheads) proliferaram nos países que sinalizam prosperidade econômica para o mundo. Sob a classificação de “crime organizado transnacional” (cuja definição consta do art. 3.2) são enfeixados lavagem de dinheiro, tráfico de drogas, de armas e de pessoas, desde que ocorram entre dois ou mais países. Resta evidenciado que a preocupação com as repercussões econômicas de tais práticas é o eixo central entre elas. As divergências legislativas entre os países convenentes denotam na ênfase dada a tais categorias delitivas as opções de políticas de segurança e controle social – aque-les mais empenhados contra o tráfico de pessoas são justamente os que envidam seus esforços na consecução do objetivo de “imigração zero”. Travestis não têm, então, qualquer visibilidade social para pro-jetarem influência em documentos normativos.

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4.1 Protocolo adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Re-pressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulhe-res e Crianças, de 29 de setembro de 2003: uma nova ordem mun-dial foi inaugurada no início do século, cuja grande característica é a insegurança. Os ataques ao World Trade Center e ao Pentágono, em 11 de setembro de 2001, foram o estopim de (re)ações violentas volta-das contra países islâmicos. Á ocupação do Afeganistão seguiu-se a do Iraque e, nos EUA e na Europa, o ódio aos estrangeiros agregou mais um elemento: a ameaça do terrorismo. A ascensão ao poder de partidos de esquerda em vários países da América latina sinalizava um acirramento na tensão sul-norte. Esse foi o pano de fundo para a edição do Protocolo destinado à prevenção, repressão e punição do tráfico. O segundo parágrafo do preâmbulo demonstra a pretensão de esgotar todos os aspectos relativos ao tráfico de pessoas, o que não foi feito pelos instrumentos internacionais atinentes à matéria anteriormente promulgados. Entretanto, talvez o mais importante de todos os aspectos a atenção às perspectivas de quem migra é ignora-do.

O art. 3 busca conceituar o tráfico de pessoas, e o faz de forma proli-xa e imprecisa, com fórmulas casuísticas seguidas de cláusulas genéricas, o que demanda interpretação analógica para captação dos meandros dessas definições. Entrementes, a interpretação analógica não provê uma aplica-ção internacionalmente arbitrária da lei, posto que os limites constam no corpo da própria norma. As ações descritas nesse dispositivo colocam em um mesmo plano deliberações conscientes e fraudes e, o que geralmente se interpreta como vulnerabilidade, pode variar de pouca idade, discerni-mento mental reduzido até pobreza pura e simples de agentes maiores e capazes.

O art. 5 determina que as medidas legislativas para estabelecimento das condutas descritas no art. 3 sejam penalizáveis apenas quando pra-ticadas com dolo direto, na forma tentada e consumada, com e sem co-autoria, em grau de organização, execução, planejamento ou orientação. Tal recomendação produziu resultados, no Brasil, com a edição da lei nº 11.106/2005, que, dentre outras medidas, determinou a alteração do art. 231 do Código penal, (relativo ao tráfico internacional de pessoas) Código

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Penal e a inserção do art. 231-A (dispõe sobre o tráfico interno), manten-do basicamente os mesmos retrocessos e conservadorismos da redação original, condenando o favorecimento da prostituição, apenas substituin-do o vocábulo “mulher” por “pessoa”, e acrescendo a pena pecuniária à de reclusão. Violência, ameaça e fraude não são elementos do tipo, são qualificadoras.

O art. 6 preconiza que cada Estado Parte garanta medidas que pro-piciem às vítimas do tráfico assistência para que suas opiniões e preocupa-ções sejam apresentadas e consideradas em fases adequadas do processo penal instaurado contra os autores das infrações, sem prejuízo dos direi-tos da defesa. Mais útil seria se as opiniões das pessoas apontadas como vítimas (e que não necessariamente são) tivessem alguma influência na elaboração de diplomas legais, de forma dialogada e sem manobras dema-gógicas. Mesmo essa participação de tais pessoas em processos e inquéri-tos é, em geral, imposta, não facultada, e as permissões de estada são con-cedidas na justa medida da utilidade delas em relação aos procedimentos de tais ações. Também esboça uma solidariedade utópica, pois contempla assistência física, psicológica e social, e a cooperação com ONGs para fornecimento de alojamento, informação, assistência médica, psicológica e material, além de oportunidades de emprego, educação e informação. O art. 7 menciona a consideração da possibilidade de concessão de per-manência temporária ou permanente, sem critérios para aplicação de uma ou de outra. O que se verifica, na prática, são deportações que eximem os Estados destinatários de maiores responsabilidades.

O art. 8 trata do repatriamento das vítimas de uma forma inócua, podendo representar exclusão; assegura a segurança no retorno, mas não dá a dimensão dessa segurança, e menciona que essa volta deve ser pre-ferencialmente voluntária (na maioria das vezes não é). Também trata de processos judiciais relacionados ao tráfico que envolvam essa pessoa.

O art. 9, sobre a prevenção do tráfico, preconiza adoção de pro-gramas e medidas que se reputem eficientes para prevenção e combate ao tráfico, e para proteger as vítimas (novamente destacando mulheres e crianças) de nova vitimação. A questão é: a que custo? Cerceando a liber-dade de indivíduos adultos? O artigo ora analisado também dispõe sobre campanhas de informação e difusão por meio dos órgãos de comunicação (os quais, mais do que em qualquer outra época, passaram a ocupar um

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lugar de destaque na manipulação de ideologias, paradigmas e pânicos), bem como adoção de medidas sociais e econômicas que visem à dissuasão do tráfico (que demonstram ser mais desencorajadores do tráfego). As medidas e programas a serem estabelecidos para redução da pobreza e da falta de oportunidades prescindem do mote de combate ao tráfico, sendo sua necessidade bastante clara a todos os cidadãos, não apenas àqueles considerados vítimas potenciais do crime organizado. A articulação do governo com ouros setores da sociedade é louvável, desde que se propo-nha ao debate com todos os grupos interessados. A implementação de medidas legislativas, educacionais, sociais e culturais que desestimulem a procura que fomenta a exploração acaba por abrir as chancelas para ações indiscriminadas de combate à prostituição.

No art. 11, já parece delinear-se de forma mais clara a real intenção da norma: reforços no controle fronteiriço; a ressalva aos compromissos inter-nacionais relativos à liberdade de circulação de pessoas alcança tão-somente o já permitido trânsito aos nacionais de países constituintes de uma mesma co-munidade e situações formalizadas de refúgio ou asilo, que sequer constituem direitos subjetivos do estrangeiro. Nesse caso, não há obrigatoriedade; são li-beralidades do Estado no exercício de seu poder discricionário, mesmo assim em casos nos quais haja ameaça à vida, liberdade ou outros direitos fundamen-tais da pessoa humana e aqui caberia questionar as diferenças da compreensão do que vem a ser fundamental em cada país, e até do que significa pessoa humana. Uma vez admitidos, cumprindo a rígida disciplina restritiva da liberdade de locomoção a que são submetidos, gozam do princípio do non-refoulement (não repatriação de quem tenha fugido de regimes autoritários), cuja interpretação é eminentemente política. Também merece destaque a reiteração da possibili-dade de anulação de vistos e recusas de ingresso de pessoas suspeitas de envol-vimento, ações estas que se voltam eminentemente contra as “vítimas”. Assim, mesmo que no art. 14 haja uma previsão expressa de interpretação e aplicação de medidas de controle de modo que não haja discriminação das vítimas, em consonância com princípios de não discriminação reconhecidos internacio-nalmente, essa não tem sido a práxis nos tradicionais destinos europeus dos que se lançam à atividade da prostituição. Não há no texto qualquer menção a identidade de gênero ou orientação sexual. Travestis não têm, então, qualquer visibilidade social para projetarem influência em documentos normativos.

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Em 2002, a Universidade de Brasília (UnB) e o Centro de Referência, Estudos e Ações sobre a Criança e Adolescente (CECRIA), junto com ONGs recrutadas segundo critérios de alinhamento com a política de tra-tamento do tema pelo governo desenvolveram a Pesquisa Sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual, (PESTRAF) reforçando os ranços paternalistas que eivam o Protocolo de Palermo. Ainda podemos elencar, dentre os mecanismos que se propõem ao combate do tráfico, as declarações de Cascais (Portugal) e Brasília, en-caminhamentos dos debates empreendidos por ocasião da realização do I Seminário luso-Brasileiro sobre Tráfico de Pessoas e Imigração Ilegal/Irregular, realizado em duas etapas – a primeira, ocorrida entre os dias 22 e 24 de maio de 2006 em Portugal, e a segunda, que aconteceu entre os dias 27 e 28 de novembro do mesmo ano, em Brasília; também a Portaria nº 2.167, de 07 de dezembro de 2006, que institui a aplicação do Plano de Ação para a luta contra o Tráfico de Pessoas entre os Estados Parte do Mercosul, que nada mais é que desdobramentos do Protocolo, com igual postura patriarcal, protetiva das mulheres e crianças. Entrementes, algumas diferenças de abordagem nos documentos português e brasileiro sugerem haver maiores avanços por parte do Brasil no tocante aos di-reitos humanos, na medida em que a declaração de Brasília elege como princípios, dentre outros, a não discriminação por motivo de gênero ou orientação sexual, de forma explícita, específica, além da transversalidade de tais dimensões na elaboração de políticas públicas. A partir dessas tais considerações, travestis passam a contar com um meio de alcançar a visibi-lidade social necessária para projetarem influência na produção legislativa e política.

No intervalo entre as etapas do Seminário luso-Brasileiro, foi apro-vada por meio do decreto nº 5.948/ 2006, a Política Nacional de Enfren-tamento ao Tráfico de Pessoas, também instituído o Grupo de Trabalho Interministerial com o objetivo de elaborar proposta do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP), lançado em feverei-ro de 2007, que contempla princípios, diretrizes e ações de prevenção e combate ao tráfico. Na elaboração do plano, nenhuma entidade direta e efetivamente interessada, representativa de travestis e/ou prostitutas foi instada a apresentar suas demandas.

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Recentemente, em 8 de janeiro de 2008, foi editado o decreto nº 6.347, que aprovou o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas como fruto do trabalho desenvolvido pelos articuladores dessa Política, sendo seu principal instrumento de implementação. Nele são pro-postos meios de prevenção ao crime e de repressão aos autores, e é asse-gurado tratamento adequado às vitimas. O prazo de execução é de dois anos. Ignoradas na elaboração, espera-se que, ao menos na implementação das ações, entidades representativas de prostitutas e travestis tenham par-ticipação efetiva, que suas demandas sejam também mapeadas, que suas especificidades sejam contempladas com atenção e respeito; do contrário seguir-se-á a afirmação da forma de pensar de burocratas e demagogos: sempre saberem melhor que o interessado o que convém a ele.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ultimamente, tem-se verificado uma preocupação cada vez maior com a exploração do comércio sexual junto à opinião pública em âmbito internacional, também expressa pela atuação do poder público, de organi-zações religiosas, dos meios de comunicação, que, a despeito das declaradas boas intenções, findam por reforçar estereótipos, alimentar preconceitos e fabricar pânicos morais. Tais discursos muitas vezes atrelam o exercício regular da atividade da prostituição com a prática de crimes, alimentando o recrudescimento de políticas migratórias. Vê-se aqui um caminho dú-bio, em recortes micro e macro, respectivamente: associar a prostituição à prática de crimes cometidos por seus agentes (em geral pequenos furtos, lesões corporais, em legítima defesa ou não), e o crime transnacional de tráfico de pessoas, de definição imprecisa e que não raro é confundido com a migração voluntária, fazendo com que essa seja reprimida sob a alegação de combate à criminalidade organizada, cuja repressão requer cooperação entre os Estados, quebras de sigilos telefônico e fiscal de seus líderes, e não deportações e encarceramento de prostitutas. A abordagem hegemônica atual se pauta em padrões sexuais conservadores, monogâmi-cos, estáveis, heterossexuais, não comerciais, e essa visão permeia toda a legislação atinente ao tráfico.

Sob o argumento de proteção, a fabricação de pânicos morais asseve-ra valores sexuais vitorianos, pautados em uma cultura religiosa, que exalta a abstinência, a supremacia masculina heteronormativa; o tratamento dis-

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pensado à prostituição oscila entre o paternalismo, que nega autonomia a seus agentes, e a demonização, que promove uma verdadeira caça às bruxas, em consonância com interesses de grupos xenófobos que têm se mostrado cada vez mais fortes em países desenvolvidos, organizados e moralistas, promovendo intensa campanha contra qualquer tipo de mi-gração.

É preciso repensar os conceitos de tráfico de seres humanos a par-tir das perspectivas das pessoas que são apontadas como vítimas, com métodos e estratégias adequados às suas necessidades, uma vez que elas rejeitam o estigma de vítimas, e desejam ser encaradas como pessoas como quaisquer outras, cujas escolhas profissionais devem ser respeitadas. Com-bater a violência com que eventualmente são tratadas aqui e alhures é imprescindível, mas esse objetivo não deve atingir o direito de ir e vir, não deve servir de pretexto para deportações “salvadoras” e outras políticas alegóricas.

É preciso repensar os conceitos de tráfico de seres humanos a partir das perspectivas das pessoas apontadas como vítimas, traficadas, contra-bandeadas, com métodos e estratégias adequados às suas necessidades. Nesse contexto, travestis não contam com uma visibilidade social que lhes permita projetar influência em documentos normativos, acabando por enfrentar discriminações ainda mais graves que mulheres. A diversidade, então, serve de pretexto para a exclusão, a intolerância e a homofobia, praticadas por meio de ações violentas e omissões. Faz-se mister que elas sejam efetivamente ouvidas na formulação de políticas e normas que regu-lem aspectos de suas vidas tão importantes quanto o exercício da profissão que elegeram. Para tanto, é recomendável que se fortaleçam por meio da articulação, para pressionarem a opinião pública e as esferas deliberativas do poder político estatal, para se fazerem ouvidas, inserindo suas deman-das na agenda política de governos que aspirem à ostentação do epíteto “democrático de direito”.

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8 A organização bibliográfica apresenta obras efetivamente consultadas e citadas no corpo do trabalho, bem como aquelas pesquisadas e selecionadas de forma indireta, pelo cruzamento de citações, levantamento bibliográfico etc, que não foram citadas no texto, mas que compõem o conjunto de obras fundamentais e conexas relaciona-das com o tema desenvolvido.

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_____. Decreto nº 46.981, de 8 de outubro de 1959. Promulga, com o respecti-vo Protocolo Final, a Convenção para a repressão do tráfico de pessoas e do lenocínio, concluída em lake Success Nova York, em 21 de março de 1950, e assinada pelo Brasil em 5 de outubro de 1951.

_____. Decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006. Aprova a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e institui Grupo de Trabalho In-terministerial com o objetivo de elaborar proposta do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - PNETP.

_____. Decreto nº 6.347, de 8 de janeiro de 2008. Aprova o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - PNETP e institui Grupo Assessor de Avaliação e disseminação do referido Plano.

_____. Decreto nº. 5.015 de 12 de março de 2004. Promulga a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional.

_____. Decreto nº. 5.017, de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças.

_____. Decreto nº. 5.591, de 13 de julho de 1905. Promulga o Acordo para Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas.

_____. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal.

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2º COLOCadO GRadUadOS

CONTRIBUIÇÕES PARA O DEBATE SOBRE O TRÁFICO DE PESSOAS A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DO ESCRITÓRIO DE PREVENÇÃO E COMBATE AO TRÁFICO DE SERES HUMANOS NO ESTADO DO

CEARÁ

Lilia Maia de Moraes SalesEmanuella Cardoso Onofre de Alencar

INTRODUÇÃO

O tráfico de seres humanos é um tema que se encontra na agenda de debates de organizações governamentais e não governamentais do Bra-sil e de outros Estados, por ser considerado um assunto que versa tanto sobre questões ligadas à migração, como também à proteção de direitos humanos.

O Protocolo das Nações Unidas contra o Crime Organizado Trans-nacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição ao Tráfico de Pessoas, especialmente Mulheres e Crianças, conhecido como Protocolo de Paler-mo, ratificado pelo Brasil em 2004, e pesquisas divulgadas pelo Escritório das Nações Unidas sobre drogas e Crimes (UNOdC), que apontam o Brasil como local de prática de tráfico interno bem como da saída de pes-soas para tráfico internacional, contribuíram para reacender esse assunto.

O estudo do tráfico de pessoas revela-se importante porque, apesar de o Protocolo de Palermo ser o primeiro documento internacional que define esse crime, ainda existe muita discussão acerca do conceito desse tráfico e a confusão que se faz entre o tráfico de seres humanos e outros fenômenos, como migração, tráfico de migrantes e prostituição, por exem-plo, contribuem para que ações de prevenção e repressão sejam ineficazes e para que os autores dessa infração fiquem impunes.

desta feita, tendo em vista a necessidade de discutir-se o tema, o presente trabalho objetiva analisar teoricamente o conceito de tráfico de pessoas, discutir a eficácia da legislação penal brasileira sobre o tráfico e

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sugerir ações inovadoras à luz dos princípios e diretrizes da Política Na-cional de Enfrentamento ao Tráfico, a partir da pesquisa que analisou a experiência do Escritório de Prevenção e Combate ao Tráfico de Pessoas no Ceará.

Para o desenvolvimento da presente investigação, foi realizado vas-to levantamento bibliográfico, como também foram estudados todos os documentos internacionais acerca do tráfico de pessoas ratificados pelo Brasil e a legislação nacional que versa sobre o tema. Na pesquisa de cam-po, as investigações vêm-se se desenvolvendo desde 2005, data na qual as pesquisadoras passaram a acompanhar, semanalmente as diferentes ativi-dades realizadas pelo Escritório. No estudo de campo, além dos acompa-nhamentos presenciais, foram realizadas entrevistas, aplicação de questio-nários e analisadas as denúncias recebidas.

Essa pesquisa foi dividida em três partes. Na primeira, foi analisado o conceito de tráfico de pessoas apresentado pelo Protocolo de Palermo. Esse estudo é importante tendo em vista a necessidade de se compreen-der-se a nova concepção dessa prática apresentada pelo documento. Em seguida, foi realizada a distinção do tráfico com outros fenômenos que com ele frequentemente se faz confusão, como a migração, o contrabando de migrantes, o turismo sexual e a prostituição. Essa diferenciação é rele-vante porque a confusão existente dificulta ações de prevenção e combate adequadas, como já salientado.

A segunda parte do trabalho versa sobre a legislação brasileira acerca do tema. Apesar de o Código Penal ter sido modificado em 2005, pela lei nº 11.106, que passou a prever o tráfico internacional de pessoas e incluiu sua modalidade interna, sua redação ainda é considerada limitada e con-servadora, vinculando o tráfico ao exercício da prostituição, o que impede que práticas que também se consideram como tráfico pelo Protocolo de Palermo, não sejam punidas como tal no Brasil, tendo em vista a redação do tipo pelo Código.

A terceira parte afere a situação do tráfico de pessoas no estado do Ceará por meio da pesquisa que analisa a experiência do Escritório de Pre-venção e Combate ao Tráfico de Seres Humanos e Assistência à Vítima, primeira instituição cearense a desenvolver ações relacionadas ao tráfico.

Foram analisadas as atividades desenvolvidas pela instituição como também as denúncias realizadas. Em face da experiência do Escritório e

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tendo em vista os princípios e diretrizes que norteiam a Política e o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Seres Humanos (decretos nº 5.948/06 e nº 6.347/08) são apresentadas algumas propostas nos eixos de prevenção, assistência à vítima e repressão ao tráfico de pessoas, que poderão contribuir na luta contra esse crime.

1 - TRÁFICO DE SERES HUMANOS – QUE DELITO É ESTE?

durante muito tempo não foi tarefa fácil conceituar tráfico de seres humanos, eis que não havia um consenso internacional sobre o que seria essa atividade, e muito se discutiu-se na tentativa de apresentar a definição mais adequada. Embora várias organizações governamentais e não gover-namentais tentassem apresentar seu conceito de tráfico (cf. ANdERSON e dAVIdSON, 2004, p. 16), fazia-se – e ainda faz-se – muita confusão entre esse fenômeno e outros que a ele podem estar ligados.

Como observa KAPUR (2005, p. 115), o tráfico de seres humanos está relacionado, no discurso contemporâneo, à migração, especialmente à ilegal, e ao contrabando de migrantes. Paralelamente, existe ainda o tráfico de mulheres e de crianças que está associado à sua venda e ao envio força-do a bordeis como trabalhadores sexuais. Esta associação do tráfico com várias formas de migração, de um lado, e com a prostituição e o trabalho sexual de outro, está no centro do discurso atual sobre o tráfico global de pessoas.

Essa problemática é reforçada por CHAPKIS (2006, p. 926) ao dis-por que as definições de tráfico são tão instáveis quanto o número de suas vítimas. Segundo ela, em alguns relatórios, todos os imigrantes não docu-mentados que são detidos nas fronteiras são contados como se estivessem sendo traficados. Outros documentos referem-se ao tráfico envolvendo exclusivamente vítimas da exploração sexual. desta feita, em alguns exem-plos, todos os imigrantes trabalhadores sexuais são definidos como vítimas de tráfico sem levar em consideração o seu consentimento e suas condi-ções de trabalho; e em outros casos, são enfatizadas as condições abusivas de trabalho ou o recrutamento enganoso para a indústria do sexo.

Em face dessa indefinição, que dificultava a identificação do tráfico, sua repressão e punição, e tendo em vista que nenhum dos documen-tos internacionais anteriormente elaborados que tratavam do tráfico de

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mulheres9 apresentou uma definição dessa atividade, tornou-se urgente a elaboração de um conceito de tráfico de pessoas que pudesse orientar as ações das organizações governamentais e não governamentais nessa área.

Na atualidade, o tráfico refere-se ao tráfico de pessoas, tanto do sexo masculino como do feminino.

desta feita, em dezembro de 2000, foi aberta para ratificação, na ci-dade de Palermo, Itália, a Convenção contra o Crime Organizado Transna-cional, objetivando prevenir e combater crimes transnacionais cometidos por grupos organizados, e adicionais a esta, dois protocolos, um versando sobre tráfico de seres humanos e outro sobre contrabando de imigrantes.

1.1 - O CONCEITO DE TRÁFICO DE SERES HUMANOS

O Protocolo das Nações Unidas contra o Crime Organizado Trans-nacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição ao Tráfico de Pessoas, especialmente Mulheres e Crianças, é o atual documento da Organização das Nações Unidas a tratar do tráfico de seres humanos. Em compara-ção aos documentos internacionais anteriores que abordaram esse tema, o Protocolo de Palermo, como também é conhecido, destaca-se por apre-sentar a primeira definição desse crime.

Segundo o Protocolo de Palermo, em seu artigo 3:

a) a expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consenti-mento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de ex-ploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.

9 Na atualidade, o tráfico refere-se ao tráfico de pessoas, tanto do sexo masculino como feminino.

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b) o consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente Artigo será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios re-feridos na alínea a);

c) o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhi-mento de uma criança para fins de exploração serão considerados “tráfico de pessoas” mesmo que não envolvam nenhum dos meios referidos da alí-nea a) do presente Artigo;

d) o termo “criança” significa qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos.

A definição acima apresentada trouxe importantes avanços. Inicial-mente, vale destacar que o documento faz referência ao tráfico de pessoas, e não mais apenas de mulheres,10 como se observa nos anteriores. Essa mudança demonstra a ideia de que tanto homens como mulheres podem ser traficados.

Ademais, o tráfico de seres humanos ocorre com a finalidade da ex-ploração de alguém em diversos setores do mercado de trabalho. Essa exploração refere-se as condições de trabalho as quais pessoas são sub-metidas e como se desenvolve-se a relação trabalhista, muitas vezes sub-metendo o trabalhador a horas extenuantes de atividade, desenvolvida de modo forçado, em condições inadequadas, restringindo sua liberdade de locomoção, recebendo baixo ou nenhum pagamento e sem a observância da legislação trabalhista.

Como destacado por ANdERSON e dAVIdSON (2004, p. 7), questões sobre suprimento e demanda não podem ser analiticamente se-paradas, e ambas são caracterizadas, ou até determinadas, por um conjun-to complexo e interligado de fatores políticos, sociais e institucionais. Os serviços de pessoas traficadas são invariavelmente explorados/consumi-dos em setores onde o estado concede pouca ou nenhuma proteção a tra-balhadores imigrantes desqualificados e/ou outras categorias de pessoas exploradas (como esposas, au pairs, crianças adotadas, pedintes); e onde trabalhadores ou outros grupos explorados têm pouca ou nenhuma opor-tunidade de se organizarem coletivamente para se protegerem de abuso e exploração. Estes setores não existem simplesmente, mas são criados por

10 Apesar da ênfase que ainda é dada a mulheres e crianças.

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meio de uma combinação de ação e inação de parte de atores estatais e outros grupos de interesses.

As autoras salientam que quase não existe demanda por pessoas tra-ficadas para serem exploradas em setores em que os trabalhadores estão organizados, os contratos são bem estabelecidos e as rotinas de trabalho são monitoradas. Segundo elas (2004, p. 8) a demanda pelo trabalho de pessoas traficadas é frequentemente encontrada em contexto que é so-cialmente imaginado por não envolver relações de trabalho. Por exemplo, o serviço doméstico não é completamente entendido como “trabalho” quando tem lugar no espaço privado da casa; aqueles que exploram tra-balho infantil frequentemente não reconhecem as crianças como empre-gados ou eles como empregadores, e escondem o que é uma relação de exploração de trabalho atrás de relações de parentesco fictícias ou alguma outra forma de paternalismo. Isso também pode ser aplicado em relação ao trabalho envolvendo adultos. Por sua vez, “prostituta” é frequentemen-te tomada para referir uma categoria de pessoa (uma sub-pessoa) mais do que uma categoria de trabalhador, e assim não pode ser imaginada como um sujeito de direitos.

desta feita, atividades que são desenvolvidas em setores onde não há regulamentação adequada ou uma fiscalização eficiente acerca das condi-ções de trabalho, bem como da necessária observância da legislação traba-lhista, tendem a ser aquelas mais suscetíveis a receber e explorar pessoas traficadas.

ANdERSON e dAVIdSON (2004, p. 08) destacam ainda, que tra-balhadores imigrantes ilegais ou irregulares são muito mais vulneráveis à exploração por grupos de traficantes de pessoas, em face do desconheci-mento da língua e do local para onde são levados. Muitas vezes aceitam propostas de trabalho em outros locais em razão da necessidade de ganhar dinheiro e das condições socioeconômicas que estão vivenciando. Um dos recursos utilizados para subjugar esses trabalhadores são os débitos, o confinamento, a força e os tratamentos violentos.

Assim, atividades como serviços gerais, serviços domésticos, traba-lhos na agricultura, na construção civil, nas indústrias e manufaturas, na prostituição, entre outras, tendem a ser aquelas nas quais são exploradas pessoas traficadas, em várias regiões do mundo.

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As formas de exploração, segundo o Protocolo de Palermo, podem dar-se por meio da exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, de trabalhos ou serviços forçados, da escravatura ou práticas similares à escravatura, da servidão ou para a remoção de órgãos.

1.1.1 - EXPLORAÇÃO DA PROSTITUIÇÃO DE OUTREM OU OUTRAS FORMAS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL

As expressões “exploração da prostituição de outrem ou outras for-mas de exploração sexual” são criticadas por diversos autores por uma da sua imprecisão, o que não auxilia em nada a compreensão desse tipo de exploração, e principalmente, por referir-se a uma atividade específica, a prostituição, quando o intuído seria desvincular o tráfico de qualquer ati-vidade laboral, para o compreender como uma conduta na qual se usam meios fraudulentos para explorar alguém (cf. ANdERSON e dAVId-SON, 2004).

Contudo, como a prostituição e outras atividades que envolvem tra-balhadores sexuais foram objeto dos maiores debates nos encontros fi-nais das negociações para a elaboração do Protocolo, esses termos foram propositadamente deixados indefinidos para que cada governo pudesse interpretá-los de acordo com sua legislação interna, bem como foi manti-da a referência à prostituição (cf. dITMORE e WIJERS, 2003, p. 84).

Essa indefinição ocorreu em razão da existência de tipos distintos de legislação sobre a prostituição em diferentes Estados, como é o caso da Alemanha e da Holanda, que a regulamentam como atividade profissional, e da Suécia, que a proíbe expressamente.

Mas as atividades na indústria do sexo não se referem somente à prostituição, pois envolvem também serviços de entretenimento sexual, como dançarinas, shows de sexo ao vivo, serviços de tele sexo, entre vários outros.

diversos autores defendem que essa finalidade do tráfico de pessoas está mais relacionada às condições de recrutamento e de exploração do que à realização da atividade per si. Isso porque atividades sexuais podem variar muito em relação à forma de ingresso e às condições em que se de-senvolvem (cf. ANdERSON e dAVIdSON, 2004, p. 35-36).

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A prostituição é considerada uma atividade que expõe o trabalhador a riscos físicos e de saúde, apesar de não ser a única,11 e que se encon-tra extremamente estigmatizada na maioria dos Estados, não sendo vista como trabalho. Este fato faz com que os trabalhadores sexuais sejam alvo de preconceitos e coloca essa atividade entre os espaços mais subalternos e marginalizados dos setores informais, pouco controlados e regulamenta-dos, o que torna possíveis diversas formas de exploração e violência.

Além disso, a existência de demanda por sexo barato e por deter-minados “tipos” de pessoas, consideradas exóticas, pode ser um estímulo para a existência de tráfico com a finalidade de exploração sexual, na me-dida em que os clientes procuram diversidade de trabalhadores sexuais. As terceiras partes que traficam pessoas podem suprir essa demanda com homens ou mulheres de diversas localidades e também deslocar essas pes-soas já traficadas de um bordel para outro ou de uma região para outra.

Nos casos de trabalhadores sexuais imigrantes, a sua vulnerabilidade à exploração por uma terceira parte é maior, por causa das leis e das po-líticas migratórias que, muitas vezes, os tornam dependentes de seus em-pregadores, que tanto podem ajudá-los como explorá-los. Alguns Estados, como o Canadá, concedem permissão de trabalho em setores de entreteni-mento para mulheres estrangeiras, por períodos de seis a doze meses. Fre-quentemente, a estada dessas mulheres está vinculada a um determinado empregador, o que as torna dependentes dele para sua migração regular e sua subsistência. Contudo, em vários Estados, essas estrangeiras que atu-am na indústria do entretenimento não estão garantidas pela legislação trabalhista, nem mesmo para o

recebimento de seus salários. Assim, os Estados possibilitam que os empregadores tratem essas mulheres da forma como desejam, o que torna possível diferentes níveis de exploração (cf. BARRERO, 2005).

11 deve-se destacar que existem diversas outras atividades que expõem seus trabalha-dores a diferentes riscos físicos e de saúde, colocando, inclusive, suas vidas em perigo, como é o caso dos trabalhadores de minas subterrâneas. Ocorre que, por não ser uma atividade estigmatizada, está regulamentada em vários Estados e seus trabalhadores possuem um mínimo de proteção trabalhista.

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1.1.2 - TRABALHOS OU SERVIÇOS FORÇADOS

Apesar da dificuldade de conceituar-se o que é trabalho forçado, em razão da confusão que comumente se faz com o trabalho escravo e a ser-vidão, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em seus docu-mentos, define o que considera essa prática. Segundo a Convenção sobre Trabalho Forçado, de 1930 (n° 29), é “todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob ameaça de sanção e para o qual ela não tiver se oferecido espontaneamente” (art. 2°).

O trabalho forçado representa grave violação aos direitos humanos. Não pode ser simplesmente equiparado a baixos salários ou a más condi-ções de trabalho. Para que uma atividade seja considerada forçada, deve conter os dois elementos apresentados pela OIT: trabalho ou serviço im-posto sob ameaça de punição e aquele executado involuntariamente (cf. OIT, 2005).

A punição pode apresentar as características de perda de direitos e privilégios. Uma ameaça de punição (cf. OIT, 2005, p. 5-6) pode assu-mir diferentes formas, como violência, confinamento, ameaça de mor-te ao trabalhador e a seus familiares. A ameaça pode ainda ter natureza psicológica,12 natureza financeira13 e ocorrer com o confisco dos docu-mentos pessoais do trabalhador com o objetivo de lhe impor-lhe trabalho forçado.

Em relação ao consentimento, a OIT destaca variados aspectos que incluem a forma ou o conteúdo do consentimento, o papel das pressões externas ou das coações indiretas e a possibilidade de revogar o consen-timento dado livremente. Há ainda formas veladas que afetam o consen-timento dado pelo trabalhador, como no caso daqueles que aceitam um trabalho que será forçado, sem o seu conhecimento, eis que a aceitação da proposta ocorreu por meio de fraude e engano, para depois descobrir que não pode deixar o trabalho em face das coerções físicas ou psicológicas. Esse consentimento inicial será considerado irrelevante porque foi obtido por fraude ou engano (cf. OIT, 2005, p. 06).

12 Ameaças de denúncia do trabalhador imigrante ilegal à polícia ou às autoridades de imigração, por exemplo. (cf. OIT, 2005, p. 6).13 Como penas econômicas ligadas à dívida, o não pagamento de salários ou a perda de salários juntamente com ameaças de demissão quando o trabalhador se recusar a fazer horas extras além do estipulado em seus contratos ou na legislação nacional. (cf. OIT, 2005, p. 6).

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É necessário destacar que o que vai determinar uma situação de tra-balho forçado é a natureza da relação do trabalhador com o empregador, e não o tipo de atividade desenvolvida, mesmo que as condições de trabalho sejam duras ou perigosas.

No que se refere ao tráfico de pessoas e ao trabalho forçado, apesar de serem práticas distintas, podem acontecer casos de tráfico com a finali-dade da exploração por meio da realização de trabalho forçado, mas nem todo trabalho forçado é fruto do tráfico. Assim sendo, há a necessidade de leis que combatam tanto o tráfico de pessoas (destacando que este deve englobar todos os tipos de exploração elencados no Protocolo de Paler-mo) como também o trabalho forçado.

1.1.3 - ESCRAVATURA OU PRÁTICAS SIMILARES À ESCRAVATURA E SERVIDÃO

A escravidão é uma forma de trabalho forçado, mas que tem as suas especificidades. Significa o estado ou condição de uma pessoa sobre a qual se exercem todos ou alguns dos poderes decorrentes do direito de pro-priedade.14 Além da obrigação de trabalhar, existente na escravidão, essa situação não tem tempo determinado, é permanente e pode se basear na descendência. Implica também o domínio de uma pessoa sobre outra ou de um grupo de pessoas sobre outro (cf. OIT, 2005, p. 8).

As práticas análogas à escravidão são elencadas pela Convenção Su-plementar sobre a Abolição da Escravatura,15 de 1926. Por esse documen-

14 Essa definição foi apresentada pela primeira vez no artigo 1° da Convenção sobre Escravidão, da liga das Nações, em 1926, e foi repetida posteriormente no artigo 7.1 da Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, de 1926.15 a) A servidão por dívidas, isto é, o estado ou a condição resultante do fato de que um devedor se haja comprometido a fornecer, em garantia de uma dívida, seus servi-ços pessoais ou os de alguém sobre o qual tenha autoridade, se o valor desses serviços não for equitativamente avaliado no ato da liquidação da dívida ou se a duração desses serviços não for limitada nem sua natureza definida; b) A servidão, isto é, a condição de qualquer um que seja obrigado pela lei, pelo cos-tume ou por um acordo, a viver e trabalhar numa terra pertencente a outra pessoa e a fornecer a essa outra pessoa, contra remuneração ou gratuitamente, determinados serviços, sem poder mudar sua condição; c) Toda instituição ou prática em virtude da qual:

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to, a servidão é entendida como uma forma análoga à escravidão, enquan-to no Protocolo de Palermo está elencada de forma independente. Apesar da imprecisão dos documentos internacionais sobre o que seja cada uma dessas práticas, consideradas espécies de trabalho forçado, vale destacar que são situações que violam a dignidade da pessoa humana e, segundo a OIT, a servidão por dívida ou escravidão por dívida são aspectos proemi-nentes das situações contemporâneas de trabalho forçado (cf. OIT, 2005, p. 8).

O tráfico de pessoas também não se confunde com a escravidão, com práticas análogas à escravidão, nem com a servidão, pois estas podem existir sem aquele. Contudo, pode haver casos de tráfico de pessoas para serem exploradas em situações como as destacadas.

1.1.4 - REMOÇÃO DE ÓRGÃOS

Algumas críticas são feitas em relação à inclusão da remoção de ór-gãos como finalidade do tráfico. Entretanto, segundo dITMORE e WI-JERS (2003, p. 84) nos debates para a elaboração do Protocolo, inúmeros representantes requereram sua inclusão e o assunto provocou pouco de-bate.

O objetivo desse tipo de tráfico é a remoção de órgãos para compra e venda no “mercado negro”. Trata-se de uma prática ilegal em todo o mun-do. As legislações dos Estados geralmente se referem-se à livre disposição dos órgãos após a morte, ou, no caso daqueles que não são vitais, ainda durante a vida.16 Mas sua comercialização é vedada.

d) Uma mulher é, sem que tenha o direito de recusa, prometida ou dada em casamen-to, mediante remuneração em dinheiro ou espécie entregue a seus pais, tutor, família ou a qualquer outra pessoa ou grupo de pessoas; e) O marido de uma mulher, a família ou clã deste têm o direito de cedê-la a um ter-ceiro, a título oneroso ou não; f) A mulher pode, por morte do marido, ser transmitida por sucessão a outra pessoa; g) Toda instituição ou prática em virtude da qual uma criança ou um adolescente de menos de dezoito anos é entregue, quer por seus pais ou um deles, quer por seu tutor, a um terceiro, mediante remuneração ou sem ela, com o fim da exploração da pessoa ou do trabalho da referida criança ou adolescente.

16 No Brasil, por exemplo, a lei nº 9.434/1997, no Capítulo V – das sanções penais e

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Contudo, essa é uma prática que vem se desenvolvendo em algu-mas regiões. Geralmente pessoas ricas, que têm problemas de saúde e não encontram doadores de órgão para realizar um transplante nem querem expor seus familiares aos riscos de uma cirurgia, contatam grupos que comercializam órgãos no “mercado negro” para adquirir aqueles que lhes são necessários.

Essa comercialização geralmente ocorre em regiões empobrecidas do mundo, onde pessoas com problemas econômicos são convencidas a vender um de seus órgãos ou são até mesmo enganadas para tal (cf. AR-RUdA: 2004).

Essa prática é facilitada pelas deficiências legais em vários Estados, apesar de, na maioria deles, esse comércio ser considerado ilegal, bem como pelas dificuldades nas investigações desses crimes, eis que as pes-soas coagidas a vender um órgão são amedrontadas e não procuram as autoridades policiais; alguns pacientes são levados a crer que os doadores foram bem pagos e protegidos; e os médicos que realizam essa prática são inescrupulosos. Ademais, muitas pessoas são subornadas em troca de seu silêncio. Outro problema é a falta de ética de alguns médicos e de pacien-tes que realizam essa prática e não veem problema em obter órgãos de pessoas em situação de necessidade.

1.2 - DIFERENCIAÇÕES ENTRE TRÁFICO DE SERES HUMANOS E OUTROS FENÔMENOS

Um dos grandes problemas para a identificação de casos de tráfico de seres humanos é a confusão que se faz com outros fenômenos que, apesar de poderem ter alguma ligação com o tráfico, com este não se con-fundem.

1.2.1 - MIGRAÇÃO E TRÁFICO DE SERES HUMANOS

A migração pode ser entendida como um processo em que há o des-locamento de alguém de um local para outro, seja dentro de um mesmo

administrativas, Seção I – dos crimes, trata dos delitos de remoção, compra e venda, realização de transplante ou enxerto entre outras atividades que envolvam tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, realizados em desacordo com a lei.

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Estado ou de um Estado para outro. São vários os motivos que levam as pessoas a migrar, como a existência de conflitos armados, perseguições políticas, problemas econômicos e sociais, que geram o desejo de buscar melhores oportunidades de vida e de trabalho em outros locais, mudan-ças climáticas, formação ou reunificação familiar, o desejo de conhecer o mundo, entre outros (cf. KAPUR: 2005; ANdERSON e dAVIdSON: 2004).

Esse deslocamento pode dar-se de forma definitiva, quando o mi-grante não tem a intenção de retornar ao seu local de origem, ou de forma provisória, quando o migrante pretende retornar, existindo prazo certo ou não.17 Pode se realizar ainda de forma legal, observando a legislação migratória do país de acolhimento, ou de forma ilegal, quando há a inob-servância dessas leis.

Na atualidade, tem-se intensificado os fluxos migratórios pelo mun-do, especialmente de migração ilegal. Este fato, somado aos ataques terro-ristas dos últimos anos, especialmente após o episódio de 11 de setembro de 2001, e às políticas antiterror, está provocando o enrijecimento das políticas e das legislações migratórias em diversos Estados, especialmente naqueles considerados receptores de imigrante. Migrar de forma legal está se tornando cada vez mais difícil.

À medida que as fronteiras dos Estados se fecham, mas continua crescendo a demanda por trabalho de imigrantes a baixo custo e não di-minui o desejo de emigrar de pessoas de diversas partes do mundo, estas procuram meios marginais para entrar nos Estados.

Como destaca KAPUR (2005, p. 119), políticas migratórias restriti-vas de Estados de trânsito e destino diminuíram as possibilidades de uma migração regular, legal e segura através do mundo. Este fenômeno resul-tou no aumento de um regime de migração clandestina no qual traficantes e contrabandistas facilitam o movimento dos migrantes, frequentemente providenciando para eles documentos de viagem e de identificação falsos. Este é um regime nascido do desejo e da necessidade das pessoas, produ-zido, em parte, pela demanda por trabalho explorado barato através das fronteiras.

17 A migração provisória pode ter como objetivo a realização de estudos, de trabalho, pedido de asilo político, entre outros.

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O tráfico de seres humanos é uma forma de migração, mas não se deve confundir com a migração per si, pois esta é mais ampla e engloba o tráfico de pessoas. Este é considerado um processo de deslocamento no qual alguém migra com o auxílio de um terceiro, que pode ser uma pessoa ou um grupo, que usa de engano ou decoação para convencê-lo a migrar, frequentemente com promessas de trabalho no local de destino, onde essa terceira parte pretende explorar o trabalho de quem se desloca. Geral-mente a pessoa traficada migra de forma legal, de mas se torna irregular em face da retenção de seus documentos pelos exploradores como meio subjugá-la a realizar a atividade que lhe é imposta.

desta feita, apesar de o tráfico de seres humanos estar inserido no fenômeno migratório, não deve com este se confundir-se. Esta diferen-ciação deve estar clara principalmente para os estados, para que possam elaborar políticas públicas e legislação adequadas para cada um desses pro-cessos, inclusive no que se refere à assistência e proteção às vítimas, que devem receber um tratamento compatível com o grau de exploração e violação de direitos sofrido.

1.2.2 - CONTRABANDO DE MIGRANTES E TRÁFICO DE SERES HUMANOS

O Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, relativo ao Combate ao Tráfico de Mi-grantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea apresenta a definição de trá-fico de migrantes:

A expressão “tráfico de migrantes” significa a promoção, com o ob-jetivo de obter, direta ou indiretamente, um benefício financeiro ou outro material, da entrada ilegal de uma pessoa num Estado Parte do qual essa pessoa não seja nacional ou residente permanente;

A expressão “entrada ilegal” significa a passagem de fronteiras sem preencher os requisitos necessários para a entrada legal no Estado de aco-lhimento.

O contrabando de migrantes também pode ser considerado um meio de migração realizado de forma ilegal. Neste, quem objetiva migrar por vias marginais procura ou é contatado por uma terceira pessoa ou grupo que facilitará sua entrada no país de destino. A relação entre o migrante e o considerado contrabandista de migrantes restringir-se-á à facilitação da

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travessia ilegal de fronteiras, quando os vínculos que os une se dissolvem e o migrante buscará, sozinho, sua sobrevivência no país de destino, inclusi-ve procurando um novo trabalho (cf. GAllAGHER, 2002).

Não se deve confundir tráfico de seres humanos com contrabando de migrantes. Apesar de ambos serem considerados meios de migração, o tráfico de pessoas se caracteriza pelo deslocamento de alguém, utilizando-se de coação, engano ou outros meios, com a finalidade da exploração do seu trabalho em vários setores da economia. O contrabando de migrantes, por sua vez, se caracteriza pela facilitação da travessia ilegal de fronteiras, mas não tem, necessariamente, ligação com o trabalho.18

Como destacam dITMORE e WIJERS (2003, p. 80), os processos migratórios são atualmente o coração do tráfico internacional de seres humanos, eis que pessoas traficadas são migrantes, geralmente ilegais, procurando trabalho em outros locais, e que se encontram em condições laborais insustentáveis. São essas condições, que ocorrem por engano ou coerção, que distingue entre pessoas traficadas e contrabandeadas. Uma pessoa contrabandeada, como muitas (mas não todas) pessoas traficadas, atravessaram clandestinamente fronteiras ou foram transportadas, mas

diferentemente do tráfico, o contrabando de pessoas não está ne-cessariamente vinculado a trabalho. Considerando que a travessia ilegal de fronteiras é o objetivo do contrabando de imigrantes, a finalidade do tráfico é a exploração do trabalho de alguém. Em outras palavras, o tema do contrabando de imigrantes refere-se à proteção do Estado contra imi-grantes ilegais, enquanto o tema do tráfico se refere à proteção das pessoas contra violência e abuso.

Outro diferencial é o fato de a pessoa traficada ser vista como ví-tima desse crime, enquanto o imigrante contrabandeado é considerado pelos Estados como um imigrante ilegal, um criminoso que procurou os serviços de grupos que contrabandeiam migrantes, não uma vítima (cf. dITMORE e WIJERS, 2003, p. 82; GAllAGHER, 2002; ANdERSON e dAVIdSON, 2004).

GAllAGHER (2002, p. 12) argumenta que muitos governos igno-ram o fato de que a migração ilegal/irregular, da qual tanto o tráfico de

18 No Brasil, ocorre frequentemente contrabando de migrantes com brasileiros que vão ao México e tentam atravessar a fronteira com os Estados Unidos com o auxílio de “coiotes”.

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pessoas quanto o contrabando de migrantes são meios, ocorre em face da necessidade ou do desejo das pessoas de emigrar, da demanda por tra-balho imigrante barato e do interesse dos eEtados de tornar a legislação sobre imigração cada vez mais restritiva. À medida que as normas e as políticas públicas restringem e impedem uma migração legal, aumenta o surgimento de grupos que facilitam a migração de forma ilegal por dife-rentes meios.

Para se reduzir a migração legal ou ilegal, e os meios que estão inse-ridos nesta última, como o contrabando de migrantes, não é suficiente o enrijecimento da legislação ou o reforço de medidas repressivas junto às fronteiras. Como enfatiza CASTlES (2005), “a melhor forma de reduzir a imigração é reduzindo as desigualdades econômicas e sociais entre os diferentes países.”

1.2.3 - PROSTITUIÇÃO E TRÁFICO DE SERES HUMANOS

Uma das principais confusões que se faz é entre o tráfico de pessoas e a prostituição. Isto ocorre porque todos os documentos internacionais sobre tráfico de mulheres – como eram denominados – anteriores ao Pro-tocolo de Palermo referiam-se ao tráfico com a finalidade da prostituição.

Essa confusão conceitual gira em torno das diferentes ideias que se têm sobre o que é considerado tráfico de pessoas e da própria prostituição. de um lado, existe um grupo denominado “feministas abolicionistas”, que defende que essa atividade reduz a mulher ao status de objeto, que é, em si, uma agressão a seus direitos humanos e não distingue prostituição for-çada de prostituição voluntária. de outro lado, há o grupo que defende os direitos humanos dos trabalhadores sexuais e rejeita a ideia de que a prostituição é degradante, argumentando que deve ser tratada como tra-balho, diferenciando a prostituição voluntária da forçada e da infantil, que devem ser abolidas. defende, ainda, que deve haver uma melhoria das condições de trabalho e proteção dos trabalhadores por leis, uma vez que é a falta de legislação e de condições de trabalho adequadas que possibilita a exploração, inclusive o tráfico (cf. ANdERSON e dAVIdSON, 2004; CHAPKIS, 2003; KAPUR, 2005).

É imperativo notar, argumentam dITMORE e WIJERS (2003, p.82), que os defensores dos direitos dos trabalhadores sexuais admitem que o trabalho sexual é um trabalho duro e que as condições na indústria do sexo

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variam de relativamente boas até extremamente exploradoras e abusivas, esta última frequentemente facilitada pela exclusão dos (imigrantes) tra-balhadores sexuais de direitos e proteção legal garantidos a outros como cidadãos e trabalhadores. Consequentemente, eles procuram corrigir esses abusos melhorando as condições de trabalho e dando reconhecimento legal para a indústria do sexo, em contraste com as “abolicionistas” que procuram torná-la mais ilegal do que normalmente é e perseguir e punir homens envolvidos como clientes e outros.

Atualmente, existe um grande fluxo migratório feminino que bus-ca melhores oportunidades de vida e de trabalho em outros Estados (cf. FPNU, 2006). Essa nova característica dos processos migratórios das úl-timas décadas estão relacionados com o novo papel desempenhado pela mulher na atualidade, no qual ela é responsável pela mantença própria, de seus filhos e de sua família.

Com as dificuldades para migrar de forma legal, muitas dessas imi-grantes ficam em situação de ilegalidade, geralmente se inserindo-se em setores informais da economia, com pouca ou nenhuma proteção de di-reitos, dentre os quais se destaca a prostituição. Essa atividade, exercida em diversos Estados europeus, por exemplo, principalmente por mulhe-res imigrantes com pouca qualificação, é realizada muitas vezes de forma voluntária, por ser um setor de fácil inserção no qual há perspectivas de lucratividade rápida.

São as condições de realização da prostituição, em que pode ocorrer excessiva exploração, somadas ao deslocamento para o qual se utiliza de engano, coação ou outros meios, que caracterizam o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, e não apenas o exercício da prostituição ou outra atividade ligada ao sexo, que muitas vezes acontece de forma volun-tária e em condições razoavelmente adequadas.

A associação do tráfico de pessoas com a prostituição é utilizada como argumento para barrar ou estigmatizar o fluxo migratório de mu-lheres. Segundo KAPUR (2005, p. 119), associando o tráfico à exploração sexual, mulheres que se deslocam são implicitamente suspeitas de atraves-sarem fronteiras para propósitos sexuais, o que condena o seu movimento. Assim, mulheres e seus movimentos são vistos através de lentes de crimi-nalidade e estigma, e a própria mulher é considerada tanto vítima quanto sujeito imoral.

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Além disso, esse discurso é utilizado como meio de controle da mo-bilidade, especialmente de mulheres que, muitas vezes, migram para outras localidades para o exercício voluntário da prostituição como meio de so-brevivência em situações nas quais não está presente a exploração.

Como destaca PISCITEllI (2004, p.313-314), ao unir-se aos discur-sos internacionais hegemônicos sobre o tráfico, apagando a complexidade que permeia a migração de brasileiras no marco da transnacionalização do mercado sexual, certas tendências presentes no debate brasileiro oferecem, a partir de um contexto de “terceiro mundo”, elementos que favorecem o controle do trabalho migrante. de maneira mais específica, essas aborda-gens oferecem elementos que contribuem para um maior policiamento, o controle da mobilidade, dos corpos e da sexualidade das mulheres do Sul.

1.2.4 - TURISMO SEXUAL E TRÁFICO DE SERES HUMANOS

O turismo sexual (cf. PISCITEllI, 2006a, 2005; TAYlOR, 2001) não é uma prática simples de se definir-se (cf. TAYlOR, 2001), até porque pode assumir diversas dinâmicas com características diferenciadas. Tende-se a apresentar o turismo sexual como uma prática realizada por homens provenientes de países ricos que viajam para países pobres ou em desen-volvimento com o objetivo de relacionarem-se sexualmente com mulhe-res nativas, mediante pagamento em dinheiro ou presentes. Essa imagem, contudo, começa a ser contestada na medida em que estudos revelam que cresce a cada ano o número de mulheres, também provenientes de países ricos, que viajam com o objetivo de se relacionar-se sexualmente com os nativos das zonas que pretendem visitar; e que se desenvolve um tipo de turismo que os estudiosos estão chamando de “turismo de romance” (cf. TAYlOR, 2001).

Nas dinâmicas do turismo sexual, verifica-se o entrelaçamento de ca-racterísticas não apenas econômicas, mas também ligadas à raça, ao sexo, à classe e ao poder. “Esse conjunto de fatores incide na representação das localidades que se tornaram destino privilegiado pelos turistas sexuais em termos de diferenças culturalizadas e sexualidades; como exóticas e eróticas.”(cf. PISCITEllI, 2005b).

O turismo sexual está marcado por traços de diferença do “outro” que movem pessoas de diversas partes do mundo a viajar em busca dessa diversidade, utilizando inclusive meios como a internet para trocar informa-

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ções acerca das experiências já vividas (cf. PISCITEllI, 2005a). Assim, a busca do novo, do diferente, e o desejo de viver novas experiências esti-mulam pessoas a viajar para diferentes regiões, não apenas para conhecer a cultura local, as belezas naturais, mas também para vivenciar novas ex-periências sexuais.

A partir de uma experiência de turismo em outro local, várias conse-quências podem ocorrer, como negócios, romances, entre outros. Até casos de tráfico de pessoas podem surgir, na medida em que pessoas de outras localidades visitam uma determinada região e usam de artifícios para deslo-car um nativo para outro lugar, mas trata-se de fenômenos distintos que não devem ser confundidos. O turista ou a turista sexual viaja para viver aven-turas eróticas e exóticas em outros espaços, depois retorna para seu lugar de origem, geralmente levando consigo apenas a lembrança da experiência vivida. Aquele que pratica tráfico de seres humanos, por sua vez, quando se dirige a distintos lugares, pretende convencer uma pessoa a se deslocar, utilizando meios fraudulentos, como promessa de um bom trabalho e bem remunerado, ocultando o real objetivo, que é a exploração.

2 - A - LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SOBRE TRÁFICO DE PESSOAS

2.1 - OS DOCUMENTOS INTERNACIONAIS SOBRE TRÁFICO DE PESSOAS RATIFICADOS PELO BRASIL

No período de grande movimentação migratória ocorrido no final do século XIX e início do século XX, quando surgiram denúncias de tráfi-co de mulheres, como essa problemática era conhecida naquele momento, começaram a ser elaborados os primeiros documentos internacionais que tratavam desse tema, na tentativa de mobilizar a sociedade internacional para tomar medidas no sentido de combater esse ilícito.

No final do século XIX, vários países se reuniram-se em congressos internacionais para debater essa problemática, como os realizados em Pa-ris, em 1885, e em londres, em 1899. Um novo congresso foi realizado na capital da França em julho de 1902, do qual o Brasil participou. As deliberações resultantes do encontro constituíram promessas dos Estados para proporem aos seus legislativos a elaboração de leis que adotassem as providências sugeridas (F. NORONHA, 1964, p. 371).

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O Brasil participou pela primeira vez de um documento internacio-nal sobre o tráfico de mulheres ao assinar o Acordo para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas, elaborado pela liga das Nações, concluído em Paris em 18 de maio de 1904, e ratificado pelo país em maio de 1905, passando a ter vigência por meio do decreto nº 5.591, de 13 de julho do mesmo ano.

O Acordo tratava do aliciamento de mulheres, virgens ou não, para serem prostituídas no estrangeiro e não fazia referência a nenhum tipo de consentimento dado por elas, como também não se referia ao uso de for-ça, coação, engano ou outra prática fraudulenta para convencer ou obrigar as mulheres a se inserirem-se na prostituição em outros países.

Seis anos após a elaboração do Acordo, foi redigida a Convenção Internacional para a Supressão do Tráfico de Escravas Brancas, assinada em Paris em 4 de maio de 1910, que somente entrou em vigor no Brasil 14 anos depois, em 27 de agosto de 1924, por meio do decreto nº 16.572.

Esse documento, em seus dois primeiros artigos, fez uma diferencia-ção entre o tráfico de mulheres maiores e menores. Em relação às menores (art. 1º), era necessário que alguém, para satisfazer a paixão de outros, as tivesse-as sequestrado ou seduzido, inclusive com o seu consentimento, para propósitos imorais. Quanto às maiores (art.2º), era necessário o uso da fraude, da violência, do engano, do abuso de autoridade ou de quais-quer outros meios de constrangimento, para sequestrá-las ou seduzi-las, com o objetivo de propósitos imorais.

Na Convenção de 1910 já se verifica a distinção que se faz entre o tráfico de mulheres menores e adultas, eis que, quando se tratar daquelas, o consentimento por ventura dado será irrelevante, enquanto que, ao referir-se a mulheres maiores, claramente destaca a necessidade da presença de meios coercitivos que submetam a mulher a um propósito considerado imoral.

destaque-se que o acordo de 1904 vinculava o tráfico de mulheres para a finalidade da prostituição enquanto a Convenção de 1910 referir-se a propósitos imorais, sob cuja expressão poderiam ser incluídas diversas atividades assim consideradas. Além disso, ao longo dos 12 artigos que fa-zem parte da Convenção, bem como dos quatro itens do Protocolo Final anexo, não se verifica nenhuma cláusula que preveja algum tipo de prote-ção às mulheres vítimas do tráfico para fins de propósitos imorais.

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Um novo documento foi elaborado pela liga das Nações em 30 de setembro de 1921, a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças, e incluído no ordenamento jurídico brasileiro por meio do decreto nº 23.812, de 30 de janeiro de 1930.

Apesar de a Convenção de 1910 já fazer referência ao tráfico de mu-lheres menores, sendo estas consideradas com idade abaixo de 20 anos, o novo documento faz menção expressa à repressão ao tráfico de crianças, inclusive em seu título, considerando criança, por sua vez, criança o menor com idade até 21 anos, conforme dispõe o seu art. 5°.

Como as Convenções anteriores, a de 1921 não prevê medidas que se destinem à proteção e assistência ás vítimas do tráfico, fazendo referência apenas à repressão e punição dos envolvidos nessa prática e nos acordos de extradição entre os Estados.

Posteriormente, com o fim da liga das Nações e a criação da Or-ganização das Nações Unidas, foi elaborado o Protocolo de Emenda da Convenção para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças, concluí-do em Genebra, em 1921, e a Convenção para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores, concluída em Genebra, em 1933.

Esse documento não trouxe nenhuma inovação em relação aos do-cumentos anteriores e foi elaborado apenas com o objetivo de ratificar dispositivos antes existentes que se referiam à liga das Nações para que se adaptassem à nova organização a qual estariam vinculados.

Em 1959, o Brasil promulgou o decreto nº 46.981, que incluiu no ordenamento jurídico brasileiro a Convenção para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do lenocínio, anteriormente ratificada pelo país.

Essa Convenção, agora prevendo o tráfico de pessoas, e não mais apenas de mulheres e crianças, como os documentos anteriores, conti-nua vinculando o tráfico à finalidade da prostituição, considerando aquele um mal que acompanha esta atividade. destaque-se que a Convenção não conceitua o tráfico de pessoas e dispõe claramente acerca da irrelevância do consentimento dado por alguém que ingressa na prostituição.

Verifica-se, ainda, o objetivo claro de combater o exercício da ativi-dade prostituição, mantendo, contribuindo, financiando ou alugando casa para essa finalidade. Esse propósito é ratificado pelo art. 6° quando pre-vê que cada Parte adotará as medidas necessárias para ab-rogar ou abolir toda lei, regulamento e prática administrativa que obriguem a inscrever-se

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em registros especiais ou a conformar-se a condições de vigilância ou de notificação as pessoas que se entregam ou supõem entregarem-se à pros-tituição.

A Convenção prevê medidas preventivas à prostituição e ao tráfico de pessoas. Em relação à prostituição, prevê que as Partes devem adotar medidas que se destinam a prevenir essa atividade, a assegurar a reeduca-ção e readaptação social de suas vítimas, a prevenir as infrações tratadas na Convenção e estimular a adoção dessas medidas de caráter educativo, sanitário, social, econômico e outros conexos por seus serviços.

A Convenção para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do lenocínio teve vigência até a adoção pelas Nações Unidas, com posterior ratificação de quase 100 países, do Protocolo Adicional das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Puni-ção do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças.

O Protocolo de Palermo, como também é conhecido, promoveu al-guns avanços em relação aos documentos anteriores. As principais ino-vações foram a definição do que se considera tráfico de pessoas,19 bem como desvincular a finalidade desse ilícito da prostituição, considerando que o tráfico ocorre com o fim da exploração do trabalho de alguém em qualquer atividade.

da leitura da definição, depreende-se a evolução apresentada pelo Protocolo de Palermo ao desvincular o tráfico de pessoas da prostituição e destacar como sua finalidade a exploração, que pode dar-se em qualquer atividade. Essa mudança é importante porque o tráfico de pessoas pode ocorrer para a exploração de alguém em diversos setores da economia, não apenas na prostituição. Assim, segundo o Protocolo, a exploração poderá ser a exploração da prostituição de alguém ou outra forma de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.

19 A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a trans-ferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.

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Ademais, faz referência a diversos artifícios que podem ser utilizados para realizar o crime. Estes meios fraudulentos, quando presentes, tornam o consentimento por ventura dado anteriormente pela pessoa vítima de tráfico.

A definição ainda apresenta o tráfico como um processo, cometendo o crime todo aquele que recrutar, transportar, transferir ou alojar alguém, utilizando-se dos meios fraudulentos anteriormente elencados, com a fi-nalidade da exploração.

Quando se trata de tráfico de crianças, que o documento considera aqueles com idade inferior a 18 anos, a ocorrência de qualquer uma das condutas que fazem parte do processo do tráfico de pessoas, independen-temente da ocorrência de meios fraudulentos, configurará tráfico de seres humanos.

Além disso, é expressa a irrelevância do consentimento por ventura dado pela vítima criança.

Outro diferencial do Protocolo de Palermo em relação aos documen-tos anteriores, refere-se às expressas medidas de proteção e assistência às vítimas. Essa previsão é importante por destacar a necessidade de criarem-se medidas que possibilitem um tratamento digno às pessoas vítimas de tráfico, que possibilitem tanto sua proteção, para não sofrerem represálias dos grupos de traficantes, como também que sejam assistidas por pessoas e instituições qualificadas para tal.

Alguns autores (cf. ANdERSON e dAVIdSON, 2004; dITMO-RE e WIJERS, 2003) afirmam que, apesar de as ONGs que participaram da elaboração do Protocolo terem enfatizado a necessidade da previsão de medidas efetivas que protegessem e assistissem as pessoas traficadas, acabaram perdendo forças ao se dividirem no debate sobre o conceito de tráfico de pessoas, o que deu espaço para os representantes governa-mentais defenderem os interesses de seus Estados em face da proteção das fronteiras, ao controle de documentos e da extradição dos imigrantes ilegais ou irregulares, sejam eles vítimas de tráfico ou não. Por isso, as me-didas acerca da fiscalização das fronteiras e dos documentos são bem mais rigorosas que as medidas referentes à proteção das vítimas do tráfico.

O Brasil ratificou o Protocolo de Palermo em 2004, e este entrou em vigor no ordenamento nacional por meio do decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004. Posteriormente, foram realizadas algumas alterações na

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legislação nacional com o objetivo de adequá-la às mudanças trazidas pelo novo documento internacional.

2.2 - A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA SOBRE O TRÁFICO DE SERES HUMANOS

O Brasil, ao longo do século XX, ratificou todos os instrumentos internacionais que dispunham, inicialmente, sobre o tráfico de mulheres, e depois, sobre o tráfico de pessoas. Em face da adesão a esses documentos, promoveu a alteração de sua legislação penal interna para adequá-la ao que estava sendo convencionado em âmbito internacional.

2.2.1 - O CÓDIGO PENAL DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL DE 1890 (DECRETO Nº 847, DE 11 DE OUTUBRO DE 1890)

O Código Penal do Brasil - Império não previa a existência do crime tráfico de mulheres. Este somente surgiu na legislação penal brasileira a partir do Código Penal republicano de 1890, que contempla, no capítulo do lenocínio, o tráfico da prostituição.20

Os arts. 277 e 278 foram louvados pelos doutrinadores do Código Penal de 1890 porque o anterior, de 1830, não previa nem o crime de le-nocínio, tipificado no art. 277, tampouco o de tráfico de mulheres, naquela época também chamado de caftismo, constante na primeira parte do art. 278. Essas inovações se faziam necessárias em face do aumento da pros-tituição no Brasil e dos casos de tráfico de mulheres que começavam a ser denunciados.

20 Art. 278. Induzir mulheres, quer abusando de sua fraqueza ou miséria, quer cons-trangendo-as por intimidações ou ameaças a empregarem-se no tráfico da prostitui-ção; prestar-lhes, por conta própria ou de outrem, sob sua ou alheia responsabili-dade, assistencia, habitação e auxilio para auferir, directa ou indirectamentte, lucros desta especulação: Penas – de prisão cellular por um a dois anno e multa de 500$ a 1.000$000.

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Pereira Batista,21 autor do Código Penal de 1890, assim dispunha:

O artigo novo que se acrescentou, recebeu o nº 278 e occupa logar ao lado do lenocinio (art. 277), com o qual tem o mais estreito parentesco. O senso popular deu-lhe o nome de caftismo. Especies do mesmo gênero, crimes contra a pureza dos costumes e o pudor publico, o lenocinio, mister do proxeneta, é a excitação á devassidão, o favorecimento da corrupção para satisfazer a libidinagem de outro; o caftismo é a ex-ploração torpe da miséria de infelizes mulheres que se submettem ao jugo tyrano do cynico, que as explora, constrangendo-as por meio de intimida-ções, ou abusando de sua fraqueza, ao commercio questuario. O proxeneta limita-se ao seu officio de alcoviteiro, é um corretor ou intermediário. O cáften organiza a prostituição, fornece assistência ou auxilio às desgraça-das filhas da alegria, dá-lhes casa e subsistencia e com ellas reparte uma migalha dos pingues lucros que aufere do ignóbil traffico.

O tráfico de mulheres foi tipificado no Título VIII do Código, que tratava da corrupção de menores, dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor, em que os bens tutelados eram a moral familiar e o decoro ou pudor público, que os le-gisladores julgavam agredidos com as atividades do tráfico, considerado delito similar ao lenocínio, por ter como finalidade a prostituição (cf. SI-QUEIRA, 1932).

Posteriormente, alterações se fizeram-se necessárias no Código em face das deficiências do texto da lei, que a cada dia se mostrava mais pro-blemática, ante a proliferação do tráfico, como também ante o cumpri-mento do que o Brasil se obrigara na Convenção Internacional; que se reuniu em Paris, em 15 de junho de 1902, de intensificar a repressão ao que estava sendo chamado de tráfico de mulheres brancas.

Em 25 de setembro de 1915, o Brasil promulgou a lei nº 2.992, que modificou o art. 27822 do Código Penal. Com a mudança, o tráfico de

21 Citado por SIQUEIRA, Galdino. direito Penal Brazileiro. v. II. Parte Especial. 2. ed. Rio de Janeiro: livraria Jacyntho, 1932, p. 292.22 Art. 278. Manter ou explorar casas de tolerância, admitir na casa em que residir, pes-soas de sexos differentes, ou do mesmo sexo (que ahi se reúnam para fins libidinosos); induzir mulheres, quer abusando de sua fraqueza ou miséria, quer constrangendo-as por intimidação ou ameaças a entregarem-se à prostituição; prestar, por conta própria ou de outrem, sob sua ou alheia responsabilidade, qualquer assistência ou auxilio ao

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mulheres passou a ter redação similar aos arts. 1° e 2° da Convenção para a Supressão de Escravas Brancas, de 1910, estando previsto no § 1° do art. 278. A redação, mais explícita que a anterior, passou a caracterizar o tráfico de mulheres como a ação de aliciar, atrair ou desencaminhar, para satisfazer a lascívia de outrem, mulher menor, virgem ou não, independen-temente de seu consentimento, e mulher maior, virgem ou não, quando se verificar o uso de ameaça, violência, fraude, engano, abuso de poder ou outros meios de coação.

Verifica-se, também, que a lei aumentou a previsão da pena, que an-tes era de um a dois anos, passando a ser de dois a três anos.

Interessante destacar que o Código Penal tipificou o ato de reter uma mulher virgem ou não, em casa de lenocínio, utilizando-se de meios des-critos no parágrafo primeiro, mesmo por motivos de dívida, para obrigá-la a se prostituir-se. Como destaca SIQUEIRA (1932, p. 504 – 505):

Quem tem exercido cargos policiais, nesta Capital ou nas principais ci-dades dos estados, sabe que um dos meios mais vulgarizados da coação ou constrangimento, praticados contra as victimas do lenocínio, consiste exactamente no facto dos proprietários de casa de devassidão reterem, sem formalidade jurídica e sob o pretexto de garantia de dividas, não só as roupas, malas e outros bens das suas pensionistas, como as próprias pes-soas destas.

commercio da prostituição. Penas – de prisão cellular por um a tres annos e multa de 1:000$ a 2:000$000 §1° Alliciar, attrahir ou desencaminhar, para satisfazer as paixões lascivas de outrem, qualquer mulher menor, virgem ou não, mesmo com o seu conhecimento; alliciar, attrahir ou desencaminhar, para satisfazer as paixões lascivas de outrem, qualquer mulher maior, virgem ou não, empregando para esse fim ameaça, violência, fraude, engano, abuso de poder ou qualquer outro meio de coação; reter, por qualquer dos meios acima referidos, ainda mesmo por causa de dívidas contrahidas, qualquer mu-lher, maior ou menor, virgem ou não, em casa de lenocinio, obrigal-a a entregar-se à prostituição. Penas – as do dispositivo anterior. § 2° Os crimes de que trata o art. 278 e o § 1° do mencionado artigo serão puníveis no Brazil ainda que um ou mais actos constitutivos das infracções nelles previstos tenham sido praticados em paiz extrangeiro. § 3° Nas infracções de que trata este artigo haverá logar a acção penal: a) por denuncia do Ministério Publico; b) mediante queixa da victima ou de seu representante legal; c) mediante denuncia de qualquer pessoa.

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2.2.2 - O CÓDIGO PENAL DE 1940 (DEC.-LEI Nº 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940, ALTERADO, NA SUA PARTE GERAL, EM 1984, PELA LEI Nº 7.209)

O Código Penal de 1940 continuou tipificando, como delito, o tráfi-co internacional de mulheres, agora com nova redação.

Tráfico de mulheres Art. 231. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de mu-lher que nele venha a exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la no estrangeiro: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos §1° Se ocorrer qualquer das hipóteses do § 1° do art. 227: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos. § 2° Se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude, a pena é de reclusão, de 5 (cinco) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência. § 3° Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa.

O crime, seguindo a tradição dos Códigos anteriores, continuou a ser elencado entre aqueles considerados crimes contra os costumes, cujos bens tutelados eram a moral pública sexual (cf. FRAGOSO, 1965, p. 666; HUNGRIA, 1959, p. 88) e os bons costumes (cf. NORONHA, 1964, p. 373), que deveriam estar a salvo da prostituição. O novo Código manteve o tráfico de mulheres no

título que dispõe sobre os crimes contra os costumes, colocando-o no Capítulo V ao lado do lenocínio. Isso se verifica porque, segundo FRA-GOSO (1965, p. 667), “o que se incrimina aqui é o lenocínio praticado em escala internacional.”

Os comentadores do Código Penal continuaram a considerar o trá-fico de mulheres como um tipo de lenocínio. É o caso de HUNGRIA (1959, p. 268 - 269), que, ao tratar da denominação do Capitulo V do Título VII, afirmou que o Código de 1940 não teria sido baldo de técnica se tivesse empregado como rubrica geral do capitulo referido apenas o vocábulo “lenocínio”.

Com este nome, tomado em sentido lato, pode designar-se não só a ativi-dade criminosa dos mediadores ou fautores, como a dos aproveitadores, em geral, da corrupção ou prostituição. Assim, o “tráfico de mulheres”

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(recrutamento e transporte, de um país a outro, de mulheres destinadas à prostituição), a que o código faz destacada menção, não é senão uma moda-lidade do lenocínio, do mesmo modo que o proxenetismo (“mediação para a lascivia de outrem”, favorecimento à prostituição”, manutenção de “casa de prostituição”) e o rufianismo (aproveitamento parasitário do ganho de prostitutas). (grifos do autor)

Quando tratavam da possibilidade do tráfico interno de mulheres, os doutrinadores destacavam a impossibilidade da configuração do crime em razão de o artigo tratar do tráfico internacional, não prevendo a mesma conduta no interior do país. Contudo, como dizia NORONHA (1964, p. 375), não significava dizer que o tráfico interestadual ficasse impune, pois se o agente induzisse ou atraísse mulher para a prostituição, impedisse-a de abandonar ou facilitasse a atividade, praticaria o crime do art. 228 – fa-cilitação da prostituição.

O sujeito passivo do tráfico de mulheres, ou seja, aquele que sofre o crime, como o próprio título do tipo já esclarece, continuou sendo a mu-lher. Essa característica decorre do fato de que os documentos internacio-nais ratificados pelo Brasil sempre fizeram referencia ao tráfico de mulhe-res e crianças, o que contribuiu para influenciar o legislador brasileiro. Os doutrinadores, contudo, já faziam referencia a estatutos penais de outros países, como Itália, Suíça e Polônia, que também tutelavam o homem.

2.2.3 - O CÓDIGO PENAL E A ALTERAÇÃO PROMOVIDA PELA LEI Nº 11.106, DE 28 DE MARÇO DE 2005

Após a ratificação do Protocolo de Palermo, em 2004, foi realizada uma modificação no Código Penal brasileiro em relação ao delito de trá-fico de mulheres previsto no art. 231. A lei nº 11.106, de 28 de março de 2005, além de alterar o artigo referido, que passou a tratar do tráfico internacional de pessoas, incluiu o art. 231-A, que trata do tráfico interno de pessoas.

Tráfico internacional de pessoas Art. 231. Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território na-cional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa. § 1° Se ocorre qualquer das hipóteses do § 1° do art. 227:

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Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa. § 2° Se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude, a pena é de reclusão, de 5 (cinco) a 12 (doze) anos, e multa, além da pena correspon-dente à violência. § 3° (revogado).

Tráfico interno de pessoas Art. 231-A. Promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha exercer a prostituição: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa. Parágrafo único. Aplica-se ao crime de que trata este artigo o disposto nos §§ 1° e 2° do art. 231 deste Decreto-Lei.

Com a promulgação da lei nº 11.106/2005, algumas alterações im-portantes podem ser notadas. O art. 231, cujo tipo anteriormente referia-se ao tráfico de mulheres, agora prevê o tráfico internacional de pessoas, eis que tanto homens como mulheres são passíveis de tornarem-se vítimas desse crime. Além disso, foi incluída a conduta “intermediar” que se so-mou às anteriormente previstas “promover” ou “facilitar”.

A lei também incluiu o art. 231-A, que prevê o tipo tráfico interno de pessoas. Essa inclusão foi importante ante a inexistência da previsão pe-nal dessa atividade realizada no interior do país. Apesar da ausência legal, como a legislação penal brasileira sempre tratou o tráfico tendo por fina-lidade a prostituição, quando ocorriam casos que poderiam ser tipificados como tráfico interno de mulheres, na medida do possível, eram punidos como tipo afim, como por exemplo, o favorecimento à prostituição (CP – art. 228) (cf. MIRABETE, 2005; JESUS, 1995).

Não obstante essas mudanças, o legislador poderia ter inovado mais na adequação dos tipos tráfico interno e internacional de pessoas do Có-digo Penal brasileiro ao novo conceito de tráfico de pessoas apresentado pelo Protocolo de Palermo, que foi ratificado pelo Brasil.

Como já destacado anteriormente, o novo documento internacional considera como tráfico de pessoas o recrutamento, o transporte, a trans-ferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao en-gano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração.

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A finalidade do tráfico de pessoas é a exploração de alguém em qual-quer atividade, havendo a realização de quaisquer das condutas elencadas e a existência de pelo menos um dos meios fraudulentos. A exploração ob-jeto do tráfico incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.

Analisando comparativamente o conceito de tráfico de pessoas cons-tante no Protocolo de Palermo e a descrição dos tipos tráfico internacional e interno de pessoas no Código Penal brasileiro, verifica-se que, enquanto o documento internacional inovou por ampliar o conceito desse delito, desvinculando-o de uma atividade específica, a lei penal do Brasil continua vinculando o tráfico de pessoas à finalidade da prostituição.

O tráfico internacional de pessoas é considerado a promoção, inter-mediação ou facilitação da entrada no território nacional, de pessoa que venha a exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no es-trangeiro. O tráfico interno é a promoção, a intermediação ou a facilitação, no território nacional, do recrutamento, do transporte, da transferência, do alojamento ou do acolhimento de pessoa que venha exercer a prosti-tuição.

A nova redação do art. 231 e o art. 231-A, além de vincular o tráfico de pessoas a uma atividade específica a prostituição, em nenhum momen-to faz referência à existência de algum tipo de exploração na realização dessa atividade, nem de nenhum meio fraudulento para induzir alguém a nela ingressar. Inclusive, como afirma JESUS (2003, p. 82), “contrariando os documentos internacionais sobre o tema, dispensa, para a caracteriza-ção do delito, a existência de fraude, ameaça ou violência.” A existência de um desses meios é apenas causa de aumento da pena nos dois tipos.

Assim, aquele que, por exemplo, patrocina o deslocamento de al-guém, internamente no Brasil ou para outro país, acolhe essa pessoa que trabalhará na prostituição, mas não se utiliza de meios fraudulentos para conseguir seu consentimento, tampouco explora, em condições indignas, a atividade do trabalhador sexual, pela legislação brasileira seria processa-do e julgado pelo delito de tráfico de pessoas, porque as condutas teriam por finalidade a facilitação e o alojamento para fins de prostituição. Pelo Protocolo de Palermo, contudo, não haveria configuração de delito, uma

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vez que estão ausentes a exploração da atividade e o uso de meios frau-dulentos.

Ademais, o texto do art. 231-A, que trata do tráfico interno de pesso-as, pode ser considerado uma extensão do tipo “favorecimento à prostitui-ção”, previsto no art. 228,23 que antes era utilizado para tipificar os casos de deslocamentos de prostitutas no interior do país.

NORONHA (1964, p. 375), comentando o tráfico de mulheres em período anterior à promulgação da lei nº 11.106/2005, assim discorria acerca da possibilidade de punição do tráfico interno:

(...) se a ação do sujeito ativo limita-se ao transporte da ofendida de uma região para outra do mesmo país, não haverá o delito pelo simples motivo de que não pode entrar ou sair do território nacional quem nele já se acha e nele continua. Não quer isso dizer que o tráfico interestadual fique impu-ne, pois difícil, na verdade, será que, em hipótese tal, o agente não esteja in-duzindo ou atraindo mulher à prostituição, ou impedindo que a abandone ou facilitando-a. Praticará então o crime do art. 228. (grifos do autor)

MIRABETE (2006, p. 472), por sua vez, já se referindo à modifica-ção do Código Penal pela lei nº 11.106/2005, dispõe:

Algumas das condutas que já eram tipificadas em face do art. 228 passaram a configurar o crime de tráfico interno de pessoas. Assim, por exemplo, quem a partir da lei 11.106/2005, promove a ida de mulheres para outra cidade onde exercerão a prostituição, promove o recrutamento e a instalação de mulheres em casa de tolerância etc., responde pelo ilícito descrito no art. 231-A. Outras formas, porém, de favorecimento da prostituição, não relacionadas com o tráfico de pessoas, como aconselhar alguém a se prostituir, arranjar-lhe cliente etc., continuam punidas nos termos do art. 228.

23 Art. 228. Induzir ou atrair alguém à prostituição, facilitá-la ou impedir que alguém a abandone: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos. § 1° Se ocorre qualquer das hipóteses do § 1° do artigo anterior: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos. § 2° Se o crime é cometido com o emprego de violência, grave ameaça ou fraude: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, além da pena correspondente à vio-lência. § 3° Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa.

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desta feita, percebe-se que as mudanças promovidas pela lei nº 11.106/2005 não seguiram o espírito do novo conceito de tráfico de pes-soas do Protocolo de Palermo, que tem por finalidade o tráfico para a exploração do trabalho de alguém em qualquer atividade. A lei penal brasi-leira, em contrapartida, continua sendo moralista e em desacordo inclusive com a realidade do tráfico tanto interno quanto internacional existente no Brasil.

Ora, são diversos os relatos de organizações governamentais e não governamentais informando que trabalhadores são levados de uma região para outra do Brasil com falsas promessas de trabalho e são mantidos em cárcere privado em fazendas, vivendo em situações sub-humanas, com seus direitos trabalhistas desrespeitados e sendo ameaçados a realizar suas atividades em situação de trabalho forçado ou em condições análogas à escravidão.

Tratam-se de situações típicas de tráfico interno, conforme conceito apresentado pelo Protocolo de Palermo, que a legislação penal brasileira assim não considera. Há a possibilidade de punição por trabalho análogo à escravidão ou por desrespeito à legislação trabalhista, mas, pelo tráfico interno de pessoas, não.

Existem também relatos de trabalhadores bolivianos, por exemplo, que são trazidos para trabalhar em fábricas em São Paulo, com promessas de bom trabalho. No entanto, ao chegar no seu destino, realizam trabalho forçado, têm retidos seus documentos, são mal pagos ou não recebem re-muneração, e são ameaçados de serem entregues à Polícia Federal em face da situação de ilegalidade em que muitos deles se encontram (cf. AZEVE-dO, 2005).

Novamente, em face da vinculação do tráfico internacional de pesso-as para prostituição, esse caso, que pelo Protocolo de Palermo é considera-do como tráfico internacional de pessoas com a finalidade de realização de trabalho forçado, não é assim considerado pela legislação penal do Brasil.

Assim, verifica-se que a norma penal pátria na atualidade não atinge o objetivo de punir de forma plena e dura os delitos de tráfico de seres hu-manos, tanto interno como internacional, da forma como é considerado pelo Protocolo de Palermo, ratificado pelo Brasil.

Esse descompasso legal, inclusive ante a realidade do tráfico de pes-soas no país, contribui para a impunidade de pessoas e grupos que explo-ram pessoas vítimas de tráfico em condições de trabalho degradantes, o

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que viola um dos pilares da ordem constitucional brasileira: o princípio da dignidade da pessoa humana.

Ainda no marco normativo brasileiro sobre a temática em estudo, é relevante destacar que em 2006, o Presidente da República promulgou o decreto nº 5.948, que aprovou a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, com princípios, diretrizes e ações destinadas à

prevenção e à repressão do tráfico desse tráfico, bem como de aten-dimento às vítimas. O decreto cria ainda um Grupo de Trabalho Inter-ministerial que foi responsável pela elaboração do Plano Nacional de En-frentamento ao Tráfico de Pessoas (PENETP).

Em janeiro de 2008, o decreto nº 6.347 promulgou o Plano Nacio-nal de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que tem por objetivo, no prazo de 02 anos, prevenir e reprimir o tráfico, responsabilizar seus auto-res e garantir a proteção das vítimas desse delito, nos termos da legislação nacional e internacional de proteção das pessoas.

2.3 - A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A CONSTITUIÇÃO DE 1988

2.3.1 - O BEM JURÍDICO PROTEGIDO PELO CÓDIGO PENAL NOS DELITOS DE TRÁFICO INTERNO E INTERNACIONAL DE PESSOAS

Como visto anteriormente, o tráfico de mulheres, como era deno-minado, começou a ganhar expressividade e a chamar a atenção da comu-nidade internacional como problema que necessitava ser combatido, no período de vai do final do século XIX ao início do século XX.

Com a intensificação do processo migratório de pessoas advindas de diversos países europeus para a América, houve a vinda de mulheres europeias para trabalhar como prostitutas e relatos de casos de mulheres que eram traficadas da Europa para serem obrigadas a trabalhar como prostitutas nos países de destino.

deve-se recordar que nesse período o Brasil vivia um surto de modernização e urbanização. Autoridades políticas, médicos, policiais, entre outros, estavam criando medidas saneadoras, higienizadoras e mo-ralizadoras que pudessem tornar o país um exemplo de modernização,

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afastando-o ao máximo das características anteriores de colônia. Assim, buscou-se urbanizar e sanear grandes cidades, especialmente a capital Rio de Janeiro, que era a vitrine do país. A pobreza, a prostituição, as doenças, a vadiagem, entre outros males, eram considerados obstáculos ao proje-to de modernização do país (cf. CAUlFIEld, 2000; MENEZES, 1996; ENGEl, 1989).

A prostituição era considerada um mal social, bem como o tráfico de mulheres a ela ligado. Havia um especial interesse das famílias de higieni-zar as cidades com o consequente combate à prostituição, e ao tráfico de brancas dela advindo, considerado como fonte de doenças contagiosas, morais e físicas, e como violador dos rígidos costumes que objetivavam preservar a moral sexual da mulher e da família.

O tráfico de mulheres, por ser entendido como mal social que acom-panhava a prostituição, foi incluído, já no código de 1890, ao lado do leno-cínio, no título que tratava da corrupção de menores, dos crimes contra a segurança da honra e honestidade da família e do ultraje público ao pudor. O título transparece os bens jurídicos que o legislador pretendia proteger, quais sejam, honra, pudor, e os costumes considerados bons para a socie-dade.

SOARES (s/d, p. 534), no início do século XX, referindo-se ao pu-dor, dizia que este é o sentimento de vergonha que se experimenta todas as vezes que se percebe, vê ou faz em público ações repreensíveis, como as relativas à união dos sexos ou qualquer outra que atraia o desprezo das outras pessoas. Na mulher, o pudor se manifestava no recato, que era o modo de viver que assegurava sua honra e boa reputação, respeitando-se e se fazendo respeitar pelos outros. O pudor era sinônimo de decência, que se referia ao decoro, à honestidade exterior e à conformidade que se deveria guardar na conduta, no modo de trajar-se e nas palavras, com os lugares, as pessoas e as idades.

Comentando a nova rubrica “dos crimes contra os costumes”, apre-sentada pelo Código Penal de 1940, HUNGRIA (1959, p. 103 - 104) dis-corre sobre o que entende por costume.

O vocábulo “costumes” é aí empregado para significar (sentido restritivo) os hábitos da vida sexual aprovados pela moral prática, ou, o que vale o mesmo, a conduta sexual adaptada à conveniência e disciplina sociais. O que a lei penal se propõe tutelar, “in subjecta” matéria, é o interesse jurí-

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dico concernente à preservação do mínimo ético reclamado pela experiência social em torno dos fatores sexuais. (grifos do autor)

desta feita, a moral, a honra sexual da mulher e da família e os bons costumes eram os valores que o Código Penal, desde 1890, objetivava proteger, até porque esses valores eram considerados como necessários à limitação dos instintos sexuais humanos que poderiam colocar em risco a sociedade brasileira ordeira, moderna e moralizada, almejada pelos inte-grantes da elite política e social do país.

Ocorre que ao longo do século XX, as sociedades foram se transfor-mando, inclusive a brasileira, e muitos valores, que antes deveriam ser in-tocados e protegidos a qualquer custo, foram flexibilizados e substituídos em grau de importância por outros.

O mundo, no último século, viveu duas grandes guerras mundiais e assistiu à banalização da vida humana pelo genocídio que foi perpetrado contra diversas minorias étnicas e grupos considerados inferiores na Eu-ropa isso promoveu, principalmente após esse episódio, à valorização da vida de homens e de mulheres por meio da defesa do princípio da digni-dade humana.

Além disso, a posição da mulher sofreu grandes mudanças. de per-sonagem exclusivo do espaço privado, a mulher se inseriu no mercado de trabalho, lutou para perceber salários iguais aos dos homens, mobilizou-se para ter garantido seu direito de voto e ocupa, na atualidade, papel ativo não apenas na família, mas na vida econômica e social.

Os valores referentes à sexualidade também foram transformados. A revolução sexual promovida durante a década de 60, o advento do anti-concepcional, que possibilitou à mulher o controle sobre sua fecundidade, entre outros fatos, reconstruíram os valores ligados à sexualidade em di-versos países. O homem, mas principalmente a mulher, pôde ter controle e fazer escolhas referentes à sua vida sexual, sem interferência do Estado, a não ser que houvesse a violação de direitos de outras pessoas.

Mesmo depois de todas essas mudanças ocorridas nas últimas déca-das nas sociedades, o Código Penal manteve o delito de tráfico interna-cional de mulheres no título de crimes contra os costumes, sendo consi-derado pelos legisladores e doutrinadores (cf. MIRABETE, 2005; JESUS, 2002) como bem jurídico violado, a moralidade pública sexual e os bons costumes.

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A lei nº 11.106, de 28 de março de 2005, foi promulgada após a ratificação pelo Brasil do Protocolo de Palermo, novo documento das Na-ções Unidas que trata do tráfico de pessoas, apresentando, inclusive, o conceito desse delito. Esse crime na atualidade é entendido de forma di-versa de como era considerado pelos instrumentos internacionais anterio-res. dentre outras alterações, a referida lei modificou o texto do art. 231, tipificando, agora, o tráfico internacional de pessoas, e incluindo o tipo tráfico interno de pessoas no art. 231-A. Entretanto continuou vinculando o tráfico à finalidade da prostituição, como já destacado, e, consequente-mente, mantendo os dois tipos no título dos crimes contra os costumes, o que leva os doutrinadores a continuar afirmando que os bens jurídicos a serem protegidos são a moralidade pública sexual e os bons costumes (cf. MIRABETE, 2006).

Na medida em que a legislação penal brasileira continua vinculando o tráfico de pessoas à prostituição, sem ampliá-lo, como o fez o Protoco-lo de Palermo, para tipificá-lo como a exploração de alguém, realizando trabalho em condições desumanas ou degradantes, deixa de proteger um bem jurídico que, se pesado com a moralidade pública sexual e os bons costumes, é bem mais valioso na nova ordem constitucional brasileira: a dignidade humana.

2.3.2 - O TRÁFICO DE SERES HUMANOS COMO DELITO QUE VIOLA A DIGNIDADE HUMANA

A Constituição Federal de 1988 é o primeiro documento constitucio-nal brasileiro a trazer um título destinado aos princípios fundamentais, que, como dispõe SARlET (1998, p. 99), são normas embasadoras e informa-tivas de toda a ordem constitucional, inclusive dos direitos fundamentais, e que integram o núcleo essencial da constituição. Tão importante quanto essa inovação, foi o reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana, no art. 1°, III, como um dos fundamentos da República Federa-tiva do Brasil. Trata-se de um dos principais valores albergados pela carta constitucional que deve ser concretizado pela atuação dos legisladores, dos membros da administração pública e pelos aplicadores do direito.

No Brasil, a carta de 1988 iniciou um novo momento após o período de exceção, em que a regra era a violação dos direitos fundamentais. Trou-xe em seu núcleo essencial a dignidade humana como valor máximo do ordenamento, que deve orientar a concretização dos direitos fundamentais

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presentes na constituição, bem como a aplicação das normas infraconsti-tucionais.

SARlET (1998, p. 103 - 104) destaca que o princípio da dignidade humana constitui uma categoria axiológica aberta, sendo inadequado con-ceituá-lo de maneira fixista, eis que uma definição desta natureza não har-moniza com o pluralismo e a diversidade de valores que se manifestam nas sociedades democráticas atuais. Contudo, deve-se reconhecer que, como qualidade intrínseca à pessoa humana, a dignidade é algo que simplesmen-te existe, sendo irrenunciável e inalienável, na medida em que se constitui em elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado. É algo que se reconhece, respeita e protege, não podendo ser criado ou retirado, eis que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente.

A dignidade faz parte da essência humana. É um valor que deve es-tar presente em todos os direitos. deve-se viver e morar com dignidade, trabalhar com dignidade, até a punição promovida pelo Estado deve ser digna. Quando a Constituição protege a todos contra a tortura ou o tra-tamento desumano ou degradante, resguarda a intimidade e a honra das pessoas, garante a liberdade de locomoção e protege os direitos sociais constitucionalmente garantidos, por exemplo, contribui para resguardar a dignidade humana.

A atuação do Estado é imprescindível para o respeito, a proteção e a manifestação da dignidade humana, além de necessária, visto que a existência da dignidade constitui a verdadeira condição para o exercício da democracia.

O tráfico de seres humanos, na medida em que é um delito que ba-naliza o homem, enganando-o, subjulgando-o e explorando-o em ativi-dades perigosas, insalubres, sem remunerar ou pagando-lhe uma quantia irrisória pelo trabalho realizado, privando-o de sua liberdade, agredindo-o física e psicologicamente, viola não a moral sexual da pessoa traficada ou o que são considerados os bons costumes de uma sociedade, mas fere, além de direitos fundamentais constitucionais, o que o homem tem de mais precioso: a sua dignidade, bem jurídico que foi escolhido como valor máximo no ordenamento jurídico e considerado como fundamento do Estado brasileiro.

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desta feita, a legislação brasileira sobre o tráfico de pessoas, tanto interno como internacional, deveria ser reformada pelo legislador brasilei-ro. Inicialmente, os textos dos arts. 231 e 231-A deveriam ser repensados para seguir a ideia de tráfico de pessoas trazida pelo Protocolo de Palermo, documento das Nações Unidas que foi ratificado pelo Brasil.

Assim, esse crime deixaria de estar vinculado a uma atividade especí-fica, a prostituição, e passaria a ser considerado pelo ordenamento brasilei-ro conforme a definição apresentada pelo Protocolo de Palermo.

Com a alteração, além da legislação pátria seguir a ideia de tráfico de pessoas trazida pelo Protocolo, abrangeria diversas condutas de tráfico interno e internacional que ocorrem no Brasil mas deixam de ser punidas como tal em face do vínculo que a lei penal brasileira faz desse delito com a prostituição.

Em seguida, deveria ser deslocado dentro do Código Penal, sendo excluído do Título VI, que trata dos crimes contra os costumes, para ser incluído no Título I, que versa sobre os crimes contra a pessoa. dessa forma a tutelar a dignidade humana, bem jurídico inerente à pessoa, tanto quanto a vida, a liberdade, a honra e a integridade física, bens jurídicos protegidos pelo legislador no referido título.

Assim sendo, entende-se que o ordenamento jurídico estaria bem mais comprometido com a repressão e combate ao tráfico de pessoas como também possibilitaria a proteção da dignidade da pessoa humana no Brasil.

3 - O TRÁFICO DE SERES HUMANOS NO ESTADO DO CEARÁ – UM ESTUDO DE CAMPO PARA AÇÕES INOVADORAS

O Ceará está localizado na região Nordeste do Brasil. Com uma po-pulação estimada em 8.097.276 habitantes (dados de 2005 IBGE, 2006), é considerado um dos estados mais pobres do país, ocupando a 20ª posição no ranking nacional, 24 apesar de os indicadores dos últimos anos mostra-rem os avanços que estão sendo alcançados em diversas áreas.

destaca-se por seu potencial turístico que o transforma, juntamente com sua capital, Fortaleza, em um dos locais mais visitados por turistas

24 Conforme o Índice de desenvolvimento Humano (IdH) dos estados brasileiros, segundo o Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento (PNUd).

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brasileiros e estrangeiros (cf. SETUR, 2006). Na economia, o Ceará é tido como próspero, apresentando constante crescimento contudo, ainda é considerado pobre, com graves problemas socais e grandes desigualdades, apesar dos avanços que também estão sendo alcançados nessa área.

O Índice de desenvolvimento Humano Municipal – IdHM do Cea-rá (cf. PNdU, 2007),25 no período entre os anos 1991 – 2000, mostrou que o estado melhorou em todos os indicadores analisados pelo Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento – PNUd.26 Apesar dos avanços, o Ceará continua sendo considerado um dos mais pobres, estando à frente apenas de Acre, Bahia, Sergipe, Paraíba e Piauí.

Apesar da baixa posição entre os demais estados, em todos os índices avaliados pelo PNUd verificam-se melhorias, mostrando evolução, pois em relação ao IdHM – Renda, que era de 0, 563 (1991), passou para 0,616 (2000); o IdHM – longevidade subiu de 0,613 (1991) para 0,713 (2000); e o IdHM – Educação, o que mais cresceu, passou de 0,604 (1991) para 0,772 (2000).

O Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (cf. IPE-CE, 2005), por sua vez, revela as melhorias alcançadas em alguns setores, mas que ainda retratam o Ceará com grandes desafios sociais a serem superados.

Segundo o Instituto, no item educação (cf. IPECE, 2005, p. 03-08), o Ceará apresentou bom desempenho em todos os aspectos analisados.27

25 Segundo do PNUd, indicadores de 0 a 0,499 referem-se a países/estados/municí-pios com baixo IdH; de 0,500 a 0,799 com médio (IdH), e de 0,800 a 1, com alto IdH. 26 Segundo este, o IdHM cearense em 1991 era de 0,593 e passou em 2000 para 0,700, o que revela um avanço. Este novo indicador continua classificando o Estado como possuidor de médio desenvolvimento humano; contudo, demonstra que as condições para esse desenvolvimento estão melhorando. 27 Ao medir a taxa de analfabetismo de jovens (pessoas com 15 anos ou mais incapazes de ler ou escrever), verificou-se que de 34,4%, em 1992, esse percentual diminuiu para 22,8%, em 2003. Quanto aos analfabetos funcionais adultos (pessoas com 25 anos ou mais que possuem menos de 4 anos de estudo), estes eram 62,2%, em 1992 e dimi-nuíram para 47,1%, em 2003. Em referência à escolaridade média dos adultos (média de anos de estudo), subiu de 3,4 anos em 1992 para 4,7 anos em 2003; a escolaridade média de adultos nacional é de 6,3 anos em 2003, segundo o documento. Por fim, ao aferir o percentual da população adulta com pelo menos o 2° grau escolar, verificou-

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Apesar da melhoria, deve-se destacar que a educação ainda apresenta um quadro negativo que coloca sua população em dificuldades no momento de concorrer a um posto de trabalho ou de tentar crescer no local em que já está trabalhando. É sabido que quanto mais anos de estudo possuir-se, melhores são as possibilidades de conseguir-se uma melhor colocação. As-sim, apesar dos indicadores apontarem uma melhora constante, os dados da educação ainda revelam a precariedade dos seus resultados e as conse-quências podem ter reflexos em outros indicadores, como renda, moradia e desemprego.

Quanto à renda (cf. IPECE, 2005, p. 09-11) da população, os indi-cadores revelam que as pessoas que recebem até 2 salários mínimos eram 60,9% em 1992 e passaram para 67% em 2003; os que percebem entre 2 e 10 salários mínimos eram 10,3% em 1992 e subiram para 12,3% em 2003, aqueles com rendimento acima de 10 salários mínimos eram 1,2% em 1992 e passaram a ser 1,5% em 2003; e as pessoas sem rendimento eram 26,8% em 1992 e diminuíram para 18,2%.

Os números apontam melhoria na renda; contudo, percebe-se que a desigualdade em relação a esse item ainda mantém-se. Apesar da quanti-dade de pessoas sem rendimento ter diminuído, aquelas que recebem até 2 salários mínimos28 constituem um número expressivo e é sabido que o valor equivalente a essa remuneração é insuficiente para manter de forma digna uma família. Ademais, a quantidade de pessoas que detêm a maior parte da renda é visivelmente menor e, em 2003, esse percentual foi am-pliado.29

se que de 12,6%, em 1992 passou para 19,8%, em 2003; neste item, o percentual do Nordeste é de 20,5%, e do Brasil é de 28,3%.28 O valor do salário mínimo a partir de 2008 é de R$ 415,00.29 Esses argumentos são ratificados pelos dados que apontam a concentração de renda e a pobreza no Ceará. O IPECE informa que o Índice Gini sofreu diminuição, pois em 1992 era de 0,600 e passou a ser de 0,567 em 2003. Apesar da queda nesse indica-dor, ao se comparar o Índice Gini cearense com o brasileiro, que é de 0,581, e o Brasil é considerado um dos países mais desiguais do mundo, verifica-se que, não obstante à diminuição da desigualdade na distribuição de renda, o Ceará ainda é um estado desigual. (cf. IPECE, 2005, p. 11 – 18).

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É válido destacar que os indicadores revelam uma melhoria no qua-dro social do Ceará, mas as desigualdades, precariedades de vida e de ren-dimentos mostram a pobreza existente no estado. A ausência de uma re-muneração adequada que proporcione uma vida digna, como habitação, alimentação, boa saúde e educação, por exemplo, pode contribuir para o aumento de diversos problemas sociais, como a violência, a exploração sexual comercial, a exposição de pessoas locais às investidas de turistas sexuais nacionais ou estrangeiros, a emigração para outros estados brasi-leiros ou países em busca de melhores oportunidades de vida e trabalho, entre outros.

Em referência à mudança de localidade em busca de melhores con-dições de vida e de trabalho para si e sua família, diversas pessoas se arris-cam aceitando propostas de emprego e bons salários em outros estados brasileiros ou países estrangeiros. Nesse deslocamento, alguns indivíduos podem ser vítimas de engano, exploração e violência para a realização de trabalhos diversos dos que haviam sido prometidos, em situações inade-quadas, mediante baixos salários ou nenhum pagamento, em atividades agrícolas, domésticas, fabris ou sexuais.

Esse processo, conhecido como tráfico de seres humanos, que ocorre tanto interna como internacionalmente, também está presente no Ceará, como apontam alguns estudos. Acredita-se que um dos facilitadores dessa problemática seja justamente o quadro social do estado acima delineado.

3.1 - O TURISMO SEXUAL E A EXPLORAÇÃO SEXUAL NO CEARÁ

Como já destacado, apesar do desenvolvimento econômico que pos-sibilita o crescimento, Ceará apresenta, há vários anos, percentuais negati-vos em diversos indicadores. Alguns graves problemas ligados a questões sociais, como o turismo sexual e a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, apenas para citar alguns, são nele encontrados e podem possibilitar situações de tráfico de pessoas.

3.1.1 - O TURISMO SEXUAL

O Ceará destaca-se no cenário nacional pelo seu belo litoral, clima quente durante todo ano o que atrai turistas de diferentes localidades.

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O turismo encontra um importante espaço para crescimento e é consi-derado uma importante fonte de geração de renda, emprego e riquezas para o estado.

No marco do turismo cearense, cresce também, paralelamente, o tu-rismo sexual. Fortaleza, a capital, é apontada, há alguns anos, como rota de turismo sexual internacional no mundo (cf. PISCITEllI, 2005). Segundo a SETUR, os estrangeiros que mais visitam o estado são de Portugal, Itá-lia, França, Argentina, EUA e Holanda. Alguns voos30 chegam trazendo visitantes, em sua maioria homens, que buscam manter relações sexuais e/ou sentimentais com pessoas locais, algumas delas em troca de dinheiro ou presentes.

Acredita-se que o impulso do turismo sexual no estado, que ocorre principalmente na capital e no litoral, deu-se em razão de dois fatores: a existência de locais onde a prostituição é visível e intensa e de pessoas que preferem se relacionar-se com estrangeiros a nacionais (cf. PISCITEllI, 2006).

Em relação ao primeiro fator, a visibilidade e intensidade da prosti-tuição, pesquisadores discorrem que existem diferentes dinâmicas dessa atividade no Ceará: aquela que é realizada no interior e a que ocorre na capital. Na primeira, geralmente os clientes são pessoas locais; na segun-da, as dinâmicas dependem da localização. No centro, bairros periféricos, rodovias estaduais e federais e seu entorno, os clientes tendem a ser lo-cais, e os trabalhadores sexuais geralmente pertencem à classe baixa; na Beira-mar e na Praia de Iracema, os clientes podem ser tanto locais como estrangeiros, e os trabalhadores do sexo fazem parte das classes baixa e média baixa. destaque se que a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes é encontrada nos dois cenários (cf. SOUSA, 2000; PISCI-TEllI, 2004).

No segundo fator, encontram-se pessoas, em sua maioria mulheres, que afirmam se relacionarem-se somente com estrangeiros. Esse grupo é formado por indivíduos de todas as classes sociais e as justificativas para esse comportamento perpassam diferentes motivações, como o desejo mi-grar pelo casamento, esperando melhorar de vida em outro país; diferen-ças de comportamento que são apontadas (machismo); e questões ligadas à raça e à nacionalidade, entre outras.

30 Fortaleza começou a receber os primeiros voos internacionais sem escalas na pri-meira metade da década de 1990 (cf. PISCITEllI, 2006, nota 09).

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Adriana Piscitelli desenvolveu, entre 1999 e 2002, interessante pes-quisa para conhecer a dinâmica do turismo sexual em Fortaleza. Segundo ela, esse fenômeno é complexo e possui diversas características.

Piscitelli destacou que, na atualidade, os estudiosos do turismo se-xual apresentam novas dinâmicas desse fenômeno que contestam a sua associação linear com a prostituição, existindo o “turismo sexual” e o “turismo romance” (cf. TAYlOR, 2001), que envolve cortejo e emoções românticas, abrindo espaço para o surgimento de tipos diferentes de re-lacionamentos e visitantes. Esse tipo de turismo também estaria presente em Fortaleza.

Alguns turistas procurariam, pelo menor preço possível, encontros explíci-tos e focalizados, preferindo relacionamentos múltiplos e anônimos. Outros visitantes, convencendo-se de estarem envolvidos em relações sexuais e emo-cionais autênticas e recíprocas, não considerariam prostitutas as mulheres que com eles se envolvem - rejeitando, inclusive, aquelas que lhes fazem propostas sexuais explícitas, nem se pensariam como clientes (cf. PISCI-TELLI, 2006).

Ademais, no marco do turismo sexual, sendo este considerado como a experiência de viagem na qual a prestação de serviços sexuais da popula-ção local, em troca de retribuições monetárias e não monetárias, é elemen-to crucial para a fruição da viagem (cf. PISCITEllI, 2001), o que ocorre em Fortaleza é considerado como ambíguo.

diferentemente de localidades onde a indústria do sexo é organiza-da31 e o cliente paga por um tempo determinado de uma dada atividade sexual, a dinâmica do turismo sexual na cidade possui suas próprias carac-terísticas.

Nesse universo, as aproximações entre os visitantes internacionais e as jovens que, de fato, recebem pagamento por serviços sexuais, tendem a estar carregadas de ambiguidade. Nesse ponto, é importante destacar que os termos correntes para referir-se às interações com os estrangeiros são os mesmos utilizados em relacionamentos amorosos desvinculados da prosti-tuição: “sair”, “ficar”, “namorar”. Na maior parte dos espaços “mistu-

31 Organizada no sentido de serem estabelecidos valores para horas diferenciadas, por exemplo, e que, após a realização do serviço sexual, trabalhador(a) e cliente desfazem os vínculos.

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rados” da Praia de Iracema, as aproximações adquirem as características de uma paquera. Elas lançam sinais, através da gestualidade. (...) A essa dinâmica da aproximação soma-se o fato de que algumas garotas só explicitam sua expectativa de pagamento após terem passado a noite com os estrangeiros.

Os relacionamentos que extrapolam em muito a duração atribuída a um programa, por outra parte, são recorrentes. (...)

Steve é turista inglês de 32 anos, solteiro, sem filhos, viajando sozinho e visitando Brasil e Fortaleza pela primeira vez. Durante os primeiros dias na cidade, manteve relações sexuais com mais de uma garota por dia. “Fui para a cama com algumas escuras, intermediárias e claras, nos primeiros dois dias enlouqueci.”Comparando Fortaleza com a Tailândia, ele decla-ra: “É inteiramente diferente. Na Tailândia há uma indústria do sexo, é muito organizado. Aqui é tudo muito... difuso.” (cf. PISCITELLI, 2006)

Além disso, as relações entre visitantes do norte e nativos do sul que surgem no turismo sexual também estão marcadas por traços de raça, na-cionalidade, classe e pela construção de forma diferenciada das mulheres do norte e do sul.

Os visitantes internacionais percebem as feminilidades das mulheres dos países do Norte, como masculinizadas. Elas são corporificadas em mu-lheres independentes que, priorizando o sucesso profissional, a carreira e o dinheiro e, inclusive consumindo sexo pago e/ou exótico – agem “à manei-ra de homens”. Ao contrário, o temperamento carinhoso, a calidez, sim-plicidade e docilidade das nativas, se integram numa ideia de feminilidade que, revestida de traços de “autenticidade”, remete a algo já desaparecido na Europa (cf. PISCITELLI, 2005, p. 21).

A imagem das mulheres do sul é também carregada de conotação negativa, pois sua sensualidade simples é associada à falta de inteligência, e a fogosidade é atribuída à propensão para diversas modalidades de sexo.

Em 2002, a Câmara Municipal de Fortaleza apresentou o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou o tu-rismo sexual na cidade. Segundo o documento, esta prática está marcada por fatores econômicos, sociais e culturais e pela ausência ou ineficácia de políticas públicas referentes ao tema. Ademais, durante muitos anos, e até recentemente, existia uma propaganda sobre o turismo no estado que

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sexualizava especialmente as mulheres, tornando-as um atrativo para o turismo no Ceará (cf. CMF, 2002, p. 21).

3.1.2 - A EXPLORAÇÃO SEXUAL COMERCIAL

A exploração sexual comercial, notadamente a praticada contra crianças e adolescentes, é considerada o ato ou jogo sexual em que um adulto utiliza crianças e adolescentes para fins comerciais, assumindo di-versas formas, como a relação sexual, a indução para participar de boates e shows eróticos, fotografias e filmagens pornográficas, entre outras (cf. VAZ, 1997, p. 17).

Considerada um tipo de violência sexual, a exploração sexual comer-cial está associada à pobreza à desigualdade de gênero, ao abuso sexual, ao turismo sexual, entre outros fatores (cf. VAZ, 1997, p 19; EllERY, 2003, p. 16).

A pobreza, especialmente em países pobres ou em desenvolvimento, como o Brasil, é destacada como um fator de geração desse problema, havendo a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, às vezes até pelos próprios familiares, para auxiliar na sobrevivência da família, e essa situação é naturalizada em face da necessidade.

Alguns dos pais das vítimas, oriundas de população de baixa renda, de-claram que “minha filha não é puta, pois quem é puta já nasce puta, tem o sangue quente e quem troca o corpo por um prato de comida não é puta”. Isto porque muitas das meninas trocam os serviços sexuais por latas de sardinha ou salsicha, negociação realizada entre caminhoneiros e frentistas, nos postos de combustível situados nas estradas ferroviárias, na estrada dos municípios. Quanto às meninas pobres prostituídas, “a gente vende as carnes para os homens que a gente nem conhece, senão a gente morre de fome” (cf. VAZ, 1997, p. 18).

Esse mal, presente em diversas localidades do mundo, também é encontrado em várias regiões brasileiras, especialmente no Nordeste, no Norte e em áreas de fronteira, onde a fiscalização e a repressão a essa prá-tica são mais difíceis. As capitais nordestinas, por sua vez, são consideradas locais com diversos casos de exploração sexual comercial, principalmente em razão do intenso fluxo de turismo, tanto nacional como internacional.

O Ceará está incluído nesse cenário. A exploração sexual comercial de crianças e de adolescentes está presente não apenas na capital e nas cidades litorâneas, mas também no interior do estado.

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A Pesquisa sobre a Exploração Sexual Comercial de Crianças e Ado-lescentes no estado do Ceará (cf. EllERY, 2003), realizada em 2003, em 18 municípios cearenses,32 sendo cinco na região metropolitana de Forta-leza, incluindo a capital, e 13 no interior, revelou que essa problemática está presente em todas as áreas pesquisadas.

A pesquisa entrevistou 151 adolescentes, dos quais 135 (89,4%) do sexo feminino e 16 (10,6%) do sexo masculino, o que revela que, na pers-pectiva de gênero, as mulheres são as maiores vítimas da exploração sexual comercial de crianças e de adolescentes. Em relação à raça/etnia, 61,6% dos entrevistados são pardos, 28,5% são brancos e 9,9% são negros; e no tocante à escolaridade, 77,3% não concluíram o ensino fundamental, 8% têm o ensino completo e, do total de entrevistados, 70,9% não frequentam a escola (cf. EllERY, 2003, p. 128).

Essa pesquisa percebeu, ainda, como potencializadores da explora-ção sexual comercial de crianças e adolescentes, a violência por eles sofrida no seio familiar; a pobreza das famílias e a situação de extremo risco em que essas crianças e adolescentes se encontram nas ruas e em locais de vul-nerabilidade à exploração sexual comercial; a falta de perspectivas; a baixa escolaridade e o distanciamento progressivo dos adolescentes da escola, entre outros (cf. EllERY, 2003, p. 129).

O problema da exploração sexual de crianças e adolescentes preo-cupa autoridades e membros da sociedade civil há vários anos, tendo sido tema de diversas pesquisas realizadas por estudiosos do tema e tema de investigação em Comissões Parlamentares de Inquérito, como a CPI da Prostituição Infantil, da Câmara Municipal de Fortaleza, em 1993; a CPI sobre o Turismo Sexual na Cidade de Fortaleza, da Câmara Municipal de Fortaleza, em 2001/2002; e a CPI sobre a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, da Assembleia legislativa do Ceará, em 2005. Além disso, entre 2003 e 2004, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do Senado Federal, que investigou casos de exploração sexual comercial de crianças e adolescentes em todo o país, apontou o Ceará como locus de incidência dessa problemática.

32 Foram pesquisados os seguintes municípios: Aquiraz, Aracati, Brejo Santo, Camo-cim, Campos Sales, Caucaia, Crateús, Fortaleza, Iguatu, Jaguaribe, Jijoca de Jerico-acoara, Juazeiro do Norte, Pacajus, Quixadá, Santana do Acaraú, São Gonçalo do Amarante, Sobral e Tianguá.

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A questão da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes tende a agravar-se ainda mais ao se inserir em outra problemática, que marca negativamente o Ceará no cenário nacional, o tráfico de seres hu-manos, pois, como será destacado, na perspectiva interna, o tráfico de se-res humanos, especialmente para fins de exploração sexual comercial, faz entre suas principais vítimas adolescentes cearenses que tanto são levadas para outras cidades como também para outros estados.

3.2 - O TRÁFICO DE SERES HUMANOS NO ESTADO DO CEARÁ

Na rota do tráfico de seres humanos no Brasil, o Ceará foi apontado como um estado onde ocorrem casos desse delito, tanto interno quanto internacional. Algumas investigações demonstram esse fato, como a Pes-quisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de ex-ploração sexual comercial (PESTRAF), coordenada por Maria lúcia leal e Maria de Fátima leal, publicada em 2002, e o I Relatório sobre o tráfico de seres humanos: São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás e Ceará, realizado por Marcos Colares e apresentado em 2004. Essas pesquisas, consideradas iniciais nas investigações sobre essa problemática, foram utilizadas para desenvolver as atuais políticas públicas nacionais sobre o tráfico de seres humanos.

Investigar e identificar o tráfico de seres humanos, para possibilitar um combate adequado, não é tarefa simples, pois esse problema permeia outros fenômenos, com eles confundindo-se e causando equívocos na ti-pificação de determinadas ações, erroneamente identificadas como tráfico de pessoas, especialmente aquele que tem por finalidade a exploração se-xual comercial. Entre elas, destaquem-se a prostituição voluntária de pes-soas maiores,33 o turismo sexual e a migração. No caso do Ceará, estado onde existe turismo sexual, um expressivo número de trabalhadores sexu-ais, pessoas, especialmente mulheres, que se relacionam com estrangeiros

33 Em relação à prostituição, deve-se ainda chamar a atenção para o fato de que a legis-lação penal brasileira vincula estreitamente o tráfico tanto interno quanto internacio-nal ao exercício da prostituição, o que permite que ações realizadas com a finalidade de auxiliar o deslocamento voluntário de trabalhadores sexuais, sem que haja engano ou exploração, sejam tipificadas como tráfico de seres humanos.

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com objetivos de migração, deve-se ter cuidado para bem diferenciar essas práticas do tráfico de seres humanos interno ou internacional.

A preocupação com a confusão que se faz entre o tráfico de pessoas e os outros fenômenos, especialmente com a prostituição, não é desarra-zoada, uma vez que esses equívocos contribuem para um combate inefi-caz e para ampliar a violência e o preconceito que sofrem determinados grupos.

Um estudo realizado em Fortaleza,34 com o objetivo de verificar a percepção da sociedade sobre o tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual comercial, comprova o conhecimento problemático de expressiva parte dos entrevistados. Foram aplicados, em julho de 2006, 455 questionários a diferentes pessoas da comunidade, sendo 170 a estu-dantes da Faculdade de direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), considerado o grupo com mais bem informado; e 175 a assistidos da de-fensoria Pública-Geral no estado do Ceará, 12 a conselheiros tutelares de Fortaleza e 98 a moradores do bairro Bom Jardim, na capital cearense, sendo este considerado um grupo menos informado.

Questionados acerca de como tomaram conhecimento da proble-mática do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, no primeiro grupo, dito mais esclarecido, 85,2% conheceram esse delito por matérias veiculadas em jornais, 6,5% tomaram ciência pela abordagem do tema na novela Belíssima,35 2,3% souberam por meio de relatos de pessoas da vizinhança e 6% se inteiraram por outros meios.

Nos questionamentos que objetivaram aferir se os entrevistados acreditavam existir tráfico de pessoas, identificar situações em que ocor-riam esse delito e fenômenos que são com ele confundidos, 94% des-se grupo, inicialmente, identificaram a existência de tráfico de pessoas, contudo, 49% não reconheceram a situação de tráfico e cerca de 27% o confundiram-no com o turismo sexual.

Em relação ao grupo considerado menos esclarecido, quando ques-tionado sobre como tomaram conhecimento da existência de tráfico de

34 Essa pesquisa faz parte do Projeto “Tráfico de seres humanos no Brasil – a ex-periência do Escritório de Prevenção ao Tráfico”, que se desenvolve desde 2005 na Universidade de Fortaleza (UNIFOR).35 Novela da TV Globo que abordou o tráfico de seres humanos para fins de explo-ração sexual.

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pessoas para a finalidade da exploração sexual, 48,2% informaram-se do delito por reportagens em jornais, seguidos por 41,8% que conheceram a problemática pela abordagem da novela Belíssima e 10% se inteiraram por vizinhos.

Quanto ao questionamento da existência de tráfico de pessoas e à identificação de um exemplo típico desse crime, verificou-se nesse gru-po uma maior confusão, pois, além de 35% dos entrevistados não terem reconhecido a existência de tráfico, 86% não reconheceram o caso dessa problemática em nível internacional e 52% o confundiram com o turismo sexual.

A confusão entre o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual comercial com a prostituição e o turismo sexual, por exemplo, verificada nos resultados da investigação, provoca o questionamento sobre se a so-ciedade sabe que o tráfico de seres humanos interno ou internacional tem também outras finalidades, como o trabalho forçado, a escravidão ou for-mas análogas à escravidão, o tráfico de órgãos e diversos tipos de explo-ração sexual comercial, não apenas a prostituição – destaque-se - forçada. Esse conhecimento revela-se importante para provocar as denúncias que possibilitarão o combate e a repressão a essa prática.36

Ademais, os resultados da pesquisa são importantes por revelar um quadro que se acredita ser recorrente no estado: a confusão que permeia a ideia do tráfico de seres humanos. Esse fato é sintomático porque o co-nhecimento equivocado do delito pode provocar o silêncio em relação a um possível caso, tendo em vista o engano que se faz com outras práticas, como o turismo sexual, que, apesar de ser combatido, não é considerado crime.

A informação responsável sobre a existência do tráfico de seres humanos, seus tipos, sua dinâmica e suas possíveis consequências é um importante meio de prevenção, na medida em que as pessoas que têm co-nhecimento dessa prática, podem tomar todos os cuidados para prevenir a vitimização, como também podem denunciar casos em que há suspeita de tráfico para serem investigados pelas autoridades competentes.

36 Apesar de a legislação penal brasileira vincular o tráfico à prostituição, outras finali-dades do tráfico podem ser reprimidas e punidas quando uma das condutas pode ser enquadradas em tipos previstos na legislação pátria, como o trabalho escravo, a venda de órgãos etc.

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Tendo em vista que o Ceará é apontado como locus de tráfico de seres humanos e que tão importante quanto o combate são as atividades pre-ventivas, que objetivam impedir que o delito ocorra, em 2005, foi inaugu-rado o Escritório de Prevenção e Combate ao Tráfico de Seres Humanos e Assistência à Vítima.

3.3 - ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA DO ESCRITÓRIO DE PREVENÇÃO E COMBATE AO TRÁFICO DE SERES HUMANOS E ASSISTÊNCIA À VÍTIMA NO ESTADO DO CEARÁ

Em abril de 2005 foi inaugurado37 o Escritório de Prevenção e Com-bate ao Tráfico de Seres Humanos e Assistência à Vítima no estado do Ceará, tendo como principais objetivos o fortalecimento das redes de as-sistência às vítimas do tráfico de seres humanos e às suas testemunhas; a capacitação de agentes envolvidos em ações e políticas de enfrentamento desse crime; e a conscientização da sociedade sobre a gravidade do tráfico de seres humanos e a importância do envolvimento social no enfrenta-mento desse delito.38

Acompanhando as atividades do Escritório desde a inauguração, as pesquisadoras observaram que, nas ações preventivas, são realizados pe-riodicamente cursos de capacitação para a prevenção do tráfico de pessoas com diversos parceiros e pessoas da comunidade, como, por exemplo, as Polícias Militar e Civil, a AMC, a Guarda Municipal de Fortaleza, os colaboradores do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra Crian-

37 A criação do Escritório foi fruto do Programa Global de Prevenção e Combate ao Tráfico de Seres Humanos no Brasil, da Secretaria Nacional de Justiça (SNJ/MJ) em cooperação com o Escritório das Nações Unidas contra drogas e Crimes (UNOdC). Inicialmente, era denominado Escritório de Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos e Assistência à Vítima no Estado do Ceará. Em 2007, tendo em vista a característica do tráfico no estado, foi incluído o vocábulo “combate” no nome do Escritório. Atu-almente, está vinculado à secretaria de Justiça e Cidadania do Estado do Ceará.38 Escritório de Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos a Assistência à Vítima. Acordo de cooperação que entre si celebram o Ministério da Justiça, o Ministério Público Federal e o Governo do Estado do Ceará, para estabelecer ações de prevenção ao tráfico de seres humanos e assistência às vítimas desse crime. Fortaleza, 2005. documento disponível nos arquivos do Escritório.

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ças e Adolescentes, os conselheiros tutelares municipais, entre outros.39 Percebeu-se que, após os cursos, vários desses profissionais mantiveram contato com o Escritório para fazer denúncias, buscar novas informações e trabalhar voluntariamente nas blitze que a instituição realiza periodica-mente.

Além dos cursos, os membros do Escritório procuram divulgar sua existência, competências e atuação, bem como conhecimentos sobre o tráfico de pessoas, participando de encontros, seminários, mesas redondas e demais eventos para discutir esse delito ou problemas afins.

Ainda em relação à prevenção, uma das principais atividades são as blitze preventivas40 realizadas periodicamente, junto com vários parceiros.41 As blitze acontecem em diversos pontos da capital Fortaleza, como Praia de Iracema, Beira-Mar, Praia do Futuro, dragão do Mar e demais locais com intensa movimentação de pessoas, especialmente aqueles considerados pontos de turismo sexual. Além da capital, essas atividades são realizadas em Municípios do litoral e do interior cearense, e em rodovias estaduais e federais, nas quais são fiscalizados bares, postos de gasolina e motéis.

Outras ações preventivas estão sendo realizadas anualmente em eventos de grande porte e com grande concentração de pessoas no estado, como o Fortal, o Ceará Music e o carnaval em algumas cidades litorâneas.

39 As pesquisadoras participaram como professoras da maioria dos cursos e podem ressaltar o interesse que o tema desperta nos participantes que, em face das atividades que desempenham, sempre relatam casos de suspeita de tráfico, especialmente com a finalidade de exploração sexual.40 Nas blitze, cada instituição atua no âmbito de sua competência e, dependendo do local onde é realizada, são solicitados documentos de identificação, inclusive passa-porte de turistas, verificada a regularidade dos documentos dos estabelecimentos co-merciais, se há alguma criança ou adolescente em situação de exploração sexual, que é devidamente encaminhada para a sua família pelos colaboradores do Núcleo de Enfrentamento, entre várias outras atividades. Como uma das funções do Escritório é trabalhar no âmbito da prevenção ao tráfico de pessoas e da assistência às vítimas, nas blitze sempre são entregues folders e são esclarecidas dúvidas acerca dessa problemá-tica. Quando é encontrado alguém em situação de tráfico, os membros do Escritório realizam todos os procedimentos para o encaminhamento ao abrigo, onde a pessoa traficada terá acompanhamento psicossocial, bem como formaliza a denúncia à insti-tuição competente para que o caso possa ser investigado. 41 Como a Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal, Polícias Civil e Militar, Núcleo de Enfrentamento à Violência contra Crianças e Adolescente, entre outros.

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Em 2006, foi inaugurado o Posto Avançado no Aeroporto Inter-nacional Pinto Martins, na capital cearense. Considerado uma porta po-tencial de saída e entrada de possíveis vítimas no estado, o Posto objetiva prestar os primeiros atendimentos às pessoas traficadas, além de realizar atividades de informação com os usuários do aeroporto que por lá transi-tam diariamente.

Foram também realizadas parcerias com instituições governamentais e não governamentais objetivando a assistência às vítimas por meio de espaços para abrigo e para proteção contra possíveis represálias em face de denúncias.

Em 2008, será inaugurado o Posto Avançado em Juazeiro do Nor-te, interior do Ceará, por meio de convênio firmado com o município, o que contribuirá para a interiorização das ações de prevenção e combate ao tráfico de pessoas. Além disso, está sendo criado um disque-denúncia gratuito para que as suspeitas de tráfico possam ser denunciadas ao Es-critório e este possa encaminhá-las às instituições competentes para as investigações.

3.3.1 - OS ATENDIMENTOS REALIZADOS PELO ESCRITÓRIO

O Escritório de Prevenção e Combate ao Tráfico de Seres Humanos e Assistência às Vítimas ampliou sua atuação e seu atendimento a partir de 2006. Em pesquisa realizada nos arquivos do Escritório, referentes às denúncias recebidas até março de 2008, verificou-se que foram feitas 64 denúncias. destas, 19 casos se referem a suspeitas de tráfico interno e 14 a suspeitas de tráfico internacional. das investigações já realizadas, foram descaracterizadas oficialmente pelas autoridades policiais três denuncias de tráfico interno e cinco de tráfico internacional, porque os delitos não foram verificados.

destaque-se que 31 denúncias recebidas no período investigado re-ferem-se a casos que não configuram tráfico, versando sobre exploração sexual de crianças e adolescentes, desaparecimento, estelionato e agressão cometidos por estrangeiro, “seqüestro-relâmpago”, adoção e outros.

Interessante ressaltar que das denuncias que não configuram tráfico, 16 são sobre exploração sexual comercial de menores, o que revela que, além da confusão existente entre estes fenômenos, a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes é uma prática que ainda se verifica no Ceará.

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Considera-se que essas denúncias são fruto da confusão que ainda se faz em relação ao tráfico de pessoas, pois como já destacado, é comum o equívoco entre tráfico de seres humanos e prostituição, exploração sexual per si, turismo sexual, migração voluntária, entre outros. É importante o correto entendimento pela população sobre as situações que configuram o delito, pois o conhecimento equivocado pode ocasionar a não denúncia, por não entender como crime uma determinada conduta. Além disso, as autoridades também devem estar atentas para que possam conduzir as investigações e desenvolver estratégias de combate mais adequadas.

Ao receber as denúncias, que geralmente ocorrem por ligações te-lefônicas e podem ser anônimas, ou são encaminhadas pelo Núcleo de Combate à Exploração de Crianças e Adolescentes, Conselho Tutelar, disque-denúncia do Governo Federal, o Escritório encaminha-as às ins-tituições competentes, especialmente para a Polícia Civil, que tem compe-tência para investigar os delitos de tráfico de pessoas no estado.

das denúncias recebidas pelo Escritório no período pesquisado, a maioria ainda está em fase de investigação pelas autoridades policiais com-petentes, mas cinco casos já estão sendo processados pelo Poder Judici-ário.

Interessante ressaltar que, de todas as denúncias de suspeita de trá-fico que foram recebidas pelo escritório, praticamente todas para fins de exploração sexual comercial, apenas em três casos figuram como possíveis vítimas pessoas do sexo masculino, o que revela que, no marco das de-núncias recebidas pela instituição, há uma forte presença de mulheres com suspeita de terem sido vitimadas por esse delito.

Em relação à profissão das supostas vitimas, tanto em casos de sus-peita de tráfico interno como internacional, nas 29 pastas em que consta essa informação, foram destacadas atividades subalternas, como babás, seguranças, vendedoras, trabalhadoras do sexo, empregadas domésticas e outras que se declaram estudantes. Apesar de nem todas as pessoas te-rem informado a profissão, por meio das que prestaram essa informação, percebe-se que se trata de atividades cuja remuneração tende a ser baixa, o que pode ter contribuído para a aceitação dos convites realizados para trabalharem em outras localidades.

A escolaridade é outro dado importante, mas que foi informado em apenas 25 casos, o que não permite conhecer com precisão esse item em

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relação à totalidade dos assistidos, mas já indica um perfil escolar dessas pessoas. Nas pastas onde consta essa informação, sete pessoas informa-ram possuir o 2° grau incompleto, 3 pessoas relataram ter cursado o 1° grau incompleto e duas disseram ter concluído o 2° grau. Percebe-se, por essas informações, que, apesar de não retratarem a realidade de todos os atendidos, trata-se de pessoas com precário nível educacional, o que difi-culta sua inserção no mercado de trabalho competitivo, possibilitando o acesso a atividades consideradas subalternas, informais e com baixa remu-neração.

A situação educacional, somada às atividades realizadas que foram apontadas acima, permite apontar que essas características contribuem para motivar essas pessoas a aceitar trabalhos em outras localidades, espe-cialmente quando lhes são oferecidas boas oportunidades e bons salários.

dos casos denunciados ao Escritório, é possível identificar as rotas existentes. No que se refere ao tráfico interno, são apontados como locais de saída de pessoas para o Ceará desde o Maranhão e o Piauí, e rotas que saem do estado em direção a São Paulo, Rio Grande do Norte e Amazo-nas. No interior do Ceará, há diversas denúncias sobre tráfico de pessoas entre diferentes municípios, como Juazeiro do Norte, Quixadá, Aracati, Crato, Russas, Camocim, Iguatu e Pecém, sendo a capital, Fortaleza, local de saída ou chegada.

Como rotas internacionais, verifica-se como destino Portugal, Ale-manha, Bélgica, Estados Unidos, Espanha e Itália, havendo inclusiva uma denúncia de mulheres vindas do leste europeu para o Ceará.

Um dado importante é que, das denúncias sobre suspeitas de tráfico interno de pessoas, em 15 são apontadas adolescentes como vítimas, cuja grande maioria já estava inserida na exploração sexual comercial, o que indica que essa problemática, de acordo com o universo de casos que chegaram ao Escritório, facilita o ingresso em uma situação de tráfico de pessoas com finalidade de exploração sexual.

3.3.2 - RELATOS DE UM CASO ATENDIDO PELO ESCRITÓRIO

Como já dito, a maioria das denúncias que chegam ao Escritório são sobre suspeitas de tráfico interno de pessoas, especialmente para a finali-dade da exploração sexual comercial, envolvendo, inclusive, menores que já estavam em situação de exploração.

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Um dos casos denunciados42 revela a ação da dinâmica da atuação de pessoas que realizam condutas consideradas como tráfico de acordo com a definição do Protocolo de Palermo.

Essa denúncia, realizada em 2006, é sobre uma suspeita de tráfico interno de pessoas, de mulheres que vieram do interior do Piauí para a capital cearense. Uma delas, menor na época, com 15 anos, envolvida na exploração sexual comercial, e a outra maior, com 20 anos no período, já exercia a prostituição. Segundo relataram à Polícia Civil durante as investi-gações, contraíram dívidas que, segundo elas, estava se tornando impagá-veis e estavam sendo ameaçadas.

FR informa que foi aliciada por MC com a promessa de ganhar di-nheiro fácil, contudo envia praticamente tudo o que ganha porque, segun-do ela, MC lhe encheu de comprar:

QUE AC tem um controle sob RM, sendo que esta faz programas e todo o dinheiro que ganha dá para AC; QUE a declarante manda todo dinheiro que recebe para MC, através de Banco e acredita que seja o Bra-desco; (...); QUE a declarante faz em média dois programas e cobra R$ 150,00 (cada); QUE manda em torno de 75% para MC; QUE quem paga o aluguel e a comida é MC; QUE suas roupas são compradas por MC, inclusive peças íntimas; QUE MC trabalha em um hospital; QUE na verdade faz programas e manda todo seu dinheiro para MC porque esta lhe encheu de compras; QUE quando veio para Fortaleza MC comprou sua passagem e roupas; (...) QUE depois que a declarante veio, também veio I..., contudo esta conseguiu pagar suas contas e depois foi embora; (...) QUE MC lhe chamou para vir a Fortaleza, na intenção de fazer programas aqui; QUE todos os documentos de seus filhos estão com MC;

QUE MC lhe disse que aqui em Fortaleza iria ganhar dinheiro fácil; QUE pensou que vindo para Fortaleza iria ganhar dinheiro fácil, contudo MC lhe encheu de contas e passou a ficar com todo o seu dinheiro; (...) QUE MC lhe disse que não pode sair daqui,enquanto não pagar sua contas; QUE não sabe quanto deve a MC, mas acredita que enquanto viver com ela, não terminará de pagar sua contas; (...) QUE perguntou a RM quanto ela devia a MC e ela disse que era R$ 400,00;

42 No relato, os nomes dos envolvidos foram substituídos por letras para a proteção do direito fundamental à intimidade (CF, art. 5°, X). Os relatos constam no inquérito policial que investigou o caso.

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FR relata ainda que se sente explorada por MC e que esta lhe ameaça com a retirada dos filhos se não mentir para as polícias durante as inves-tigações:

QUE gosta de Fortaleza, mas se pudesse decidir, preferia não fazer pro-gramas; (...) QUE se sente explorada por MC; QUE depois que RM foi apreendida, MC lhe orientou a dizer para a polícia que ela é sua tia e que a declarante cuida bem dos seus filhos; QUE MC ameaçou a declarante de tomar seus filhos; (...)

O mesmo caso envolve a menor, RM, com 15 anos na época, nas investigações e já inserida na exploração sexual comercial. RM também é natural do Piauí, e após ter seu documento de identificação falsificado, para aparentar ser maior de idade, foi trazida para Fortaleza por MC.

QUE MC sabia que a declarante é menor; QUE há tempos MC convi-dava a declarante para vir para Fortaleza; (...) QUE a declarante tinha ideia de que o real motivo do convite era fazer programas; (...); Que MC comprou a passagem para a declarante e lhe deu trinta reais para viagem; QUE quando do convite para vir para Fortaleza, MC pediu a declarante que pegasse escondido de sua mãe o registro de nascimento; QUE pegou tal documento e entregou o mesmo para MC; QUE após foi juntamente com MC ao Instituto de Identificação, onde MC procurou um conhecido seu, chamado F... que trabalha no tal Instituto; QUE a mesma pediu que ele fizesse uma carteira com idade alterada; QUE o mesmo respondeu que não era possível, já que o mesmo não fazia o registro, porém sugeriu a MC que procurasse alguém que tivesse computador e pudesse escanear e alterar o ano de 1991 para 1988; QUE ainda afirmou o F... dizendo que ainda era o mesmo esquema de antes, que era fácil, era mamão com açúcar; (...)

RM afirma também em seu depoimento que todo o dinheiro ganho com os “programas” sexuais era repassado para AC, que é irmã de MC segundo os documentos que constam no inquérito, o que fez com que a menor desejasse retornar para casa. Contudo, segundo informa, somente poderia voltar após pagar a dívida que havia contraído.

QUE a AC saiu para comprar roupas e calçados para declarante; QUE AC comprou roupas do tipo: minissaia, tops, calcinhas fio dental, calças capri, calças jeans; QUE passados dois dias, a declarante fez seu primeiro programa em Fortaleza; QUE F... e a declarante foram a uma boate

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chamada Europa, na Beira-mar; QUE depois saíram da boate e foram a um hotel, chamado Porto de Iracema, cada uma acompanhada com um homem; QUE receberam oitenta reais cada uma pelos programas feitos; QUE os referidos homens eram estrangeiros; QUE o dinheiro foi entregue todo na mão da AC; QUE sendo assim, achou melhor ir embora; QUE a declarante perguntou para R... se todo o dinheiro que ganhasse iria ficar com AC; QUE a R... respondeu que sim; QUE a declarante disse a R... que ia embora, e esta a apoiou, dizendo que fosse; QUE quando a declarante foi falar com AC que iria embora, esta disse que a declarante só poderia ir embora depois que pagasse todo o dinheiro que havia gasto com a sua vinda a Fortaleza; QUE AC ligou para sua mãe, MC, dizendo que a declarante queria ir embora; QUE MC respondeu a sua filha que se a declarante conseguisse o dinheiro da passagem poderia voltar; (...)

A menor afirma ainda que foi obrigada a mentir em seu primeiro depoimento à delegacia especializada, pois foi ameaçada por MC.

QUE a MC falou com a declarante que esta contasse a história das fotos; QUE teriam caído no chão e encontrado por acaso, conforme consta no primeiro depoimento que a declarante deu na DCECA; QUE ameaçou a declarante que se não contasse essa história, sumiria com seu irmão Mes-sias de sete anos e a declarante nunca mais o veria, fato este que deixou a declarante apavorada; QUE a declarante passou mal; QUE AC disse que o desmaio da declarante era apenas frescura; QUE a AC disse que a declarante teria que se arrumar e ir logo para a boate; QUE mesmo passando mal, a declarante foi à boate; (...)

O caso demonstra, como a pesquisa também verificou ao analisar as denúncias que chegaram ao Escritório, o envolvimento de menores, algumas já em situação de exploração sexual comercial e pertencentes à camada mais pobre da sociedade, com o tráfico interno de pessoas, espe-cialmente para a finalidade da exploração sexual. Isso demonstra a necessi-dade de intensificar-se a prevenção e o combate a essa prática, bem como a assistência adequada por profissionais especializados para essas pessoas.

3.3.3 - PRINCIPAIS DESAFIOS A SEREM SUPERADOS

A pesquisa revelou que, desde o início, uma das principais conquistas do Escritório foi tornar-se um importante espaço para denúncias e para informações sobre o tráfico de seres humanos no Ceará. Antes da sua implementação, não existia um local especificamente destinado para tratar

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dessa problemática, além do que as informações que chegavam ao público sobre tráfico de pessoas eram bastante escassas. Após o início das ativida-des, o Escritório se transformou em local de recebimento de denúncias, que são repassadas para as autoridades competentes para investigação e de acolhimento às vítimas de tráfico.

Apesar da valiosa conquista alcançada, são inúmeras as dificuldades enfrentadas. A primeira é a necessidade de trabalhar-se em conjunto com outras importantes instituições. Já é constante a atuação conjunta da insti-tuição com diversos parceiros,43 mas aqueles que teriam participação indis-pensável no combate do tráfico de pessoas em suas diversas modalidades, como os Municípios cearenses, geralmente esquivam-se de desenvolver atividades preventivas em conjunto com o Escritório. Este fato dá-se, acredita-se, pela visão preconceituosa e equivocada do tráfico de pessoas como prostituição.

Em referencia à atuação na assistência às vítimas de tráfico de pesso-as, essa atividade é considerada pela coordenadora do Escritório44 como precária, apesar da sua importância. Este fato ocorre em virtude de o Es-critório não dispor efetivamente de um quadro profissional adequado para realizar os acompanhamentos psicossociais necessários e da inexistência de abrigos apropriados para vítimas de tráfico. deve-se salientar a contri-buição valiosa de profissionais das áreas de psicologia e assistência social que trabalham de forma voluntária atendendo às vítimas; contudo, seria mais indicado um atendimento por profissionais especializados nesse tipo de problemática. Além disso, em relação aos abrigos parceiros que rece-bem as pessoas encaminhadas pelo Escritório, deve-se destacar que estão melhor estruturados para abrigar vítimas de exploração sexual do que de tráfico de seres humanos, uma vez que, além dos acompanhamentos pro-

43 Como por exemplo, a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Federal, a Agência Brasi-leira de Inteligência (ABIN), o Ministério Público Federal, o Ministério Público Esta-dual, a Guarda Municipal de Fortaleza, o Conselho Tutelar de Fortaleza, as secretarias estaduais SSPdS, SEdUC, SECUT, SETUR, SEJUS e SAS, e Organizações não go-vernamentais.44 As informações constantes nesse item resultam das observações das pesquisadoras durante as investigações e de entrevista com a coordenadora do Escritório, Eline Ma-ria dantas Marques, realizada em 2 de abril de 2008.

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fissionais necessários, a segurança dessas pessoas deve ser primordial, em virtude de possíveis represálias dos exploradores.

dessa forma, a atuação do Escritório em um importante objetivo como o atendimento às vítimas, é considerada apenas emergencial, provi-sória e não continuada, diferente do previsto nos objetivos do projeto.

A coordenadora salienta, ainda, a fragilidade existente na rede de parceiros que trabalham com o tráfico de pessoas no Ceará, pois não há integração e a troca de informações entre eles é considerada escassa.

Outro ponto destacado pela coordenadora é a inexistência de uma delegacia especializada na investigação e combate ao tráfico de seres hu-manos. No Ceará, além das investigações levadas a cabo pela Polícia Fede-ral, a Polícia Civil possui uma delegada especializada em investigar casos de tráfico de pessoas em todo o estado, a dra. Maria Cândida Brum. Con-tudo, ante a inexistência de uma delegacia com competências exclusivas para a investigação do delito, referida delegada encontra-se sobrecarrega-da, haja vista que acumula a competência para a investigação de suspeitas de tráfico de pessoas como também as competências da delegacia espe-cializada da qual é delegada titular. Esse acúmulo de funções prejudica os procedimentos de investigação do delito no estado.

Apesar das problemáticas apontadas, é importante salientar a atua-ção positiva do Escritório na divulgação da existência do crime no Ceará e em ser um importante local de recebimento de denúncias.

3.4 - AÇÕES INOVADORAS PARA A PREVENÇÃO E O COMBATE AO TRÁFICO DE SERES HUMANOS

A Política e o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Seres Humanos (decretos nº 5.948/06 e 6.347/08) apresentam como eixos es-tratégicos de ação a prevenção ao tráfico de pessoas, a atenção às vítimas e a repressão e a responsabilização dos seus autores.

desta feita, os resultados da presente pesquisa, analisando a legislação brasileira sobre o tema, bem como a característica do tráfico de pessoas no estado do Ceará pela experiência do Escritório de Prevenção e Combate ao Tráfico de Seres Humanos e Assistência à Vítima, possibilitam sugerir algumas ações que são consideradas essenciais na luta contra essa prática.

No eixo prevenção, informações precisas sobre o que seja tráfico de pessoas em suas diferentes modalidades e dinâmicas são consideradas fundamentais, para que a sociedade possa conhecer essa prática.

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A investigação realizada em Fortaleza pelas presentes pesquisadoras, para aferir a percepção da sociedade sobre o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, já comentada no item anterior, revelou o conhecimento confuso do grupo pesquisado e que é frequente a confusão que se faz en-tre o tráfico e outros fenômenos, como o turismo sexual e a prostituição.

Assim, sugere-se que nas mais diferentes esferas federativas, as orga-nizações não governamentais que trabalham com o tema possam firmar parcerias ou convênios com os órgãos de educação para que palestras so-bre tráfico de pessoas possam ser realizadas em escolas de ensino da rede pública, bem como em universidades, para que o tema possa ser melhor conhecido, refletido e seja objeto de debate.

Ainda no eixo prevenção, é importante a realização de seminários e capacitações de líderes comunitários sobre o tema, pois é sabido que essas pessoas são multiplicadores em suas comunidades e podem repassar os conhecimentos adquiridos aos demais moradores.

Importantes ainda se revelam as ações informativas na sociedade, como a realização de blitze educativa em locais de grande movimentação das cidades para entrega de folders ou panfletos que versem sobre o tráfico. Além disso, a realização de debates sobre o tema em rádio, televisão ou universidades mostram-se relevantes meios de informar e refletir sobre o tema.

Imprescindível também se mostra a capacitação constante de agentes de segurança,45 eis que, ao conhecer o tema, identificando os diferentes tipos de tráfico de pessoas, eles podem atuar de forma adequada para a prevenção e a repressão desta prática.

Outro ponto importante é a realização de parcerias entre as institui-ções que trabalham na prevenção e combate ao tráfico de pessoas, bem como na assistência às vítimas, e os diferentes municípios do estado em que estão localizadas. A pesquisa revelou que a inexistência dessa parceria ou sua fragilidade obsta a troca de informações sobre possíveis casos de tráfico para serem investigados, bem como dificulta a realização de ativi-dades preventivas.

45 destaque-se a Polícia Rodoviária Federal, que atua nas rodovias brasileiras que são locais potenciais para a prática de tráfico interno para fins de exploração sexual; as Polícias Civil e Militar que atuam nos Estados e seus respectivos municípios; a Polícia Federal e a Guarda Municipal.

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Vale ressaltar, ainda, a importância de fortalecer-se a rede de parcei-ros federais, estaduais e municipais que envolvem órgãos governamentais e não governamentais que trabalhem o tema, para que as informações existentes sobre o tráfico interno e internacional de pessoas existente no Brasil, em suas distintas modalidades, sejam integradas e os parceiros pos-sam conhecer possíveis rotas e atuação de grupos existentes.

Outro ponto essencial é o desenvolvimento de políticas destinadas à prevenção e ao combate de problemas como o turismo sexual e a ex-ploração sexual comercial. Como verificado pela pesquisa, no Ceará, essas práticas facilitam situações de tráfico de pessoas, especialmente para fins de exploração sexual comercial.

Ademais, é imprescindível que os governos federal, estaduais e muni-cipais desenvolvam políticas de médio e longo prazo relativas à educação, emprego e renda, para melhorar a qualidade de vida de seu povo, uma vez que os problemas sociais vivenciados pelo Brasil tornam uma parcela considerável de sua população socioeconomicamente vulnerável à ação de pessoas que praticam tráfico interno e internacional para diferentes finalidades.

No eixo assistência às vítimas, é indispensável a criação ou a especia-lização de abrigos para atender pessoas que foram traficadas, possibilitan-do um tratamento seguro, sigiloso e com profissionais (assistentes sociais e psicólogos) capacitados para os atendimentos. Para tanto, seria adequado que o governo, em suas diferentes esferas, disponibilizasse verbas para a criação desses espaços.

Além disso, a realização de mediação familiar, que está fundamenta-da no diálogo pacífico e amigável entre os sujeitos, revela-se importante para a melhor reinserção das vítimas em suas famílias.

No que se refere ao eixo repressão e responsabilização dos autores de tráfico de pessoas, é urgente a atualização da legislação penal nacional sobre o tema. Apesar de o Código Penal brasileiro ter sido alterado em 2005 pela lei nº 11.106, que modificou o anterior tipo tráfico internacio-nal de mulheres para tráfico internacional de pessoas, e incluiu o novo tipo tráfico interno de pessoas, percebe-se que a norma penal ainda é limitada, conservadora e está aquém da realidade brasileira, pois continua vinculan-do essa conduta à prática da prostituição. Além disso, está em dissonância com o compromisso internacionalmente assumido pelo Estado brasileiro

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ao ratificar o Protocolo de Palermo, por meio do qual se comprometeu a combater o tráfico de pessoas descrito nesse documento.

desta feita, é imprescindível a mudança do Código Penal para prever a conduta do tráfico de pessoas de acordo com o Protocolo de Palermo, inclusive aumentando a pena prevista para quem pratica essa conduta.

Ademais, tendo em vista a nova ordem constitucional, que erige a dignidade da pessoa humana a valor essencial do ordenamento jurídica brasileiro, os tipos tráfico internacional e interno de pessoas deveriam ser deslocados dentro do Código Penal, sendo excluídos do Título VI que trata dos crimes contra os Costumes (obs.: com a edição da lei n.º 12.015/2009, o título VI, da Parte Especial, do Código Penal, passa a denominar-se dos crimes contra a dignidade sexual), para ser incluído no Título I que versa sobre os crimes contra a pessoa, passando então a tu-telar a dignidade humana, bem jurídico inerente à pessoa, tanto quanto a vida, a liberdade, a honra e a integridade física, bens jurídicos protegidos pelo legislador no referido título.

Assim sendo, compreende-se que a implementação dessas ações nos três eixos propostos, prevenção, assistência às vítimas, repressão e respon-sabilização dos seus autores, contribuirá para uma melhor atuação dos governos nas diferentes esferas federativas, como também da sociedade, na luta contra o tráfico de pessoas no Brasil.

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3º COLOCadO

TRÁFICO DE PESSOAS EM PERSPECTIVA HISTÓRICA: UMA ANÁLISE DO PAPEL DA IMPRENSA.

Anamaria Marcon Venson

INTRODUÇÃO

“de olho nos euros, prostitutas vão à Copa” (Folha de S. Paulo 19/02/2006). “UE propõe visto a latino-americanos na Copa para evi-tar prostituição” (Folha de S. Paulo 08/03/2006). “Vaticano defende ‘car-tão vermelho’ para prostituição na Copa” (Folha de S. Paulo 09/06/2006). “Brasileiras dominam prostituição em ilhas espanholas, diz relatório” (Fo-lha de S. Paulo 25/02/2008). Entendo essas manchetes como recursos de sedução midiática, mas também como construtoras de imagens, trazendo à cena questões que extrapolam fronteiras nacionais.

Apesar de o Protocolo de Palermo, ratificado pelo Brasil em 2004, e também o Código Penal Brasileiro, a partir de 2005, tratarem o tráfico de pessoas como um fenômeno complexo, com variadas modalidades, o que se veicula na mídia com regularidade são discursos sobre tráfico de mu-lheres para exploração sexual. Para dar historicidade a esse acontecimento e para tentar compreender como esta modalidade de migração forçada constituiu-se e sobressaiu-se na imprensa, proponho uma análise de argu-mentos presentes em embates discursivos sobre tráfico internacional de mulheres com fins de exploração sexual nas páginas dos maiores jornais de dois países fortemente envolvidos nessa questão na última década: a Folha de S. Paulo, produzido no Brasil, e o El País, jornal espanhol. O dis-curso midiático é uma fonte preciosa para perceber como se constituiu um sentido para o tráfico de pessoas, oferecendo um importante arsenal de idéias para o enfrentamento desse fenômeno.

Partindo de uma perspectiva historiográfica que caracteriza o final do século XX como um momento marcado por movimentos transnacio-nais para trabalho, negócios e lazer, minha proposta é uma análise de tex-tos de mídia brasileira e espanhola, numa abordagem comparativa, para pensar o aporte que a História pode oferecer ao campo teórico e político

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dos direitos Humanos, com relação ao tráfico de pessoas e, em particular, ao tráfico internacional de mulheres para fins de exploração sexual. Minha proposta objetiva, ainda, pensar os mecanismos de poder presentes nas configurações discursivas que definem o tráfico internacional de mulhe-res, percebendo problematizações marcadas pelo gênero, pois o discurso midiático refere-se, na maioria das vezes, a trabalhadoras do sexo em pro-cessos migratórios que são tratadas ora como vítimas, ora como infratoras, marcando-as com eficientes mecanismos de discriminação de gênero.

1- JUSTIFICATIVA

dentre as várias modalidades de tráfico de pessoas, o tráfico com fins de exploração sexual provoca especial alvoroço e comoção pública. Noto que, nos últimos anos, produziu-se na mídia uma explosão discursi-va sobre esse fenômeno de fronteiras transnacionais. É certo que o tráfico de pessoas é um problema complexo e não se esgota nessa modalidade, mas o tráfico internacional de mulheres para fins de exploração sexual é uma temática que foi obstinadamente veiculada pela mídia brasileira na última década, tornando urgente uma leitura historiográfica dessa proli-feração discursiva. O fato de a mídia ter dado maior visibilidade a essa modalidade de tráfico em detrimento de outras modalidades, não menos importantes, exige uma análise específica, entendendo que, muitas vezes, as modalidades misturam-se, são entrelaçadas.

Entendo que o discurso de mídia elabora representações que possam convencer as pessoas de determinado ponto de vista, mas, ao mesmo, de maneira circular, apropria-se de valores culturais constituídos nas relações sociais para atingir o leitor. Portanto, representações correntes na socieda-de estão traduzidas lá: a maneira como considerável parcela da população entende o tráfico aparece no discurso midiático. Isso faz do texto jornalís-tico um lugar estratégico para pensar políticas de enfrentamento ao tráfico de pessoas.

No mundo todo, segundo Giovanni Quaglia, representante do Es-critório das Nações Unidas contra drogas e Crime (UNOdC), pessoas são traficadas ilegalmente e a maior parte das vítimas é composta de mu-lheres e crianças.46 Conforme a PESTRAF, Pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil,47 extenso

46 QUAGlIA, 2007.47 lEAl, Maria lúcia; lEAl, Maria de Fátima. 2003.

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relatório que mapeou as principais rotas de tráfico no país, a maior parte das brasileiras “aliciadas” para o comércio de sexo seriam mulheres e adul-tas, e o principal destino internacional das rotas de tráfico seria a Espanha. Para dar historicidade a esse fenômeno, que tem-se intensificado de modo alarmante em tempos recentes, e perceber as tramas de sua constituição, minha proposta é uma análise comparativa de argumentos presentes em discursos sobre tráfico internacional de mulheres com fins de exploração sexual travados em discursos de mídia do Brasil e da Espanha, para pensar como parte da população desses países está entendendo e lidando com esse fenômeno migratório, e sugerir maneiras de sensibilizar e responsabi-lizar a população com relação à complexidade desse problema.

O Brasil oficialmente comprometeu-se com a temática de gênero aplicada à questão do tráfico na Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, aprovada pelo decreto n. 5.948, de 26 de outubro de 2006, no capítulo X, na “área de Proteção e Promoção dos direitos da Mulher”. Para pensar os dispositivos de poder presentes nas configura-ções discursivas que definem o tráfico internacional de mulheres, o gênero é instrumento essencial para analisar mecanismos de discriminação e pre-conceito que marcam as mulheres envolvidas no mercado do sexo. Penso que o enfrentamento efetivo do tráfico de mulheres precisa ser projetado sobre a questão de gênero.

2 - DESENVOLVIMENTO – MÉTODOS, PROCESSO, RESULTADO E DISCUSSÃO

A análise comparativa é uma estratégia de trabalho que permite levar em conta especificidades e ajuda a compreender como um mesmo fenô-meno assume características diversas nas conjunturas históricas analisadas. desse modo, pretendo indagar similitudes e dessemelhanças em discursos midiáticos de dois países envolvidos em um mesmo problema. A Folha de S. Paulo, ou Folha, é o jornal de maior circulação no Brasil, segundo informa-ção do Instituto Verificador de Circulação (IVC).48 Fundado em 1921 com o nome original de Folha da Manhã, foi rebatizado pelos novos donos em 1960. Este periódico diário, disponibilizado em versão impressa e digital, a Folha Online, é parte do Grupo Folha, que reúne empresas de informação

48 http://www.circulacao.org.br/scripts/ijeweb.cgi/iniciar. Acessado em agosto de 2007.

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e notícias como jornais, editoras, gráficas, etc.49 O El País é também um periódico diário disponibilizado em versão impressa e digital, produzido desde 1976, ano em que a Espanha iniciava sua transição para democracia. Um investimento do poderoso grupo empresarial PRISA, presente em 22 países da Europa e América,50 é hoje o jornal espanhol de maior difusão. Estou entendendo esses jornais como produtos culturais, que permitem visualizar todo um aparato de idéias sobre um determinado assunto. Cer-tamente, a editoria dos jornais busca uma adequação aos desejos de seus consumidores e tem a intenção de conquistar um público segmentado, mas o discurso midiático de um período específico mostra também como determinada parcela da população está concebendo determinada temática. Jurgen Habermas entende a imprensa como importante espaço de discus-são e publicização de temas e questões, tornando públicos e mais visíveis certos valores de um determinado momento.51 Também Joana Maria Pe-dro percebeu em discursos de imprensa um entrelaçamento de interesses públicos e particulares.52 Os discursos de jornal que colocaram o tráfico de mulheres em questão não estavam desassociados do momento do qual eram produtos e há, portanto, uma intrínseca conexão entre tais textos e os contextos históricos em que estão inseridos. Este trabalho pretende mostrar algumas dessas relações, colocando em evidência mecanismos e estratégias discursivas que aparecem no texto e apontar as direções que se insinuam nas recorrências, mas sem tentar traçar constantes univer-sais. Os jornais serão utilizados naquilo que contém sobre o mote deste trabalho, que é o tráfico internacional de mulheres. demais detalhes de cunho jornalístico não foram aprofundados, já que poderiam constituir uma outra pesquisa, desviando-me da questão central aqui apresentada. O objeto central são as formulações discursivas propagadas por meio da imprensa, analisadas em suas especificidades. Escolhi como fontes para a pesquisa notícias publicadas entre os anos 1997 e 2007, recorte tempo-ral que mostra que as preocupações deste trabalho percebem o presente também como história. Foram contabilizadas 253 notícias relacionadas ao

49 www.folha.uol.com.br. Acessado em março de 2008. 50 http://www.prisa.es/areas/ Acessado em maio de 2007.51 HABERMAS, 1984. 52 PEdRO, 1995.

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tráfico de mulheres, 70 no El País e 174 na Folha de São Paulo (ver anexo). Os excertos citados do jornal espanhol foram transcritos em português para facilitar a leitura. As fontes foram coletadas nos sítios eletrônicos que disponibilizam versões digitais idênticas às versões impressas e algumas poucas exclusivamente digitalizadas: “www.folhaonline.com.br” e “www.elpais.com”, nas seções “arquivo”. Nas opções de busca foram utilizados os termos “tráfico de mulheres” na Folha e “tráfico de mujeres” no El País, sendo que todos os resultados foram submetidos à análise. Poderia ter escolhido outras opções de busca, mas penso que esta forma foi apro-priada para a problemática que proponho.

Para contar uma história de como a imprensa problematizou o trá-fico internacional de mulheres para fins de exploração sexual na última década, escolhi utilizar o arsenal teórico foucaultiano, que sugere a des-construção dos discursos que deram visibilidade e que tornaram dizível o tráfico de mulheres. Em tal metodologia aplicada à pesquisa histórica, “discurso” tem um sentido técnico particular. Não significa “o que é dito”. discurso, aqui, é entendido como prática, pois é a prática que determina os objetos, e não o contrário; e só existe o que é determinado, afinal, as coisas não existem fora das práticas.53 de acordo com essa perspectiva, tráfico de mulheres, mercado sexual e prostituição são práticas datadas e dimensionadas por relações de poder. Estou entendendo “relações de po-der” como aparecem em Foucault: instáveis e possíveis de reversibilidade, jogos estratégicos pelos quais indivíduos livres procuram se conduzir e determinar a conduta dos outros, disputas.54 Nessa perspectiva, nós deve-ríamos lembrar que assim como nossos textos acadêmicos são produzidos no interior de disputas, de relações de poder, de redes de saber, e são es-tratégias, o discurso midiático também é.

Para linda Nicholson, nossas propostas sobre as “mulheres” surgem de nossos lugares na história e na cultura, são atos políticos que refletem os contextos nos quais estamos e os futuros que gostaríamos de ver.55 O ob-jetivo central desse trabalho, além de localizar a intensa preocupação com o tráfico internacional de mulheres num tempo de fervores anti-imigração,

53 FOUCAUlT, 1996.54 FOUCAUlT, 1988. 55 NICHOlSON, 2000.

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é mostrar como o discurso midiático articula, confunde, mistura o proble-ma do tráfico de pessoas com a discussão sobre prostituição. Para pensar essa produção discursiva, o gênero será operacionalizado como categoria central, naquela perspectiva da afamada historiadora Joan Scott: “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar signifi-cado às relações de poder”.56 Para ela, as relações de gênero constituem-se com elementos simbólicos culturalmente disponíveis, que são articulados de maneira binária para representar o feminino e o masculino como con-ceitos fixos e atemporais. E, ainda, que o poder masculino não está só nas relações entre os sexos, mas se estende por toda a sociedade. Portanto, podemos utilizar a categoria gênero não só para analisar as relações entre homens e mulheres, mas também para compreender a dinâmica social e política. Joana Maria Pedro explica que a categoria gênero não é estável e fixa.57 Essas migrações das quais estou falando estão atravessadas pela questão de gênero, pois estou falando de mulheres jovens inseridas no mercado sexual, e que são tratadas ora como vítimas, ora como infratoras. Assim, entendo que não há como trabalhar com categorias fixas, pois as categorias de análise são resultado de um processo histórico e acionadas de diferentes maneiras dependendo da situação histórica. Minha perspec-tiva está atravessada também pela noção de nacionalidade/transnaciona-lidade, para pensar como o favorecimento à circulação de capital não se aplica aos movimentos de pessoas, ou, quando se aplica, se aplica somente em partes, com diferenciações, de acordo com o contexto.

É possível estabelecer relações entre a intensa preocupação pela pro-blemática do mercado do sexo transnacional nas viradas dos séculos XIX-XX e XX-XXI, dois momentos marcados pela inquietação em relação à migração. Margareth Rago, em Os Prazares da noite, publicado em 1991, apresenta no capítulo Dramaturgias um aspecto dramático da história da prostituição e pouco conhecido na época da publicação: o tráfico de “es-cravas brancas” na virada dos séculos XIX e XX, que se tratava de pros-titutas européias trazidas por gangues organizadas para serem comercia-

56 SCOTT, 1990.57 PEdRO, 2005.

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lizadas na América do Sul.58 Embora possamos traçar comparações entre histórias do passado e histórias que se desenrolam no presente, é preciso ficar claro que não se trata do mesmo fenômeno, como se a história se fi-zesse em ciclos, mas de acontecimentos distintos, pois são dimensionados por diferentes relações de poder.

Tem-se insistido muito na complexidade do fenômeno do tráfico in-ternacional de mulheres para fins de exploração sexual, que inclui aspectos de violação dos direitos humanos, lutas contra o crime organizado, políti-cas de imigração e asilo, desigualdades de gênero, pobreza e desigualdades socioeconômicas dentro de cada país e entre países. Preocupações essas que têm motivos reais e urgentes, mas que são também constituídas em tramas discursivas e dimensionadas por relações de poder. Noto que, no final do século XX, as facilidades de deslocamento de pessoas além das fronteiras nacionais trouxeram novas questões e afinaram os dispositivos de fiscalização, fazendo da imigração um foco de atenção, alvo de regula-ção rigorosa, fina e bem calculada. Constituiu-se uma teia de observações, de discursos, de saberes, de análises, e o tráfico de pessoas, em particular o tráfico de mulheres para comércio sexual e o tráfico de crianças, tornaram-se objeto de intolerância coletiva, de preocupação generalizada e interven-ções legislativas no campo do direito Internacional.

Em dezembro de 2000, foi assinada em Palermo (Itália) a Convenção contra o Crime Organizado Transnacional. desta Convenção, elaborada por um comitê intergovernamental organizado pela Assembléia Geral da ONU, foi elaborado um protocolo adicional, o Protocolo para prevenir, suprimir e punir o tráfico de pessoas, especialmente mulheres e crianças, que oferece uma definição de tráfico e constitui o primeiro instrumento que pretende abordar com caráter universal todos os aspectos do tráfico de pessoas. Esse Protocolo reconhece a necessidade de um enfoque amplo e internacional nos países de origem, de passagem e destino para que se possa combater eficazmente o tráfico, além de incluir medidas de prevenção, punição aos traficantes e proteção às vítimas, amparando direitos humanos internacionalmente reconhecidos. A definição de tráfico é dada no artigo 3º:

o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso de força ou a outras formas de coa-

58 RAGO, 1991. Ver também: Pereira, 2005.

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ção, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra, para fins de exploração.

Por exploração entende-se “exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, os trabalhos ou serviços forçados, escravaturas ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.” Por exploração da prostituição pode-se entender uma ampla gama de atividades, incluindo turismo sexual, prostituição forçada, escra-vidão sexual, casamento forçado, etc.59

Tanto o Brasil, que ratificou o protocolo de Palermo em 2004, quan-to a Espanha, que o ratificou em 2002, são países que não penalizam o exercício da prostituição e que têm fortes movimentos para a regulamen-tação do trabalho sexual. A postura regulamentarista é, de certa forma, ba-seada na repressão moral da prostituição, mas tem um aspecto particular em relação à postura abolicionista, pois considera que esta é uma ativida-de inevitável e que, justamente por isso, é necessário aceitá-la e regulá-la para evitar a clandestinidade em que se exerce. Nessa tendência, o Estado controlaria a atividade, impondo uma série de controles de ordem públi-ca, para garantir o exercício dos serviços sexuais nas melhores condições sanitárias possíveis.

Um dos eixos de minha pesquisa é mostrar como, nos discursos dos jornais, o tráfico de pessoas, em especial o tráfico de mulheres para o comércio sexual, aparecem associados à prostituição, fazendo recair so-bre esta atividade uma identificação com o universo do crime e trazendo graves consequências às pessoas inseridas no mercado do sexo, mesmo àquelas que o fazem de maneira forçada. Nos dois periódicos analisados, o tráfico constituiu-se, na última década, como uma questão de polícia, mas com contornos diferenciados. Os textos da Folha de São Paulo eviden-ciam uma preocupação governamental e policial em responder a acordos internacionais de políticas de combate ao crime organizado, enquanto no El País a questão da imigração é que ordena o discurso, embora esse jornal também vincule redes de imigração ilegal ao crime organizado. Nos dois casos, a prostituição aparece identificada ao universo do ilícito e isso, por

59 United Nations, 2008.

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certo, mostra uma tendência de repressão a essa atividade, considerada por alguns um trabalho, por outros uma violência. Essas posições têm graves efeitos na maneira como lidamos com o tráfico de mulheres.

No periódico El País, o problema do tráfico constituiu-se entrela-çando-se às problematizações sobre prostituição e redes de imigração ilegal. Outros estudos já chamaram atenção para esses processos. laura Augustín mostra, em 2005, como o uso de categorias como prostituição, turismo sexual e tráfico de mulheres, tanto por parte dos governos, quan-to por parte de projetos sociais e acadêmicos, apaga a diversidade dessas situações e as motivações de migrantes, especialmente daquelas que vivem do comércio sexual, reproduzindo discursos estigmatizantes e controla-dores.60 Kempadoo referencia, em 2005, pesquisas realizadas por organi-zações não-governamentais contra o tráfico, que mostram que, além da prisão, detenção e deportação, as pessoas traficadas são em geral devol-vidas aos seus países de origem como migrantes sem documentos, e têm que enfrentar a vergonha e a humilhação que acompanha tal status de “de-portadas”, além do medo de represálias dos traficantes ou do estigma de mulher envolvida em atividades sexuais tidas como criminosas.61 Ausserer, em sua dissertação de mestrado defendida em 2007, faz uma análise da lógica discursiva sobre tráfico internacional de seres humanos como uma forma de imigração forçada, mostrando como, no âmbito das relações in-ternacionais, migrantes são moldados como perigo, ao invés de em perigo62. Anderson propõe, em 2007, que ao invés de somente nos preocuparmos em salvar vítimas e prender traficantes, deveríamos nos dedicar a apontar questões de controle da imigração que encorajam racismos e exacerbam nacionalismos, que são, para ela, causas reais de condições desumanas de trabalho e injustiças.63

A análise das fontes permite-me apontar que, aquilo que no final do século XX era problematizado no El País como escravização de mulheres, toma forma de repressão à imigração e ao trabalho sexual nos primeiros anos do século XXI. Em março de 1997, o jornal espanhol publica que a

60 AUGUSTÍN, 2005.61 KEMPAdOO, 2006. 62 AUSSERER, 2007.63 ANdERSON, 2007.

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liberdade de circulação com segurança na União Européia (UE) somente será aceita se vier acompanhada de maior proteção contra o crime orga-nizado, drogas, tráfico de mulheres e crianças e terrorismo. Esta notícia já anuncia uma preocupação de ordem política e econômica, mas vem intercalada a notícias que mostram certa preocupação humanitária com a exploração de imigrantes, como se pode notar nessa notícia publicada em 1997: “ONGs especializadas em tráfico de mulheres denunciam o au-mento de abusos no serviço doméstico na Europa”. Mais precisamente na virada do século, o problema do tráfico desdobrou-se e passou a ser percebido no interior de um jogo de relações internacionais, configurado por crises econômicas que extrapolavam fronteiras políticas. Essas tensas relações foram trazidas à cena nas páginas dos jornais.

Em 1999, El País publica, sem explicação da fonte, que “95% das mulheres que exercem prostituição são imigrantes exploradas por redes ilegais”. Em junho de 2000, outra estatística, também sem fonte, indica que “70% das mulheres que exercem prostituição em Madrid são imi-grantes”, e que a maior parte delas viria da América latina. Em julho de 2000, o jornal divulga que “80% das mulheres que exercem prostituição em Madri são imigrantes da África subsahariana, América latina e leste Europeu”. Em novembro de 2000, desta vez com fonte indicada, o jornal apresenta informe da ONG Médicos do Mundo, baseado em atendimen-tos médicos, segundo a qual 63,2% das profissionais do sexo na Espanha seriam estrangeiras, 69% da África Subsaariana, 20,5% latino-americanas e 8,2% européias. Em setembro de 2002, sem fonte explícita, o El País pu-blica que “mais de 21.000 mulheres exercem a prostituição nos 1404 clu-bes na comunidade de Málaga” e que 70% delas seriam estrangeiras. Em abril de 2007, o jornal publica que uma rede russa “colocou umas 2000 jovens prostitutas russas na Espanha nos últimos 3 anos”. Em julho de 2007, dados da Polícia e Guarda Civil: “umas 6.000 mulheres russas foram exploradas por rede em Almería”. Em dezembro de 2007, sem apresentar a fonte da informação, o jornal aponta que “85% das prostitutas que exer-cem sua ‘profissão’ na Espanha o fazem forçadas pelas máfias” e que mais de meio milhão de mulheres e meninas seriam vítimas desse fenômeno.

Um amontoado de cifras, números, estatísticas, apresentados de modo descuidado e que algumas vezes contradizem-se, somados a uma multiplicação de discursos no El País que tomaram o tráfico de mulheres

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como objeto, fizeram do tráfico um motivo de alarme e anexaram-no à questão migratória. Notei que o jornal centraliza a questão no fato de essas mulheres serem estrangeiras e não no problema da exploração. Em 2000, o El País anuncia que “70% das mulheres que exercem prostituição em Madrid são imigrantes”. O texto que acompanha diz que a prostitui-ção está relacionada “à pobreza, à desigualdade, à dependência de drogas, à imigração, aos abusos sexuais na infância e aos maus tratos”, e que é um “fenômeno que passou do localismo à internacionalização, pois se criaram redes mundiais de tráfico de mulheres e um mercado de grandes benefícios para os exploradores”, traçando uma rede de causalidade para o problema. Um olhar mais atento poderia, talvez, inverter a direção dessa análise. Poderíamos aventar que a pobreza, a desigualdade, a imigração é que teriam sido motivadas pelas redes mundiais de comércio, pelo merca-do internacionalizado, globalizado, como se costuma dizer. Essa questão exige uma reflexão sobre as políticas de contenção de imigração e seus efeitos na vulnerabilização das pessoas em práticas de tráfico.

Muitos números são arrolados no discurso da imprensa para mostrar o dinheiro em jogo no negócio das redes migratórias e exploração sexual. Em dezembro de 2002, em notícia do El País cujo mote é o tráfico de mulheres, lemos que a União Européia “gastará 934 milhões nos países de origem para frear a imigração”. No início de 2003, o Instituto da Mulher informou que a venda de sexo move na Espanha mais de 72 milhões de euros. Em outubro de 2003, um informe da Comissão para a Investigação de Maus Tratos a Mulheres afirmou que clubes de prostituição são um ne-gócio que rende 12 milhões na Espanha anualmente. Em março de 2007, a ONU informa que o tráfico sexual move mais milhões que a venda de armas ou drogas. dias depois, lemos novamente que o tráfico de mulheres é o segundo negócio ilícito mais lucrativo do mundo, acima da venda de armas e drogas, repetição que mostra a importância dada à questão. Em abril de 2007, o El País publica que uma agência que aliciava mulheres russas enviava 650.000 euros anualmente para Rússia e estava sendo inves-tigada por lavagem de dinheiro (envio ilegal de dinheiro para o exterior). Em julho de 2007, lemos em informe policial que, durante os últimos três anos, 1 milhão de euros teria sido enviado para a Rússia. Embora haja uma intenção de precisão, não encontrei nenhuma explicação expressa de como esses dados são obtidos, mas poderia arriscar que são derivados

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de investigações policiais sobre movimentação financeira irregular, e não sobre exploração de pessoas. Seguindo as condições de surgimento e de funcionamento dos discursos sobre o tráfico de mulheres para exploração sexual, procurando a maneira como se formaram, podemos notar discur-sos cuidadosamente inscritos em exigências de controle de fronteiras. É notável nessa repetição de números que se referem à movimentação finan-ceira uma preocupação de ordem econômica. Esses apontamentos trazem importantes implicações aos métodos de combate ao tráfico.

Em julho de 2001, o El País publica a primeira notícia no período analisado sobre desarticulação de organização de tráfico de mulheres. As-sim começa o texto:

A Brigada de Extrangería desarticulou uma organização dedicada ao trá-fico de mulheres procedentes do Leste Europeu e da América Latina para prostituição, como informou a Direção Geral da Polícia. Foram presas 69 pessoas [...] A operação começou no ano passado, durante o período de regularização de imigrantes, quando os investigadores detectaram irregula-ridades nas solicitações de várias estrangeiras. Começaram uma análise de sua documentação e das empresas que lhes apresentaram supostas ofertas de trabalho.

Percebe-se nas dobras do discurso que o do tráfico de mulheres constituiu-se na Espanha como foco de atenção justamente no momento de grande preocupação com a imigração. A legislação espanhola tipificou o tráfico de pessoas na lei 8-2000, a Ley de Extranjería, no artigo 318 bis, que castiga aqueles que promovem, favoreçam ou facilitem o tráfico ilegal de pesso-as, em trânsito ou com destino à Espanha.64 MÉNdEZ argumenta que, mesmo com as muitas especificações dessa lei, o conceito de tráfico ilegal de pessoas não foi suficientemente definido.65 Em agosto de 2001, o El País anota que a “crescente onda migratória para Espanha fez florescer os negócios de organizações criminosas que se aproveitam da difícil situ-ação dos estrangeiros irregulares” e que “este panorama levou à criação de Unidades contra Redes de Imigração e Falsidade documental (Ucrif),

64 Artículo 318 bis. 1. los que promuevan, favorezcan o faciliten el tráfico ilegal de personas desde, en tránsito o con destino a España serán castigados con las penas de prisión de seis meses a tres años y multa de seis a doce meses. [sic]65 MÉNdEZ, 2002.

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dependentes da direção Geral de Polícia. É muito enfática a preocupação com a imigração ilegal, que traz consigo redes de falsificação de docu-mentos e movimentação financeira irregular. É interessante notar que o El País veiculou essa notícia em torno da criação de uma unidade contra “redes de imigração” e não sobre algum organismo encarregado de dimi-nuir a exploração de imigrantes. Isso mostra sentidos dados ao tráfico que circulam naquela sociedade. Não está colocada neste último texto citado, embora esteja de maneira controversa em outros textos publicados poste-riormente, uma preocupação clara com a situação das vítimas, fato que me permite sugerir que a população espanhola talvez percebesse a exploração de estrangeiros como um problema de menor importância se comparado ao problema das ondas migratórias naquela época. Em outubro de 2001, uma notícia intitulada “A polícia detém 26 pessoas acusadas de prostituir mulheres imigrantes” é seguida do texto: “[...] Junto a essas 26 pesso-as, foram detidas [grifo meu] 37 mulheres às quais se aplicará a ley de Extrangería e serão, portanto, enviadas aos seus países de origem.” Essa maneira de se referir às vítimas como “detidas”, utilizando o mesmo vo-cabulário aplicado aos responsáveis pelo crime de tráfico, faz recair sobre essas mulheres o mesmo estigma que recai sobre aqueles que infringem a lei. A Ley de Extrangería considera imigrantes em situação irregular como inexistentes juridicamente e prevê que sejam expulsos. Nesse ponto de intersecção entre a discursividade que coloca o imigrante sob o registro do indesejável e a discursividade que coloca as mulheres envolvidas em redes de prostituição no registro da transgressão é possível encontrar finos me-canismos de coerção moral e repulsa a imigrantes. Esse tipo de abordagem multiplica-se nos textos em análise.

Algumas vezes, certa consideração com a situação das vítimas apa-rece, ainda que de forma contraditória. Em outubro de 2001, o jornal espanhol explica que:

se as mulheres formalizam uma denúncia de seus exploradores e não de-sejam voltar a seu país de origem, podem recorrer ao artigo 59 da Ley de Extrangería e evitar sua expulsão: ‘o estrangeiro sem documentação ou documentação irregular e vítima de exploração em prostituição poderá se isentar de responsabilidade administrativa e não será expulso se denunciar os autores ou cooperadores do tráfico’.66

66 O jornal está se referindo ao Articulo 59: “Colaboracion contra redes organizadas. 1. El

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Aproximadamente um ano depois, em setembro de 2002, ano em que a Espanha ratifica o protocolo de Palermo, o El País cita Belén Go-méz-Menor, da Interpol (Polícia Européia) da Espanha: “com frequência, as vítimas não se atrevem a denunciar porque estão em situação irregular, porque as máfias retém sua documentação ou porque temem represálias contra elas ou contra suas famílias nos países de origem.” Parece que, já naquela data, sabia-se da insuficiência de tal proposição legislativa. Apesar de a concessão de documentação ter sido condicionada por um decre-to adicional à ley de Extrangería,67 esta prevê, no artigo 94, que tal do-cumentação poderá ser revogada se o titular, durante o tempo que dure o procedimento em que é vítima, prejudicando o testemunho, cessa sua colaboração com as autoridades policiais ou judiciais. Ora, supostamente incentiva-se a denúncia, pois se pode obter a regularização da documen-tação ao fazê-la, mas parece que não se está pensando no alcance que tal medida pode ter na prática para proteger os direitos das imigrantes sub-metidas a tais abusos.

A preocupação em refrear as redes ilegais de imigração, entendidas como uma modalidade muito lucrativa do crime organizado é evidenciada, repetidamente, ao passo que as vítimas são, por vezes, também tratadas como infratoras. Em dezembro de 2002, o jornal espanhol publica elabo-rada reportagem, com cifras, gráfico e foto, articulando redes de imigra-ção ilegal, prostituição, proxenetismo, tráfico de mulheres e exploração de menores. Assim intitulou-se a reportagem: “detidas 164 pessoas em uma operação contra imigração ilegal e proxenetismo em Madri”. Foi uma matéria publicada somente em meio digital, e o sítio relacionou-a com as

extranjero que haya cruzado la frontera española fuera de los pasos establecidos al efecto o no haya cumplido con su obligación de declarar la entrada y se encuentre irregularmente en España o traba-jando sin permiso, sin documentación o documentación irregular, por haber sido víctima, perjudicado o testigo de un acto de tráfico ilícito de seres humanos, inmigración ilegal, o de tráfico ilícito de mano de obra o de explotación en la prostitución abusando de su situación de necesidad, podrá quedar exento de responsabilidad administrativa y no será expulsado si denuncia a las autoridades competentes a los autores o cooperadores de dicho tráfico, o coopera y colabora con los funcionarios policiales competentes en materia de extranjería, proporcionando datos esenciales o testificando, en su caso, en el proceso correspondiente contra aquellos autores.”67 Real decreto 864-2001, de 20 de julho, em que se aprova a lei de Execução da ley de Extrangería 4-2000, reformada pela ley de Extrangería 8-2000, de 22 de dezem-bro.

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seguintes notícias: “defesa inclui imigração ilegal massiva entre as amea-ças para a segurança nacional”, “A União Europeia gastará 934 milhões nos países de origem para frear imigração”, “detidos 77 imigrantes com documentação irregular na Andaluzia e Canárias”, “Gráfico das correntes de imigração na União Europeia” e uma foto que mostra um amontoado de pessoas com feições diferentes daquelas que identificamos como “eu-ropéias”, chamada de “As portas da Europa”.

A discussão sobre o tráfico de pessoas muitas vezes, em nosso tem-po, se articula, se confunde, se mistura às discussões sobre imigração ile-gal, imigrantes irregulares, tráfico de drogas, falsificação de documentos, movimentação financeira ilegal, etc., anexando o tráfico a redes de imi-gração clandestina. E o tráfico internacional de mulheres para comércio sexual, em especial, entendido como migração forçada, provoca grande alvoroço e pânicos morais. Poderia dizer que a legislação que se ocupa desses processos responde a certos interesses, normalmente aos interesses dos Estados que recebem imigrantes, além de interesses humanitários. A intensa atenção dada à imigração que marca nosso tempo parece ser a con-dição histórica desse novo campo de visibilidade em que se constituíram definições do tráfico de pessoas. Imigração irregular e tráfico de pessoas são discursos que historicamente vieram de par, e parece que isso tem-se evidenciado recentemente também no discurso midiático. Essa consta-tação não é de fato muito nova; outros estudos já mostraram como esse discurso articula-se, mas o que estou tentando mostrar aqui é como essa discursividade propagou-se através da imprensa, percebendo como parte da população está pensando o tráfico de mulheres para sugerir estratégias eficazes de elaboração de políticas preventivas e de combate.

No Brasil, a discussão sobre o tráfico internacional de mulheres para exploração sexual adquiriu contornos diferenciados do contexto espa-nhol. Submeti à análise 174 notícias publicadas na Folha de S. Paulo cujo mote era o tráfico de mulheres, e notei que 78 delas, mais da metade, tratava principalmente, quando não exclusivamente, de operações policiais relacionadas ao tráfico. Esse dado, somado à análise da totalidade das pu-blicações sobre tráfico na Folha, aponta que o assunto é problematizado nesse jornal, de modo geral, como uma questão de polícia. A quantidade de notícias publicizando o difícil trabalho policial de tentar desfazer as re-des de tráfico no Brasil vai aumentando, de maneira quase proporcional, à

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medida que outras notícias sobre acordos internacionais e pesquisas sobre o tráfico aumentam. Isso poderia ser entendido como uma resposta das polícias às cobranças tanto do governo brasileiro, quanto da sociedade por um combate à exploração de mulheres. Após a Convenção de Palermo, em 2000, aparecem noticiados vários outros acordos e relatórios inter-nacionais sobre o tráfico de pessoas mostrando a constituição do tráfico como um problema. A PESTRAF, primeiro relatório de âmbito nacional dedicado a mapear as rotas do tráfico no Brasil, desempenhou importante papel nessa disputa de saberes. É justamente na data de sua publicação em Brasília, julho de 2003, que o trabalho policial passa a ser noticiado nas páginas do jornal com bastante regularidade e enfatizando operações de desmantelamento de rotas do tráfico. Em dezembro de 2004, um delega-do diz à Folha: “A prisão do grupo representa o desfecho da organização criminosa, consagrando nosso compromisso de reprimir o ilícito tráfico de mulheres”.

Se o tráfico internacional de mulheres é tratado como uma questão de polícia, os discursos são organizados também em razão de uma dis-cussão sobre crime organizado, tanto na Folha, quanto no El País. Em agosto de 2003, a Folha de São Paulo anuncia, já no título de uma notícia, a descrição de atividades relacionadas ao crime organizado: “acusados de falsificação de passaportes, contrabando e lavagem de dinheiro”, acom-panhada de texto que narra a investigação de um possível envolvimento do grupo com tráfico de mulheres e crianças para o exterior. Estou en-tendendo que o que parece ser uma preocupação humanitária, aparece no discurso midiático também como uma preocupação com segurança e controle de fronteiras nacionais. Em fevereiro de 2004, ainda na Folha, uma relação semelhante: preso “um mafioso acusado de crimes de lava-gem de dinheiro, tráfico de drogas, tráfico de mulheres e homicídio”; e, em abril de 2006, “governos não têm como combater pirataria e tráfico, negócios em expansão”. Em dezembro do mesmo ano, a Folha mencio-na máfia italiana que traficaria mulheres, grupo que estaria envolvido em crimes de lavagem de dinheiro, tráfico interno e internacional de pessoas, formação de quadrilha, manutenção de casa de prostituição e crime contra o sistema financeiro, isso tudo na mesma notícia. Ainda em dezembro de 2006, lemos sobre a prisão de italianos por tráfico de mulheres e por la-vagem de dinheiro. Em janeiro de 2007, a Folha publica uma notícia sobre

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a extradição de 15 pessoas procuradas pela justiça americana, líderes de organizações criminosas do tráfico de drogas, acusados de narcotráfico, assassinato, tráfico de mulheres para exploração sexual e abusos contra menores. Em fevereiro de 2007, ainda na Folha: “Espanha prende casal suspeito de traficar brasileiras” e termina a notícia dizendo que “a polícia espanhola deteve ainda um homem e duas mulheres, também brasileiros, que estavam em situação irregular no país”. Apesar do título, o texto não fala de tráfico de pessoas, o que exige uma reflexão sobre o fato de o tráfi-co de mulheres estar sendo usado como recurso de sedução midiática. Em agosto de 2007, a Folha noticia a prisão da chamada “baronesa do sexo”, “apontada como uma das maiores cafetinas do país [...] acusada de extor-são, favorecimento da prostituição, manutenção de casa de prostituição e tráfico de mulheres”.

O que quero dizer com essa extensa citação de crimes relacionados ao tráfico de pessoas na Folha de São Paulo é que, assim como o El País dá sentido ao tráfico associando-o a redes de imigração ilegal que trazem consigo falsificação documental e movimentação financeira irregular, o discurso midiático brasileiro também articulou-se veiculando estreita rela-ção entre tráfico de pessoas e de drogas, lavagem de dinheiro e prostitui-ção. É certo que há relações entre essas atividades, mas o que é interessante notar é que em meados da década de 1990, o tráfico de mulheres aparecia no jornal brasileiro de maneira isolada, pouco noticiado e desassociado de outras atividades, e isso vai mudando no decorrer do período, produzindo implicações práticas na maneira como percebemos o fenômeno. Bem no final do século XX, o tráfico começa a ser percebido no interior de uma rede de crimes relacionados, mostrando como se produziram sentidos so-bre o tráfico e a maneira como esses sentidos foram disseminados através da imprensa. O que quero mostrar é que, algumas vezes, essa articulação é feita de maneira descuidada e provoca ofuscações daquilo que queremos combater, como se pode notar na seguinte notícia da Folha: “Polícia pren-de suspeito de tráfico de drogas e de mulheres”, publicado em outubro de 2005. O texto que acompanha narra assim: “A polícia afirma que as mulheres eram aliciadas e usadas para transportar drogas e, depois, levadas para casas de prostituição. ‘Estamos procurando essas mulheres para saber como funcionava o esquema’” [grifos meus]. Por meio da análise da dinamicidade do discurso midiático, podemos perceber como se manifestam as tensões

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e conflitos na maneira como entendemos as pessoas envolvidas no tráfico. As mulheres são tratadas, nesse texto jornalístico, ao mesmo tempo como vítimas, pois são supostamente traficadas, mas também como envolvidas em atividades ilícitas, tornando embaraçosa a conclusão do leitor. E, ainda, o que se sobressai no texto não é uma preocupação com as vítimas, mas a sua possível “utilidade” em operações de combate ao crime organizado.

Em 1999, a Folha noticia operação policial contra prostituição de adolescentes e um suposto esquema de tráfico colocando que “a Polícia Civil deteve também a adolescente H.C.R.F., 16, que admitiu a prática, e foi levada para um abrigo” [grifos meus]. Esse tipo de discurso confuso, em que a vítima é detida, a vítima confessa, a vítima foi levada para alguma instituição de recuperação, não é incomum nas páginas dos jornais que analisei. Em maio de 2001, ainda na Folha, uma notícia intitulada “Pelo menos cem brasileiras já foram levadas do estado de Goiás para atuar em casas noturnas na Espanha” começa assim:

A Polícia Federal e a Procuradoria Geral da República em Goiânia iden-tificaram um esquema de tráfico de mulheres para prostituição que envolve cem clubes noturnos distribuídos por nove cidades do estado. O destino das mulheres é a Espanha _ pelo menos cem goianas já foram localizadas em boates espanholas. O esquema de Goiânia é apenas a amostra de um problema que cada vez mais desafia a Interpol (polícia internacional). Segundo dados da própria polícia, o esquema de envios de mulheres para prostituição já é a terceira maior fonte de renda do crime organizado, atrás do comércio ilegal de armas e de drogas. [...] O Brasil ocupa uma fatia considerável desse mercado. Cerca de 75 mil mulheres se prostituem atualmente nos países da União Européia”.

Ao final, a notícia informa que as “garotas” declararam não saber que teriam que se prostituir, mas o texto se desenvolve de tal maneira que parece que as mulheres das quais se está falando estão cometendo crimes, parece que fazem parte do esquema, que participam do lucro do crime organizado, que prostituição em si é prática criminosa. Mas a prostituição não é, nem atualmente, nem naquela época, penalizada no Brasil, nem na Espanha. Apesar disso, a declaração de que “não sabiam que iriam se prostituir”, colocada naquela configuração, parece mais um pedido de des-culpas que um pedido de socorro, mostrando que há em nossa sociedade certa tendência de culpabilizar as pessoas envolvidas em comércio sexual.

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Em fevereiro de 2004, a Folha informa a prisão de um “chefe de qua-drilha que agenciava mulheres para trabalhar em boates de Portugal”. Esta notícia termina assim: “Na Espanha, 13 brasileiras respondem a processo de expulsão após uma ação policial que desarticulou, nesta semana, uma rede de exploração sexual no norte do país”. Ora, afinal, supõe-se ao ler o texto, bastante sucinto e sem maiores explicações, que quem está sendo “expulsa” é criminosa. Em julho de 2004, em notícia cujo mote é o tráfi-co de mulheres, o título “Polícia fecha casa de prostituição no Rio” vem acompanhado do texto: “foram encontrados cinco clientes e cerca de 20 prostitutas [...] as investigações apontam a casa como ‘ponto de passagem’ de mulheres que são arregimentadas e enviadas ao exterior para se prosti-tuírem.” O crime configurado aí é o de exploração da prostituição, penali-zado pelo nosso Código Penal. No entanto, a redação do texto sugere que a prostituição em si é uma prática mal vista na nossa sociedade, pois fala de “prostitutas”, “enviadas ao exterior para se prostituírem”, evocando uma idéia de transgressão. Em agosto de 2004, sobre um caso de tráfico internacional: “as mulheres, consideradas vítimas do crime, foram liberadas [grifo meu] depois de dar seus depoimentos à polícia”. Se fosse tão claro que elas eram consideradas vítimas, talvez não fosse preciso dizê-lo com tanta ênfase. E, ainda, só foram “liberadas” depois daquilo que parece ter sido uma obrigação de depor à polícia. Em outubro de 2004, em notícia sobre “envio de mulheres para o exterior”, a seguinte explicação: “as víti-mas – de 20 e 29 anos – teriam confessado [grifo meu] que pretendiam viajar para trabalharem em uma casa de prostituição.” Vítimas que confessam... Afinal, sobre quem recai o tom acusativo? Esse tipo de notícia não é iso-lado, bem ao contrário, se multiplica nas páginas dos jornais. Em abril de 2005, a Folha explica a Operação Castanhola, um acordo entre Portugal e Espanha: “as autoridades estrangeiras estão realizando ações para encon-trar mulheres brasileiras exploradas, que deverão ser deportadas [grifo meu] para o Brasil”. É conhecido o status que acompanha as pessoas que são “deportadas”, que empresta um caráter desqualificador, ainda que se saiba que é um termo autorizado do vocabulário jurídico. Em dezembro de 2005, noticiando uma investigação da Polícia Federal sobre tráfico de mu-lheres para Espanha, o jornal relata que “algumas delas acabaram confessan-do [grifo meu] que trabalhariam como prostitutas e confirmaram a existên-cia do esquema”. Bem depois da modificação do Código Penal Brasileiro,

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que passou a tratar, em 2005, de “tráfico de pessoas” ao invés de “tráfico de mulheres”, a mídia continuou veiculando enfaticamente notícias sobre tráfico de mulheres, ao passo que as outras modalidades de tráfico apare-cem raramente no discurso midiático. Em setembro de 2006: “operações contra tráfico de mulheres prendem 8 no Brasil e 13 na Espanha”, seguida do texto “todos os presos na Espanha – 12 homens e uma mulher – são brasileiros. Outras 8 mulheres brasileiras que trabalhavam como prosti-tutas foram detidas e devem ser deportadas [grifo meu]” No mesmo dia, outra notícia, disponibilizada em meio digital, acrescentando dados: “16 prostitutas serão deportadas”. Apresenta-se aí duplo estigma: prostituta e deportada. E dias depois, sobre uma “operação contra uma rede de trá-fico de mulheres”, a polícia espanhola informa à Folha que “entre os 16 detidos estão também nove mulheres que não possuem o documento de residência na Espanha e que foram encontradas no mesmo bordel em Bilbao”. O sítio Folha Online relaciona essa notícia às seguintes: “Operação res-gata brasileiras de tráfico sexual (08 maio, 2006)”, “Bordel alemão espera dobrar público na Copa (15 maio, 2006)”, “deputadas européias cobram combate à prostituição na Copa (09 junho, 2006)”, “UE critica Fifa por falta de ação contra prostituição (21 junho, 2006)”, “Espanha prende 17 brasileiras por prostituição (13 junho, 2006)”, “Britânicos resgatam brasileiras vítimas de tráfico sexual (22 junho, 2006)” [todos os grifos são meus]. Colocadas ora sob o registro da culpa, pois são detidas, presas, deportadas, confessam, e ora sob o registro da fragilidade, pois são resgatadas, essas mulheres das quais estamos falando embaraçam nossa reflexão. Essa maneira de conceber as mulheres, alternando atributos próprios de quem tem culpa e atributos de quem é débil anatômica e moralmente, vem de longa data, tem historicidade. É certo que quando o jornal fala de detenção, prisão, resgate, confissão, está se referindo ao vocabulário policial autorizado, e é necessário perceber o foco de onde tais discursos são emitidos. Ainda assim, esses enunciados veiculados na imprensa reproduzem e reforçam certa maneira de conceber as mulheres envolvidas no tráfico ora como vítimas, ora como infratoras. E o tom acusatório, em particular, faz com que o discurso seja, por vezes, cúmplice daquilo que denuncia, afinal, o que queremos é ajudar essas mulheres.

A última notícia do período analisado, publicada no final de 2007, na Folha, mostra no título um sintoma da tendência de culpabilizar as pessoas

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envolvidas em prostituição: “das 21 casas noturnas de São Paulo que se-riam vistoriadas em operação antiprostituição, 10 não estavam funcionando” [grifo meu]. Por certo que o que a polícia estava investigando eram casos de exploração da prostituição, esta, sim, atividade penalizada no Brasil, e não a prostituição em si. No entanto, o sugestivo título, que coloca em dis-curso operação “antiprostituição” e não “antitráfico”, é sintomático de um processo de identificação da prostituição ao que é próprio do ilícito e que pode ser lido com regularidade nas páginas do principal jornal deste país. Isso é, por certo, uma amostra de como uma parcela da população esteve pensando a questão na última década: constituiu-se nas páginas do jornal brasileiro em análise uma identificação entre prostituição e criminalidade, e uma associação entre prostituição, tráfico de mulheres e outras modali-dades de crime organizado, ao passo que no jornal espanhol a discussão do tráfico se fez em torno da preocupação com a imigração. Nos falta, portanto, distinguir as implicações práticas de tal articulação discursiva.

O que pretendo nessa pesquisa é uma investigação histórica de como se constituiu na imprensa um discurso sobre o tráfico internacional de mulheres para exploração sexual. O discurso midiático tenta seduzir ou induzir os leitores sobre um ponto de vista, elabora representações que possam convencer as pessoas de que determinada informação é impor-tante, mas, ao mesmo tempo, de maneira circular, também reproduz re-presentações correntes na sociedade para atingir o leitor. Não podemos esquecer que o jornal é, acima de tudo, um produto, é vendido como mer-cadoria. Ao mesmo tempo que o texto jornalístico se apropria de valores e representações do público alvo para vender sua produção, utiliza valores simbólicos para nos convencer da importância de determinada informa-ção, apropriando-se estrategicamente de valores culturais constituídos nas relações sociais para induzir à leitura. Portanto, nossos valores estão tradu-zidos lá: se culpabilizamos ou se vitimizamos essas mulheres, isso aparece no texto midiático. Essa constatação faz do discurso jornalístico um lugar estratégico para pensar políticas de enfrentamento ao tráfico de pessoas.

Parece que não há como discutir o tráfico de mulheres para explo-ração sexual driblando a discussão sobre a prostituição. Não há consenso, mesmo no pensamento feminista, sobre o significado concedido à pros-tituição. Essa atividade opera como uma das questões centrais no âmbito do debate feminista: há a percepção de que a prostituição seja caso extre-

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mo do exercício abusivo do sexo, sendo a “prostituta” vista como ineren-temente vítima de violência; há posições que vêem a “prostituta” como símbolo de autonomia sexual das mulheres, e, portanto, ameaça potencial ao controle patriarcal sobre a sexualidade das mulheres. Outras pensam o sexo como um terreno de disputa, não como um campo fixo de posi-ções de gênero e poder, ainda que reconheçam a existência de uma ordem sexista. Nessa perspectiva, a posição da prostituta não pode ser reduzida à de objeto passivo utilizado na prática sexual masculina, mas como um espaço de agência no qual se faz um uso ativo da ordem sexual existente. Nas últimas décadas é possível detectar novos olhares sobre os serviços oferecidos pelo mercado do sexo e perceber realidades infinitamente va-riadas.68 Quando se refere ao tráfico, variados modos de conceber a pros-tituição podem ser percebidos na trama jornalística. lemos, publicada na Folha em julho de 2000, a citação de um deputado italiano, em notícia cujo mote é tráfico de mulheres, como todas as outras citadas nesta pesquisa: “o cliente que aceita as regras do mercado da prostituição compactua com ele e deve ser severamente punido.” Não se trata de caso brasileiro, nem do caso espanhol, mas o fato da notícia ter sido publicada no Brasil mos-tra como essa questão ganha discursividade. Em fevereiro de 2006, uma notícia que poderia ser lida quase em tom de piada: “de olho nos euros, prostitutas vão à Copa. Brasileiras querem aproveitar os 3 milhões de tu-ristas na Alemanha; aliciadores buscam garotas na porta das escolas.” En-quanto a Folha reporta, através da fala do deputado italiano, uma inscrição das pessoas envolvidas em comércio sexual na ordem da transgressão, no texto da seção esportiva elas são tratadas como oportunistas. Em março de 2006, lemos: “UE propõe visto a latino-americanos na Copa para evitar prostituição”. Não se fala de prostituição “forçada” ou de tráfico, mas de prostituição simplesmente, mostrando que essa atividade é indesejável e mal vista. A versão impressa dessa notícia teve o título modificado: “Eu-ropa propõe visto contra prostituição e irrita Brasil. Projeto para coibir tráfico de mulheres pode ser usado no mundial.” O texto explica que o in-tuito de tal medida era evitar o aumento da prostituição durante o evento, e que as autoridades brasileiras que buscam coibir o incremento do tráfico de mulheres por causa do Mundial não gostaram da proposta da União

68 PISCITEllI, Adriana. Gênero no mercado do Sexo. Cadernos Pagu. N.25. Campinas jul/dez 2005. p. 13-15.

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Europeia, pois isso criaria mais incidentes diplomáticos que soluções para o problema. Em maio de 2006, a notícia “britânicos resgatam 19 em ação contra tráfico de mulheres” cita a fala do superintendente da polícia da Inglaterra: “Também devemos enviar uma mensagem aos homens que utilizam esse tipo de bordéis ou prostíbulos, para que deixem de fazê-lo. Esse tipo de atividade gera mais ilegalidade”. Em junho de 2006, no dia em que começou a Copa do Mundo na Alemanha, a Folha publica que “o Vaticano fez um alerta contra ‘a indústria do sexo’ montada em torno do campeonato e afirmou que seria preciso dar ‘cartão vermelho’ à atividade [... pois] a prostituição viola a dignidade da pessoa, rebaixa a ‘objeto e ins-trumento de prazer sexual [... e] muitas prostitutas são obrigadas a exercer a atividade contra sua vontade. [... O porta-voz do Vaticano] exigiu que as mulheres sejam protegidas”. Ainda em junho de 2006, uma crônica so-bre terrorismo associa tráfico de mulheres e controle de passaportes. No mesmo mês, lemos a notícia “Reino Unido cria Polícia especial antitráfico de mulheres”, que fala de um apelo da polícia britânica aos homens que costumam utilizar serviços de prostitutas pedindo que denunciem eventu-ais maus-tratos ou escravidão. Embora aquilo que se sobressai nos jornais em análise sejam posições de aversão ao trabalho sexual, há umas poucas vozes dissonantes que reconhecem o problema nas condições em que se exerce a prostituição e não no exercício da prostituição em si.

Em meados da década de 1990, Rhadika Coomarswamy, Relatora Especial da ONU sobre a violência contra as mulheres, encomendou um projeto de pesquisa mundial sobre violência e recebeu a sugestão de certa perspectiva feminista transnacional de que a ONU distinguisse conceitual-mente “tráfico de mulheres” e “prostituição”. de acordo com tal propos-ta, a Relatora Especial da ONU definiu a prostituição como uma forma legítima de trabalho, e o comércio global do sexo foi definido como um lugar, mas não o único, em que ocorre o tráfico de seres humanos. Então, em 1996, o tráfico passou a ser entendido, no âmbito das Nações Unidas, não como escravização de mulheres, mas como comércio e exploração do trabalho em condições de coação e força.69 Segundo Kamala Kempadoo, tal proposta foi formulada por uma perspectiva feminista que a autora

69 KEMPAdOO, Kamala. Mudando o debate sobre o tráfico de mulheres (Shifting the debate on the traffic of women). Cadernos Pagu. N.25. Campinas jul/dez 2005. p. 4-5. In: www.scielo.br Acessado em setembro de 2006.

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chama de “transnacional” ou do “terceiro mundo”, que toma o tráfico de mulheres como discurso e como prática que emergem das interseções de relações de poder estatais, capitalistas, patriarcais e racializadas com a ope-ração da atuação e desejos das mulheres de darem forma às suas próprias vidas e estratégias de sobrevivência. Nessa perspectiva, o racismo, o im-perialismo, as desigualdades sociais, além do patriarcado (que não é toma-do como necessariamente a principal causa das relações de dominação), configuram a vida dessas mulheres, que são concebidas como sujeitos atu-antes, auto-determinados, capazes de negociar, concordar ou opor-se e transformar relações de poder. A atuação e atividade feminina poderiam apresentar-se de diferentes formas dependendo das condições, histórias e contextos culturais específicos. desse modo, ao invés de definir a pró-pria prostituição como uma violência inerente contra as mulheres, são as condições de vida e de trabalho em que as mulheres podem encontrar no trabalho do sexo, e a violência e o terror que cercam este trabalho num setor informal e subterrâneo que são tidos como violadores dos direitos das mulheres e, portanto, considerados como “tráfico”.70 Essa proposta, por certo, teve efeitos na elaboração do Protocolo de Palermo.

de acordo com a redação do protocolo, o “consentimento” é ponto estratégico na configuração de um caso de tráfico, pois o texto deixa aberta a possibilidade de uma interpretação ampla da existência do consentimen-to forçado. Castilho explica que a redação do protocolo é ambígua no que diz respeito ao consentimento para tentar atender a tendências opostas de descriminalização total da prostituição com reconhecimento do trabalho sexual e de criminalização dos clientes e dos proxenetas visando erradicar a prostituição.71

O governo brasileiro ratificou o Protocolo de Palermo em março de 2004. Adriana Piscitelli explica que o Código Penal Brasileiro não é coincidente com o Protocolo no que se refere ao tráfico internacional de pessoas. Este último, diz ela, não reduz o tráfico de pessoas à exploração sexual, mas considera vítimas de tráfico pessoas desempenhando qual-quer atividade em situação de servidão, ou análoga à escravatura, além

70 Idem Ibidem. p. 3-4.71 CASTIlHO, Ela Wiecko V. de. Tráfico de pessoas: da Convenção de Genebra ao Protocolo de Palermo. In: Política Nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas. Brasília: Ministério da Justiça, 2007. p. 14.

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daquelas submetidas à remoção de órgãos. No Código Penal (Cap. V, Art. 231, incisos I, II e III, modificado pela lei nº 11.106, de 28 de março de 2005) é considerado tráfico internacional de pessoas promover ou facilitar a entrada no território nacional de alguém que nele venha exercer a pros-tituição, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro. Segundo Piscitelli, o emprego de violência, grave ameaça ou fraude e fins de lucro, aspectos centrais na conceitualização de tráfico do Protocolo de Palermo, são contemplados com penas adicionais pelo Código Penal, mas não são os aspectos que definem o tráfico internacional de pessoas.72 Essa autora insiste que as discrepâncias entre o Protocolo e o Código têm conseqü-ências. Para essa antropóloga, as brasileiras que migram para inserir-se na indústria do sexo, como outros migrantes, acionam redes sociais (não necessariamente a grupos criminosos organizados, mas todo tipo de redes informais) para sair do país e inserir-se em outro, alertando que essas “aju-das”, lidas como facilitação podem, de acordo com o Código Penal, ser consideradas tráfico.

Não é minha intenção problematizar a legislação nesta pesquisa, mas mostrar, por meio da análise do discurso de mídia, como parte da popula-ção pesnou o tráfico na última década. As questões do consentimento e do aliciamento tomaram bastante espaço na Folha de S. Paulo quando se trata-va de tráfico internacional de mulheres para fins de exploração sexual. Em outubro de 1998, a Folha noticiou as queixas de uma mulher que diz que sua filha estaria sendo mantida em cárcere privado, obrigada a drogar-se e a prostituir-se na Espanha. Um dia depois, um informe sobre um esquema que “agenciava” mulheres para se prostituir no exterior e uma denúncia de que uma outra mulher teria recebido estranha proposta de emprego de garçonete na Espanha. No mesmo dia, uma outra notícia diz que “polícia israelense prendeu pessoas acusadas de integrar rede de prostituição inter-nacional que atrai [grifo meu] mulheres do Brasil para trabalhar em boa-tes” e que elas teriam sido “resgatadas de um prostíbulo”. E em 1999, em março: “PF prende acusados de agenciar prostitutas” [grifo meu]. A Folha de São Paulo noticiou nesta época, embora de forma isolada, casos de extrema violência no universo do comércio de sexo. Um deles foi o caso de uma adolescente paraguaia que foi, conforme publicação em outubro de 1999, “leiloada” no Brasil. Mas, a partir do final do século, gradualmente, a idéia

72 PISCITEllI, 2008.

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de “redes de prostituição” e “agenciamento” vai se delineando no texto jornalístico. Em 2000, a idéia de “agenciamento” começa a ganhar força discursiva. Em março, a Folha fala em aliciamento de mulheres para pros-tituição na Espanha. Segundo a notícia, essas mulheres teriam dito à polí-cia que tinham “acertado proposta” para trabalhar como garçonetes. Em julho de 2000, a idéia de aliciamento/agenciamento continua num caso de Goiânia para a Espanha. Segundo a fala do delegado: “as mulheres vão pensando que vão ficar ricas, ganhar em dólar [...] cerca de 90% das garo-tas que vão para lá sabem que é pra trabalhar como prostitutas [grifo meu]. Mas chegando lá, tomam seus documentos até que elas paguem suas dívidas [...] há casos de mulheres que [...] ficam praticamente como escravas”. Essa notícia está dentro de uma grande reportagem, subdividida em diferentes histórias, mas que podem ser comparadas e relacionadas. Um dos casos é o de uma mulher jovem que morreu na Espanha, cuja mãe disse à Folha: “ela ligava pra dizer que estava sendo obrigada a se prostituir” [grifo meu]. Aparecem algumas narrativas sobre pessoas obrigadas a se prostituir, mas a idéia de que muitas conhecem o trabalho que as espera começa a se so-bressair no discurso midiático. Em maio de 2001, novamente sobre a rota Goiás-Espanha, um investigador informa que “algumas garotas declararam saber que teriam que se prostituir, [grifos meus] mas acreditavam que poderiam ganhar mais [...] outras disseram ter viajado pensando em ser cozinheiras ou faxineiras”. E no mesmo mês a polícia informa o jornal que “no Brasil, os aliciadores ligavam para a Espanha e passavam informações sobre as garotas dispostas a viajarem para lá. Ficavam 3 meses, prazo do visto de turista concedido pelas autoridades espanholas. Ao retornar ao Brasil, as mulheres eram novamente aliciadas e voltavam para a Espanha, criando-se uma rota de prostituição” [grifos meus]. Notei que, a partir do final da década de 1990, os discursos foram se modificando gradual e sutilmente. Antes se falava sobre tráfico de mulheres e, com o tempo, foram aparecendo notí-cias sobre “redes internacionais de prostituição”, identificadas pelo jornal como tráfico. Em julho de 2001, em notícia digitalizada, a Folha explica, citando informações da Polícia Federal, a chamada “Conexão Madri”: “de acordo com a PF, existiam nos seis estados aliciadores que faziam o conta-to com as mulheres interessadas em viajar para a Espanha. As mulheres, a maioria na faixa etária de 25 anos, eram informadas que trabalhariam em boates” [grifos meus]. Nos primeiros anos da década de 2000, a Folha passou a

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veicular notícias sobre mulheres que faziam da prostituição uma estratégia migratória e que, ao chegar ao local de destino, eram obrigadas a trabalhar em condições consideradas injustas. É preciso lembrar que não estou tra-tando essas notícias como reveladoras da realidade, mas como uma amos-tra dos sentidos dados ao tráfico pelo jornal, e que representam e reforçam a forma de entender de uma importante parcela da população. Em feverei-ro de 2004, a Folha fala de uma “quadrilha que agenciava mulheres”. Em março de 2004, sobre uma “quadrilha de traficantes de mulheres”, seguida de explicação policial: “os aliciadores são claros ao abordar as vítimas: afir-mam procurar mulheres para prostituição, mas as enganam prometendo que terão ‘vida boa e dinheiro no exterior’”. E em maio do mesmo ano, mais uma ação policial: “presos quando embarcavam com quatro garotas de programa em um ônibus com destino ao aeroporto internacional de Cumbica. [...] As quatro garotas de programa [...] disseram à polícia que foram convidadas pelos três acusados para trabalhar em casas de prosti-tuição na Espanha”. Está aí configurada, pois foi dito repetidamente pelo discurso da imprensa, uma idéia de que as pessoas “aliciadas” seriam, na maioria das vezes, “prostitutas” e “garotas de programa” que, algumas vezes, teriam sido “iludidas por promessas de dinheiro no exterior” .

Ora... Se está visível que importante parcela de nossa sociedade con-dena o exercício da prostituição e que o tráfico de mulheres ganhou dis-cursividade associado a essa atividade, está colocado aí um ponto nodal para pensar políticas de enfrentamento. A prevenção, a repressão, a res-ponsabilização dos autores e a atenção às vítimas do tráfico têm que ser pensadas considerando essa lógica, para não reproduzirem o estigma de culpa que é comumente atribuído a essas mulheres, como mostra a análise do discurso midiático. Em julho de 2004, a Folha noticia que “mulheres são arregimentadas e enviadas ao exterior para se prostituírem”. Está ex-plicado em discurso que muitas dessas mulheres sabem que terão que se envolver no mercado sexual, mostrando como parte da população está pensando a questão. Em outubro de 2004, a Folha diz assim: “as vítimas [...] teriam confessado que pretendiam viajar para trabalharem em uma casa de prostituição”. Em dezembro de 2004 o texto informa que “goianas aliciadas para se prostituírem na Espanha [...] foram encontradas em cárcere privado e serão libertadas” [todos grifos meus]. Violências são colocadas em dis-curso, mas associadas à noção de que elas sabem o tipo de trabalho que

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as espera. Em dezembro de 2005, depois das modificações do Código Penal, lemos que “Quadrilha enviaria garotas para prostíbulos espanhóis. PF investiga tráfico de mulheres”. Esse título é acompanhado do texto “quadrilha que atua no aliciamento de brasileiras para trabalharem como prostitutas na Espanha [...] A maioria já trabalhava como garota de programa nessas cidades [...] O delegado afirma ‘primeiro, as mulheres alegavam que trabalhariam como professoras de ginástica ou de dança na Espanha. Mas, em seguida, algumas delas acabaram confessando que trabalhariam como prosti-tutas e confirmaram a existência do esquema” [grifo meu]. Ao menos em casos desse tipo, poderia aventar que, talvez, o medo da condenação pú-blica ao dizer que se envolveu ou que pretendia se envolver em comércio sexual, ao lado do medo de represálias dos traficantes, é, algumas vezes, um dificultador de denúncias de abusos no mercado do sexo. Se isso é certo, e se queremos um modo mais eficiente de responsabilizar os autores do tráfico, trabalhar a questão de desculpabilização do exercício da prosti-tuição é medida de urgência.

Em tempos mais recentes, a identificação do tráfico com redes mi-gratórias para prostituição foi-se reforçando no discurso. Em setembro de 2005, a Folha falou de “agenciamento de garotas de programa”. Em setembro de 2006, o informe foi sobre “vítimas aliciadas e levadas para a Espanha [...] clubes que abrigariam supostas vítimas” [grifo meu]. Veja que o caráter de “vítima” aparece anunciando dúvida. No mesmo mês, a Folha fala de “quadrilha que levava mulheres para a Espanha para tra-balharem como prostitutas [...] oito mulheres brasileiras que trabalhavam como prostitutas foram detidas e devem ser deportadas”. E, no mesmo dia, outra notícia aparece assim: “mulheres eram obrigadas a se prostituir [...] viajaram para a Espanha para exercer prostituição, controladas pela quadrilha [...] 16 prostitutas serão deportadas”. O discurso faz uma volta de sentidos: viajaram para exercer prostituição, foram obrigadas a prosti-tuiu-se, eram controladas, são prostitutas. As notícias vão-se alternando em narrativas sobre pessoas que não são informadas que trabalharão com prostituição e sobre pessoas que sabem o trabalho que as espera, mas des-conhecem as condições de trabalho, consideradas injustas, como retirada de passaporte, dívidas de viagem, controle por parte dos agenciadores. Mas a segunda situação é que ganha mais espaço no discurso jornalístico. Em outubro de 2006, lemos que “grupo estaria mantendo as mulheres

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em bordéis [...] convenciam essas mulheres a irem a Espanha com promessas de trabalho e bons salários [...] obrigavam todas a agirem contra a vontade além de humilhá-las”. dois dias depois, sobre a tão comentada rota Goiás-Espanha: “os aliciadores convencem as vítimas a embarcar com promessas de ga-nhos, muitas vezes sem saber que serão prostitutas. Ao chegar em território europeu, têm o passaporte apreendido e são forçadas a fazer programas para pagar os custos da viagem”. Mas em dezembro de 2006, fala-se de um “grupo que recrutava mulheres para prostituição no Brasil e no exte-rior”. Encontrei notícias sobre “prostituição forçada” ainda em fevereiro de 2007, quando se noticiou a prisão de um casal suspeito de aliciar mu-lheres no Brasil e de obrigá-las, por meio de ameaças, a prostituírem-se na Espanha. No entanto, a idéia de prostituição como estratégia migratória continuou sobressaindo-se em quantidade. No mesmo fevereiro de 2007, sobre o mesmo caso, lemos em outra notícia: “chegando à Europa, elas tinham o passaporte retido e eram forçadas a se prostituir para pagar a dívida da viagem. As autoridades dizem acreditar, no entanto, que algumas das garotas já viajavam com planos de exercer a prostituição” [grifos meus]. Em certo momento da história, parece que o discurso da imprensa visibilizou certa noção de consentimento por força de engano. Mas a problematização que ganhou regularidade no discurso do jornal brasileiro deste início de século foi aquela que tratou de trabalhadoras do sexo em processos migratórios, como a seguinte: grupo que levava mulheres para a Espanha “para traba-lhar como prostitutas”, publicada em meados de 2007.

No El País, as menções ao fato de que mulheres estrangeiras esta-riam sendo “obrigadas à prostituição” começam a aparecer em 2001, bem ao tempo em que a Folha começou a noticiar “redes de prostituição”. Este foi também, aproximadamente, o tempo que entrou em vigor a Ley de Extrangería, que tipificou o tráfico de mulheres na Espanha. Foi também pouco depois dessa data, em 2002, que a Espanha ratificou o Protocolo de Palermo. Antes de 2001, o jornal espanhol dava certa visibilidade ao tráfico, mas parece que violência e coação eram condições implícitas para falar desse assunto. A partir dessa data, 2001, começou-se a citar que elas eram “obrigadas”, “forçadas”. Em julho de 2001, lemos que “mulheres eram obrigadas a prostituir-se em clubes”; e em agosto do mesmo ano, notícia tratando de um grupo organizado para “explorar os imigrantes e introduzi-los na prostituição” e “espanhóis que trazem mulheres para Es-

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panha para explorá-las sexualmente”. Em outubro de 2001, lemos sobre pessoas que ajudavam mulheres imigrantes a entrar na Espanha e logo obrigavam-nas a se prostituírem. Ainda em outubro, uma reportagem so-bre “mulheres imigrantes vítimas de máfias que as exploravam como pros-titutas”, seguida de informação sobre uma ONG de apoio às vítimas e do comentário de que “em alguns casos, muito poucos, elas fogem do abrigo [mantido pela ONG] e voltam a se prostituir”. Em setembro de 2002, as denúncias continuam: “mulheres exercem prostituição submetidas a con-dições de exploração”. Noto aí certo reconhecimento de que a violência estaria nas condições de trabalho e não na prostituição em si. E meses adiante, em dezembro de 2002, lemos que “os homens amedrontavam as mulheres, que se sentiam ameaçadas e obrigadas a se prostituir”. Em 2003, em outubro, fala-se de rede dedicada ao tráfico de mulheres e prostituição. E ao final do ano, fala-se de um grupo que obrigava mulheres a exercer prostituição. dias depois, o jornal publicou notícia sobre “pessoas deti-das por suposto proxenetismo ou por não ter documentação”. Em junho de 2004, assim está: “rede de tráfico internacional de mulheres ameaçaria aquelas que tentavam escapar”, pois retinham sua documentação e amea-çavam mandar fitas as suas famílias. Em 2007, a questão volta às páginas do jornal, em notícia sobre um grupo que “introduzia prostitutas russas na Espanha”.

de modo geral, enquanto o jornal brasileiro tratou de redes de imi-gração para prostituição que funcionam, muitas vezes, por força do enga-no, o jornal espanhol deu visibilidade a contextos em que imigrantes víti-mas de tráfico estariam sendo obrigadas à prostituição. Essas perspectivas, sutilmente diferentes, têm efeitos na maneira como se lida com o tráfico. No Brasil, parece que esse discurso constituiu-se junto com o discurso que noticiou repressão policial e moral à prostituição, enquanto na Espanha, falou-se de exploração sexual de imigrantes ao tempo que se falou de de-portações.

Uma história dessa discursividade exige incorporar discussões em perspectiva feminista. Pesquisas sobre comércio sexual em tempos re-centes têm mostrado mulheres envolvidas neste mercado como sujeitos atuantes, auto-determinados, capazes de negociar, concordar ou opor-se e transformar relações de poder.73 Martha Nussbaum argumentava, em

73 Ver: PISCITEllI, A. G. Brasileiras na indústria transnacional do sexo. Nuevo Mun-

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1999, que os problemas em geral associados à prostituição são também encontrados em outros tipos de trabalho e em outras práticas sociais, e que, portanto, não são problemas inerentes ao trabalho sexual, mas são problemas que dependem das condições de trabalho.74 Kamala Kempa-doo e Jo doezema sugerem, em 1998, que, ao invés de conceituar pros-tituição como objetificação e degradação das mulheres, entenda-se pros-tituição como um tipo de trabalho que é frequentemente oferecido por pessoas marginalizadas.75 Outras pesquisas apontam como a prostituição é usada também pelas elites sociais em países pobres para promover o turismo e atrair investimento estrangeiro.76 Mas parece que a maior parte das pesquisas tem enfatizado a agência feminina nas atividades do mer-cado sexual e em contextos de migração.77 Essas pesquisas sugerem que pessoas envolvidas em processos migratórios, mesmo aquelas envolvidas no mercado transnacional do sexo, não são somente submissas e passivas, mas são pessoas capazes de fazer escolhas e tomar decisões que levam a transformações conscientes que mudam suas vidas. Não é minha inten-

do-Mundos Nuevos, v. 7, p. 20, 2007. ANARFI, John. Ghanian Women and Prostitu-tion in Cote d’Ivoire; WATANABE, Satoko. From Thailand to Japan: Migrant Sex Workers as Autonomous Subjects; KEMPAdOO, Kamala. The Migrant Tightrope: Experiences in the Caribean. In: KEMPAdOO, Kamala; dOEZEMA, Jo (orgs). Global Sex Workers – Rights, Resistance, and Redefinition. Nova Iorque e londres: Routledge, 1998. BlANCHETTE, Thaddeus; SIlVA, Ana Paula da. “Nossa Senhora da Help”: sexo, turismo e deslocamento transnacional em Copacabana. Cadernos Pagu. N.25. Campinas jul/dez 2005. (sem página) In: www.scielo.br Acessado em setembro de 2006.74 NUSSBAUM, M., 1999, Sex and Social Justice, Oxford: Oxford University Press. p. 277-297.75 KEMPAdOO, Kamala; dOEZEMA, Jo. Global Sex Workers. Rights, Resistance, and Redefinition. Routledge: New York and london, 1998.76 Ver: O’CONNEll dAVIdSON, Julia. Prostitution, Power and Freedom. Michigam: Michigan, 1998. p.75.77 Ver: JUlIANO, dolores. El trabajo sexual em la mira. Polémicas e estereotipos. Ca-dernos Pagu (25), julho dezembro de 2005. ASSIS, GlÁUCIA dE OlIVEIRA; GRE-GORI, MARIA FIlOMENA; UNIVERSIdAdE ESTAdUAl dE CAMPINAS. De Cricíuma para o mundo: rearranjos familiares e de gênero nas vivências dos novos migrantes brasileiros. 2004. 340 p. : il. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas. ISBN (Broch.).

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ção tentar apagar as violências e exclusões que acontecem no universo do mercado sexual, mas, muito pelo contrário, mostrar que o enfrentamento do tráfico precisa levar em conta essas considerações. Parece que a inten-ção de refrear os fluxos migratórios é conhecida no Brasil e desejada na Espanha, assim como a repulsa às pessoas que exercem trabalho sexual é sabida e experimentada pelas mulheres que se dedicam a essa atividade. Poderia encontrar, mesmo na legislação brasileira, uma reprovação tanto às práticas de migração clandestina, quanto ao trabalho sexual, pois, apesar de admitir que a prostituição não deva ser criminalizada, não aceita que as fronteiras sejam atravessadas por esse tipo de comércio. O Protocolo de Palermo passa ao largo desse problema ao colocar a prostituição ao lado de outras práticas, e, no que tange ao “consentimento”, parece dar um tratamento mais “humano” ao problema, pois aparece uma preocupação com o a posição do indivíduo, apesar deste Protocolo estar marcado pelo contexto de controle de fronteiras.

Uma investigação histórica de como o tráfico de mulheres constituiu-se como um problema exige uma análise de como os discursos foram co-locados em funcionamento, de como foram disseminados e manifestados. O El País deu considerável publicidade ao debate sobre a regulamentação da prostituição, associado ao debate sobre tráfico. dentre os vários argu-mentos narrados pelo jornal espanhol sobre essa questão, o mais enfático apóia-se em cifras persuasivas de que prostituição é trabalho de imigrantes e que a regularização da prostituição aumentaria o tráfico de mulheres para a Espanha por meio de redes ilegais. Mas há vozes dissonantes nessa batalha discursiva. O El País noticia, também, argumentos daqueles que defendem a regulamentação do trabalho sexual como uma maneira de diminuir as violências e exclusões causadas pela situação de clandestini-dade. Apareceu também, nas páginas desse jornal, o argumento de que as estatísticas sobre a prostituição e o tráfico são imprecisas. O El País cita, por exemplo, em abril de 2001, a ONG Save the Children falando de tráfico de pessoas: “o problema é que não contamos com cifras confiáveis”. Em abril de 2004, o coletivo Hetaira, uma organização de defesa aos direitos das prostitutas e que luta pela legalização da prostituição na Espanha por considerá-la um trabalho, manifesta-se: “prostituição não é ilegal e não pode ser reprimida. As máfias não estão na prostituição de rua”, em rea-ção à repressão policial às profissionais do sexo em Madri. Em março de

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2007, Mamen Briz, porta-voz da Hetaira, perguntada sobre a afirmação de que 95% das mulheres que exercem prostituição o fariam obrigadas, responde assim: “não existe nenhum estudo rigoroso que possa confirmar isso [...] Não existe nenhum estudo nem qualitativo nem quantitativo so-bre as pessoas que exercem prostituição em nosso país. [...] São cifras que em certas ocasiões são usadas para calar as vozes daquelas que se auto-denominam ‘trabalhadoras do sexo’.” E, meses depois, em julho de 2007, Ana Botelha, primeira-dama da Espanha: “por trás da maioria, senão de toda prostituição, há extorsão, tráfico de mulheres e proxenetismo.”

A Folha também deu visibilidade à discussão sobre regularização da prostituição relacionando-a ao debate sobre tráfico, mas sem a regularida-de que apareceu no jornal espanhol. Noticiou, em dezembro de 2002, o Encontro de Profissionais do Sexo, no Rio de Janeiro, que concluiu que, apesar de considerar a prostituição como um trabalho que deve ser regu-lamentado, concorda com a penalização do favorecimento da prostituição, manutenção de casa de prostituição e tráfico de mulheres. Umas outras raras notícias problematizaram a perspectiva das profissionais do sexo na questão do tráfico, diferentemente do El País, que dedicou várias páginas a essa discussão. Essa constatação é um pouco surpreendente, pois o discur-so veiculado pela Folha dedicou-se a falar de prostituição como estratégia migratória em notícias cujo mote era o tráfico. Ao mesmo em tempo que as pessoas estão entendendo o tráfico como fluxos migratórios para pros-tituição, o debate sobre a prostituição, quando se fala de tráfico, é raro nas páginas do jornal. Um instigante paradoxo para ser pensado.

Nossas ideias sobre o tráfico de mulheres são elaboradas no inte-rior de relações de poder. Essas relações de poder são, ao mesmo tempo, intencionais e não subjetivas, diz Foucault.78 São inteligíveis, não porque sejam simples efeito, como se houvesse uma causa que as explicasse, mas porque são atravessadas por um cálculo, são exercidas em função de miras e objetivos. Isso não quer dizer que resultem da escolha ou da decisão de um sujeito individual ou de um grupo. Não é sozinho que o editor do jornal, ou o jurista, ou um grupo de funcionários do governo decidem vi-timizar ou criminalizar as envolvidas em redes de tráfico. A racionalidade

78 FOUCAUlT, Michel. História da Sexualidade 1. A vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

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do poder é a das táticas muitas vezes bem explícitas no nível limitado em que se inscrevem, ensina o filósofo. Assim, o editor tem em mira notícias que vendam o jornal, os governos têm em mira uma resposta a cobran-ças da sociedade e às relações internacionais, os operadores dos direitos humanos pretendem diminuir as violências que acontecem no curso do tráfico, valendo-se, algumas vezes, de distorções discursivas conscientes para atingir seus objetivos. Essas articulações, encadeando-se entre si, invocando-se e propagando-se, encontrando em outra parte apoio e con-dição, esboçam, finalmente, dispositivos de conjunto. Assim, a manchete midiática, o depoimento daquela envolvida, a fala do juiz e do delegado, o discurso acadêmico, as conferências de profissionais do sexo, a opinião da pesquisadora, todos esses discursos se encadeiam para constituir o fe-nômeno do tráfico. Se é assim, parece que a urgência mais visível com relação ao enfrentamento do tráfico é por pesquisas que problematizem a perspectiva das próprias vítimas; afinal, é por elas que tanta discussão está em curso.

Nossa sociedade não reagiu ao tráfico de mulheres com uma recusa em reconhecê-lo; pelo contrário. Muito se falou de tráfico nos últimos anos, mas o que é dito em discurso, em geral, são as redes, os traficantes, os métodos de combate etc., e quase nunca se fala da situação das vítimas. Os jornais que submeti à análise raramente referiram-se a elas, apesar de elas serem as protagonistas da história que se conta aqui. E o pouco que fa-laram, foi feito de maneira bastante provocativa. Na Folha, elas são “pros-titutas”, “escravas”, “jovens”, “obrigadas a se prostituir”, “sob o domínio de mafiosos”, “mulheres vulneráveis”, “sexo frágil”, “garotas de progra-ma”, “vítimas induzidas”, “vítimas seduzidas por promessas de empre-go no exterior”, “garotas brasileiras”, “brasileiras exploradas sexualmen-te”, “profissionais do sexo”. No El País, assim se descreve: “meretrizes”, “trabalhadoras do amor” (em contexto de gracejo), “auto-denominadas trabalhadoras do sexo”, “profissionais do sexo”, “novas competidoras” (ao que parece, em tom irônico), “mulheres imigrantes”, “carne exótica e barata” (em contexto de ironia), “exprostitutas”, “ex-meretrizes”, “pesso-as obrigadas a vender seu próprio corpo”, “migrantes são lixo humano” (em contexto de sarcasmo), “madames” (cafetinas russas), “mulher, puta e imigrante: o último dos últimos” (em contexto de indignação).

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Essa maneira de conceber não é somente um reflexo de um jeito de pensar. Ao mesmo tempo que mostra como a sociedade pensa essas mulheres, esse modo de se referir a elas interfere na realidade, traz conse-quências. Concebê-las ora como vítimas, ora como ofensivas à moralida-de, maneira de entender as mulheres que a História mostra não ser uma novidade, produz efeitos no modo como lidamos com o problema do tráfico. Mesmo quando o termo é citado em tom de ironia ou de sarcasmo, podemos perceber símbolos e valores que são correntes na cultura e que estão sendo reproduzidos e reforçados pelo discurso midiático.

Encontrei algumas poucas descrições mais elaboradas. Na Folha: “jovem atraente de 22 anos”, “olhos grandes e expressivos, tem pelo me-nos um motivo para esboçar um sorriso”, “uma voz suave” (notar que suave é uma qualidade convencionalmente atribuída ao feminino), “sem demonstrar orgulho em sua entonação”, “feia, média, bonita”. E no El País: “aquelas que deixaram de ser atraentes”, “agressivas e mal educadas, vestem-se provocativamente demais”. Estou considerando esses excertos, retirados do seu contexto, para mostrar que as protagonistas dessa história somente aparecem assim, em excertos, à míngua, muito de vez em quando, como se não tivessem ação, nem vontade, nem conclusões sobre sua pró-pria condição. Suas falas são raríssimas, e quando aparecem, são interme-diadas pela polícia ou por alguma organização encarregada de protegê-las. Afinal, a quem estamos querendo dar um lugar na história?

3 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ordenei meu argumento em torno das seguintes questões: o tex-to midiático espanhol anexou a questão do tráfico de pessoas a políticas de contenção da imigração, ao passo que o texto brasileiro relacionou o tráfico a uma reprovação às atividades no curso do mercado do sexo. Os discursos da imprensa não são desassociados do momento do qual são produtos e há, portanto, uma intrínseca conexão entre tais textos e os contextos históricos em que estão inseridos. Isso faz da análise do texto midiático um lugar importante para elaboração de políticas de enfrenta-mento do tráfico.

Mesmo depois da mudança do Código Penal, em 2005, que passou a considerar o tráfico de pessoas em suas diversas modalidades, o tráfico de mulheres para exploração sexual foi a modalidade mais noticiada na Folha

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de S. Paulo. Isso aponta para a necessidade de trazer também à cena formas de enfrentamento de outras formas de tráfico, não menos importantes.

Ao lado disso, penso que não há como estudar o tráfico de mulhe-res para exploração sexual esquivando-se de uma ampla discussão sobre a prostituição. Isso tem fundamental importância, ainda maior quando falamos de tráfico interno. A perspectiva de gênero é prevista na Políti-ca Nacional de Enfrentamento e deve nortear os estudos sobre tráfico, em especial sobre tráfico de mulheres, e dar visibilidade às perspectivas das vítimas. Parece urgente um incentivo a estudos que analisem como as próprias vítimas atribuem sentido às práticas de tráfico. Elaborar pla-nos a partir das perspectivas das vítimas seria estrategicamente eficiente na prevenção, pois poderíamos compreender com mais profundidade os mecanismos que fazem funcionar o tráfico de pessoas. Isso seria também oportuno para preparar políticas de atenção às vítimas, porque precisamos entender como elas dão significado a esse fenômeno para poder capacitar pessoas para atendê-las (inclusive a força policial). O atendimento às víti-mas precisa ser projetado em abordagem de gênero para não reproduzir nem reforçar modos de culpabilização.

Enfrentar as violências que acontecem no curso das práticas de tráfi-co internacional exige intervenção política por parte dos Estados. Enten-do que é também responsabilidade dos Estados promover amplos debates na sociedade sobre prostituição como estratégia migratória e incentivar pesquisas sobre o mercado sexual, no intuito de esclarecer a população, proteger as pessoas em risco e trabalhar para a desculpabilização das ví-timas. A repressão ao tráfico não pode envolver comprometimento com políticas de refreamento de imigração ou que penalizem o exercício da prostituição, pois isso piora a situação das vítimas.

As técnicas de repressão do tráfico têm relativa visibilidade, mas pouco se fala da situação das vítimas e nada se fala dos clientes. Não há como pensar a responsabilização dos autores deixando de lado a parte que consome os serviços. Os clientes, que nunca aparecem no discurso, tam-bém devem ser responsabilizados pelos abusos cometidos.

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ANEXO – TABELA DE FONTES

TABELA QUANTITATIVA

ano

Número de notícias encontradas no

periódico El Pais com palavra-chave de busca “tráfico de mujeres” *

Número de notícias encontradas no periódico Folha de S. Paulo com palavra-chave de busca “tráfico de

mulheres” ou/e “tráfico internacional de mulheres”

1997 4 41998 0 (zero) 111999 1 62000 10 82001 20 122002 4 102003 9 122004 12 292005 1 242006 2 312007 16 27Total 79 174

Total Geral: 253

*O resultado da busca no periódico El Pais não acrescenta notícias com a palavra-chave “tráfico internacional de mujeres”.

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MeNÇÃO HONROSa (1)

MULHERES VULNERÁVEIS E MENINAS MÁS

Ana Paula da Silva e Thadeus Gregory Blanchette

Quando o trabalho se transforma em prostituição a prostituta se transfor-ma em trabalhadora.

Walter Benjamin, The Arcades Project. 1939.

INTRODUÇÃO

Com a adesão do Brasil ao Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Pre-venção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças (também conhecido como “Protocolo de Palermo”) e a apro-vação da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (de-creto nº 5.948 de 26/10/2006) e do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – PNETP (decreto nº 6.347 de 08/01/2008), há um reconhecimento por parte do governo federal brasileiro da necessidade de se atuar contra o tráfico de seres humanos em todos os seus aspectos. Sem dúvida, tal posicionamento por parte das autoridades brasileiras represen-ta um avanço na luta contra o tráfico de seres humanos em terras brasilis, luta esta que começou, propriamente falando, com a lei Eusébio de Quei-rós de 1850, proibindo o tráfico transatlântico de escravos no Brasil.

Todavia, embora apresentado como avanço na luta em prol dos di-reitos humanos, o Protocolo de Palermo – base dos atuais Plano e Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – não é desprovido de polêmicas e de problemas de interpretação. Tais questões, quando avalia-das em conjunto com um código penal que relaciona o tráfico de pessoas à prostituição, podem acabar por transformar as recentes determinações do governo federal brasileiro em práticas que visam reprimir a autoprosti-tuição de maiores de idade (prática legal no Brasil), enquanto reproduzem a exclusão social, reservando o direito de viajar internacionalmente a uma pequena parcela da população brasileira.

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Num país cujas leis são rotineiramente ignoradas ou deturpadas, in-clusive pelas autoridades encarregadas da sua manutenção, o futuro ca-minho do Plano e da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas dependerá largamente das atitudes que subscrevem as ideologias dos agentes políticos envolvidos em sua elaboração. O presente trabalho, baseado em pesquisas etnográficas no campo político dos debates sobre a formação da política brasileira antitráfico, visa desvendar algumas dessas atitudes e, assim fazendo, alertar para possíveis efeitos colaterais antide-mocráticos e anticonstitucionais que certas narrativas hegemônicas sobre gênero e classe podem gerar no âmbito da luta contra a assim chamada “escravidão moderna”.79

1- JUSTIFICATIVA

Como Kamala Kempadoo adverte, as determinações do Protocolo de Palermo não parecem estar calcadas em garantir os direitos dos indiví-duos de ir e vir internacionalmente, mas sim em consagrar, para os Esta-dos Nacionais, o poder de controlar os fluxos de migrantes através de suas fronteiras, pois embora o Protocolo requeira que os Estados ratificadores tomem medidas para proteger as pessoas traficadas, em muitos casos, as disposições legais criadas para este fim tratam essa mesma pessoa trafi-cada como imigrante ilegal a ser deportada. Mesmo nos casos em que as traficadas cooperam com a polícia em suas investigações, seu provável fim é a expulsão do país de destino, este ato violento sendo frequentemente caracterizado como “repatriação”:

Descobriu-se, através da pesquisa internacional antiescravidão em 2002, que os vistos criados pelas pessoas objeto de tráfico podem parecer simples “adiamentos de deportação”, uma vez que apenas permitem que o indi-víduo permaneça no país de destino pelo período necessário para o proces-so criminal contra os traficantes. Além disto, pesquisas realizadas pelas

79 dizemos “assim chamada” porque concordamos com Kamala Kempadoo que é importante distinguir entre regimes de trabalho que definem trabalhadores como pos-ses permanentes e legais de determinados donos (a escravidão, propriamente dita) e a servidão por dívida, indentureship e o trabalho forçado que se fundam em relações contratuais assalariadas (mesmo injustas), em princípios de trabalho livre e de valor de troca de mercado (Kempadoo, 2005: 63, nota 14).

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principais organizações não governamentais contra o tráfico (...) mostram que, além da prisão, detenção e deportação, como modos imediatos de dis-posição das (pessoas) objetos de tráfico nos países de destino, essas pessoas, quando “resgatadas”, são em geral devolvidas aos países de origem como imigrantes sem documentos, e têm que enfrentar a vergonha e a humilhação que acompanham tal categorização e o status de deportadas80 (Kempadoo, 2005: 67-68).

Embora o Protocolo tenha sido concebido para ser uma ferramenta na luta contra as violações dos direitos humanos, na prática, muitos países que fazem aplicações jurídico-legais em seu nome acabam, de fato, pro-pagando violações de direitos humanos em nome da luta antitráfico. Mais uma vez, Kempadoo coloca:

Intervenções estatais que se baseiam em medidas repressivas, como controle mais rigoroso das fronteiras, prisão, detenção e deportação e um paradigma de “resgate de vítimas” sugerem que muitas vezes as “pessoas objeto de tráfico” são resgatadas contra a vontade, podem deixar de cooperar com as autoridades, ou simplesmente ser novamente “traficadas” se devolvidas a seus países de origem. Desigualdades estruturais globais na distribuição de riquezas (...) não são erradicadas na abordagem do tráfico a partir da perspectiva da governança global (...) Como as pesquisas cada vez mais indicam, esforços para repri-mir a migração, para manter as pessoas no país, ou para “empurrá-las de volta” muitas vezes fazem mais mal que bem, e vão contra os interesses dos imigrantes (Ibid: 68-69).

Complicando o quadro ainda mais, há a proliferação daquilo que a pesquisadora laura Maria Augustin chama de a indústria de resgate, ou seja, uma crescente seleção de profissionais engajados, em tempo integral, no suposto “resgate das vítimas do tráfico” e que ganham status e salários significativos com essa empreitada (Augustin, 2007). Esse fenômeno vem acoplado a outro: o crescente uso por parte dos Estados Unidos, de deter-minações sobre o tráfico como arma para “punir” Estados refratários às políticas americanas. Importante aqui é salientar que a atual política sexual internacional dos EUA parece estar calcada em uma base tríplice de opo-sição ao aborto e à prostituição e em favor da promulgação da castidade (Kempadoo, 2005: 73-77). Esse posicionamento, por sua vez, cria certa

80 Como fontes, Kempadoo cita Elaine Pearson (2002).

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pressão para definir atos sexuais que violam as leis americanas, como casos de tráfico, um tema explorado pelo Grupo davida (2005: 172-173) em sua análise de pânicos sociais e da fabricação de dados sobre o tráfico.

O cenário apresentado acima representa o “pano de fundo” da atual discussão sobre o tráfico no Brasil. Embora os agentes políticos envolvi-dos na luta contra o tráfico em nosso país gostem de descrever o Protoco-lo de Palermo como uma espécie de unanimidade internacional, é preciso lembrar que ele, no máximo, apresenta uma orientação aos Estados-Mem-bros da ONU. Concretamente, o Protocolo proíbe “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vul-nerabilidade ou à entrega ou à aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração” (United Nations Office on Drugs and Crime, Protocolo de Palermo, 2001: art.3). Todavia, é mister notar que, embora o Protocolo enfatize a proteção às mulheres e às crianças e aponte a “exploração da prostituição de outrem e outras formas de exploração sexual” como um dos principais males que devem ser combatidos na luta contra o tráfico de pessoas, ele não define o conceito de exploração da prostituição.

Uma leitura estrita do Protocolo indicaria que, minimamente, a pros-tituição tem que incluir um terceiro, o explorador, para que ela seja classi-ficada como tráfico propriamente dito. No entanto, as formas dessa “ex-ploração de outrem” não são explicitadas, e isto causa problemas graves na hora de aplicar medidas repressivas orientadas pelo Protocolo. Podemos concordar, por exemplo, que o conceito de “exploração da prostituição de outrem” certamente seria válido no caso de uma menina de 12 anos de idade, raptada e prostituída contra a sua vontade pelo dono de um bordel. Mas no caso de uma mulher, maior de idade, que resolve trabalhar legal-mente e por iniciativa própria num bordel ou em termas em um país onde a prostituição é legal, e que não sofre nenhuma violação significativa de seus direitos humanos, o conceito ainda valeria? Aparentemente, a reposta varia de nação para nação, pois o governo alemão certamente não conside-ra tal situação como “tráfico”, mas o governo dos EUA, sim.81

81 de acordo com dr. Mohamed Y. Mattar, o primeiro caso antitráfico nos EUA en-volveu seis russas empregadas numa casa de striptease no estado de Alasca. Embora

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Ademais, com a condenação de “outras formas de exploração se-xual”, o Protocolo ainda deixa em aberto a questão de a autoprostituição poder ser considerada suficiente para qualificar uma situação de tráfico. Muitos grupos, tanto do lado direito quanto do lado esquerdo do espectro político, consideram, por exemplo, a prostituição em si como exploradora e violentadora dos direitos humanos de seus praticantes.

No Brasil, esta situação é ainda mais confusa, pois o artigo 231 do Código Penal do país, que permanece como uma das principais orienta-ções legais acerca do crime do tráfico, parece definir sine qua non a prosti-tuição como uma infração, definindo o crime de tráfico de pessoas como “Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro” (Código Penal Brasileiro: artigo 231).

Note-se bem que os conceitos de exploração e de violações dos di-reitos humanos, que parecem orientar a definição do crime de tráfico na acepção do Protocolo de Palermo, sequer aparecem na definição de tráfi-co sustentada pelo Código Penal Brasileiro. O artigo 231 define qualquer assistência ao movimento internacional de prostitutas como tráfico de pessoas. Pior ainda: recente acréscimo ao artigo, o artigo 231-A, amplia sua definição e coloca como traficada qualquer prostituta em movimen-to dentro do território nacional. Em outras palavras, numa leitura estrita deste artigo, traficante de pessoas é qualquer indivíduo que ajuda uma prostituta a se mover do ponto A ao ponto B, independente das condições desse movimento ou da existência de exploração da força de trabalho des-sa prostituta por outras pessoas no local de destino.

somente duas das mulheres fossem maiores de idade, todas foram consideradas como “traficadas” de acordo com as estipulações do Protocolo referentes à “exploração sexual de outrem”. Enquanto isso, na Alemanha, durante a Copa do Mundo de 2006, muitas cidades investiram na facilitação dos serviços sexuais comerciais, mesmo quan-do eles envolviam bordéis, diferenciando claramente este tipo de atividade do tráfico (Mohamed Y. Mattar, “A Regional Comparative legal Analysis of Sex Trafficking and Sex Tourism”, em http://www.protectionproject.org/st.htm, s/d; Andreas Ulrich & Udo ludwig, “Copa do Mundo já mobiliza partidários e adversários da prostituição na Alemanha”, der Spiegel, 1/12/2005. Acessado em http://www.gabeira.com.br/causas/causa.asp?id=1366&idSubd=26, em 12/12/2007).

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de acordo com uma leitura literal do artigo 231-A do Código Penal Brasileiro, pagar um táxi para uma prostituta ir para o seu trabalho é su-ficiente para qualificar um crime de tráfico de pessoas, independente de quaisquer outras considerações.

O Brasil, então, encontra-se atualmente em uma situação interessan-te: sua Política e seu Plano de Enfrentamento ao Tráfico norteiam-se pelo Protocolo de Palermo, enquanto seu sistema de justiça continua definin-do o crime de tráfico como algo exclusivamente ligado ao movimento de prostitutas (independente de quaisquer considerações sobre a violação dos direitos humanos das mesmas). Muitos brasileiros envolvidos na luta antitráfico têm apontado essa contradição, mas eles geralmente têm se manifestado em favor da ampliação do artigo 231 para englobar outras categorias de traficados. Via de regra, eles não questionam a definição da prostituição em si como constituinte do tráfico.

Como o Global Alliance Against Traffic in Women (GAATW) tem aler-tado, por causa das definições contraditórias promulgadas pelas leis e po-líticas brasileiras a respeito do tráfico, “é possível que eventualmente o re-sultado (da atual Política de Enfrentamento ao Tráfico) seja o fechamento de bordéis, tornando impossível para as profissionais do sexo ganharem seu sustento”.

Fazer a legislação sobre o tráfico de pessoas para a finalidade de pros-tituição (não sendo esta proibida no Brasil) mais severa afeta direta e indiretamente as (os) profissionais de sexo. Considerando a existência da corrupção entre os oficiais da lei, estes podem exigir subornos maiores das(os) profissionais de sexo para “protegê-las”, especialmente quando os policiais são os donos dos bordéis (Nederstigt & Almeida, 2007:3-4).

dada esta situação, o GAATW classifica a nova Política de Enfrenta-mento do governo federal brasileiro como uma possível “política para in-glês (ou americano) ver”, dependendo da maneira pela qual a política seja posta em prática. Certamente, a existência de duas formas antagônicas de definição do tráfico de seres humanos no sistema legal brasileiro não ins-pira confiança na capacidade de o país lutar racional e democraticamente contra o problema. Crucial para o futuro da luta contra o tráfico é, então, a questão de como essas leis serão aplicadas a serviço do novo plano. Isto, por sua vez, depende largamente de como os agentes políticos ativos em torno do assunto do tráfico as definem em termos práticos e cotidianos

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e, mais particularmente, como eles explicitam a exploração sexual, sendo que isto ainda é reportado como a maior vertente do tráfico de pessoas dentro do Brasil e para além de suas fronteiras (Ibid: 3; OIT, 2005: 12).

2- OBJETO E METODOLOGIA

O presente trabalho é um estudo etnográfico que pretende examinar como a categoria de traficada tem sido definida e utilizada pelos agentes políticos envolvidos nos debates acerca da formulação da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e do Plano Nacional de Enfren-tamento ao Tráfico de Pessoas – PNETP. Pretendemos aqui identificar narrativas hegemônicas, presentes entre esses agentes, que podem indicar quais serão as prováveis aplicações práticas das leis brasileiras contra o tráfico de pessoas em futuro próximo.

Nossos dados vêm de um prolongado engajamento etnográfico com os principais agentes políticos envolvidos na formulação do Plano e da Política, nas várias reuniões, nos seminários e nas conferências dedicados à questão nos anos entre 2003 e 2008. Temos usado a técnica de observa-ção-participação-reflexão promulgada pelo antropólogo e etnógrafo Bro-nislaw Malinowski no capítulo de abertura de sua obra-mestra, Argonautas do Pacífico Ocidental (1961 (1922)). Nessa técnica, propriamente entendi-da como pesquisa qualitativa, observador e observados encontram-se face a face no ambiente natural dos observados, que passam a ser não mais meros objetos de estudo, mas sujeitos que interagem com o pesquisador (Serva & Jaime, 1995: 65). O intuito da pesquisa observação-participação, de acordo com Malinowski, é “to grasp the native’s point of view, his relation to life, to realize his vision of his world” (Malinowski, ibid: 25).82

Nossa investigação, porém, não presume a existência de alguma “tribo nativa” coesiva cujos rituais podem ser apresentadas de modo au-têntico e inequívoco: investigamos aqui um exemplar daquilo que Pierre Bourdieu chama de “campo político”, entendido como uma arena em que produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, concei-tos e acontecimentos são gerados pela competição dos agentes políticos que ali atuam, e entre os quais os cidadãos comuns – reduzidos ao status

82 “[...] apropriar-se do ponto de vista do nativo, sua relação com a vida, para realizar sua visão do mundo.”

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de meros “consumidores” – devem escolher (Bourdieu: 1981:3-4). Esses agentes políticos e os discursos formulados por eles são propriamente nosso objeto de estudo.

Observamos e interagimos com esse campo político em várias con-ferências e reuniões, e também em seminários, no Rio de Janeiro e em Brasília, organizados pelo CEdIM, pela Secretaria Estadual de direitos Humanos, pela GAATW e pelo Ministério de Justiça Federal, entre 2004 e 2007, que visavam discutir a abordagem da Política Nacional de En-frentamento ao Tráfico de Pessoas, mais particularmente no 1º Seminário Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, em Brasília, nos dias 3 e 4 de outubro de 2007. Também entrevistamos, fora deste contexto, agentes políticos envolvidos com a criação e a promulgação da política, e lemos os documentos e os estudos produzidos por esses agentes e suas organizações. Finalmente, é mister salientar que nossa perspectiva foi mol-dada por pesquisas paralelas na zona de turismo e sexo da cidade de Rio de Janeiro. Embora essas investigações não façam parte diretamente da formulação da presente pesquisa, elas permitiram uma base epistemológi-ca fundada nas realidades sociais de uma das zonas mais movimentadas do turismo sexual do Brasil, região moral e geográfica associada à significativa parcela das rotas de tráfico de mulheres no Brasil (Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual - PESTRAF, 2002a: 55-56).

A nossa hipótese – a ser apresentada abaixo – é a de que existe uma série de narrativas hegemônicas, calcada em pressuposições sobre classe e gênero, presente nos discursos da maioria dos agentes políticos envolvida na formulação da Política e do Plano Nacional de Enfrentamento ao Trá-fico de Pessoas no Brasil. Por “hegemônica” entendemos ideologia oni-presente, naturalizada e pouco reflexiva sobre o que é ser mulher, pobre e brasileira no universo do tráfico de pessoas. Embora essa narrativas hege-mônicas estejam longe de ser unanimemente aceitas, elas dominam de tal maneira discussões públicas sobre o tráfico que afirmações que parecem sustentá-las geralmente serão aceitas como autoevidentes, enquanto asser-ções que as colocam em dúvida serão rejeitadas como esotéricas, precio-sismos ou “maluquices”, ou minimamente estarão sujeitas a um grau de inspeção bem mais rigoroso.

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Embora nossa noção de hegemonia não seja exatamente congruente com aquela delineada por Antônio Gramsci (1971), a visão hegemônica do tráfico de mulheres no Brasil, apresentada abaixo, é uma ideologia que reserva o poder para um determinado segmento da sociedade através da naturalização de algumas ideologias acerca de mulheres e pobres. Enfim, acreditamos que a visão hegemônica revelada no Brasil nas discussões públicas sobre como combater o tráfico de mulheres tem demonstrado, até o presente momento, uma clara tendência a favor do saneamento da reputação internacional da nação em detrimento da proteção dos direitos humanos das cidadãs mais pobres – particularmente o direito de ir e vir livremente.

Concluímos nossa análise com algumas considerações teóricas, de-senvolvidas pela antropóloga e feminista Sherry Ortner, sobre a relação entre sociedades estaduais e a preocupação com a pureza sexual feminina. Nós as aplicamos ao atual dilema encarado pelo Brasil no enfrentamento ao tráfico de pessoas, buscando oferecer subsídios para uma reflexão de como o Estado brasileiro pode agir de forma mais libertadora e democrá-tica para reprimir o tráfico sem violar os direitos humanos e constitucio-nais de suas cidadãs.

Brasil e o enfrentamento do tráfico das pessoas no século XXI (re-sultados da pesquisa e discussão)

Em recentes anos, os discursos referentes ao tráfico de mulheres têm retomado uma centralidade nos debates internacionais acerca do comba-te ao crime numa escala globalizada. Como o Grupo davida (2005) tem afirmado, esta discussão está se formando como uma espécie de pânico moral semelhante àquele que tomou conta dos EUA no início do século XX a respeito da escravidão branca. Em parte, tais discursos têm renasci-do porque criam uma maneira relativamente não contestada de construir filtros adicionais contra o movimento indesejado de imigrantes na direção dos países metropolitanos da Europa Ocidental e da América do Norte (doezema, 2000).

Todavia, o recrudescimento das fronteiras e a alta xenofobia no mun-do, após 11/9/2001, não conseguem explicar todos os aspectos do atual pânico moral. Em particular, não explica por que determinados países não metropolitanos e exportadores de imigrantes também têm adotado o discurso antitráfico com tanto ardor.

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No caso do Brasil, este discurso tem se configurado através de narra-tivas em que brasileiras inocentes (geralmente apresentadas como pobres, morenas e/ou negras) são aliciadas por propostas enganadoras feitas por estrangeiros (tipicamente apresentados como étnica e economicamente alteros: “príncipes falsos”, “loiros e de olhos azuis”), que oferecem “casa, comida e roupa lavada”, além de oportunidades de trabalho e/ou fama no exterior. Tragicamente, logo que as brasileiras inocentes chegam aos paí-ses de destino, descobrem que esses “príncipes” são de fato seus futuros cafetões e que elas terão que se prostituírem para sobreviver. Embora não racista, no estrito senso da palavra, 83esta narrativa consegue ser bastante xenófoba e preconceituosa e faz ampla utilização de estereótipos raciali-zados (veja as imagens abaixo, produzidas pela ONG TRAMA, como um exemplo desta história).

Panfleto antitráfico da ONG TRAMA, em que um “príncipe loiro” seduz uma brasilei-ra afrodescendente com histórias de sucesso no exterior para recrutá-la como prostituta (TRAMA: 2007).

83 Racismo “no estrito sentido” sendo a filosofia em que o comportamento social humano é determinado pela composição biológica do ser humano e que a espécie humana é subdividida em subespécies ou “raças” biologicamente estáveis e verificá-veis, cada raça com seus comportamentos típicos associados. Por “estereótipos ra-cializados” quero indicar aqueles que associam comportamentos estereotipados com determinados biotipos sem, necessária ou abertamente, presumir-se a existência de “raças”.

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Como no caso de escravidão branca no Rio de Janeiro no início do Século XX, analisado por Cristiana Schettini Pereira (2003), a atual narra-tiva brasileira do tráfico das mulheres parece estar mais calcada em mitos e estereótipos do que em realidades. Não existe nenhuma indicação de que um grande número de brasileiras esteja sendo ludibriado da forma colocada na narrativa apresentada acima, e muitas das provas concretas que existem pintam um quadro bastante diferente.

Em primeiro lugar, os principais estudos sobre o tráfico no Brasil indicam que a participação dos estrangeiros no aliciamento de mulheres é relativamente baixa. Em uma pesquisa recente promulgada pelo Minis-tério de Justiça, das 83 pessoas acusadas em 36 casos de tráfico estuda-dos, estrangeiros aparecem como réus em somente 10 deles (Min. Justiça, 2004). de forma semelhante, na maior pesquisa brasileira sobre o tráfico (PESTRAF), de 161 casos de tráfico estudados em que os aliciadores po-deriam ser identificados, estrangeiros surgem somente em 52 (PESTRAF, 2003: 63).84

Mais importante, porém, é perceber que os estudos atuais sobre o tráfico de mulheres no Brasil tendem a confundi-lo com a imigração de prostitutas.85

84 Vale a pena salientar que os dados de PESTRAF são principalmente oriundos de uma pesquisa de histórias de tráfico reportadas na mídia popular brasileira, nas quais o mito do estrangeiro aliciador é bastante repetido e largamente entendido como fato. PESTRAF não parece ter feito nenhuma distinção, nessa pesquisa, entre casos comprovados e simples acusações. Não é de surpreender, portanto, que estrangei-ros apareçam ali em maior porcentagem como acusados de tráfico do que nos casos do Ministério da Justiça. É significativo, neste contexto, que a linha disque-denúncia, mantida pelo governo brasileiro contra a exploração sexual de crianças e adolescen-tes (problema que quase sempre vem vinculado no imaginário popular e na política brasileira à questão do tráfico), tenha anotado somente 18 casos de exploração sexual envolvendo diretamente turistas estrangeiros de um total de 21.486 denúncias (Bedi-nelli, 2006).85 Entendemos como prostituta a mulher que vende comercialmente serviços sexuais. Também usamos como sinônimos trabalhadora sexual e “puta”. Todos os três termos são utilizados como categorias êmicas, nativas tanto no universo do sexo comercializa-do, quanto no universo dos agentes que tentam controlar os fluxos migratórios de mu-lheres solteiras. Não devem ser entendidas como categorias morais e/ou acusatórias.

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Como Kamala Kempadoo adverte, em geral, muitas das afirma-ções feitas pelo mundo sobre o tráfico são infundadas e não estão do-cumentadas; baseiam-se em relatórios sensacionalistas, em hipérboles e em confusões conceituais: “O que infesta muitos estudos e afirmações sobre o crime transnacional organizado é (...) a formatação das notícias como entretenimento, a imprecisão que se insinua nos conceitos por uso excessivo, os exageros e as estimativas baseadas em conjecturas e avalia-ções não confiáveis” (Kempadoo, 2005: 71). O Grupo davida (2005) têm demonstrado como esse processo costuma funcionar no caso específico do Brasil, dando destaque especial às confusões epistemológicas criadas em torno da noção do tráfico, em função do fato de que duas das suas definições existem no país: a do Protocolo de Palermo e a do artigo 231 do Código Penal.

Mesmo quando olhamos para os estudos brasileiros mais contun-dentes sobre o tráfico, rapidamente encontramos a imprecisão, os exage-ros e as conjecturas notados por Kempadoo. Para começar, quase todos os maiores estudos brasileiros sobre o tráfico partem da pressuposição de que o tráfico de pessoas existe em grande escala no país e, ao contrário do que indicaria a boa metodologia científica, a contra-hipótese nunca é enuncia-da, muito menos explorada. Ademais, embora as principais organizações e indivíduos que estudam o tráfico afirmem orientar-se pela definição do fenômeno promulgada pelo Protocolo de Palermo (tráfico = exploração sexual de outrem e violações de direitos humanos), em quase todas as ocorrências, a atual contagem de casos ou rotas de tráfico é parcial ou to-talmente baseada em casos definidos como tráfico de acordo com o artigo 231 do Código Penal brasileiro (tráfico = ajudar uma prostituta a se mo-vimentar internacionalmente). Mesmo sabendo que certamente existem prostitutas brasileiras vítimas do tráfico de mulheres no sentido aferido pelo Protocolo de Palermo, os estudos feitos no Brasil, em geral, não se preocupam em confirmar se determinado caso é de exploração sexual de outrem ou se envolve violações de direitos humanos: basta uma prostituta movimentar-se internacionalmente para que o caso seja qualificado como “tráfico” e contando e apresentado como tal. Esses estudos também re-petem acusações, tanto da polícia quanto dos meios de comunicação em massa, como se estas fossem fatos comprovados.

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Excelente exemplo de tal problema pode ser conferido num dos principais trabalhos de referência no Brasil: o levantamento feito pelo Mi-nistério da Justiça com o apoio do UNOdC (2004), fonte amplamente utilizada por organizações internacionais interessadas em contabilizar o tráfico de seres humanos no país (veja, por exemplo, UNOdC, 2006; OIT, 2005 e U.S. State Department, 2005). No projeto-piloto do referido estudo, 22 processos e 14 inquéritos em quatro estados (São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás e Ceará) foram levantados e analisados. destes, 92%, ou seja, 33 dos 36 casos, envolvem a exploração sexual, isto é, devem ser violações do artigo 231 do Código Penal. No entanto, embora adote a definição do Protocolo de Palermo como norteadora, o estudo do MJ não distingue os casos de tráfico que envolvem a exploração sexual de outrem, nos quais os direitos humanos da vítima são violados, daqueles outros de promoção, intermediação ou facilitação de movimento internacional de prostitutas. Em outras palavras, parece que não houve nenhuma tentativa para deter-minar se esses 36 casos realmente são de tráfico, de acordo com a defini-ção do Protocolo.

Outro problema com o levantamento feito pelo Ministério da Justiça é o fato de que acata meras acusações como indicadores reais de tráfico. Mas dos 36 casos relatados, só um foi julgado, e o estudo não se refere ao resultado do julgamento. O MJ atribui o baixo índice de resolução dos ca-sos à “demora no envio dos inquéritos à Justiça ou a necessidade de (sua) devolução à polícia para novas investigações” (MJ: 2004). A contra-hipó-tese de que faltam provas para sustentar as alegações diante de um juiz não aparece em lugar nenhum do relatório. Neste contexto, é interessante notar que 25 dos 36 casos – ou 70% – são baseados em acusações anôni-mas ou de terceiros, fato que o MJ acha encorajador, dizendo que: “Esse dado indica que uma campanha de esclarecimento da sociedade sobre o tráfico, que ensine a população a identificar o crime, pode ajudar num combate mais efetivo” (Ibid). Novamente, a contra-hipótese – a de que a campanha de informações sobre o tráfico está gerando uma sensação de pânico moral, resultando num aumento de acusações não fundamentadas – não é colocada.

Em conversas com o principal pesquisador do levantamento, Marcos Colares, foi confirmado que ele pelo menos está bem ciente dos proble-mas do estudo. O máximo que podemos afirmar (e que Marcos declara)

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é que a pesquisa do Ministério da Justiça é apenas um retrato incompleto do número de processos, inquéritos e condenações relativas ao crime de tráfico em quatro estados brasileiros. Todavia, os autores do relatório final do estudo o vinculam a um “diagnóstico da situação do tráfico de mulhe-res para fins de exploração sexual nos estados participantes” (MJ, 2004), algo que as 36 acusações analisadas simplesmente não permitem afirmar. A situação não seria tão grave se não fosse o caso, na luta global contra o tráfico, de os resultados desse projeto-piloto serem apresentados por auto-ridades como dados definitivos que realmente compõem um diagnóstico confiável do tráfico (OIT, 2005: 19; UNOdC, 2006: 96-99).

Outro importante estudo brasileiro sobre o tráfico de pessoas, a Pes-quisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Ex-ploração Sexual Comercial (PESTRAF), também mescla as definições do tráfico de seres humanos em sua confecção de dados referentes ao fenô-meno. Os resultados dessa promiscuidade são potencialmente bem graves, pois de acordo com representantes do Ministério da Justiça, entrevistados por ocasião do 1º Seminário Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, a PESTRAF atualmente se encontra na posição de norteador da política nacional brasileira em questões referentes ao tráfico.

Orientando-se por uma ideologia que relaciona a prostituição à ex-ploração sexual, os organizadores da PESTRAF, por exemplo, têm se re-ferido a casos de imigração voluntária de prostitutas como casos de tráfico de mulheres, mesmo quando eles não envolvem violações de direitos hu-manos.86 Neste contexto, é mister notar que um estudo recente, promovi-do pela Secretaria Nacional de Justiça e pela OIT (2007) sobre deportados

86 Entre os 156 casos criminais (ou 154 – as duas versões de PESTRAF apresentam números diferentes) envolvendo o tráfico de mulheres e que foram estudados por PESTRAF, encontram-se casos como o procedimento #96.0025534-2, em que o cri-me em questão foi o de ajudar mulheres a sair do Brasil para exercerem trabalhos sexuais em outros países (PESTRAF, 2002: 104). Recente publicação da organizadora de PESTRAF, Maria lúcia leal, deixa clara a conexão que a autora – a principal teó-rica do estudo – faz entre prostituição e exploração. Fazendo uma análise de Engels (1986 [1884]), leal e sua coautora, Patricia Pinheiro, afirmam que o serviço sexual é “o que Marx chama de ‘trabalho improdutivo’, isto é, um valor de troca imaterial, que no mundo do comércio do sexo torna-se concreto, porque é produto de uma relação de exploração e escravidão, que se estabelece entre o intermediário, a trabalhadora de sexo e o consumidor, em troca de dinheiro”. (leal e Pinheiro, 2007: 18-19).

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brasileiros no aeroporto de São Paulo, revelou poucos indícios de que a prostituição no exterior esteja involuntária.87 A caracterização da prostitui-ção como “forçada”, típica das narrativas brasileiras sobre o tráfico, parece ser errônea na grande maioria dos casos.

da mesma forma, as pesquisas de BlANCHETTE e SIlVA entre prostitutas e turistas sexuais em Copacabana têm indicado que a grande maioria das mulheres que imigra daquela zona de prostituição para ou-tros países procura, conscientemente, o trabalho sexual, e não é afetada por graves violações de seus direitos humanos em suas trajetórias de mi-gração. Ademais, muitas vezes, elas forjam relações afetivas com turistas estrangeiros justamente para poderem imigrar para a Europa e os EUA e continuar trabalhando como prostitutas, sem a intermediação de cafe-tões (BlANCHETTE & SIlVA, 2005). Baseados nessa pesquisa, feita na zona mais notória e movimentada do turismo sexual no Brasil, podemos afirmar que, nos jogos de representações que resultam em imigrações de prostitutas brasileiras, é mais comum ver um gringo sendo iludido por promessas falsas de “casa, comida e roupa lavada no exterior” do que uma prostituta brasileira.

Obviamente, existem casos de escravidão sexual no exterior que envolvem brasileiras e que até envolvem prostitutas brasileiras. Todavia, pelo menos no presente momento, as indicações são de que a maior parte daquilo que é tido em nosso país como tráfico de mulheres, de fato, são pessoas que foram trabalhar, conscientemente e por livre e espontânea vontade no mercado de sexo no exterior. As violações dos direitos huma-nos sofridas por essas mulheres parecem ser predominantemente decor-rentes da sua situação como imigrantes ilegais e das repressões de que são alvo por parte das forças policiais dos países de destino (Sect. Jus. & OIT, 2007: 115-118).

Os depoimentos dos ex-imigrantes recolhidos no estudo da Secre-taria de Justiça e por nossas pesquisa no Rio de Janeiro salientam que a principal reivindicação de imigrantes femininas “vulneráveis ao tráfico” não é por maior “proteção contra o tráfico”, e sim por documentos ofi-ciais que permitam a sua entrada e estado legal nos países de destino, e

87 No estudo, somente duas pessoas – ambas travestis – denunciaram maus tratos e condições de semiescravidão na indústria europeia de sexo. A única denúncia de escra-vidão vinda de uma mulher foi feita por uma empregada doméstica.

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também por mais respeito e atenção aos seus problemas pelas autoridades consulares brasileiras.88 Todavia, até o presente momento, o governo fe-deral brasileiro e seus agentes políticos na arena da luta contra o tráfico têm se mostrado incapazes de atender a essas demandas. Várias de nossas informantes trabalhadores sexuais no Rio nos relataram histórias de te-rem sido ignorados quando visitaram consulados brasileiros no exterior. Uma informante transgênero até nós contou que foi expulsa do consulado brasileiro em Paris quando foi procurar ajuda, sendo informada por um funcionário que “seu lugar é lá fora, na rua”. Tais histórias, infelizmente, são comuns entre nossas informantes.

Até o presente momento, a maioria dos esforços do governo bra-sileiro na luta contra o tráfico parece ter se concentrado em impedir ou desincentivar as viagens internacionais de pessoas consideradas “vulne-ráveis” ao tráfico e não habilitar essas pessoas a viajarem com segurança. Este foco pode ser claramente vislumbrado nos cartazes, apresentados abaixo, que figuram entre os primeiros publicados pelo governo federal e que foram amplamente divulgados em agências de viagens, aeroportos, escolas, hotéis e delegacias de polícia em todo o Brasil.

Táticas de susto: cartazes produzidos pelo UNdOC e pelo governo federal brasileiro que associam viagens ao exterior com a escravidão. Em vez de orientar viajantes brasileiras so-bre o que fazer se um passaporte for extraviado (i.e., ir a um consulado imediatamente), o cartaz do lado esquerdo qualifica essa situação como o primeiro passo para a escravidão.

88 Conversa com Adriana Piscitelli, coordenadora técnica da pesquisa da SecJus/OIT.

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Os cartazes demonstram uma preocupação negativa com os direitos de cidadãs brasileiras. Em vez de darem avisos concretos sobre perigos – enfim, capacitarem as cidadãs brasileiras a reconhecer e a lidar com pos-síveis situações de tráfico – eles pretendem amedrontar com ameaças va-gas, apresentando oportunidades no exterior como excepcionalmente pe-rigosas para mulheres solteiras. É mister, neste contexto, notar que quase todos os projetos de imigração envolvem a busca por uma vida melhor e isto – no caso de mulheres solteiras imigrantes – muitas vezes pode incluir um casamento ou uma relação afetiva que prometa “casa, comida e roupa lavada”, sem que isto implique escravidão. Todavia, na visão de mundo apresentada pelos cartazes acima, qualquer busca desta natureza há de ser percebida como um possível (e até provável) prelúdio à escravidão, sendo a única posição “segura” a permanência no país de nascimento.

Até bem recentemente (outubro de 2007), representantes dos movi-mentos dos trabalhadores sexuais e transgêneros – classificações sempre apontadas como altamente sujeitas ao tráfico – não foram formalmente incorporados ao processo de abordagem da política nacional de enfren-tamento ao tráfico, e suas indagações e sugestões a respeito do problema têm sido quase totalmente ignoradas.89 A maior parte do debate sobre o tráfico tem se configurado em um campo político formado por institui-ções executivas do Estado brasileiro (i.e., Ministério da Justiça, Ministério da Saúde etc.), por poderosas organizações internacionais (UNdOC, OIT, OIM e outras) associadas a ONGs, estas muitas vezes de origem religiosa (particularmente católica). Os agentes políticos desses grupos impressio-nam, em suas aparições públicas, por seu alto grau de homogeneidade so-ciocultural: a grande maioria pode ser considerada “branca” ou “morena clara” em termos de cor, tem educação superior, é composta de funcio-

89 A experiência da ONG de prostitutas davida pode servir aqui como exemplo. Em pelo menos quatro ocasiões, em conferências locais e nacionais e por meio de carta e internet durante o processo de formulação da política de enfrentamento ao tráfico das pessoas, representantes da ONG têm pedido aos responsáveis pelo processo, no Ministério de Justiça, uma clara definição do conceito de “exploração sexual”, sem receberem resposta. A mesma pergunta foi dirigida, verbalmente e por escrito, aos principais quadros da CECRIA, associação político-acadêmica responsável pela PES-TRAF, também sem resposta. da mesma forma, os funcionários da UNdOC, da OIT e da OIM, ativos no debate, têm se esquivado às perguntas referentes a questão formuladas pelas prostitutas da davida.

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nários profissionais do Estado brasileiro, de organizações internacionais ou de ONGs, tem viajado internacionalmente e, acima de tudo, fazem parte aparentemente dos 10% que possuem renda mais elevada no país. Em suma, este é um grupo formado por uma elite socioeconômica, étnica e cultural engajada na configuração de políticas de “proteção” a “grupos vulneráveis”, entendidos como consumidores passivos de tais políticas (e não como parceiros ativamente engajados em sua formação) e imagina-dos, em grande parte, como não brancos, pobres e sociopoliticamente marginalizados.

Nas conversas com os agentes políticos que produziram as imagens e os estudos apresentados acima, e em seus depoimentos diante do pú-blico em conferências e seminários, pudemos claramente vislumbrar de-terminados estereótipos e inseguranças que sublinham e dão forma à luta contra o tráfico das mulheres no Brasil.

3- QUATRO NARRATIVAS SOBRE O TRÁFICO

Em recentes conferências e seminários antitráfico90, quatro narrati-vas surgiram como hegemônicas. Por “hegemônicas” queremos indicar que, quando essas narrativas são enunciadas, são quase sempre aceitas sem grandes críticas pela vasta maioria dos ouvintes. Por outro lado, as histórias que contestam esses “fatos” são habitualmente marcadas como “exageradas” ou “errôneas”, sem recurso às evidências que as sustentam. É importante lembrar que, no presente momento, sabemos muito pouco sobre a prostituição e suas possíveis ligações com o tráfico de mulheres no Brasil. Portanto, as narrativas hegemônicas no universo antitráfico não se fundamentam em uma lógica científica, e sim em uma ordem moral e política que se apresenta (enganadoramente) como fruto da pesquisa sociocientífica. A análise e a crítica dessas narrativas hegemônicas podem servir como guias para as pressuposições dos agentes envolvidos na luta antitráfico, rasgando a bruma da retórica que circunda o tema e revelando,

90 Mais particularmente, o 1º Seminário Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, em Brasília, nos dias 3 e 4 de outubro de 2007, mas também várias conferên-cias, reuniões e seminários locais no Rio de Janeiro, organizados pelo CEdIM, pela Secretaria Estadual de direitos Humanos, pela ONG TRAMA, e pelo Ministério de Justiça Federal entre 2004 e 2007.

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pelo menos parcialmente, quais práticas estão sendo propostas na luta antitrá-fico e que lógica a sustenta91.

A primeira narrativa hegemônica salienta a necessidade de o Brasil “de-monstrar que é um membro responsável da comunidade das nações”. A se-gunda separa as brasileiras em deslocamento internacional em dois tipos: as “que podem viajar” e as que “são vulneráveis e não devem viajar, pelo me-nos por enquanto”. A terceira situa a prostituição em geral como trabalho excepcionalmente degradante e perigoso e equipara-a ao tráfico das drogas. A última narrativa geralmente aparece em depoimentos pessoais – na mesa do bar ou na do almoço, nas reuniões cordiais por ocasião das conferências – e sempre reconta a história de uma “mulher de família”, brasileira, (tipicamente a depoente ou uma amiga dela) que, em função dos preconceitos de agentes alfandegários estrangeiros, foi confundida com “uma prostituta comum” no momento de atravessar alguma fronteira internacional.

Tomadas em conjunto, essas histórias revelam não uma preocupação com os direitos humanos ou constitucionais de brasileiras em trajetórias de deslocamento internacional, mas sim a reformulação de uma moralidade tra-dicional que divide as mulheres em “boas” e “más”, substituindo-se estes por novos adjetivos. O resultado é a criação de duas classes de mulheres – as que “podem viajar” e as que “não devem viajar” – cujas características, falando de forma abrangente, rearticulam preconceitos antigos baseados em cor, classe e “pureza” sexual. Por fim, esta visão dicotômica da feminilidade brasileira é mobilizada a serviço de um projeto que visa “resgatar a dignidade e a honra do país”92 através da proibição do tráfico – criando um mundo em que o cons-tante harassment de brasileiras em viagens internacionais (particularmente as mais morenas e pobres) é naturalizado como um triste, mas necessário efeito colateral da luta para a construção de um mundo mais digno.

91 Existe, é claro, uma posição minoritária dentro do movimento antitráfico que contesta os discursos aqui apresentados. Todavia, até o presente momento, esta posição tem sido consistentemente marginalizada dentro do movimento.92 A fala é de um funcionário do Ministério de Justiça por ocasião do 1º Seminário Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.

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3.1- PRIMEIRA NARRATIVA: A LUTA ANTITRÁFICO E A HONRA DO BRASIL

A primeira dessas narrativas situa como absoluta a responsabilidade do Brasil em face dos tratados internacionais de combate ao tráfico – par-ticularmente o Protocolo de Palermo que o Brasil assinou em 2004 – mais importante até do que a responsabilidade do país diante de sua própria constituição. É mister notar, como discutimos acima, que tais tratados, embora representados pelos agentes antitráfico como diretrizes claras e completas, estão largamente abertas às mais diversas interpretações. Os Protocolos de Palermo, por exemplo, podem ser lidos de diversas manei-ras e, embora definam o tráfico como algo que necessariamente envolve a violação dos direitos humanos, oferecem uma explicação mínima e aberta desses mesmos direitos. Ou seja, para serem eficazes, os tratados inter-nacionais contra o tráfico precisam ser definidos dentro de e traduzidos para os termos da jurisprudência nacional antes de serem colocados em prática. A assinatura de um tratado desse tipo deve ser, então, o início de um amplo debate sobre a definição dos termos e das condições das novas leis a serem implementadas.

Todavia, isto não foi o que aconteceu durante as poucas e curtas discussões públicas acerca da nova política de enfrentamento ao tráfico no Brasil. Em reuniões públicas, representantes do Ministério da Justiça bra-sileiro repetidamente afirmaram que o Protocolo efetivamente amarrou as mãos da nação acerca das definições do tráfico a serem seguidas. Como uma funcionária do Ministério da Justiça nos advertiu, numa reunião na sede da ONG TRAMA, em outubro de 2006: “O Protocolo já oferece uma definição clara do que é legal e do que não é; portanto, é inútil discu-tir, nessas alturas do campeonato, quais atividades devem ser permitidas”. Tal interpretação do Protocolo é no mínimo questionável, e a ausência de um debate mais amplo durante a formação do projeto da política nacional de enfrentamento ao tráfico tem garantido, pelo menos para um futuro próximo, que a definição legal efetiva de tráfico no Brasil continuará a ser aquela que consta do artigo 231 do Código Penal, que estipula que qualquer prostituta em movimento (nacional ou internacional) é, ipso fato, uma traficada. Neste caso, um projeto político de orientação democrática, que supostamente luta contra o tráfico de mulheres, tem sido configura-

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do como um programa autoritário93 de repressão à prostituição, e busca sua legitimidade popular no apelo às “responsabilidades internacionais do Brasil”. Assim, o direito constitucional que tem a prostituta – como toda cidadã brasileira – de ir e vir livremente está sendo restringido em nome do sustento do status e da honra do Brasil como membro da família das nações responsáveis.

3.2- SEGUNDA NARRATIVA: O TRÁFICO E VULNERABILIDADES

A segunda narrativa é particularmente interessante porque ela “dá nomes aos bois”, ou seja, indica quem será vigiado pela nova política na-cional “para seu próprio bem” e quem é imaginado estando além de seu alcance. A palavra-chave mais utilizada pelos agentes antitráfico neste sen-tido é vulnerável e a luta contra o tráfico resume-se largamente em iden-tificar vulnerabilidades e criar programas que atendam às supostas neces-sidades das populações delas portadoras. Em outras palavras, a traficada é imaginada como uma pessoa que opta pelo deslocamento internacional porque ela é, de uma forma ou de outra, incapaz de decidir racionalmente em função de determinadas características: as vulnerabilidades. Todavia, a vulnerabilidade é um substantivo maravilhosamente flexível quanto aos seus poderes de explicação, criando, em muitos casos, uma perfeita tau-tologia, na qual qualquer traficado há de ser vulnerável ao tráfico, pois a condição necessária para o tráfico é entendida como a própria vulnerabi-lidade.

93 Por causa do uso mais generalizado do termo “autoritário” como categoria acu-satória, vale a pena salientar que o usamos aqui para indicar um processo em que autoridades políticas têm gerado projetos e planos em nome do povo sem a inclusão do demos, de quem se espera que aceite passivamente tais artefatos como fait acom-pli. Como discutiremos adiante, o Plano de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas visa tipos e a populações no Brasil tidos como excepcionalmente vulneráveis ao trá-fico. No entanto, as medidas para enfrentar e/ou remediar tais vulnerabilidades estão sendo largamente formuladas não propriamente pelos grupos vulneráveis, mas por membros de uma elite sociopolítica brasileira que se entende como defensora dessas populações.

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É desnecessário dizer que poucos estudos sociocientíficos brasilei-ros sobre a população que mais migra em função do trabalho sexual têm conseguido comprovar a tese de que existe alguma ligação entre pertencer a uma determinada categoria cultural ou socioeconômica e ser vítima do tráfico. Tal ligação pode existir, é claro, mas na grande maioria dos estudos ela é simplesmente presumida e não comprovada, muito menos explicada.

Um exemplo atípico – pois é relativamente elaborado – deste tipo de enunciação pode ser encontrado na própria PESTRAF, cujos autores argumentam que existe “uma estreita relação entre pobreza, desigualdades regionais e a existência de rotas de tráfico de mulheres e adolescentes para fins sexuais em todas as regiões do Brasil” (PESTRAF, 2002: 55). Todavia, os dados da Pesquisa nos permitem questionar esta afirmação, já que a região com o segundo maior número de pobres no país, de acordo com a PESTRAF – a Sudeste – abriga somente 35 rotas do tráfico. Enquanto isso, a região com o maior número de rotas de tráfico – a Norte – tem pouco mais que a metade do número de pobres que a região com o menor número de rotas – a Sul94.

Nos discursos dos agentes antitráfico no Brasil, a vulnerabilidade pode ser resumida a uma série de atribuições, quase sempre apresentadas de forma essencialista e reducionista. Elas incluem: cor e raça (negro ou pardo é entendido como mais vulnerável que branco); classe (pobre é mais vulnerável que rico); gênero (mulher é mais vulnerável que homem); edu-cação (universitário é menos vulnerável que analfabeto); idade (criança é mais vulnerável que adulto) e até o posicionamento sociocultural relativo

94 Os dados de PESTRAF demonstram uma correspondência entre a porcentagem de população pobre (por região) e o número de rotas de tráfico contado pela pesquisa. Todavia, tal demonstração não permite a presunção de que exista uma “estreita rela-ção” entre os dois dados estatísticos. Poderíamos, por exemplo, formular um gráfico semelhante demonstrando uma correspondência entre a temperatura mediana das re-giões em questão e o número de rotas de tráfico, mas isto não comprovaria nenhuma relação entre o clima e o tráfico – muito menos uma relação estreita – sem muito mais investigação. Como os dados em questão também indicam que NÃO existe nenhuma correspondência entre o número absoluto de pobres por região e o número de rotas de tráfico, podemos presumir que as evidências apresentadas por PESTRAF nos di-zem muito mais a respeito dos pressupostos sociopolíticos de seus autores do que as realidades brasileiras que estes pesquisaram.

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à metrópole brasileira (interiorano, favelado e suburbano são mais vulne-ráveis do que moradores do asfalto e/ou do centro). Tais vulnerabilida-des quase nunca são exploradas, explicadas ou até mesmo propriamente definidas pelos agentes antitráfico: na maioria dos casos observados, são simplesmente citadas, como se seus conteúdos epistemológicos e etimo-lógicos fossem óbvios. dessa maneira, o poder explicativo das vulnerabi-lidades no quadro do tráfico é altamente subsidiado por preconceitos sub-jacentes e, muitas vezes, descrições de cunho ostensivamente sociológico mesclam-se livremente com os estereótipos banais e excludentes.

Excelente exemplo disto foi observado num seminário na sede do Conselho Estadual dos direitos da Mulher (CEdIM), no Rio de Janeiro, em junho de 2005. Nessa ocasião, uma funcionária da Secretaria Estadual dos direitos Humanos descreveu as vítimas do tráfico no Rio de Janeiro como “altamente vulneráveis” ao tráfico por serem “mulheres afrodes-cendentes, moradoras do subúrbio carioca, economicamente excluídas e detentoras de baixíssimo grau de instrução formal”, condições que “difi-cultavam sua capacidade de viajar internacionalmente com segurança”. Na ocasião do seminário, sua apresentação foi acoplada a de um funcionário da Polícia Federal carioca, que situou como agravante do tráfico o fato de que, desde o fim do governo militar brasileiro, “o passaporte é tido como direito do cidadão” e que, durante a ditadura, simplesmente ele não era emitido para pleiteantes entendidos como o tipo que “não devia viajar”. “Muitas vezes, é só olhar para saber que a pessoa vai embora e vai entrar em dificuldades, mas precisamos emitir o passaporte. Não era assim anti-gamente”.

Naquele momento, a linguagem politicamente correta (afrodescen-dente, economicamente em desvantagem, baixo grau de instrução) ocu-pava o mesmo espaço dos não enunciados sinônimos excludentes (preta, pobre e burra), em função do mesmo projeto político: a determinação de que indivíduos portadores de certas características deveriam ser proibidos – ou pelo menos fortemente desincentivados – de viajar internacional-mente. Como uma funcionária do Ministério de Justiça Federal advertiu por ocasião do 1º Seminário Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, em outubro de 2008: “Ninguém deve poder sair do Brasil até que tenha condições de sair dignamente”. As questões sobre quem terá o poder de determinar o que é “dignidade” e como essa determinação será

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cumprida ficam frequentemente soterradas no discurso brasileiro sobre o tráfico, na corrida para forjar um consenso ao respeito do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.

3.3- TERCEIRA NARRATIVA: A PROSTITUIÇÃO COMO DEGRADAÇÃO

A terceira narrativa é bastante tradicional e não tem mudado muito desde o início do século passado e o pânico moral a cerca da assim cha-mada escravidão branca. Nela, a prostituição – e, de fato, qualquer tipo de trabalho sexual comercial – é entendida como perigosa, excepcionalmente exploradora, ilegal e degradante. Nessa visão de mundo, quase nenhu-ma mulher sã, informada, inteligente e/ou com outras opções na vida escolheria ser trabalhadora sexual. Exemplo claro de tal posição pode ser encontrado no boletim de julho de 2003 da Sempreviva Organização Fe-minista (SOF), que situa qualquer forma de prostituição como sinônimo de tráfico de mulheres, qualifica o mercado sexual como “uma forma con-temporânea de escravidão” e afirma que “aproximadamente três quartos das mulheres traficadas não sabem que se destinam a clubes de strip, bor-déis, ou às ruas, onde são vendidas para compradores ansiosos. A maio-ria das mulheres procura escapar da pobreza, da violência e da falta de oportunidades mas, uma vez sob o controle dos cafetões, são apanhadas pela prostituição por coação e por violência física, sexual e econômica” (Sempreviva Organização Feminista, 2003: 1).

Como o tráfico é supostamente um fenômeno clandestino, contro-lado pelo crime organizado e sem monitoramento por organizações go-vernamentais e da sociedade civil (PESTRAF, 2002: 48), podemos nos indagar como é que a SOF (ou qualquer outra ONG) conseguiu dados tão precisos sobre o fenômeno. Neste caso, a necessidade de apresentar provas críveis foi aparentemente menos urgente do que a de aumentar uma sensação de pânico moral, pois as alegações das Semprevivas são expostas sem fonte alguma de comprovação. Mais relevante aqui, porém, é a articulação da prostituição com a coação (para não dizer escravidão), a ilegalidade (sobretudo a noção de uma máfia criminosa controladora) e, mais importante, a ideia de que ser prostituta é necessariamente ser (ou estar sendo) uma espécie de mulher inferiorizada.

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Todas estas caracterizações são frequentemente repetidas por agen-tes antitráfico em seminários e conferências. O melhor exemplo observa-do pelos autores foi durante o Seminário sobre Tráfico de Seres Humanos e Exploração Sexual, promovido pelo Secretário de Estado de direitos Humanos do Rio de Janeiro, no MAM, no dia 24 de novembro de 2004. Nesse evento, o então Secretário, Jorge da Silva, equiparou a prostituição ao tráfico de drogas como uma ameaça à juventude – algo impulsionado pela crescente miséria no Rio de Janeiro – e colocou à disposição a sua equipe para a luta contra as violações de direitos humanos causados por ela, particularmente no âmbito do tráfico de pessoas.

Tais alegações, reiteramos, mais parecem estar sustentadas por pre-conceitos de ordem moral do que por provas objetivas. Embora, com certeza, existam casos de violações dos direitos humanos das prostitutas e, em muitas zonas, o comércio do sexo seja controlado por elementos cri-minosos e frequentemente através da violência, não sabemos o suficiente sobre a prostituição no Brasil para caracterizar o comércio sexual como necessariamente mais criminoso e violento do que as relações sexuais normativas. É mister salientar aqui que o recente estudo da Organização Mundial da Saúde (2002), realizado em São Paulo e Pernambuco, revelou que em torno de 30% das mulheres na faixa de 15 a 49 anos reportaram ter sofrido violência física e/ou sexual por parte de seus parceiros, dado que infelizmente permite que nós qualifiquemos a violência como normativa em relações entre os gêneros no Brasil.95

A alegação de que a miséria causa a prostituição é igualmente po-lêmica. Como ilustram os recentes exemplos de Raquel Pacheco (mais conhecida como Bruna Surfistinha) e Thaíza Thompsen (a ex-Miss Brasil, suspeita – erroneamente – de ser vítima do tráfico de mulheres), as prosti-tutas podem ser originárias de qualquer camada social. Não existe estudo

95 Por “normativa” queremos indicar, seguindo Emilé durkheim, um fato social que é onipresente, encontrado “se não em todos os indivíduos [da mesma espécie social], pelo menos entre a maior parte deles”. A violência, é claro, não é comum entre todos os casais no Brasil – nem a maior parte – mas quando a “espécie” sociológica con-templada é qualquer população brasileira existente, composta de casais, a violência é sempre encontrada em quantidades significativas, e isto nos permite classificá-la como normativa. É claro que “normal”, no sentido durkheimiano, não quer dizer “bom” e nem mesmo “aceitável” (durkheim, 1978: 114).

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confiável que comprove que os grupos qualificados como “miseráveis” no Brasil geram, percentualmente, mais prostitutas que os grupos mais abastados. É notável, neste contexto, que nossas pesquisas em Rio de Ja-neiro indiquem que a grande maioria das prostitutas lá encontradas não é oriunda das classes mais miseráveis da cidade, nem “caíram na vida” por falta de outras opções de emprego ou por violência.96 As nossas investiga-ções também assinalam que existem vários níveis de prostituição no Rio, indo do mais baixo meretrício de rua aos clubes exclusivos, cujas garotas de programa são recrutadas entre atrizes de TV e celebridades de menor expressão. O caso de Thaís Thompsen é ilustrativo aqui: de acordo com uma reportagem investigativa da revista Istoé, a ex-Miss Brasil trabalhava em um esquema de prostituição no qual se cobravam até R$ 70.000 por programa (Rabel & Rodrigues: 2007).

da mesma forma, a constante equiparação da prostituição ao tráfi-co de drogas está equivocada. Em primeiro lugar, a autoprostituição por maiores de idade não é ilegal no Brasil – o tráfico de drogas é. Em segun-do, não existe nenhuma evidência objetiva de que uma máfia criminosa controle grande parte das prostitutas no Brasil, mas existem várias evi-

96 A maioria de nossas informantes é da classe operária ou da classe média baixa. Um número expressivo (por volta de 25%) é de (ou já foram) alunas universitárias, e muitas relataram combinar a prostituição com outras fontes de renda (tipicamen-te empregos ditos normais). Uma maioria largou outros empregos para entrar na prostituição, pois o comércio do sexo era visto por elas como uma atividade econo-micamente mais rentável. É claro que, numa sociedade machista, as oportunidades de emprego que estão abertas às mulheres – particularmente as das classes menos favorecidas – são poucas e geralmente pagam mal; neste sentido, podemos concordar que existe uma “exclusão estrutural” que pode empurrar as mulheres para o comér-cio de sexo. Todavia, é interessante comparar a prostituição com o casamento, outro nexo de relações intragêneros, que (como o estudo da OMS ilustra) acaba virando palco da violência contra a mulher. O casamento – e certamente sua continuidade sob ameaça de violência – também é, em muitos casos, oriundo de questões econômicas geradas pela “exclusão estrutural” da mulher. Até agora, no entanto, não testemunha-mos nenhum feminista ou integrante do movimento antitráfico agitar-se no sentido da abolição do casamento. Nestes dois casos, a mesma evidência é utilizada para se chegar a conclusões opostas: a violência no casamento é entendida como a deturpação de uma instituição basicamente positiva, enquanto a mesma violência, no contexto da prostituição, é considerada como a comprovação da essência perversa de relações sexuais comerciais.

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dências, tanto históricas quanto etnográficas, de que a polícia, pelo menos no Rio de Janeiro, exerce um papel ativo na organização e no controle do comércio de sexo.97

Estes dados levantam dúvidas sobre um estado que, por um lado, reconhece como seu dever a repressão às violações dos direitos humanos das mulheres e, por outro, é servido por funcionários públicos que enten-dem as prostitutas como seres essencialmente criminosos e destituídos de direitos.

Por ocasião do Seminário acima referido, perguntamos ao Secretá-rio Jorge da Silva sobre um caso recente em Nova Friburgo, RJ, onde duas prostitutas foram feridas e uma foi morta por um policial fora do expediente.98 O policial em questão foi absolvido pelo júri que, aparente-mente, foi influenciado pela alegação de que as três mulheres, por serem prostitutas, estavam envolvidas com o tráfico de drogas. O Secretário ad-mitiu ignorar o caso e nos passou para as mãos de um assessor. Este, por sua vez, explicou que a Secretaria não podia fazer nada, pois o caso já tinha sido julgado. Não ofereceu, porém, nenhuma explicação de por que nada tinha sido feito antes, quando a intervenção da Secretaria ainda era possível. Indagado sobre esta possibilidade, o assessor mudou de rumo e afirmou que “A prostituição, no fundo, é um problema de família e não da Secretaria dos direitos Humanos. É a falta de moralidade na e a des-truição da família no Brasil que está empurrando cada vez mais meninas ao mercado de sexo e seus irmãos, ao tráfico de drogas. A máfia da noite

97 Quanto ao envolvimento histórico da polícia na organização da prostituição no Rio de Janeiro, ver leite (1993) e Caufield (2000a; 2000b), entre outros. As evidências et-nográficas vêm de nosso trabalho de campo e consistem, basicamente, de entrevistas com prostitutas que afirmam que “não se pode abrir uma boate, termas ou bordel no Rio de Janeiro sem ter um policial como parceiro”. Também temos feito várias obser-vações diretas da atuação seletiva da polícia carioca na repressão ao turismo sexual. O melhor exemplo disto talvez seja de 2006 quando, no auge de uma miniblitz da polícia federal carioca contra “o turismo sexual e o tráfico das mulheres”, podia se observar uma notória boate de prostituição, amplamente frequentada por estrangeiros e loca-lizada a menos de 300 metros da porta da sede da PF na praça Mauá, ostentando em sua porta uma tabela de preços, em inglês e português, pelos serviços sexuais ofereci-dos pelas garotas do estabelecimento, sem suscitar uma reação por parte da PF.98 Uma foi morta, outra que estava grávida perdeu o filho e ficou tetraplégica (Nobre, 2004: 1).

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leva vantagem nessa situação, pois os pais não podem mais segurar seus filhos. diante do quadro geral da miséria brasileira, tem pouco que nossa Secretaria possa fazer”.

Neste caso, então, a “miséria geral” do Brasil foi colocada como ex-plicação de por que a Secretaria não interviera em um caso que envolvia a clara violação dos direitos humanos de três prostitutas, e a lógica sub-jacente parece concordar com a relação entre prostituição e drogas feita pelo júri em Nova Friburgo. Esta articulação da prostituta com o trafi-cante e a descrição de ambos como seres “caídos”, destituídos de família, encontram sua lógica não nos fatos observados na zona99, e muito menos no Código Penal brasileiro, mas sim em uma tradição social conservadora que, de acordo com ROBERTO dAMATTA, contrapõe a casa e a rua como duas regiões morais, marcadas por éticas próprias e habitadas por seres diferenciados (dAMATTA, 1997: 44-48; 1990: 196-200). Se, na casa, somos pessoas conhecidas, protegidas das duras realidades da vida, na rua, somos indivíduos anônimos, colocados à mercê de um sistema brutal, uni-versalizador e indiferente. Ser individualizado desse jeito, numa sociedade semitradicional como a brasileira, de acordo com dAMATTA, não é con-quistar a cidadania plena, mas perder todo o respeito e a consideração.

Nas palavras dos representantes da Secretaria do Estado do Rio de Janeiro para direitos Humanos, vemos uma definição tradicional da pros-tituta como uma mulher degradada, destituída do colo redentor da família, no qual ela supostamente encontraria o que é entendido como sua exis-tência natural. Ela se transforma, enfim, em uma mulher da rua. A partir dessa lógica, a menina que se prostitui está perdida como filha e como mãe, enquanto seu irmão traficante está perdido como trabalhador: ambos passam da categoria pessoa respeitada para a de vagabundo(a).

No discurso antitráfico no Brasil, as visões geradas por feministas sobre as prostitutas encontram-se, em pontos cruciais, em sintonia com essas visões conservadoras e tradicionais sobre o lugar da mulher na so-ciedade brasileira. A posição feminista vê a redenção da prostituta pela profissionalização (fora do mercado de sexo, é claro) enquanto os conser-

99 Basta dizer que quase todas as nossas informantes de Copacabana mantêm apa-rentemente boas e íntimas relações com suas famílias, e que temos visto muito mais tráfico e uso de drogas em bares da classe média no Rio de Janeiro do que nos points de prostituição da cidade.

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vadores veem a família, o casamento e as crianças como as agências que devem resgatar a feminilidade decaída. Todavia, ambas as posições se sus-tentam numa condenação moral a priori da prostituição como essencial-mente degradante. Se os conservadores entendem a prostituta como uma vagabunda que precisa ser repudiada ou controlada, as feministas tendem a percebê-la (nas palavras de dAMATTA, 1990: 199) como “uma fodida” que precisa ser salva. Ambas as visões negam à prostituta a consideração e o respeito devidos a uma pessoa e a situam como “o tipo de gente que tem que seguir imperativamente todas as leis” (Ibid: 199), um indivíduo indistinto e, portanto, sujeito a programas universalizadores. A diferença principal entre as duas posições, no âmbito do Estado brasileiro, é que, enquanto a primeira tende a fazer a intervenção social através de medidas repressoras, a segunda vincula-se à engenharia social através da tutela. Po-rém, do ponto de vista da mulher engajada no trabalho sexual comercial, ambas as posições perdem suas distinções em face de uma característica comum: as duas não vêem a prostituta como pessoa, e sim como a inte-grante anônima de um problema geral que deveria desaparecer.

3.4- QUARTA NARRATIVA: GAROTAS DE PROGRAMA E MOÇAS DE FAMÍLIA

Podemos ver com mais clareza a confluência entre os valores semi-tradicionais, descritos por dAMATTA, e os discursos articulados por pes-soas que se entendem como defensores liberais dos excluídos no Brasil, nos depoimentos pessoais de membros do movimento antitráfico. Nas conferências e nos seminários sobre o tráfico no Brasil – e notavelmente nos espaços e nos momentos de socialização que ali existem – escuta-se uma quarta narrativa que é amplamente repetida por várias dessas pessoas: a história de uma moça de família brasileira que, no instante de cruzar uma fronteira no exterior, é erroneamente classificada por agentes de imigração como prostituta.

Muitos autores têm analisado a honra feminina no Brasil, suas in-terseções com categorias de raça, cor e classe e suas transformações e continuidades com o advento da modernidade (BASSANEZI, 1997; BES-SE, 1996; CAUlFIEld, 2000a e b; ESTEVES, 1989; FONSECA, 1997; GRAHAM, 1989; PEdRO, 1994; PEREIRA, 2006; SOIHET, 1997, en-tre vários outros). desses pensadores, quase todos salientam a reprodu-

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ção, através do tempo, de uma ideologia que divide as mulheres em dois campos, seguindo a dupla lógica de casa e rua delineada por dAMATTA (1997). Por um lado, existe a mulher de família ou honesta, cuja pureza é essencialmente medida através de seu comportamento sexual: virgindade, no caso da moça; castidade e fidelidade, no caso da mulher (FONSECA, 1997: 528). Por outro lado, existe a mulher de rua, desonesta, decaída ou suspeita, cuja classificação, novamente, é construída a partir de seu com-portamento sexual promíscuo, infiel e/ou mercenário.

de acordo com SUEANN CAUlFIEld, a modernidade do século XX e a crescente liberalização de comportamentos e papéis sexuais no Brasil complicaram a simples dicotomia entre virgindade/honestidade/fa-mília, segundo certa ótica, e promiscuidade/desonestidade/rua, de acordo com outra. (evitei repetir aqui tão próximo por um lado... por outro lado) O hímen deixava de ser o “selo de qualidade” da feminilidade e a hones-tidade da mulher começava a ser medida mais por seu comportamento público. Todavia, a virgindade/castidade continuava como marca de uma feminilidade brasileira idealizada durante a maior parte do século XX, e a liberdade – enquanto conceito aplicado a uma mulher – era largamente usada para denotar impureza sexual, portanto, desonestidade.

Como CAUlFIEld adverte, “a honestidade de uma mulher depen-dia de sua submissão à vigilância de seus protetores (normalmente a fa-mília)” (2000a: 210). Em seu estudo sobre os “anos dourados”, da década de 50, Carla Bassanezi salienta a continuação dessa dinâmica e da divisão entre moças de família e moças levianas, e observa que, apesar das trans-formações feministas das décadas subsequentes, os valores desse período continuam presentes ainda hoje em hierarquias que ordenam brasileiras (BASSANEZI, 1997: 637).

Certamente, no Brasil do século XXI, não há mais a expectativa he-gemônica de uma mulher ser virgem até o dia de seu casamento, nem a de que ela deva aceitar, sem reação, infidelidades masculinas em nome da pre-servação da sagrada instituição do matrimônio. No entanto, muitos brasi-leiros ainda acreditam na existência de mulheres honestas e desonestas, e continuam pensando que tal classificação pode ser estabelecida através do comportamento sexual. O que seja exatamente uma moça de família em 2008 é amplamente debatido, mas uma coisa continua como certeza nas mentes da maior parte dos brasileiros: ela certamente não é uma prosti-

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tuta. Aliás, num país em que o comportamento esperado de uma mulher honesta está sujeito a múltiplas e conflitantes definições, a categorização de prostituta como o exemplo mor da mulher suspeita, mais do que nun-ca, tem grande importância. Afinal de contas, sua existência permite certa harmonização entre a ambiguidade da vida feminina contemporânea e as tradições culturais de gerações anteriores: apesar de não ser mais virgem e nem tão casta, não sendo prostituta, a mulher brasileira pode continuar a lançar mão da identidade de boa moça.

É sob essa luz que devemos pensar as histórias contadas pelos agen-tes antitráfico, em que mulheres ou moças de família são confundidas com “putas”na hora de passarem pela alfândega de um país estrangeiro. Um exemplo típico dessa narrativa pode ser encontrado nas palavras de uma socióloga, 30 anos de idade, funcionária de uma ONG antitráfico: “Estou cansada de ter que provar para guarda europeu que não sou garota de programa”.

Cada vez que viajo à França ou à Espanha, é fatal: eu tenho que passar pela vergonha de ser confundida como prostituta. Na última viagem (em 2006), fiquei presa na Alfândega por quase uma hora enquanto o guarda me fazia cada tipo de pergunta! Era óbvio que ele achava que eu estava indo à Europa para me prostituir. Para esses homens, toda brasileira é igual. Realmente, temos que fazer alguma coisa para reduzir o número de garotas de programa que está na Europa, pois isto está virando uma vergonha nacional.

O ultraje nessa história, para a mulher em questão, reside na percep-ção de que, para os europeus, “toda brasileira é igual (i.e., prostituta)” e que esta percepção é aplicada a ela, uma mulher honesta. Uma vergonha pessoal é, então, subitamente transformada em uma vergonha nacional, e o remédio proposto não é corrigir os preconceitos europeus, mas sim reduzir o número de brasileiras desonestas que está supostamente infes-tando a Europa.

O interessante nessas histórias é a constante afirmação de que as-sociar o Brasil e as brasileiras com o sexo, particularmente com a prosti-tuição, é “uma vergonha” – uma visão que parece ganhar cada vez mais espaço nas políticas públicas brasileiras. As razões pelas quais tal iden-tificação é vergonhosa quase nunca são explicadas, apenas presumidas.

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Podemos concordar que ser identificada como prostituta pode, de fato, ser uma experiência desagradável, dada a profundidade dos preconceitos que muitas pessoas têm contra a prostituição. Mas identificar tal experiência como vergonhosa implica necessariamente a internalização prévia da ideia de que a prostituição em si é e deve ser marca de estigma. Muitas femi-nistas envolvidas com o movimento antitráfico fazem objeções de que a constante associação da brasileira com sexo e prostituição é degradante. Todavia, como observa Gabriela leite, da Rede Brasileira de Prostitutas, “Até agora, ninguém nunca conseguiu me explicar por que essa associação é tão ruim assim”.

Afinal das contas, todo mundo está dizendo que é horrível a fama da mulher brasileira lá no exterior. Horrível? Internacionalmente, a mulher brasileira é considerada bonita, sexy, boa de cama e sexualmente livre. Desde quando isto é considerado horrível? Toda mulher neste mundo é vista por estereótipos e o da brasileira está longe de ser o pior. Não é isto que cada santa revista feminina e programa de televisão pregam – que de-vemos ser bonitas, livres e sexy? O que é que essa gente preferiria? Que nós fôssemos internacionalmente percebidas como feias, reprimidas e frígidas? Claro que não! Mas aí é que está: estas características são consideradas como problemáticas somente enquanto estão associadas com a prostituição. A “vergonha” sobre a qual eles tanto falam não é na identificação da mulher brasileira com sexo. Nenhum militante antitráfico jamais sugeriu, por exemplo, que Adriana Galisteu, ou Luciana Jimenez, ou até o show da Xuxa fossem retirados do ar em nome de combater “a vergonha nacio-nal”. O problema é só quando esse estereótipo é ligado com a prostituição. Mas, uma vez tendo admitido isto, teremos que admitir que não existem muitas razões racionais para odiar tanto a prostituição, então, é muito melhor fingir que não gostamos que a mulher brasileira seja vista como objeto sexual. Certo. Gastamos horrores em produtos de beleza, cirurgia plástica, roupas colantes e implantes para peitos, bumbums e Deus sabe o que mais; rebolamos feito malucas no Carnaval, dançamos a dança da garrafa e do créu, mas estamos realmente, como mulheres brasileiras, preo-cupadas com a nossa associação com sexo aos olhos do mundo (Entrevista, 13 de dezembro, 2004).

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4. MENINAS MÁS VÃO PARA TODO LUGAR...?

Na linha de roupas daspú, produzida por e para prostitutas e ge-renciada por Gabriela leite, pode se comprar uma camiseta com a fra-se “Meninas boas vão para o Céu: meninas más vão para todo lugar”. É justamente esta afirmação que parece assustar muitos dos integrantes do movimento antitráfico brasileiro. Embora a retórica do movimento demonstre uma preocupação com os direitos humanos, as práticas de re-pressão formuladas pelo Estado brasileiro – sob a suposta orientação do Protocolo de Palermo, mas seguindo o mandato legal dos artigos 231 e 231a do Código Penal – continuam vendo a prostituição como caracterís-tica necessária e suficiente para rotular determinada situação como tráfico. A repressão policial antitráfico continua a se orientar pela proibição ao movimento de prostitutas, e não pelo desejo de garantir a essas mulheres (e homens) seus direitos humanos. Enfim, como observava Gabriela leite na ocasião do 1º Seminário Nacional de Enfrentamento ao Tráfico das Pessoas: “Fala-se muito aqui em lutar contra o tráfico, mas no dia-a-dia o que se vai fazer é prender as “putas”e chamá-las de ‘traficadas”. E isto num país onde a prostituição não é ilegal”.

Para um movimento cujas fileiras são largamente compostas por sociólogos, assistentes sociais, militantes feministas, socialistas e antir-racistas, as contradições inerentes a esta situação devem ser óbvias. No entanto, quase nenhuma discussão tem sido feita sobre tal contradição nas conferências e nos seminários do movimento. As narrativas analisadas acima nos permitem afirmar que pelo menos uma das razões dessa situ-ação existir é que muitos dos agentes políticos do movimento antitráfico são orientados por valores conservadores e tradicionais que dão conteúdo emocional e efetivo às suas proclamações em favor dos direitos humanos. Esses valores perpetuam, numa linguagem liberal e humanista, a velha no-ção de que existem “dois Brasis”, e que tão somente um deles deve receber toda a consideração e todo o respeito que sua posição merece; o outro há de ser gerenciado por leis universais e inflexíveis para seu próprio bem.

Todavia, é mister refletir por que o tráfico das mulheres transfor-mou-se, de repente, em um campo privilegiado para a geração de políti-cas públicas dessa natureza. Certamente, grande parte do problema reside no recrudescimento das fronteiras internacionais após o início da atual “Guerra contra o terror”. Também o tráfico das pessoas tem sido um

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tópico bastante discutido por organizações internacionais multilaterais, como a ONU e a OIT, em anos recentes. Mas estes fatos não explicam a razão de o Brasil estar atualmente tão sensível a determinadas questões quando estas aparecem no cenário internacional.

Em seu trabalho, “The Virgin and the State” (“A Virgem e o Estado”, 1996 (1978)), a antropóloga Sherry Ortner articula a preocupação com o controle da pureza sexual da mulher (e a “fetichização” dessa pureza na representação do status masculino de um determinado grupo) com a con-solidação de sociedades complexas organizadas em torno da instituição do Estado. Na acepção de ORTNER, a pureza feminina está calcada sobre estruturas de hipergamia, ou seja, sistemas em que grupos de status mais baixo criam alianças com grupos de status mais alto através da instituição do casamento e, em particular, através da prestação de esposas. Com o nascimento do Estado, os casamentos deixaram amplamente de ser uma transação lateral entre grupos essencialmente iguais e adquiriram a possi-bilidade de serem transformados em transações verticais, nas quais a irmã ou a filha de uma pessoa comum pode, potencialmente, acabar como a esposa de um nobre ou mesmo de um rei. Nesses sistemas, a pureza sexu-al da mulher simboliza o seu valor e o fato de ela ser merecedora de uma aliança hipergâmica, pois “a virgindade (de uma mulher) é simbólica de exclusividade e inacessibilidade, de ela não ser acessível às massas e de ela ser, enfim, elite” (Ortner, 1996 (1978): 54-56).

de acordo com Ortner, porém, a preocupação com a pureza femini-na não representa o status atual do grupo, e sim seus sonhos de ascensão social:

Eu argumentaria que, ao contrário do que estipulam as ideologias nativas, as mulheres não representam ou mantêm o status atual de um grupo, mas são orientadas para uma idealização de um status mais alto para o grupo. Acho que um dos problemas da literatura referente à pureza é que ela não penetra sob a superfície das ideologias nativas; os nativos justificam a pureza da fêmea em termos da manutenção do status atual do grupo, como uma espécie de defesa daquela posição no sistema, quando, de fato, ela é orientada para um status idealizado, geralmente não atingível. Esta inatingibilidade, por sua vez, pode explicar parte do sadismo e da raiva direcionados às mulheres e expressos nesses padrões de pureza, pois nesse sistema as mulheres representam as classes dominantes (Ibid: 57).100

100 “I would argue that women are not, contrary to native ideology, representing and

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Ora, se aceitarmos os insights de ORTNER sobre a virgindade fe-minina e suas interações com o Estado, poderemos indagar o que significa a putice. Se a “virgem é uma fêmea de elite entre as fêmeas: reclusa, não tocada, exclusiva” (Ibid: 56), então a “puta” há de ser o oposto: uma mu-lher altamente acessível e poluída. Uma mulher, enfim, do povo, no pior sentido da palavra, literalmente, uma mulher pública, de todos, portanto, de ninguém, com baixíssimo grau de valor no mercado matrimonial.

Em sistemas multissocietários, regidos por Estados-nações, a ques-tão da troca de mulheres complexifica-se, pois os preconceitos étnicos e/ou nacionais podem chegar a ocultar a leitura “correta” da virgindade. Quando a troca sexual/matrimonial acontece em uma determinada so-ciedade, na qual os símbolos de pureza são mais ou menos legíveis para a grande maioria das pessoas, é relativamente fácil determinar quem é e quem não é “pura”. Porém, quando tais alianças acontecem entre socie-dades, a possibilidade de discernir sobre a pureza relativa de uma deter-minada mulher pode ser reduzida, sendo a etnicidade ou a nacionalidade lida como “marca” da qualidade feminina. Neste sentido, podemos refletir que a palavra “francesa”, no Rio de Janeiro do início do século XX, era sinônima de prostituta e, hoje em dia, o mesmo parece estar acontecendo com a palavra “brasileira” em certas partes da Europa.

5. CONCLUSÕES

A nosso ver, uma das razões-chave de o tema do tráfico internacional das mulheres estar sendo utilizado no Brasil para desincentivar o movi-mento internacional de prostitutas tem a ver com a atual preocupação brasileira com a melhoria da reputação da nação aos olhos do mundo. O comportamento sexual de mulheres brasileiras além-mar parece ter susci-tado uma série de preocupações quanto ao fato de a prostituição não ser

maintaining a group’s actual status, but are oriented upwards and represent the ideal higher status of the group. One of the problems with the purity literature, I think, has been a failure to get beneath native ideology; the natives justify female purity in terms of maintaining the group’s actual status, as a holding action for that status in the sys-tem, when in fact it is oriented toward an ideal and generally unattainable status. The unattainability may in turn account for some of the sadism and anger toward women expressed in these purity patterns, for the women are representing the over-classes themselves.” Minha tradução).

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condizente com a expansão do status do Brasil. E nisto, aparentemente, esbarramos com uma síndrome cultural de ampla difusão no mundo: a ligação entre a pureza sexual feminina, o Estado e o status relativo de grupos sociais.

O processo de elaboração da política brasileira de enfrentamento ao tráfico de pessoas parece, até o presente momento, sustentar esta hipó-tese. Baseada em dados equivocados, exagerados ou mal interpretados, primeiramente calcados em boatos ou em acusações e que equiparam a prostituição à exploração sexual, portanto, ao tráfico de pessoas, tal políti-ca aparenta estar voltada para atender às pressões de um pânico moral glo-bal.101 Ela busca demonstrar a maturidade relativa do Brasil, como mem-bro responsável no cenário internacional, através da construção de filtros que determinarão quais brasileiras terão permissão para viajar livremente e quais estarão sujeitas a uma vigilância redobrada “para seu próprio bem”. Nesta política há, porém, o grande perigo de que a preocupação com a es-cravidão sexual feminina possa acabar sendo mobilizada não para proteger as mulheres em questão, mas sim para reprimir os movimentos de certos tipos de mulheres, tendo em vista pôr a salvo a reputação internacional da nação.

Os principais agentes políticos envolvidos, no Brasil, na elaboração da Política e do Plano de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – os fun-cionários da UNOdC, da OIT e do Ministério da Justiça – afirmam una-nimemente que o Protocolo de Palermo norteia suas atividades. Todavia, em entrevistas e em suas falas públicas, essas mesmas pessoas reconhecem a existência do artigo 231 do Código Penal brasileiro e admitem que ele é, “pelo menos por enquanto”, o dispositivo que orienta a maior parte das atividades pragmáticas de repressão que serão lançadas no Brasil em função do novo Plano. É significativo, então, o fato de que em todos os se-minários, conferências e reuniões observados por nós na elaboração desta pesquisa, as contradições entre as duas definições nunca tenham sido dis-cutidas como impedimento à implantação do Plano. Como dizia uma de nossas informantes, funcionária do Ministério de Justiça, “O importante é ter uma Política e um Plano que sejam operacionais. Não temos a força política no Congresso para alterar ou eliminar o (artigo) 231 em tempo hábil. Portanto, discuti-lo agora só poderia atrapalhar tudo. A primeira

101 Veja Cohen (1972) para uma análise sociológica do conceito de pânicos moral.

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necessidade é ter algo que proteja nossas cidadãs vulneráveis. depois, po-deremos nos preocupar com as pequenas contradições, você não acha?”.

A sensação de urgência explicitada por nossa informante tem criado um artefato singular na luta contra o tráfico: duas definições legais dife-rentes para o mesmo crime. O fato de nossa informante não ver nisto um empecilho salienta sua crença de que, no fundo, existe um consenso sobre “o que é correto” e “o que deve ser feito” no combate ao tráfico, e que isto transcende a quaisquer preciosismos legais. Todavia, como demonstramos acima, se existe no Brasil um consenso hegemônico entre os agentes po-líticos ativos na formulação da Política e do Plano de Enfrentamento ao Tráfico, isto parece estar mais calcado em atitudes tradicionais e patriarcais a respeito de classe e gênero, e não em preocupações com direitos huma-nos. Portanto, não há de imaginar que as práticas cotidianas, orientadas por essas atitudes e efetuadas em nome do Plano, necessariamente serão um avanço em termos da proteção dos direitos humanos.

Fechamos aqui, então, com uma série de recomendações. Para que as novas determinações do Estado brasileiro sobre o combate ao tráfico não sejam transformadas em políticas e planos “para inglês ver” – ou, pior ain-da, em disposições que criam mais exclusão social – é de suma importância que as definições contraditórias sobre o tráfico, codificado no sistema le-gal brasileiro através do Protocolo de Palermo e do artigo 231, sejam am-plamente discutidas e democraticamente corrigidas. Ademais, é necessário que os direitos das trabalhadoras sexuais exercerem sua profissão e de ir e vir livremente, como a Constituição assegura a qualquer cidadão brasilei-ro, sejam reafirmadas e respeitadas. O primeiro passo nessa direção seria, como parte do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico, a convoca-ção das associações das prostitutas como parceiras ativas na definição e no cumprimento das metas deste Plano. Um segundo eixo seria a mobilização das forças políticas, aliadas ao governo, para promoverem uma redefinição do Artigo 231 do Código Penal brasileiro, colocando-o em sintonia com o Protocolo de Palermo. Finalmente, a questão sobre em que consiste o trabalho sexual legal no Brasil não pode ser mais prorrogada; está na hora de regulamentar esta profissão, providenciando uma definição clara, racio-nal e objetiva sobre o que exatamente seja a exploração sexual e o que é o trabalho sexual legítimo.

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Continuar na atual indefinição sobre estes conceitos, centrais na acepção do tráfico de pessoas, de acordo com o Protocolo de Palermo, é um convite para a fabricação de arbitrariedades, em que velhos precon-ceitos sobre o que é ser uma mulher honesta podem ser travestidos com a roupagem politicamente correta dos direitos humanos.

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MeNÇÃO HONROSa (2)

ESPECIALMENTE MULHERES: REFLEXÕES SOBRE A AUTONOMIA INDIVIDUAL E A CARACTERIZAÇÃO

DO TRÁFICO DE PESSOAS

Giovanna Maria Frisso

INTRODUÇÃO

No dia 11 de fevereiro de 2008, dez brasileiras foram detidas no aeroporto de Madrid na Espanha e, após 3 dias, repatriadas.102 Como um caso rotineiro,103 o Ministério das Relações Exteriores do Brasil (MRE) buscou explicar a decisão do governo espanhol com base na política de migração do espaço Schengen.104 Considerada uma das principais portas de entrada da Europa, a Espanha tem aumentado o controle de imigração em seus aeroportos desde 2007, explicou o MRE.

102 Veja notícia de Ana luísa Médici, ‘Brasileira é detida por três dias em sala lo-tada de aeroporto espanhol’ (Radiobras: Agência do Brasil, 20/02/2008), disponí-vel em: http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/02/20/materia.2008-02-20.6955224165/view (23/04/2005).103 O elemento rotineiro pode ser constatado a partir dos seguintes dados: “em janeiro e fevereiro, as autoridades do país (Espanha) barraram 880 brasileiros que tentavam entrar na Espanha, segundo dados do Ministério do Interior. Em 2007, houve em média oitos pessoas inadmitidas por dia; em fevereiro deste ano, foram 15 por dia.” Veja ‘Espanha reconhece ter ‘errado’ no tratamento oferecido a brasileiros’ (Folha Online 20/03/2008), disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidia-no/ult95u384139.shtml (23/04/2008). 104 “As medidas relativas ao Espaço Schengen preveem a abolição dos controlos nas fronteiras internas dos Estados Membros de Schengen, estabelecem regras comuns para os controlos nas fronteiras externas, definem uma política comum em matéria de vistos e introduzem medidas de acompanhamento que permitem abolir os controlos nas fronteiras externas (em especial no domínio da cooperação policial e judiciária em matéria penal).” ‘Schengen. Informações relativas ao direito comunitário. Introdução’ (Comissão Europeia), disponível em http://ec.europa.eu/youreurope/nav/pt/citi-zens/travelling/schengen-area/index_pt.html (20/04/2008).

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Todavia, algumas manifestações acerca do repatriamento das brasi-leiras na mídia brasileira contextualizaram a decisão do governo espanhol no debate sobre imigração, tráfico de mulheres e prostituição.105 Após re-latar o incidente, o Partido da Causa Operária, por exemplo, afirmou em seu site:

Na verdade, as autoridades, apesar de reconhecer o tráfico de mulheres, não fazem nada para combatê-lo, isso porque esta é uma das atividades mais lucrativas do mercado. Então, utilizam-se da fachada de combater o tráfico de mulheres para reprimir veementemente as mulheres brasileiras, mesmo porque o “método” utiliza-do, de encarceramento e maus tratos, para “combater” a prostituição já denunciam a total falta de interesse de “proteger” as mulheres.106

O trecho acima exemplifica claramente a dificuldade em se compre-ender as relações entre políticas de imigração, tráfico de mulheres e pros-tituição. Qual a diferença entre tráfico de pessoas e imigração clandestina? Qual a relação entre tráfico de mulheres e prostituição? Quais os interesses protegido por estes discursos? Este artigo busca desenvolver estas ques-tões a partir do debate acerca da autonomia da mulher: o valor legal de seu consentimento na atual normativa sobre o tráfico de pessoas.

Para tanto, será examinado, na primeira parte deste artigo, o processo de negociação do Protocolo para a Prevenção, Supressão e Punição do Tráfico de Pessoas, especialmente de Mulheres e Crianças,107 tam-bém chamado Protocolo de Parlermo.108 As controvérsias sobre a possibilidade de

105 Após a repercussão internacional do evento, o próprio adido espanhol, Jose Emi-dio Morgade lopo, estabeleceu a relação entre migração e tráfico de pessoas. Re-dação, ‘União Europeia estuda exigir visto para turistas latino-americanos’ (Portugal digital 19/04/2008), disponível em: http://www.portugaldigital.com.br/sis/noticia.kmf?noticia=7166778&canal=159 (22/04/2008). Como se observa, os discursos so-bre tráfico de pessoas e migração foram imediatamente relacionados de forma ime-diata. 106 ‘dez brasileiras foram mantidas encarceradas em aeroporto espanhol’ (Causa Ope-rária online 19/02/2008), disponível em http://www.pco.org.br/conoticias/ler_ma-teria.php?mat=3570 (20/04/2008).107 O Brasil assinou o Protocolo no dia 12 de dezembro de 2000, ratificação ocorreu em 29 de janeiro de 2004 sem nenhuma reserva.108 Os travaux preparatoires do Protocolo estão disponíveis no site http://www.unodc.org/unodc/crime_cicp_convention_documents.html

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a mulher consentir em trabalhar na indústria do sexo serão ilustradas a partir do posicionamento de duas coalizões de organizações não governamentais (ONGs) que participaram do processo de negociação do Protocolo: a Human Rights Caucus e a Coalizão Contra o Tráfico de Pessoas e seus Parceiros.109 A análise das posi-ções defendidas pelas coalizões se dará a partir de um enfoque voltado para as relações de gênero, refletida no nome do Protocolo: “especialmente mulheres”.110 Espera-se que esta discussão ofereça alguns elementos necessários à compreen-são da histórica identificação entre tráfico de pessoas e prostituição, explicitando os (pre)conceitos nela refletidos.

A segunda parte do artigo explora a questão do consentimento para diferenciar o tráfico de pessoas do contrabando de imigrantes, regulado pelo Protocolo contra o Tráfico por Terra, Mar e ar de Imigrantes. Esta discussão será desenvolvida a partir da distinção entre estrutura e agência, refletida no debate entre objetos e sujeitos de segurança. Com este enfoque teórico, busca-se examinar a relevância de um discurso que reconheça a agência da mulher e, portanto, as complexidades inerentes à opção de emigrar em um contexto global de desigualdade econômica e social.

109 Apesar de os Estados serem, ainda hoje, considerados os principais atores na are-na internacional, a opção por se trabalhar com as organizações não governamentais espelha o entendimento de que, apesar do status consultivo que normalmente lhes é conferido, elas têm influenciado significativamente o desenvolvimento do direito internacional público.110 A categoria gênero ganha força, sobretudo, nos anos 1980, sendo entendida como uma categoria de análise histórica capaz de revelar as diferenças sexuais e os papéis sociais a partir das significações histórica e socialmente construídas por mulheres e homens. Os papéis normativos, os comportamentos atribuídos a homens e mulheres e a relação entre os sexos não são discursos neutros, mas representações repletas de significados e de relações de poder. Neste sentido, a Organização das Nações Unidas compreende ser necessário distinguir entre homens e mulheres as diferença biológi-cas das sociais. UNCHR. ‘Further Promotion and Encouragement of Human Rights and Fundamental Freedoms, including the Question of the Programme and Methods of Work of the Commission: Integrating the human rights of women through the United Nations system: Report of the Secretary-General’ (20 dezembro 1996) E/CN.4/1997/40.. A categoria gênero, todavia, não é inquestionável. Alguns autores entendem que a distinção entre sexo e gênero se pauta na problemática oposição entre natureza/cultura e corpo/mente. Veja, por exemplo, M davies, ‘Taking the inside out: sex and gender in the legal subject’ in N. Naffine and R. Owens (eds), Sexing the Subject of Law (law Book Co. ltd: Sydney 1997).

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Como o Brasil incorporou, sem modificações, o Protocolo de Paler-mo à legislação doméstica, a terceira parte deste artigo busca analisar em que medida as relações implícitas no documento internacional podem ter sido reproduzidas no contexto interno e, consequentemente, a possibili-dade de que os efeitos a longo prazo das medidas de implementação do Protocolo adotadas pelo Brasil111 não tenham sido vislumbrados. deverá o Brasil dirigir seus esforços para a criminalização do tráfico de pessoas e do contrabando de imigrantes, contribuindo para a redução do crime organizado internacional? Quais interesses as políticas públicas brasileiras devem promover? Como garantir que imigrantes contrabandeados ou pes-soas traficadas não tenham seus direitos violados no exterior? Ressalta-se, em particular, a necessidade de uma ampla participação da sociedade civil nesta discussão.

Espera-se que, ao ilustrar a riqueza de posicionamentos acerca da autonomia da mulher, o processo de negociação do Protocolo evidencie a necessidade de participação da sociedade civil no processo de elabo-ração de normas domésticas, sua implementação e, posterior, monitora-mento. Parte-se, portanto, do pressuposto de que a desconsideração do entendimento de milhares de mulheres acerca de sua situação jurídica, das medidas que devem ser adotadas para o reconhecimento efetivo de seus direitos representa, além de uma violação ao direito de participação na vida política, um desperdício de experiência que deve ser evitado.

1- JUSTIFICATIVA

Em termos gerais, a relevância do artigo está em evidenciar os in-teresses implícitos no Protocolo para a Prevenção, Supressão e Punição do Tráfico de Pessoas, especialmente de Mulheres e Crianças por meio da diferenciação entre contrabando de imigrantes, tráfico de pessoas e pros-tituição. Apontando os paradoxos presentes na normativa internacional sobre o tráfico, espera-se fornecer elementos para a discussão democrática e realista dos interesses que o Brasil busca proteger com sua política nacio-nal de enfrentamento ao tráfico. São os interesses das pessoas traficadas?

111 Neste particular, serão considerados a Política Nacional de Enfrentamento ao Trá-fico de Pessoas (decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006) e o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (decreto nº 6.347, de 08 de janeiro de 2008).

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É a ordem pública? É a ordem internacional? Somos todos aversos ao tráfico de pessoas. Será isso suficiente?

A discussão desenvolvida no artigo indica ainda a necessidade da construção de um espaço público de participação efetiva da sociedade civil para o monitoramento contínuo da política de enfrentamento ao tráfico. Tendo em vista as controvérsias relacionadas à consideração da prostitui-ção como violação dos direitos humanos per se ou como reconhecimento do direito ao trabalho no processo de negociação do Protocolo, é impor-tante perguntar em nome de que interesses os discursos antitráfico estão recebendo apoio financeiro externo. Quais as características de projetos financiados pelos Estados Unidos? Promovem eles os interesses do gover-no brasileiro? Qual a margem de liberdade oferecida às organizações não governamentais que trabalham a partir de recursos internacionais?

É importante lembrar que os demais Estados também avançam seus interesses por meio do discurso antitráfico. O Brasil deve estar, portanto, ciente das escolhas dos demais Estados, para garantir que elas não violem os direitos de seus cidadãos, sobretudo, quando dos procedimentos rela-cionados à repressão do tráfico de pessoas. Quais os riscos de se deixar confundir as políticas migratórias com as políticas antitráfico de pessoas? Quais as implicações de se regular o movimento ilegal de pessoas através de fronteiras internacionais à luz de um esforço para o combate do crime organizado internacional?

Estas questões refletem a necessidade de se pensar o direito como processo histórico, que elege os interesses a serem protegidos em contex-tos específicos. Assim, o direito, inclusive o direito internacional, conquis-ta não apenas o espaço estatal, mas as ruas, a sociedade civil (inter)nacio-nal e, desta forma, abre espaço para reclamos silenciados. Os argumentos desenvolvidos nos travaux preparatoires do Protocolo não devem, portanto, ser entendidos como termo final em uma determinada questão, mas como desenvolvimento histórico, gradual, de uma luta contínua da afirmação dos direitos à igualdade e à liberdade.

2- PROSTITUIÇÃO: ESCRAVIDÃO OU TRABALHO SEXUAL?

No que diz respeito às mulheres, o tráfico é um problema internacio-nal desde meados do século dezenove, tal como a tematização em âmbito internacional da prostituição. Foi neste contexto, relacionado ao comércio

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de escravas brancas, 112 que a discussão sobre o consentimento da mulher foi elaborado. Enquanto algumas campanhas contra o comércio de escra-vas brancas consideravam todas as prostitutas como vítimas, que deveriam ser resgatadas, outras, defendiam ser necessário distinguir as prostitutas que tivessem dado seu consentimento das verdadeiras vítimas do comér-cio de escravas brancas.113

desde então, a discussão sobre tráfico de mulheres tem, em grande parte, sido orientada pela percepção social da prostituição. daí, a necessi-dade de o processo de negociação do Protocolo de Palermo lidar com o debate acerca da autonomia das mulheres: as mulheres podem ou não es-colher trabalhar na indústria do sexo? de acordo com a resposta atribuída a esta pergunta, distintas definições de tráfico de pessoas foram propostas pelas duas coalizões de ONGs que participaram do processo de negocia-ção, informando os representantes governamentais.

2.1 OS POSICIONAMENTOS DAS COALIZÕES DE ONGS

A Human Rights Caucus, uma aliança de organizações não governa-mentais que trabalham na área de direitos humanos, tráfico e direitos das prostitutas,114 foi a primeira coalizão a participar do processo de negocia-ção do Protocolo de Palermo. Ela centrou seus esforços na definição de tráfico de pessoas, advogando a adoção de uma ampla definição, capaz de

112 Janie Chuang, ‘Redirecting the debate over Trafficking in Women: definitions, Paradigms, and Contexts’ (1998) 11 Harvard Human Rights Law Review 65, 74. O termo escrava branca deriva da expressão francesa ‘traite des blanche’ em oposição à ‘traite de noirs’, demonstrando a predominância de um discurso racista. 113 É interessante observar que a Convenção para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas não trata da manutenção forçada de mulheres em bordéis, pois esta matéria era considerada assunto doméstico. Para mais detalhes, veja Jo doezema, ‘Who gets to choose? Coercion, consent and the UN Trafficking Protocol’ (2002). 10 Gender and Development.114 A Coalização foi formada por: International Human Rights law Group; Global Alliance Against Trafficking in Women, Asian Women’s Human Rights Council, la Strada, Fundacion Esperanza, Ban-Ying, Foundation for Women, KOK-NGO Ne-twork Against Trafficking in Women, Women’s Consortium of Nigeria, Women, law and development in Africa.

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abarcar trabalho forçado, escravidão e servidão.115 Para a Human Rights Cau-cus, a definição de tráfico deveria ser independente da natureza do trabalho ou do serviço prestado, bem como do sexo da pessoa traficada.

Neste sentido, a Human Rights Caucus defendeu a exclusão da prosti-tuição ou de qualquer outra forma de trabalho sexual consentido da defi-nição de tráfico. O trabalho sexual, a prostituição, é uma forma de trabalho e, como tal, deveria ser considerado.116 Reconhecendo que as condições de trabalho na indústria do sexo variam entre relativamente boas e extrema-mente abusivas,117 a prostituição apresenta-se, de acordo com a Human Rights Caucus, como mais uma opção de trabalho. Os riscos postos pelo trabalho sexual são derivados de percepções morais e suas consequên-cias legais, tais como a exclusão das trabalhadoras (migrantes) do sexo da proteção legal garantida a outros cidadãos e trabalhadores.118 Nesta pers-pectiva, a discussão passa a ser elaborada em um contexto mais amplo de violação dos direitos da mulher no trabalho em geral.119

115 O posicionamento da Human Rights Caucus foi trabalhado, sobretudo, a partir do texto de Melissa ditmore e Marjan Wijers, ‘The negotiations on the UN Protocol on Trafficking in Persons: moving the focus from morality to actual conditions’ (2002) 4 . Nemesis. 116 de fato, assim a prostituição vem sendo considerada na jurisprudência da Corte Europeia de Justiça, que a entende como a oferta de serviços por remuneração, razão pela qual a prostituição caracteriza atividade econômica nos termos do artigo 2 do Tratado da União Europeia, ECJ, decision of November 20, 2001, Case C-268/99 [2001] E.C.R. I-8615, [33], [49].117 Veja, por exemplo, a análise das diferentes formas em que a prostituição tem sido praticada em Susan E. Thompson, ‘Prostituion – A Choice Ignored’ (2000) 21 Women’s Rights L Rep 217. 118 Wijers menciona a dificuldade de se recorrer ao Estado quando os direitos das trabalhadoras do sexo (migrantes) são violados: “the group of migrant women that we are concerned with works cheaply, does not lay claim to legal or social protection – because their legal situation is to precarious – and generates significant private and criminal revenue”. Marjan Wijers, ‘Women, labor and Migration: The Position of Trafficked Women and Strategies for Support’ in Kamala Kempadoo and Jo doezema (eds) Global Sex Workers: Rights, Resis-tance and Redefinition ( Routledge, londo 1998).Em relação à exploração decorrente do próprio Estado, veja Susan E. Thompson (n 17) 231.119 É interessante observar que o Comitê de direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em relação à proibição de escravidão e direito ao trabalho, utiliza-se da definição de

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O tráfico, crime, deveria ser definido pela presença de coação, frau-de, engano, abuso de autoridade ou outra forma de abuso em relação às condições de recrutamento e/ou trabalho.120 Torna-se, assim, necessário tratar de forma diferente adultos e crianças em relação ao consentimento. Enquanto a coação não é necessária para a tipificação do ilícito no caso de tráfico de crianças, ela é indispensável para a caracterização do tráfico de adultos, mulheres ou homens.

A mulher, na perspectiva da Human Rights Caucus, pode consentir em se prostituir. A prostituição não é inerentemente uma forma de ex-ploração, uma violência contra o corpo da mulher ou uma prática que, ao comodificar o corpo da mulher e sua sexualidade, reproduz relações de poder pautadas na dominação do homem. A prostituição é, na verdade, não apenas uma opção econômica viável, mas a expressão da autodeter-minação da mulher.121 Reconhecendo as dificuldades por que passam as trabalhadoras do sexo, a Human Rights Caucus argumentou que o não re-conhecimento da autonomia da mulher agrava o desrespeito aos direitos

trabalho forçado da Organização Internacional do Trabalho, Convenção 29, segundo a qual: a expressão “trabalho forçado ou obrigatório” compreende todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente. O Comitê estabelece entre as obrigações dos Estados Partes da Convenção de direitos Econômicos, Sociais e Culturais o dever de informar o Comitê acerca das medidas adotadas para erradicar a prostituição forçada, dentro e/ou fora de seu país. É somente com o adjetivo forçada que se estabelece o elo entre prostituição e escravidão. 120 A Human Rights Caucus seguiu o entendimento da Global Alliance Against the Trafficking of Women, que propunha a separação entre o ato de recrutamento e os objetivos do tráfico. O primeiro aspecto caracterizaria o tráfico de pessoas e o segun-do trabalho forçado ou práticas análogas à escravidão. desta forma, nem toda vítima de tráfico é necessariamente submetida a trabalho froçado e nem toda mulher subme-tida a trabalho forçado é vítima de tráfico. A a separação destas duas dimensões do tráfico de pessoas - recrutamento e trabalho - facilita a descrição e compreensão do problema e permite a formulação de políticas públicas mais adequadas. Janie Chuang (n 12) 79. 121 Neste sentido, Susan E Thompson afirma: “We should question the judgment of a society that has trained us to believe that when we think of prostitution, our only option is to envision images of women as the victims of prostitution and not as the victors.” Thompson (n 17) 217.

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das mulheres, ao manter uma tradição que afirma a desigualdade de gênero ainda que com boas intenções.

A Coalizão Contra o Tráfico de Pessoas (CATW)122 apresentou po-sicionamento divergente, considerando a prostituição como uma violação per se dos direitos humanos, semelhante à escravidão. Quando mulheres e crianças são reduzidas a um bem, seus direitos humanos estão sendo violados. Ao permitir pensar a mulher como um objeto, que pode ser comprado ou adquirido violentamente, a prostituição reproduz, fortalece as desigualdades de gênero.123

Para a CATW, tráfico e prostituição estão intrinsecamente relaciona-dos: a demanda por sexo promove a crise mundial de tráfico de mulheres e crianças.124 Nenhuma distinção relacionada a consentimento ou vontade é significativa, já que ninguém, nem mesmo um adulto, poderia dar seu consentimento genuíno para prostituir-se. A prostituição é, por definição, forçada. Em uma sociedade em que mulheres não têm acesso a um tra-balho decente, a prostituição não configura uma escolha real, mas uma coerção implícita.

Este posicionamento é amparado pelo desenvolvimento histórico do tráfico de pessoas na arena internacional. Na linha da Convenção para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas, de 1910, o tráfico é relaciona-do exclusivamente à prostituição, vista, por sua vez, como a forma mais intensa de vitimização das mulheres, independentemente do contexto em que exercida e do consentimento da mulher. Adotando o parâmetro da vítima, o trabalho sexual é considerado inerentemente uma forma de vio-lação de direitos e deve ser abolido e criminalizado. A punição, todavia, não deve se dirigir às prostitutas, pois isso significaria punir as vítimas.

122 A CATW teve entre seus parceiros, no processo de negociação, a European Women’s lobby e a International Abolitionist Federation.123 Susan E. Thompson (n 17) 234124 Veja Coalition against Trafficking in Women. ‘Submission from the Coalition Against Trafficking in Women (Category II ECOSOC Consultative Status) to the Study of the Secretary-General on violence against women’, disponível em http://www.un.org/womenwatch/daw/vaw/ngocontribute/Coalition%20Against%20Trafficing%20in%20Women.pdf (15/04/2008)

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Na perspectiva da CATW, práticas que conduzam à legalização da prostituição ou à descriminalização da indústria do sexo promovem a co-mercialização da exploração sexual. A legalização da prostituição legitima a demanda pela prostituição de mulheres, encorajando e aumentando o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual.125

desconsiderada a relevância do consentimento, o mesmo tratamen-to pode ser dado às vítimas do tráfico, sejam elas mulheres ou crianças. Neste sentido, a CATW advogou pela inclusão dos grupos vulneráveis no nome do Protocolo, sugerindo “Protocolo para a Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Mulheres e Crianças.126 O tratamento de mulheres e crianças como grupos vulnerabilizados remonta aos acordos interna-cionais adotados no início do século XX, período em que a mulher ainda não havia adquirido o direito a voto. A proteção de mulheres e crianças na legislação antitráfico refletia a impossibilidade de estes grupos defenderem seus interesses e direitos por meio de sua participação em um processo democrático. Mulheres e crianças eram/são consideradas objetos, cuja in-tegridade física e moral devem ser protegidas pelo Estado.

Neste sentido, a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfi-co de Mulheres Brancas de 1910, por exemplo, definia o tráfico e o favore-cimento à prostituição como o aliciamento, induzimento ou descaminho, ainda que com o seu consentimento, de mulher casada ou solteira menor, para a prostituição.127 A Convenção Internacional para Repressão do Trá-fico de Mulheres e Crianças de 1921 estabeleceu como regra geral que o consentimento de mulheres casadas ou solteiras maiores excluía a infra-ção. A Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres

125 Janice G Raymond, ‘Prostitution on demand: legalizing the Buyers as Sexual Customers’ (2004) 10 Violence Against Women.126 Para a A Human Rights Caucus afirmou que a proposta da CATW reitera o en-tendimento de que migrantes ilegais são geralmente homens procurando trabalho em outro país, enquanto pessoas traficadas são, normalmente, mulheres enganadas, vítimas mulheres.127 Tratando-se de mulher casada ou solteira maior, a conduta só deveria ser punida se aquelas condutas tivessem sido praticadas “com fraude ou por meio de violências, ameaças, abuso de autoridade, ou qualquer outro meio de constrangimento”. Era per-mitido, porém aos Estados Partes dar a mesma proteção à mulher casada ou solteira maior independentemente da fraude ou constrangimento.

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Maiores de 1933 modificou essa orientação, “quem quer que, para satisfazer às paixões de outrem, tenha aliciado, atraído ou descaminhado, ainda que com seu con-sentimento, uma mulher ou solteira maior, com fins de libertinagem em outro país, deve ser punido”. A Convenção e Protocolo Final para Repressão do Tráfico de Pessoas e do lenocínio de 1949 também desconsideram o consentimento na tipificação do tráfico.

A perspectiva abolicionista das Nações Unidas foi consolidada em 1959, com a realização de uma pesquisa que indicava a abolição da pros-tituição como requisito necessário em qualquer programa que buscasse combater o tráfico de pessoas.128 Um ilícito conduziria, necessariamente, à prática de outros crimes.129 A campanha antitráfico deveria ser acompa-nhada de medidas voltadas para a manutenção da ordem pública, preven-ção de doenças sexualmente transmissíveis,130 supressão da exploração da prostituição por outros e reabilitação de prostitutas.

2.2 - PROSTITUIÇÃO E TRÁFICO NO PROTOCOLO DE PALERMO

das negociações, resultou a definição do artigo 3º do Protocolo para a Prevenção, Supressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças, segundo a qual o tráfico de pessoas engloba: “o re-crutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhi-mento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso de força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de auto-ridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pes-soa que tenha autoridade sobre outra, para fins de exploração”. Ao empregar a cláusula para fins de exploração, o Protocolo abrange qualquer forma de exploração da pessoa, seja ela sexual, do trabalho ou a remoção de órgãos, razão pela qual a enumeração é apenas ilustrativa.

128 UNCHR. Study on Traffic in Persons and Prostitution (United Nations, New York 1959). 129 Outros entendem que o tráfico existe justamente por ser a prostituição uma prática ilegal. Veja Susan E. Thompson (n 17) 230.130 Pesquisas não provaram, todavia, haver uma relação direta entre prostituição e a transmissão de doenças venéreas. Ibid.

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de acordo com o Protocolo, o tráfico de seres humanos envolve engano ou coação da pessoa (no recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas), convertendo-a em vítima. O tráfico apropria-se da sua liberdade por dívida ou outro meio, sempre com pro-pósito de exploração (incluindo a exploração da prostituição ou outras formas de exploração sexual). Embora no Protocolo se deixe claro que o consentimento da pessoa traficada é irrelevante, há uma forte ênfase na ideia de engano e coação. devido à imprecisão do alcance da noção de coação, ambas coalizões de ONGs entendem ter seu posicionamento encontrado guarida no texto do Protocolo.

A Human Rights Caucus, por exemplo, entendeu que o Protocolo não considera a prostituição como violação dos direitos humanos per se, ao não desconsiderar por completo o consentimento da mulher. Quando se tratar de mulheres adultas, o consentimento é relevante para excluir a imputação de tráfico, a menos que comprovada ameaça, coerção, fraude, abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade bem como a oferta de vanta-gens para quem tenha autoridade sobre outrem. desta forma, caracteriza o tráfico de pessoas, para fins do Protocolo, a venda de mulheres que são forçadas a trabalhar sem pagamento ainda que, em um primeiro momento, tenham concordado em migrar e trabalhar na indústria do sexo.

Os termos abuso de poder ou situação de vulnerabilidade abordam situações em que o tráfico pode ocorrer sem uso da força, ao reconhe-cer que pessoas traficadas podem ser vítimas de pessoas próximas, como parentes. Neste contexto, as relações de gênero construídas socialmente podem conduzir à submissão da mulher a uma determinada situação. Para a Human Rights Caucus, a redação aprovada reflete o entendimento da Pla-taforma de Ação da Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher, em Bei-jing, 1995, em que o trabalho sexual livremente exercido não representa violação aos direitos humanos.

Por outro lado, a CATW (2006) comemorou a introdução dos ter-mos abuso de poder ou situação de vulnerabilidade na definição.131 Para a CATW, o tráfico de pessoas não requer apenas a presença da coação, mas abran-

131 CATW, ‘Statement to the Third session of the Conference of the Parties to the United Nations Convention against Transnational Organized Crime’ (2006). disponí-vel em: http://action.web.ca/home/catw/readingroom.shtml?x=92306&AA_EX_Session=fa664baea4c321798c9eecc0fe14d1b5 (14/04/2008).

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ge as situações em que o traficante pode abusar da posição de vulnerabilidade da vítima. Neste contexto, uma pessoa pobre de um país pobre é muitas vezes considerada coagida apenas pela situação de pobreza e não por violência ou ame-aças. Outro dispositivo relevante é o artigo 3b que estabelece ser irrelevante o consentimento de pessoa nos casos em que os meios descritos no artigo 3a se fazem presente. Com este dispositivo, o ônus da prova não recai sobre as mulhe-res traficadas.

Os trabalhos preparatórios indicam que os termos exploração da prostituição ou outras formas de prostituição não foram definidos no Pro-tocolo para não prejudicar a maneira pela qual Estados abordam a prosti-tuição em seu direito interno. Apesar de necessário para que se chegasse a um acordo, esta nota interpretativa foi vista pela CATW com suspeição, já que possibilita a legalização do lenocínio ou a criminalização de prostitu-tas. Todavia, o artigo 9(5) do Protocolo está em linha com necessidade de responsabilização penal individual apontada pela perspectiva abolicionista da prostituição.

O texto aberto do Protocolo compreende os diversos entendimentos acerca da prostituição, demonstrando a riqueza e/ou os limites da lingua-gem. Essa discussão deve, portanto, ser retomada no contexto nacional. Cada Estado, ao implementar o Protocolo, abre espaço para contemplar a compreensão social da prostituição em sua legislação. É importante, to-davia, que a centralidade do debate normativo acerca do consentimento da mulher em trabalhar na indústria do sexo não retire da reflexão elementos empíricos. Mulheres, de fato, consentem em se prostituir. É necessário, neste contexto, estar atento para a amplitude e significado deste consen-timento.

3- MIGRAÇÃO E TRÁFICO: O DEBATE ENTRE AGÊNCIA E ESTRUTURA

Para dUBOIS e GORdON algumas correntes feministas têm exa-gerado ao analisar a impossibilidade de se consentir em trabalhar na in-dústria do sexo132. Buscando identificar fatores sociais, forças estruturais que encorajam a prosituição, estas correntes caracterizam as prostitutas como vítimas

132 Ellen Carol dubois e linda Gordon, ‘Seeking Ecstasy on the Battlefield: danger and Pleasure in Nineteenth Century Feminist Sexual Though’ em C. Vance (ed). Plea-sure and Danger (Routledge, Boston1 984).

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passivas.133 Ao desconsiderar a autonomia das mulheres, esta perspectiva corre o risco de acabar, ainda que indiretamente, reforçando um discurso antitráfico relacionado não apenas à dignidade da mulher, mas também a valores como cas-tidade, pudor, decência, pureza, virgindade e bons costumes. Esses valores, por sua vez, são capazes de impedir o exercício do direito de a mulher controlar sua própria vida e corpo ao permitirem a compreensão de que a opção pelo trabalho sexual torna a mulher impura e indigna.

desta percepção, resultam graves violações dos direitos humanos, seja pela inadequação na formulação das medidas antitráfico, seja em sua implementação pelas autoridades públicas: em vez de serem protegidas, as mulheres trabalhadoras do sexo têm sua liberdade de movimento restringida.134

A percepção da mulher como vítima passiva encontra amplo espaço no imaginário do tráfico de pessoas. A reportagem acerca da prisão de António Gar-cía Gonzalez, acusado de aliciamento e tráfico de mulheres, tal como apresenta-da na página da UOl, reflete claramente este entendimento:

Todas as mulheres detidas são maiores de idade e, segundo a polícia, ti-nham conhecimento do trabalho que fariam na Espanha. Mesmo assim, são consideradas vítimas. “Elas estavam a par da situação. Mas talvez não soubessem que, assim que chegassem a Madri, teriam seus passaportes retidos e seriam obrigadas a desenvolver um trabalho de semiescravidão, com a obrigação de fazer 10, 12 programas num único dia”, disse o dele-gado Bruno Rodrigues.135

133 Ibid.134 Avaliando a situação no Brasil, Roberto Pereira explica que apesar de a prostituição não ser crime, “quem acaba sendo penalizado são sempre os(as) profissionais do sexo que são na maioria das vezes ‘detidos(as) para averiguação’ e impedidos de exercer sua atividade laborativa”. R. Pereira, ‘Cidadania Ameaçada’ em Centro latino-Americano em Sexualidade e direitos Humanos, disponível em http://www.clam.org.br/publi-que/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=833&sid=7 (20/04/2008). No mesmo site, Marlene Teixeira, ‘Intervenção contraditória, disponível em http://www.clam.org.br/pu-blique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=834&sid=43 (20/04/2008). Anya Stone e Martina Vandeber, ‘How the sex trade becomes a slave trade: the trafficking of women to Israel (1999) 211 Middle East Report’ 36.135 Sebastião Montalvão, ‘Espanhol é preso em Goiânia acusado de tráfico de Mulhe-res’ (04/03/2008), UOl Últimas Notícias, disponível em http://noticias.uol.com.br/ultnot/2008/03/04/ult23u1366.jhtm (23/04/2008).

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Espera-se que as investigações conduzidas permitam a configuração do tráfico de pessoas - as mulheres seriam, de fato, submetidas às condi-ções de trabalho apresentadas pelo delegado. A reportagem não apresenta, todavia, maiores informações neste sentido. Não deixa de ser curioso a utilização do termo “talvez” pelo delegado: “talvez não soubessem”. O cuidado do delegado permite indagar se lhes foi perguntado se tinham conhecimento das condições de trabalho a que seriam submetidas ou se a condição de vítima das mesmas foi deduzida, oferecendo uma melhor resposta para o discurso de enfrentamento ao tráfico de mulheres.

3.1- TRÁFICO DE PESSOAS E TRÁFICO DE IMIGRANTES

As distintas compreensões acerca do trabalho sexual, prostituição e exploração sexual podem ser traduzidas em um debate essencial às teo-rias sociológicas que buscam constituir uma adequada explicação de um fenômeno social. As teorias relacionadas à corrente estruturalista privile-giam estrutura na relação estrutura-agência, o agente é pensado a partir das estruturas que o constrangem e que normalmente estão fora de sua percepção. A estrutura, que possui uma autonomia relativa, limita e até determina agência.136 O enfoque na estrutura subestima o indivíduo, ressaltando uma perspectiva passiva e fatalista.

Por outro lado, as teorias relacionadas ao intencionalismo se centram nas práticas sociais, produzindo explicações pautadas em objetivos imediatos, inten-ções imediatas e no entendimento do próprio autor. Elas consideram elementos relacionados à indeterminação, contingência, ao voluntarismo e ao individualismo metodológico. Os resultados não podem ser previstos e são resultado de atos intencionais cujos efeitos nós podemos supor, mas cuja existência é em grande medida produto do acaso e da intenção, nenhum dos dois passíveis de investiga-ção social e política.

O estudo dos fatos sociais deve considerar tanto a possibilidade de o indivíduo moldar seu ambiente, bem como os impactos que o ambiente

136 Estas perspectives também se refletem nas teorias feministas. Teorias de base mar-xista, em grande parte, compreendem a prostituição como uma consequências das estruturas econômicas, sendo a autonomia da mulher reduzida. O reflexo deste debate pode ser visto na argumentação da CATW, em que a estrutura cultural de dominação masculina impede a agência de mulheres. Por outro lado, o posicionamento da Human Rights Caucus se aproxima das teorias intencionalistas, ao ressaltar a autonomia da mulher.

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traz para o indivíduo. HAY, por exemplo, afirma não fazer sentido pensar estrutura sem ao menos hipoteticamente questionar a noção de agência que pode ser afetada (constrangida ou possibilitada)137. Estrutura e agência exigem logicamente um o outro e estão implícitos em todas explicações e atribuições de causalidade a atores sociais e/ou políticos. Ideias de es-trutura e agência são centrais para qualquer noção de poder. Poder é uma questão de agência, o agente influencia ou tem efeito sob as estruturas que determinam contextos e definem as possibilidades de outros agentes. A agência de uma pessoa é a estrutura de outra pessoa.

A partir da ideia de que os seres humanos são moldados pelo am-biente, a cultura mostra-se como um elemento importante no processo de tomada de decisão. de acordo com HERZ, “(a realidade cultural dos atores) influência o processo de seleção das partes relevantes da informação, sua categorização, a avaliação do comportamento de atores e até a conceituação do que vem a ser um compor-tamento racional”.138 Estruturas sociais não existem independentemente das concepções dos agentes sobre o que eles estão fazendo.

Neste contexto, são as mulheres, trabalhadoras do sexo ou prosti-tutas, produtos de um determinado contexto, indivíduos sem o mínimo controle sobre seus destinos ou são eles seres conhecedores e intencionais com controle sobre os elementos que modelam suas ações? É possível no mundo atual limitar a compreensão da mulher à vítima? É o tráfico de pessoas produto de atores agentes, que fazem escolhas não limitadas, ou é produto de uma lógica estrutural sob a qual os agentes não têm controle? Quais limites não só fatores econômicos, mas também as relações de gê-nero impõem às escolhas das mulheres?

É justamente neste contexto que se insere a diferença entre tráfico de pessoas e o contrabando de imigrantes, regulado pelo Protocolo contra o tráfico por terra, mar e ar de imigrantes. O tráfico de imigrantes ocorre quando uma ou mais pessoas facilitam a entrada ilegal de um estrangeiro em determinado país para ganhos financeiros. Esta transação não implica ganhos financeiros resultantes da exploração do trabalho alheio. desta forma, o principal elemento de distinção entre tráfico de pessoas e de imigrantes em termos legais é a exploração.

137 COllIN HAY, “Structure and Agency” em d. Marsh e G. Marsh e G. Stoker (ed)Theory and Methods in Political Science (MacMillan Press, londres 1995). As diferenças teóricas nesta perspectiva dialética se colocam a partir do enfoque que é dadoa uma perspectiva ou a outra, vide quadro elaborado pelo mesmo autor (p. 193).138 MÔNICA HERZ, ‘Análise Cognitiva e Política Externa’ (1993) 19 Sínteses 75.

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Todavia, a ideia de exploração tem sido constantemente relaciona-da ao consentimento. Presume-se que no caso do tráfico de imigrante, o imigrante autorize a prática. Ele colabora com o traficante. O tráfico de imigrantes viola, portanto, interesses do Estado. Por outro lado, a crimi-nalização do tráfico de pessoas buscaria proteger o interesse da pessoa.139 Apesar de o enfoque nos documentos internacionais no elemento da ex-ploração, o consentimento parece ser o principal aspecto considerado na diferenciação prática entre contrabando de imigrantes e tráfico de pesso-as.140

Esta divisão nem sempre é tão simples. O que pode começar como um processo de tráfico de imigrante pode acabar como tráfico de pessoa. A situação de vulnerabilidade e ilegalidade em que a pessoa contrabandea-da se encontra conduz, por vezes, à sua futura exploração, caracterizando o tráfico.

de toda forma esta distinção implica o tratamento diferenciado de pessoas contrabandeadas e pessoas traficadas. Nos casos de contraban-do de estrangeiros, o estrangeiro, ao consentir em ser contrabandeado, é tratado como criminoso, enquanto uma pessoa traficada é considerada vítima de tráfico. Consequentemente, os governos têm adotado medidas diferenciadas para lidar com situações de tráfico de pessoas e de tráfico de imigrantes.

Relacionando o tráfico de mulheres à migração internacional do tra-balho, exploração do trabalho e ao crime organizado, observa-se, segundo Kempadoo (2005), a ampliação do processo de vitimização das massas pobres. O desrespeito à autonomia da mulher mantém a compreensão pa-

139 Esta distinção entre os interesses protegidos parece, todavia, omitir o contexto em que tais atos foram criminalizados. Os dois Protocolos fazem parte do combate ao crime organizado. Neste sentido, não é incomum a menção às altas cifras de dinheiro envolvidas nestas operações.140 Esta atitute é manifestada por exemplo nas palavras de um oficial inglês, que afir-mou “ ‘ … the true victim who has been trafficked and coerced and intimidated and is there doing something they don’t want to do, should have all the support and help we can give them …. but there’s an awful lot of people that don’t fit into that category, that are victims to a degree, but I think they have to take some of the responsibility for them being in that position themselves, and at the time they wanted to come here.” Em Vanessa E Munro, ‘Stopping traffic? A comparative study of responses to the trafficking in women for prostitution (2006) British Journal of Criminology 318.

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radigmática sobre o tráfico de pessoas e impede que problemas estruturais globais que produzem o tráfico - globalização, desigualdade de gênero, patriarcado, racismo, conflitos armados, destruição e desestabilização de modos de vida, devastação ecológica e ambiental e perseguição política e religiosa, pobreza, desintegração dos sistemas jurídicos, desintegração corrupção - sejam discutidos. A possibilidade de intervenção na esfera privada da mulher que trabalha na indústria do sexo mostra-se suficiente para os Estados protegerem sua integridade territorial e garantirem a se-gurança de seus cidadãos em seu território, evitando uma abordagem mais abrangente do tráfico de pessoas.

3.2- AS DIFICULDADES PARA SE ALTERAR AS ESTRUTURAS DE SEGURANÇA

Os cidadãos são objetos de uma política de segurança. Assegurar os direitos de civis, políticos, econômicos, sociais e culturais é o objetivo principal da defesa territorial, função tradicional do Estado. Mas, os cida-dãos também são sujeitos de segurança, ao legitimarem uma determinada política de defesa territorial. Aqueles que são afetados por políticas de segurança podem participar da elaboração destas mesmas políticas.

Pensar esta separação entre objetos e sujeitos de segurança pode pa-recer desnecessário. Porém, a construção da mulher traficada como uma vítima a ser salva aponta no sentido contrário. da perspectiva do poder interventor, a vítima a ser salva não é um agente político, mas uma figura de linguagem em discursos sobre a legitimidade de tal ação. Esta vítima é um objeto de segurança. O interesse de aquela vítima não continuar a ter seus interesses/ direitos violados é presumido, conduzindo a um consen-timento para uma determinada intervenção. A opção pelo trabalho sexual é desconsiderada, mas o consentimento para a intervenção do Estado é deduzido da situação de violação dos direitos humanos em que vive.

Esta dinâmica na área de controle de migração e tráfico é bastante interessante. Os sujeitos de segurança são os cidadãos de um Estado con-trolando a migração. Em um primeiro momento parece difícil construir um mero objeto de segurança, cujo interesse possa ser absorvido na agen-da de migração. Não impedem as leis de migração que pessoas melhorem sua segurança humana ou a situação de seus direitos humanos? discur-sivamente, os Estados preferem, portanto, centralizar suas políticas nas

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vítimas de tráfico, aqueles que foram induzidos ou coagidos a uma forma de migração que claramente deteriora sua autonomia pessoal, segurança e benefício de direitos humanos. A vítima é objeto de segurança. Neste contexto, ela não precisa ser questionada acerca do controle de migração – é claro que o seu interesse e o do Estado convergem e que o poder do Estado de exercer determinado controle pode ser deduzido do contexto de exploração em que a mulher se encontra.

A partir da caracterização da mulher como vítima a ser salva, o con-sentimento explícito para medidas que podem ser consideradas intrusi-vas torna-se desnecessário. Estas medidas podem ser levadas adiante com base nos direitos inalienáveis daquela pessoa. A limitação da agência in-dividual decorrente do conceito de inalienabilidade permite que terceiros o invoquem como justificativa para seus próprios atos ou omissões em nome daquele direito.

Vale lembrar, por exemplo, que a política do governo George W. Bush apoia-se na visão conservadora de que toda prostituição deve ser erradicada porque ofende a dignidade das mulheres. lançado em 2004, o documento O Kamasutra de Bush – muitas posições sobre sexo: implicações globais das políticas nacionais e internacionais sobre sexualidade implementadas pelo Gover-no dos Estados Unidos, de FRANÇOISE GIRARd, dedica um capítulo ao trabalho sexual e mostra como o governo americano enxerga a questão. Françoise relata que:

Os(as) trabalhadores(as) do sexo são apresentados(as) como vítimas que devem sempre ser resgatadas dessa forma de violência sexual. A autonomia e o livre arbítrio das mulheres são considerados como sendo inexistentes. A indústria sexual, o tráfico de pessoas para essa indústria e a violência sexual são causas adicionais e um fator na propagação da epidemia de HIV/AIDS.141

O discurso de direitos pautado na autonomia do sujeito é difícil de conciliar com a soberania do Estado. Como o sujeito autônomo é essen-cial em uma economia de mercado, a soberania estatal se vê ainda mais ameaçada perante uma globalização e seus efeitos. Como é possível ar-

141 FRANÇOISE GIRARd, O Kamasutra de Bush: Muitas Posições sobre o Sexo. Implicações Globais das Políticas sobre Sexualidade do Governo dos Estados Unidos. (Associação Brasileira Interdisciplinar de AIdS, Rio de Janeiro, 2005) 45.

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gumentar em prol dos direitos humanos e ainda assim negar a autonomia individual em sua realização?

4 - ESPECIALMENTE MULHERES AGENTES NO CONTEXTO BRASILEIRO

A (in)definição de tráfico no Protocolo permitirá a adoção de medi-das diversas pelos Estados. Ele poderá ser utilizado tanto para orientar a adoção de caráter repressivo, bem como a adoção de medidas emancipató-rias. É, neste processo, de definição/alteração da legislação doméstica e de sua implementação e monitoramento que as diferentes percepções sociais acerca da prostituição deverão ser novamente enfrentadas.

Certamente, a definição de tráfico no Protocolo não pode ser con-siderada uma vitória para aqueles que argumentam que a única maneira proteger os direitos das trabalhadoras do sexo é reconhecer a prostituição como uma profissão legítima. Todavia, a inclusão do uso da força ou da coerção como um elemento essencial na definição de tráfico, representa uma diferença significativa em relação à perspectiva adotada na Conven-ção de 1949. Neste sentido, o Protocolo rejeita a posição que nega às mulheres a habilidade de consentir na prostituição ao permitir que os Es-tados reconheçam o trabalho sexual e o regule de acordo com os demais preceitos relacionados ao direito ao trabalho.

Ao incorporar elementos de direitos do trabalho, o Protocolo prevê a possibilidade de que as trabalhadoras do sexo sejam tratadas como traba-lhadoras legítimas. Vale lembrar que a declaração Universal dos direitos Humanos tem como base de sua fundação a ideia simples, mas poderosa, de que “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e em direi-tos”. Esta ideia exige que os Estados tratem as pessoas e promovam seus direitos com a compreensão de que a igualdade, a não discriminação, é essencial à promoção dos direitos humanos de todos. Uma das medidas mais importantes estipuladas no Protocolo é a necessidade de se combater o tráfico como um todo e não apenas o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual.

O Protocolo abrange, assim, todas as formas de trabalho a que indi-víduos traficados se submetem diariamente, evitando que os danos cau-sados por explorações outras que a exploração sexual sejam desconside-rados, e, consequentemente, perpetuada a violação dos direitos humanos.

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É necessário que todas as pessoas traficadas tenham conhecimento dos abusos que estão sofrendo e de seus direitos ainda que não trabalhem na indústria do sexo. Abre-se, portanto, espaço para a discussão mais ampla dos limites e possibilidades do processo de globalização, dentre as quais a feminização da pobreza e as diversas formas de violação dos direitos das mulheres que ultrapassam fronteiras: as mesmas fronteiras que ao serem utilizadas para a caracterização do crime organizado transnacional, para a definição de migrantes e de vítimas podem resultar na impossibilidade de construção de uma vida melhor.

O Protocolo possibilita, ainda, a limitação dos efeitos deletérios do processo de vitimização contínua de mulheres. Ao considerar a agência das mulheres, reconhece-se a mulheres dos países em desenvolvimento o mesmo grau de conhecimento e autonomia que é tido como evidente entre as mulheres dos países desenvolvidos. As diferentes opções que se colocam para as mulheres de diferentes países não oferecem aos Estados o poder de intervir em suas vidas sem consultá-las, ouvir e considerar suas reivindicações quando da adoção das medidas antitráfico. A agência do indivíduo volta a ser considerada, inclusive para a formação e delimitação de novas estruturas. As relações de gênero na indústria do sexo não se re-duzem à oposição entre mulheres oprimidas e homens opressores, mas as relações de poder são construídas e reconstruídas a partir de diversas ou-tras posições de poder assumidas tanto por mulheres como por homens.

diante de todo este debate, é a (in)definição de tráfico do Protocolo, capaz de conciliar expectativas díspares, um retrocesso ou um avanço? Como avaliar a posição dos Estados partes na adoção de sua legislação?

Em relação ao Brasil, o tráfico internacional de pessoas é contempla-do no artigo 231 do Código Penal (modificado pela lei 11.106 de março de 2006), segundo o qual promover ou facilitar a entrada de pessoas no território brasileiro ou a saída dele constitui o crime de tráfico interna-cional de pessoas, se tiver como finalidade o exercício da prostituição. A infração está inserida no Título dos Crimes contra os Costumes, razão pela qual a tutela do puder público prevalece sobre a tutela da liberdade sexual. Quais outros significados sociais a localização a tipificação do tráfico de pessoas sob o Título dos Crimes contra os Costumes permite discutir? Qual o bem jurídico que se está a proteger?

No Brasil, o exercício da prostituição não configura crime. Crime é explorar a prostituição alheia, o consentimento livre não exclui o crime.

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Qual o significado que deve ser atribuído ao termo explorar? Qual o es-paço para a revisão jurisprudencial ou legislativa do consentimento livre? Quais atores influenciaram a modificação do tipo penal? A Classificação Brasileira de Ocupações de 2002, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), reconhece a existência das profissionais do sexo (a atividade está catalogada), mas o exercício desse trabalho ainda não foi regulamentado por lei. Quais razões conduziram à rápida modificação da tipificação penal brasileira e não a uma revisão dos direitos das trabalhadoras do sexo?

Observando a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico, chama atenção a assertiva de que o consentimento dado pela vitima é irrelevante para a configuração do tráfico, tal como previsto nas disposições gerais. Como relacionar esta assertiva à definição geral do tráfico de pessoas? Estão mantidos paradoxos do Protocolo de Palermo? O consentimento refere-se ao recrutamento ou às condições de trabalho? Como diferenciar o contrabando de imigrantes do tráfico de pessoas?

Um outro aspecto que parece exigir reflexão é a referência específica a medidas a serem adotadas na área de direitos humanos. Não são jus-tamente os direitos humanos das pessoas traficadas os interesses que se busca proteger? Não deveria, portanto, ter o discurso de direitos humanos informar a atuação de todas as demais áreas?

5- CONCLUSÃO

Atualmente, o movimento ilegal de pessoas através de fronteiras in-ternacionais envolve dois tipos de atividade criminosa - tráfico de pessoas e contrabando de migrantes. Além de a diferença entre estes dois crimes não se dar de forma evidente, os discursos a eles relacionados têm se de-senvolvido de forma confusa. Esta confusão permite que o combate ao tráfico de pessoas seja utilizado não para garantir a dignidade humana, mas para impedir a autonomia de milhares de mulheres, que buscam imigrar em busca de melhores condições de vida.

As dificuldades de construção de um projeto de vida melhor estão ainda relacionadas à criminalização da prostituição, entendida como uma forma de manutenção da dominação da mulher pelo homem. Esta crimi-nalização, que busca, tal como o combate ao tráfico de mulheres, garantir a dignidade humana, acaba por gerando os efeitos contrários. A autonomia da mulher é limitada e as desigualdades de gênero mantidas, inclusive no que diz respeito ao aspecto econômico.

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Infelizmente, o interesse do Brasil em relação ao tráfico internacional é, em grande parte, direcionado pelo papel de país de origem. É, neste contexto, que o Brasil deve estar atento para o desenvolvimento do dis-curso antitráfico e das políticas migratórias dos demais países. Esta aten-ção se mostra necessária, por um lado, para evitar possíveis vitimização secundárias, resultado da violação dos direitos das mulheres traficadas por agentes do Estado receptor. Por outro lado, esta atenção busca impedir que combate ao tráfico de pessoas seja utilizado como meio de ocultar práticas discriminatórias relacionadas à imigração, tal como as discussões resultantes do repatriamento das brasileiras têm levantado.

Por fim, a distinção entre contrabando de imigrante e antitráfico torna-se relevante também para o papel de país receptor que o Brasil em breve desempenhará. A realização da Copa do Mundo no país exigirá a adoção de medidas para a repressão do tráfico de pessoas, medidas de proteção das pessoas traficadas, bem como enormes esforços para a pre-venção do tráfico de pessoas internamente, durante os jogos, e internacio-nalmente, com o retorno dos turistas aos seus países de origem. Espera-se que os interesses econômicos envolvidos na realização da Copa não impe-çam os esforços em se proteger a dignidade humana e o seu significado no contexto global de migração.

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1º COLOCadO - eSTUdaNTeS

O DESCOMPASSO ENTRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS BRASILEIRAS RELACIONADAS AO TRABALHO

ESCRAVO E AO TRÁFICO DE PESSOAS

Rayana Wara Campos de Arruda

INTRODUÇÃO

A escravidão, caracterizada principalmente pela restrição de liberda-de de um indivíduo em decorrência do poder que outro exerce sobre ele, é tão antiga quanto a organização da humanidade em sociedades e, nos dias de hoje, assume formas diversas.

Segundo a Organização Internacional do Trabalho – OIT, pelo me-nos 12,3 milhões de pessoas são submetidas a alguma forma de escravidão em todo o mundo, fazendo girar, anualmente, bilhões de dólares.142

As vítimas da escravidão contemporânea são, em sua maioria, pes-soas analfabetas e sem acesso aos recursos básicos para sua sobrevivência em seus locais de origem. desta forma, necessitam sair em busca de traba-lho, tornando-se presas fáceis às falsas promessas que se constituirão em portas de entrada à escravidão.

O tráfico de pessoas, processo que caracteriza-se pela identificação, aliciamento e deslocamento da vítima até o local em que será escravizada, constitui-se em elemento essencial na garantia de que a vítima se torne escrava. de maneira precisa, assim aborda a questão o eminente Márcio Túlio Viana: “É difícil saber se foi a escravidão que produziu o tráfico, ou vice-versa – tão entrelaçados que eram os interesses.”143

O tráfico de pessoas observa-se em duas dimensões: a primeira, rela-cionada ao tráfico internacional de pessoas, é caracterizada pelo cooptação

142 Uma aliança global contra o trabalho forçado, 2005, Genebra . Organização Internacional do Trabalho.143 VIANA. Márcio Túlio. Trabalho Escravo e “lista Suja”: um modo original de se remover uma mancha. Possibilidades Jurídicas de Combate à Escravidão Contempo-rânea. Pág. 37. Brasília: Organização Internacional do Trabalho, 2007.

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e deslocamento das vítimas de um país para outro, objetivando sua ex-ploração nas mais variadas formas. A segunda é aquela representada pelo tráfico interno de pessoas com vistas principalmente, no caso brasileiro, a garantir a exploração do trabalho das vítimas.

O tráfico de pessoas, tanto em sua dimensão internacional como no âmbito do tráfico interno, provocará efeitos devastadores sobre as ví-timas ao retirar o indivíduo de seu local de origem, desestabilizando-o e tornando-o uma presa fácil e com possibilidades ilimitadas de ser explo-rada. O tráfico, que, muitas vezes passa desapercebido é, sem dúvida, o instrumento que sustenta a cadeia de eventos que levará às mais diversas formas de escravidão. Nesta perspectiva, políticas eficazes de combate ao trabalho escravo deveriam ter como prioridade a desarticulação do tráfico de pessoas.

da mesma forma, políticas públicas destinadas ao combate ao tráfi-co de pessoas que ignorem ou menosprezem o tráfico interno de pessoas padecerão de ineficácia.

O trabalho escravo contemporâneo no Brasil tem sua principal in-cidência em áreas rurais, onde são explorados trabalhadores nacionais, aliciados em áreas pobres e distantes daquelas onde serão escravizados. Para que isto ocorra, é essencial que os aliciadores, os chamados “gatos”, aliciem os trabalhadores e conduzam-nos até o local de trabalho. Sobre a conceituação do escravo contemporâneo no Brasil, assim ensina Marcelo Campos:

Ao contrário da escravidão no período colonial e imperial, o escravo con-temporâneo não possui cor definida ou raça identificável. Não é mais mercadoria legalmente vendida nos mercados. É transacionado como coisa descartável, ao arrepio da lei, na negociação entre “gatos” e fazendeiros, arregimentado em municípios onde predominam os mais deploráveis índi-ces de desenvolvimento e nos balcões de imundas pensões pelo interior do país.144

Buscar-se-á abordar como o Brasil vem enfrentando a questão do tráfico interno de pessoas que são exploradas como escravos em seu ter-

144 CAMPOS. Marcelo. A política nacional para erradicação do trabalho escravo. In: direitos Humanos no Brasil 2004. Relatório da Rede Social de Justiça e direitos Hu-manos, Pg. 118.

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ritório, e tentar identificar como a política de enfrentamento do tráfico de pessoas tem-se relacionado com a política nacional para a erradicação do trabalho escravo.

1- JUSTIFICATIVA

O presente trabalho foi elaborado com vistas à participação no I Prêmio libertas, promovido pelo Ministério da Justiça.

Tem como objetivo refletir sobre as políticas públicas existentes na esfera do combate ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas, buscando discutir aspectos dessas políticas públicas no Brasil.

O Brasil tornou-se referência mundial no combate ao trabalho es-cravo. A Organização Internacional do Trabalho, em seu Relatório sobre o tema, identifica a política pública brasileira como um exemplo de suces-so.145

desde 1995, o Brasil vem implementando uma eficaz política de combate ao trabalho escravo em suas áreas rurais. A partir do ano de 2003, com o lançamento do Plano Nacional Para a Erradicação do Trabalho Escravo, essa política sofreu um forte incremento, tendo como resulta-dos, consecutivos recordes de libertação de trabalhadores submetidos à escravidão.

A política nacional de combate ao trabalho escravo contemporâneo nas áreas rurais brasileiras parece ignorar, quase que por completo, aquela fase inicial do aliciamento e deslocamento dos trabalhadores em direção ao local em que serão escravizados.

Ao não enfrentar a questão do tráfico interno de pessoas para serem exploradas em fazendas nas áreas rurais, não se colabora para, de maneira preventiva, cortar o acesso dos escravocratas à mão de obra disponibiliza-da pelo tráfico, tornando a política pública eficaz na libertação dos escra-vos e ineficaz no combate ao tráfico interno.

Compreender este descompasso é passo essencial na superação dos equívocos cometidos e na percepção de que a mera libertação dos escra-vos não será suficiente para garantir a definitiva erradicação do trabalho escravo no país. É necessário ter a compreensão de que o tráfico interno

145 Uma aliança global contra o trabalho forçado, 2005, Genebra . Organização Internacional do Trabalho.

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de pessoas é um problema a ser enfrentado de modo a criar impedimentos a que os escravocratas tenham acesso tão fácil aos trabalhadores que serão escravizados.

2- DESENVOLVIMENTO

2.1- O MARCO NORMATIVO

O conhecimento a respeito do marco normativo, em suas dimensões internacional e nacional, é essencial para a compreensão de como se en-contram estruturados o processo de aplicação das normas e a correlação existente entre elas.

2.2 - O MARCO NORMATIVO INTERNACIONAL RELACIONADO AO TRABALHO ESCRAVO E AO TRÁFICO DE PESSOAS

Apesar de tratados como questões independentes, o marco normati-vo internacional fundamental relacionado aos temas trabalho escravo e ao tráfico de pessoas é praticamente o mesmo ou, no mínimo, se relacionam diretamente.

Os primeiros instrumentos internacionais a tratar do tema possuíam relação direta com a questão do trabalho escravo, até porque essa fase final do processo, que culmina com a escravidão, é a que possui, inegavelmente, maior visibilidade. Neste contexto inserem-se as Convenções da OIT nº 29 (decreto nº 41.721/1957) e 105 (decreto nº 58.822/1966), a Conven-ção sobre escravatura de 1926 (decreto nº 58.563/1966), a Convenção americana sobre direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica – decreto nº 678/1992).

Por sua vez, os primeiros instrumentos normativos foram fortemen-te influenciados pelo trabalho escravo quando este ocorre na modalidade relacionada à exploração de mulheres, especialmente sendo esta explora-ção de cunho sexual. Ao abordar o tema, Castilho146 informa-nos sobre este conjunto normativo:

146 CASTIlHO. Ela Vieko V. de. Tráfico de Pessoas: da Convenção de Genebra ao Protocolo de Palermo.

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À preocupação inicial com o tráfico de negros da África, para exploração laboral, agregou-se a do tráfico de mulheres brancas, para prostituição. Em 1904, é firmado em Paris o Acordo para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas, no ano seguinte convalido em Convenção. Durante as três décadas seguintes foram assinados: a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas (Paris, 1910), a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças (Ge-nebra, 1921), a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores (Genebra, 1933), o Protocolo de Emenda à Conven-ção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças e à Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maio-res (1947), e por último, a Convenção e Protocolo Final para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio (Lake Success, 1949).

Como se pode observar, as normas relacionadas ao tráfico de pes-soas foram produzidas sob a forte influência de gênero e, na maioria dos casos, focada para a questão da exploração sexual. Tal fato produzirá en-tão, até os dias de hoje, uma equivocada compreensão de que a questão do tráfico de pessoas é essencialmente relacionada às mulheres e à exploração sexual.

Já a Convenção Suplementar — de 1956 — sobre a abolição da escravatura, do Tráfigo de escravos e das Instituições e Práticas análogas à escravatura, representa uma das primeiras normas onde as duas questões – trabalho escravo e tráfico de pessoas – são tratadas em uma perspectiva holística na qual percebe-se a importância do enfrenta-mento e repressão ao tráfico de pessoas.

Também é imprescindível mencionar o que dispõe a referida Con-venção, cujo artigo 3º parece também bastante esclarecedor acerca da ca-racterização do tráfico de pessoas:

Art. 3º 1. O ato de transportar ou tentar transportar escravos de um país para outro, por qualquer meio de transporte, ou a cumplicidade nesse ato cons-tituirá infração penal segundo a lei dos Estados Partes à Convenção, e as pessoas reconhecidas culpadas de tal informação serão passíveis de penas muito rigorosas.(....)3. Os Estados Partes à Convenção trocarão informações a fim de asse-gurar a coordenação prática das medidas tomadas pelos mesmos na luta

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contra o tráfico de escravos e se comunicarão mutuamente qualquer caso de tráfico de escravos e qualquer tentativa de infração desse gênero de que tenham conhecimento.

Conforme esclarece Castilho147:

Além da obrigação dos Estados Partes de estabelecer medidas de natureza administrativa e civil visando modificar as práticas análogas à escravidão, de mulheres e crianças, a Convenção fixou a obrigação de definir como crime, entre outras, a conduta de transportar ou tentar transportar escravos de um país a outro, de mutilar ou aplicar castigos, de escravizar alguém ou de incitar alguém a alienar a sua liberdade ou de quem esteja sob sua autoridade. (grifo nosso).

Finalmente, com a aprovação do Protocolo adicional à Conven-ção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional, Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial as Mulheres e Crianças – Protocolo de Palermo (decre-to nº 5.017, de 12 de março de 2004) erigiu-se um instrumento normativo que, de forma clara, posicionou as duas questões – trabalho escravo e tráfico de pessoas – a partir de uma visão de que ambas fazem parte de um mesmo processo. Ao definir a expressão “tráfico de pessoas”, a nor-ma não deixa dúvidas quanto à ligação existente entre este fenômeno e o trabalho escravo. Veja-se o que dispõe seu artigo 3º:

Para efeitos do presente Protocolo:

a) A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ame-aça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à en-trega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou remoção de órgãos”.

147 CASTIlHO. Ela Wiecko de. Tráfico de Pessoas: da Convenção de Genebra ao Protocolo de Palermo.

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b) O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas, tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea “a” do presente Artigo, será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer dos meios refe-ridos na alínea “a”;

c) O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhi-mento de uma criança para fins de exploração serão considerados “tráfico de pessoas”, mesmo que não envolvam nenhum dos meios referidos na alínea a do presente Artigo;

d) O termo “criança” significa qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos. (grifo nosso).

Como se pode observar, o chamado “Protocolo de Palermo” con-ceitua com precisão o que seja “tráfico de pessoas”, identificando-o como uma etapa de um processo que leva às mais variadas formas de exploração das vítimas, sendo as mais comuns: exploração sexual, remoção de órgãos e especialmente, no que nos interessa nesta análise, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura.

2.3- O MARCO NORMATIVO NACIONAL RELACIONADO AO TRABALHO ESCRAVO E AO TRÁFICO DE PESSOAS

Seguindo linha semelhante àquela relacionada às normas internacio-nais, o marco jurídico nacional historicamente foi preenchido por normas relacionadas inicialmente ao trabalho escravo.

O primeiro e mais importante dispositivo legal pátrio é aquele re-presentado pelo artigo 149 do Código Penal, com sua nova redação in-troduzida pela lei 10.803/2003 e que, sem dúvida, dá consequência no âmbito nacional àqueles compromissos assumidos com a ratificação dos instrumentos normativos internacionais relacionados ao trabalho escravo. Veja-se a redação:

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer subme-tendo-o a trabalhos forçados ou jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão da dívida contraída com o empregador ou pre-posto.

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Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa, além da pena cor-respondente à violência.§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:I – Cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.§ 2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:I – contra criança ou adolescente;II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

O artigo 207, com nova redação dada pela lei 9.777 de 29/12/98, tipifica as condutas criminosas de aliciamento, recrutamento ilegal, recru-tamento mediante fraude, recrutamento ilegal pela não garantia do retor-no ao local de origem. Tal norma encontra-se em absoluta consonância com os instrumentos normativos internacionais relacionados ao tráfico de pessoas, aplicável em sua dimensão interna. Senão, veja-se:

Art. 207 – Aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional:Pena – detenção de um a três anos e multa§ 1º Incorre na mesma pena quem recrutar trabalhadores fora da localida-de de execução do trabalho, dentro do território nacional, mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do trabalhador, ou, ainda, não assegurar condições do seu retorno ao local de origem. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental.

Além das penas previstas no citado artigo, de acordo com a gravi-dade do caso, evidenciada pelo grau de insegurança do veículo utilizado e pelos eventuais riscos de acidentes no trajeto, poderá ficar evidenciado que as vítimas foram expostas a perigo direto e iminente, o que configuraria o crime previsto no art. 132, do Código Penal.

destaque-se, no âmbito do tráfico de pessoas, a edição do decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006 (aprova a Política Nacional de Enfrenta-mento ao Tráfico de Pessoas e institui Grupo de Trabalho Interministerial com o objetivo de elaborar proposta do Plano Nacional de enfrentamento do Tráfico de Pessoas – PNETP).

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No anexo do decreto, no parágrafo 3º de seu artigo 2º faz-se a oportuna e esclarecedora aproximação entre trabalho escravo e tráfico de pessoas, bem assim uma clara definição sobre o que se considera tráfico interno de pessoas:

§3º A expressão “escravatura ou práticas similares à escravatura” deve ser entendida comoI – a conduta definida no art. 149 do Decreto-Lei nº 2.848, de 1940, referente à redução à condição análoga a de escravo.”(...)§4º A intermediação, promoção ou facilitação do recrutamento, do trans-porte, da transferência, do alojamento ou do acolhimento de pessoas para fins de exploração também configura tráfico de pessoas.§5º O tráfico interno de pessoas é aquele realizado dentro de um mesmo Estado-membro da Federação, ou de um Estado-membro para outro, den-tro do território nacional. (grifo nosso)

Ainda relacionado ao tráfico de pessoas, foi editado o decreto nº 6.347, de 8 de janeiro de 2008 (Aprova o Plano Nacional de Enfrentamen-to ao Tráfico de Pessoas – PNETP e institui Grupo Assessor de Avaliação e disseminação do referido Plano).

Especialmente no campo do combate ao trabalho escravo, cabe men-cionar dois instrumentos normativos: a edição da Instrução Normativa nº 65, do Ministério do Trabalho e Emprego, de 19 de julho de 2006 (cria a Certidão liberatória e estabelece as condições para que haja o desloca-mento lícito de trabalhadores de uma localidade para outra no território nacional) e o Cadastro de Empregadores criado pela Portaria do Ministé-rio do Trabalho nº 540 de 2004 (prevê que todos os infratores flagrados explorando trabalho escravo serão inseridos no referido Cadastro, alí per-manecendo por no mínimo 2 (dois) anos, durante os quais sofrerão uma série de restrições de crédito e comércio de seus produtos).

Finalmente, cabe indicar a Resolução nº 1.166, de 5 de outubro de 2005, editada pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) que assim dispõe em seu artigo 27:

Art. 27. Poderão ser emitidas autorizações de viagens específicas para um único trajeto, ou para as etapas de ida e de volta com diferentes grupos fechados de passageiros, nos seguintes casos:

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I – para as viagens de traslado de estações de embarque e desembarque de passageiros, eII – para o transporte de trabalhadores por período determinado, sem data de retorno previamente estabelecida.(...)§2º Para obtenção de Autorizações Especiais previstas no inciso II, a autorizatária deverá enviar requerimento à ANTT em que conste a pro-gramação de viagem e o numero de solicitação no Sistema de Autorização de Viagem, acompanhado do contrato celebrado com o cliente com antece-dência mínima de três dias úteis do início da viagem.

2.4- O DESCOMPASSO ENTRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS RELACIONADAS AO TRÁFICO DE PESSOAS E AO TRABALHO ESCRAVO

A seguir, abordar-se-ão as duas políticas públicas, objeto deste traba-lho, seus históricos de implementação e, principalmente, aquilo que pode-se identificar como um equívoco em suas execuções: um distanciamento entre ambas o que, no médio prazo, poderá comprometer a eficácia de ambas no que refere-se ao trabalho escravo que ocorre no interior do país e ao tráfico interno de pessoas.

A política pública relacionada à busca da eliminação do trabalho es-cravo iniciou-se em 1995, quando o Governo brasileiro reconheceu a exis-tência deste crime no país.

Nesta oportunidade, o governo instituiu o Grupo Especial de Fisca-lização Móvel (GEFM) e o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Escravo (GERTRAF), incumbido a este último a coordenação dos esfor-ços governamentais, bem assim a construção de uma política pública que garantisse o combate ao trabalho escravo. Por sua vez, incumbe ao Grupo Especial de Fiscalização Móvel as ações fiscais repressivas ao crime.

O ano de 2003 representou uma mudança significativa na política antiescravista, que passa a focalizar não só o combate, mas a erradicação do trabalho escravo. Nesse contexto, o Governo recém empossado assu-miu como seu o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo elaborado, ainda no período do governo anterior por entidades governa-mentais e não governamentais, lançando-o em ato dirigido pelo próprio Presidente da República.

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O referido Plano abrange 76 ações, que expressam e articulam os papéis dos entes públicos e da sociedade civil no enfrentamento do pro-blema.

Ainda no ano de 2003, o Presidente da República cria a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE) que sucedeu ao GERTRAF. democratizando a composição de sua estrutu-ra, trata-se de um órgão colegiado, cuja função primordial é monitorar a execução do Plano Nacional. É integrada por ministros de diversas pas-tas, entre eles, o do Ministério do Trabalho e Emprego, e por até nove representantes de entidades não governamentais que possuam atividades relevantes relacionadas a esta política pública.

Em 13 de dezembro de 2005, o Governo Federal reafirma o com-promisso de erradicar o trabalho escravo e lança ou ratifica um conjunto de medidas de largo alcance, tanto no terreno repressivo como no apoio à reinserção social dos resgatados e suas famílias. Cabe destacar a campanha Erradicação do Trabalho Escravo, empreendimento executado em parceria en-tre o MTE e a OIT; a declaração de intenções assinada pela FEBRABAN – Federação Brasileira dos Bancos, com vistas a orientar os associados no sentido de adotarem restrições cadastrais aos exploradores de trabalho es-cravo; e a assinatura do Acordo de Cooperação Técnica entre o MTE e o Minis-tério do desenvolvimento Social e Combate à Fome (MdS) para inclusão dos trabalhadores resgatados no Programa Bolsa Família, programa que alia transferência de renda e ações estruturantes do desenvolvimento (di-reitos fundamentais, educação básica, saúde, segurança alimentar).

O eixo da política antiescravista é a repressão ao trabalho escravo, centrada no Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM). Coordena-do pela Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, o grupo é constituído, hoje, de oito equipes, integradas por auditores-fiscais do trabalho, delegados e agentes da Polícia Federal e pro-curadores do Ministério Público do Trabalho. Constata-se uma significati-va evolução dos indicadores de desempenho no período posterior ao ano de 2003, conforme demonstra o quadro a seguir:

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MINISTÉRIO dO TRABAlHO E EMPREGO - MTESecretaria de Inspeção do Trabalho - SIT

departamento de Fiscalização do Trabalho - dEFITdivisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo - dETRAE

QUadRO GeRaL daS OPeRaÇÕeS de FISCaLIZaÇÃO MÓVeL1995 a 2008

ano

N.º

Ope

raçõ

es

N.º de Fazendas

FiscalizadasTr

abal

hado

res

Reg

istr

ados

Trab

alha

dore

s Li

bert

ados

Pagamento de Indenização

aIs Lavrados

2008 15 27 226 924 879.768,42 728

2007 116 206 3.637 5.999 9.914.276,59 3.136

2006 109 209 3.454 3.417 6.299.650,53 2.772

2005 85 189 4.271 4.348 7.820.211,26 2.286

2004 72 275 3.643 2.887 4.905.613,13 2.465

2003 67 188 6.137 5.223 6.085.918,49 1.433

2002 30 85 2.805 2.285 2.084.406,41 621

2001 29 149 2.164 1.305 957.936,46 796

2000 25 88 1.130 516 472.849,69 522

1999 19 56 * 725 * 411

1998 17 47 * 159 * 282

1997 20 95 * 394 * 796

1996 26 219 * 425 * 1.751

1995 11 77 * 84 * 906

TOTaL 641 1.910 27.467 28.691 39.420.630,98 18.905

* dados não computados à épocaAtualizado em 25/03/2008 Fonte: Relatórios de Fiscalização Móvel.

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O Ministério do Trabalho e Emprego criou, pela Portaria nº 540, de 15 de outubro de 2004, o Cadastro de Empregadores, formado por pessoas físicas e jurídicas colhidas pela fiscalização na prática do trabalho escravo ou análogo à escravidão. Conhecido inadequadamente como Lista Suja, o cadastro é atualizado semestralmente pelo MTE e encaminhado aos Mi-nistérios da Fazenda, da Integração Nacional, do desenvolvimento Agrá-rio, do Meio Ambiente e à Secretaria de direitos Humanos, a fim de que cada instituição adote as medidas oportunas em seu respectivo âmbito de competência.

A inclusão do nome do infrator no cadastro acontece somente após a conclusão do processo administrativo originário dos autos de infração lavrados no decorrer das inspeções. A exclusão, por sua vez, depende da conduta do infrator, monitorada pela inspeção do trabalho, ao longo de dois anos. Não havendo, nesse período, reincidência do ilícito, se pagas to-das as multas (resultantes da ação fiscal) e quitados os débitos trabalhistas e previdenciários, o nome é retirado do cadastro.

Em sua atualização mais recente, em dezembro de 2008, o cadastro contém 185 nomes.

Um dos efeitos mais contundentes do cadastro é impedir o acesso de empregadores e empresas que dele constam a linhas de crédito e a incen-tivos fiscais junto aos bancos oficiais e agências regionais de desenvolvi-mento. Graças a uma decisão do Ministério da Integração Nacional, essas pessoas físicas e jurídicas já não têm acesso, desde o final de 2003, aos recursos dos Fundos Constitucionais de Financiamento, concedidos pelo Banco do Brasil, Banco da Amazônia e Banco do Nordeste do Brasil.

Conforme já apontado, o lançamento do Plano Nacional para a Erra-dicação do Trabalho Escravo, no ano de 2003, representou um marco no enfrentamento da questão relacionada ao trabalho escravo. O plano prevê dezenas de ações a serem desenvolvidas pelo Estado brasileiro, sendo que a quase totalidade delas são claramente direcionadas ao fortalecimento do processo de identificação e libertação de pessoas que já se encontram sendo exploradas como escravas.

Entretanto, ignora quase que por completo aquela fase inicial do pro-cesso que leva à escravização, ou seja, o tráfico interno de pessoas.

No conjunto de ações propostas, apenas as ações de nº 34, 35 e 36 possuem relação direta com o tráfico interno de pessoas. São elas:

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34 – Implementar um programa de conscientização junto à PRF para identificar as situações de transporte irregular de trabalhadores.35 – Definir junto à PRF um programa de metas de fiscalização nos eixos de transporte irregular e de aliciamento de trabalhadores, exigindo a regularização da situação dos veículos e encaminhamento ao MTE para regularizar as condições de contratação do trabalho.36 – Adotar providências contra o aliciamento por parte dos “gatos” e contra o transporte ilegal dos trabalhadores.148

Apesar do sucesso da política pública sustentada pelo Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, mesmo estas poucas ações propos-tas não foram levadas a efeito. dos dados disponibilizados pela Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, órgão responsável pela coordenação das ações de combate ao trabalho escravo, não se vislumbra uma atuação articulada com a Polícia Federal com vistas ao combate do tráfico interno de pessoas, havendo apenas notícias de si-tuações esporádicas, onde ocorre pedido de apoio quando da identificação de transporte ilegal de trabalhadores.

Também não se tem notícia da definição ou implementação de qual-quer programa de metas de fiscalização nos eixos de transporte irregular e de aliciamento de trabalhadores. Tampouco se detecta-se a adoção de providências contra o aliciamento por parte dos “gatos” e contra o trans-porte ilegal dessas vítimas.

Fundamental, neste aspecto, informar que, em 2006, a Organiza-ção Internacional Trabalho – OIT, no âmbito do Projeto de Cooperação Combate ao Trabalho Escravo no Brasil, firmado com o governo brasi-leiro em 2002, financiou e doou ao Ministério do Trabalho e Emprego o Sistema de Acompanhamento do Trabalho Escravo – SISACTE. Trata-se de banco de dados, que possibilitaria a inclusão de todos os dados colhi-dos durante as ações fiscais de repressão ao trabalho escravo. Uma vez ali-mentado o sistema, seria possível a realização de diagnósticos mais sólidos sobre o problema com o acompanhamento das denúncias, a identificação de focos de origem, aliciamento e aprisionamento de trabalhadores, os responsáveis pelo crime, as atividades econômicas envolvidas, além de ca-sos de reincidência.

148 Plano Nacional Para a Erradicação do Trabalho Escravo. Pág. 23. Comissão Es-pecial Especial do Conselho de defesa dos direitos da Pessoa Humana da Secretaria Especial dos direitos Humanos; Organização Internacional do Trabalho-. – Brasília. OIT, 2003.

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Infelizmente, até hoje, o sistema não foi alimentado com os dados disponíveis nos relatórios de fiscalização produzidos desde 1995, impossi-bilitando a identificação dos famigerados “gatos”, rotas de recrutamento, enfim de toda a cadeia relacionada ao tráfico interno de pessoas. Refe-rindo-se aos dados disponíveis no Ministério do Trabalho e Emprego, a pesquisadora Evanize Sydow assim expõe a questão:

As dezenas de relatórios distribuídos pelos armários da sala onde trabalha a equipe do Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho, em Brasília, desvendam um cenário ignorado pela maioria de nós. Ali estão, anotados em detalhes, com números, depoimentos e fotos, as histórias de milhares de brasileiros que trabalham 12, 14, 16 horas todo dia por um prato de arroz e farinha e um barraco de lona pra dormir.149

É forçoso reconhecer que as instituições ligadas à implementação do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo não percebem como é estratégico para a estruturação e eficácia de suas ações a questão do tráfico interno de pessoas.

Aliás, o que observa-se é que as instituições públicas diretamente en-volvidas à política de erradicação do trabalho escravo não parecem com-preender aquele processo relacionado ao assédio da mão de obra com fal-sas promessas feitas pelos “gatos”, o aliciamento e transporte dos mesmos para serem explorados em situações descritas no Artigo 149, do Código Penal, como um processo típico de tráfico interno de pessoas.

Não raro, tais instituições qualificam o processo como um fenômeno meramente de migração interna de trabalhadores e, tanto é assim, que as ações previstas no Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escra-vo são, como já apontado, tipicamente focadas para situações mais rela-cionadas a irregularidades trabalhistas do que a crimes contra os direitos humanos.

Exemplificando essa posição das instituições aqui criticada, merece ser transcrito parte do que diz luiz Antônio Camargo, Subprocurador Ge-ral do Trabalho e então Coordenador Nacional da Coordenadoria de Erra-dicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho quando trata daquilo que considera tráfico interno de pessoas:

149 SYdOW. Evanise. O perfil do Trabalhador escravo no Brasil. In: direitos Hu-manos no Brasil 2003. Relatório da Rede Social de Justiça e direitos Humanos em colaboração com Global Exange. Pg. 109.

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Art. 231 A. Promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou acolhimento da pessoa que venha exercer a prostituição:Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.Parágrafo único. Aplica-se ao crime de que trata este artigo o disposto nos §§ 1º e 2º do art. 231 deste Decreto-Lei.A tipificação do tráfico interno, introduzido pela Lei nº 11.106/2005, é mais um instrumento do Estado para minimizar e coibir qualquer mo-dalidade de tráfico de seres humanos. Os bens jurídicos protegidos são a moralidade pública sexual e os bons costumes, indistintamente de homem e mulher, seguindo a correta orientação do novo texto legal.150 (grifo nosso)

Como se vê, o viés adotado pelo responsável pela Coordenação do Combate ao Trabalho Escravo no âmbito do Ministério Público do Tra-balho, é aquele que limita o tráfico de pessoas, mesmo que no âmbito interno, apenas àquela modalidade ligada ao tráfico com vistas à explo-ração sexual. Nenhuma menção se faz ao Artigo 207, do Código Penal que, claramente, como já visto, criminaliza o tráfico interno com vistas à exploração para o trabalho.

Merece atenção o fato de que o mesmo Coordenador define como bens jurídicos a serem protegidos a moralidade pública e os bons costu-mes.

Parece que esta definição é equivocada por não se compatibilizar com o conjunto das normas nacionais e internacionais relacionadas ao tema. Parece mais adequada a conceituação posta em publicação relativa ao Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, nos seguintes termos:

Tráfico de pessoas é causa e consequência de violações de direitos humanos. É uma ofensa aos direitos humanos, porque explora a pessoa humana, degrada sua dignidade, limita sua liberdade de ir e vir.151

150 MElO. luis Antônio Camargo de. Atuação do Ministério Público do Trabalho no Combate ao Trabalho Escravo – crimes contra a organização do trabalho e demais crimes conexos. In. Possibilidades Jurídicas de combate à Escravidão Contemporânea. Brasília: Organização Internacional do Trabalho. 2007. pg. 91.151 Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. / Secretaria Nacional de Justiça. – Brasília: SNJ. 2008. pg. 05.

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Por sua vez, a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas é bem mais recente do que aquela relacionada à erradicação do trabalho escravo. Foi aprovada pelo decreto n. 5948, de 26 de outubro de 2006, e realiza-se, na prática, por meio do Plano Nacional de Enfren-tamento ao Tráfico de Pessoas, aprovado pelo decreto nº 6.347, de 08 de janeiro de 2008.

Assim como o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Es-cravo, esse é composto por dezenas de metas a serem implementadas. Uma rápida análise dessas metas permite concluir a existência de um forte viés para as questões relacionadas ao tráfico de pessoas, no que se refere às mulheres para serem exploradas sexualmente. A maioria suprir das metas refere-se apenas a esse segmento de vítimas.

O tráfico de pessoas, para sua exploração no trabalho, é tratado no Plano de forma quase que periférica. As poucas metas relacionadas ao tema são as seguintes:

a) meta – Uma metodologia que identifique as interfaces entre tra-balho degradante, situação migratória e o tráfico de pessoas;

b) meta – Promover a regularização do recrutamento, deslocamento e contratação de trabalhadores;

c) meta – divulgar nas entidades representativas de empregadores e trabalhadores e em outras instâncias, como a Polícia Rodoviária Federal, a obrigatoriedade da solicitação de certidão liberatória para transportar trabalhadores recrutados em Municípios distintos daquele onde se localiza a unidade produtiva;

d) meta - Elaborar e implementar projeto-piloto de centro público de intermediação de mão de obra rural em município identificado como foco de aliciamento para o trabalho escravo; e

e) meta – Criar mecanismo de monitoramento da emissão da certi-dão liberatória em articulação com a Polícia Rodoviária Federal.

Essas metas são fortemente influenciadas por aquelas ações já conti-das no Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo e não vão além de proposituras que parecem focar o tráfico interno de pessoas como mera irregularidade administrativa. Em momento algum estabelecem-se metas relacionadas à:

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a) atuação dos agentes públicos (Polícia Federal, Ministério do Tra-balho e Ministério Público Federal) para a identificação rotas de tráfico interno de pessoas para exploração no trabalho;

b) atuação dos agentes públicos para a identificação das pensões e hotéis, que costumeiramente servem para alojamento e distribuição das vítimas do tráfico interno de pessoas para exploração no trabalho;

c) atuação dos agentes públicos na identificação de quem são os principais agenciadores ilegais da mão de obra, os chamados “gatos”, com vistas a criminalizar suas condutas. Registre-se que os relatórios das ações fiscais do Grupo Especial de Fiscalização Móvel e até hoje não foram inseridos no banco de dados ofertado ao governo brasileiro pela OIT;

d) atuação dos agentes públicos com vistas a criminalizar a conduta de fazendeiros que, por intermédio dos “gatos”, atuam na prática do tráfi-co interno de pessoas.

3- CONCLUSÃO

A superação no Brasil e no mundo da chaga social representada pela existência de pessoas submetidas ao trabalho escravo tem-se constituído em desafio mundial para instituições governamentais e organizações não governamentais.

É elemento fundamental para a eliminação do trabalho escravo a compreensão de que este é um fenômeno que se estrutura a partir de uma fase inicial constituída pelo assédio às vítimas, sua cooptação com falsas promessas e sua condução para locais longínquos, onde serão exploradas em regime de escravidão.

A partir desta compreensão sistêmica, será possível dirigir, com efi-cácia, as políticas públicas no sentido de uma real eliminação desse tor-mento à humanidade.

O Brasil tem se constituído em um exemplo internacional no enfren-tamento do trabalho escravo realizado dentro de suas fronteiras. desde 1995, quando o Estado brasileiro assumiu a existência dessa prática cri-minosa em seu território e iniciou uma importante política pública para a erradicação desse crime, muitas vítimas têm sido libertadas da escravidão.

Entretanto, desde então, esta política pública relacionada ao trabalho escravo tem sido focada, essencialmente, na fase final do fenômeno crimi-noso: a exploração da vítima no final do processo.

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dessa forma, pouco ou quase nada tem sido feito em relação à fase inicial que leva à submissão das pessoas à escravidão para fins de explora-ção no trabalho: o tráfico interno de pessoas.

As poucas e ineficazes medidas propostas no Plano Nacional Para a Erradicação do Trabalho Escravo, relacionadas ao tráfico interno de pes-soas, não foram executadas e, mesmo que fossem, parecem de eficácia duvidosa, já que partem de um tratamento de que o tráfico constitui-se muito mais em irregularidade administrativa do que propriamente numa prática criminosa.

Também a política pública relacionada ao tráfico de seres humanos, mais recente, e ainda em fase de maturação, insere, em seu Plano Nacio-nal de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, poucas metas relacionadas à questão do tráfico interno de seres humanos para a sua exploração no trabalho em situação de escravidão. Além disso, as metas existentes repe-tem aquelas já previstas no âmbito do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo ou seguem a mesma linha de entender o fenômeno criminoso como mera irregularidade administrativa.

A política pública relacionada ao tráfico de pessoas, altamente in-fluenciada pela vertente do tráfico de mulheres com fins de exploração sexual, parece tratar o tráfico interno de seres humanos para sua explora-ção no trabalho apenas de uma maneira protocolar, não se vislumbrando por meio das metas, alí propostas, uma perspectiva de enfrentamento real da questão.

Não se pode alegar a inexistência de dispositivos internacionais e na-cionais que permitam um enfrentamento adequado e articulado, por parte do conjunto das instituições, para que não se faça uma atuação articulada e eficaz das duas políticas públicas aqui abordadas. Como visto, a legislação entende o trabalho escravo e o tráfico de pessoas como momentos de um mesmo processo, indica e cria instrumentos para o combate das diversas facetas que compõem as etapas que levam à escravidão, sendo a principal delas o tráfico de seres humanos.

Entretanto, mesmo dispondo de legislação minimamente adequada, as políticas públicas estão desarticuladas e parecem apontar para uma im-potência em criar meios (ações, metas) que permitam uma ação eficaz do Estado brasileiro.

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A não superação dos obstáculos existentes e a ausência de uma refle-xão sobre o atual contexto dessas políticas públicas produzirá, no médio prazo, o comprometimento da política que visa a erradicação do trabalho escravo na medida em que não enfrenta com rigor sua fase inicial, qual seja: o tráfico interno de pessoas.

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CONVENÇÃO dE GENEBRA ao Protocolo de Palermo.

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2º COLOCadO - eSTUdaNTeS

ASPECTOS DA TUTELA JURÍDICO-PENAL NO TRÁFICO DE PESSOAS

Aline Sugahara Bertaco

INTRODUÇÃO

O tráfico de pessoas é um comércio internacional que lucra bilhões de dólares às custas de milhões de vítimas, muitas delas crianças, rouba-das de sua dignidade e liberdade.152 É uma atividade altamente rentável, porquanto “traficar pessoas, diferentemente de outras mercadorias, pode render mais, pois elas podem ser usadas repetidamente”.153

O tráfico de seres humanos é um problema antigo, objeto de repres-são penal desde o fim do século XIX. Porém, “desde a década passada, tem alcançado proporções epidêmicas. Nenhum país está imune”.154 É um fenômeno mundial, multidimensional e multifacetado, cujos fatores deter-minantes são de ordem política, socieconômica, cultural e sociológica155.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), uma única pes-soa aliciada pode gerar um lucro de até 30 mil dólares para as redes cri-minosas.156 Fazendo com que o tráfico de pessoas seja a terceira atividade

152 UNOdC, 2008.153 JESUS, p. 13-14.154 UNOdC. Trata de personas. disponível em: <http://www.unodc.org/brazil/pro-gramasglobais_tsh.html>. Acesso em 23 maio 2008.155 Cf. lEAl, Maria lúcia. lEAl, Maria de Fátima. Tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil – realidade e desafios. In: lIBÓRIO, Renata Maria Coimbra; SOUSA, Sônia M. Gomes (orgs.). A exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil: reflexões teóricas, relatos de pesquisas e intervenções psicossociais. São Paulo: Casa do Psicólogo; Goiânia: Universidade Ca-tólica de Goiás, 2004. p. 268.156 ORGANIZAÇÃO dAS NAÇÕES UNIdAS (ONU). Tráfico de seres humanos lucra US$ 30 mil por pessoa.disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/view_news.php?id=508>. Acesso em 24 maio 2008.

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comercial ilícita mais lucrativa do mundo, podendo o lucro anual chegar a 32 bilhões de dólares, perdendo apenas para o tráfico de drogas e para o contrabando de armas.157

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que, a cada ano, mais de 2,4 milhões de pessoas são traficadas no mundo, das quais 43% são submetidas à exploração sexual, 32% à exploração econômica e 25% são traficadas por razões diversas, como transplante de órgãos, ado-ção ilegal e servidão doméstica.158

A pobreza, o desemprego, a desigualdade econômica e social, a falta de perspectiva de vida, a discriminação de gênero, a ausência de fiscali-zação nas fronteiras com os países vizinhos e a migração desordenada, caracterizam o Brasil como um país fornecedor de pessoas para o tráfico.

Milhares de brasileiras em situação de vulnerabilidade social aceitam a proposta de trabalho oferecida pelos “traficantes” que podem ser um amigo, colega ou parente, e viajam ludibriadas para o exterior em busca de melhores oportunidades de vida. Na maioria dos casos, as vítimas aca-bam na rede mundial de tráfico de pessoas, principalmente com destino à exploração sexual.

Não obstante, muitas vítimas são brasileiras: “o Brasil funciona como país fornecedor ou de trânsito”159 para o tráfico de pessoas. Nosso país está integrado tanto na rede interna como na rede internacional de tráfico de seres humanos, através de rotas internacionais, intermunicipais e interestaduais, tendo sido identificadas 241 rotas no território nacional, sendo 110 rotas de tráfico interno, das quais 78 rotas são interestaduais e 32 intermunicipais, e 131 rotas ligando o país ao exterior.160

157 ONU. Brasil apresenta plano contra tráfico humano. disponível em <http://www.onu-brasil.org.br/view_news.php?id=6041>. Acesso em: 24 maio 2008.158 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAl dO TRABAlHO (OIT). Foro de Vie-na para combater o tráfico de pessoas 13-15 de fevereiro de 2008. disponível em: <http://www.oit.org.br/news/nov/ler_nov.php? id=3192>. Acesso em 24 maio 2008.159 CASTIlHO, p. 42. abr. 2008. 160 Relatório nacional da pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil -PESTRAF, coordenada pelo CE-CRIA – Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes, 2002. disponível em: <http://www.cecria.org.br/pub/livro_pestraf_ portugues.pdf>.

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O tráfico de pessoas atinge a dignidade da pessoa humana, que é comercializada como se fosse simples mercadoria para a exploração se-xual, física ou econômica. Configura-se, pois, como “relação criminosa de violação de direitos, exigindo um enfrentamento que responsabilize não somente o agressor, mas também o Estado, o mercado e a própria sociedade”.161

O presente artigo retrata a realidade brasileira, vulnerável ao tráfico de pessoas, e estuda a estrutura dos injustos penais previstos nos Artigos 231 e 231-A, do Código Penal, os quais incriminam, respectivamente, o tráfico internacional de pessoas e o tráfico interno de pessoas, avaliando-se sua adequação à proteção dos bens jurídicos violados e propondo uma inovação legislativa à necessária efetividade da tutela penal.

1 - O TRÁFICO DE PESSOAS

Uma carta, um bilhete, um anúncio, um e-mail podem ser o começo de uma longa jornada de explorações. O recrutamento e o aliciamento às redes de tráfico humano acontecem das maneiras mais diversas.162

O tráfico de pessoas significa “o recrutamento, o transporte, a trans-ferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração sexual, o trabalho ou servi-ços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a escravidão ou a remoção de órgãos”.163

É um crime contra a humanidade, movido pela oferta de pessoas em situação de vulnerabilidade social e pela demanda crescente para a compra da valiosa mercadoria que é o ser humano.

Acesso em: 24 maio 2008.161 lEAl, Maria lúcia. lEAl, Maria de Fátima. Op. cit. p. 268.162 JESUS, damásio de. Op. cit., p. 129.163 Expressão adotada pelo Protocolo para prevenir, reprimir e punir o tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças, suplementar à Convenção contra o crime organizado transnacional (artigo 3º, “a”).

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A vulnerabilidade das pessoas, em especial das mulheres e crianças, decorrente principalmente, da falta de oportunidade de trabalho, desigual-dade econômica e social, pobreza, discriminação de gênero e violência doméstica, induz as vítimas às redes de comercialização de seres humanos. Há uma estreita relação entre pobreza, desigualdades regionais e a existên-cia de rotas nacionais e internacionais de tráfico de pessoas em todas as regiões do Brasil.164

A globalização estimula o tráfico de pessoas com a eficiência das trocas comerciais, a facilidade de controle das fronteiras e de acesso for-necida pelo desenvolvimento da tecnologia e dos meios de comunicação, de transporte e da internacionalização da economia, interconectando-se as redes de tráfico humano às atividades criminosas e ao mercado internacio-nal.165 Isso possibilita, inclusive, que pessoas traficadas sejam vendidas em “leilões” realizados por meio da Internet.

Raramente, o contato travado pelos traficantes parte de uma atitude arbitrária, na qual uma pessoa totalmente estranha aborda outra sobre a qual não tem a menor informação. O incentivo, geralmente, parte de pes-soas do convívio das vítimas, amigas ou parentes que foram traficados para o exterior e retornam ao país de origem com o trabalho de fornecer pessoas ao mercado do tráfico.166

Na maioria dos casos, as mulheres167 são enganadas por falsas pro-postas de casamento ou trabalho no exterior, através de mensagens eletrô-nicas, anúncios em jornais e revistas ou por intermédio de taxistas, colegas ou parentes, e crianças são raptadas ou vendidas ao tráfico humano por famílias pobres.168

164 Cf. lEAl, Maria lúcia. lEAl, Maria de Fátima. Op. cit., p. 269.165 Cf. PESTRAF, 2002.166 Cf. TRAF, 2002.167 Segundo o relatório da PESTRAF (2002), 54% das vítimas no mundo todo são mulheres e 44% são crianças, sendo que os homens representam apenas 2% do total.168 QUAGlIA, Giovanni. Tráfico de pessoas, um panorama histórico e mundial. In: Cartilha sobre a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Brasília: Ministério da Justiça. disponível em:<http://www.mj.gov.br/trafico/servicos/pu-

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O aliciador envia o passaporte e a passagem às vítimas que, ao chega-rem no país de destino, têm todos os seus documentos confiscados e seus movimentos restritos. Elas raramente denunciam os traficantes ou pro-curam por ajuda, com receio de represálias ou medo de que suas famílias sofram maus-tratos no país de origem, de serem tratadas como criminosas (por representantes do Poder Público e, inclusive, pela própria sociedade) ou medo da repatriação.169

As vítimas do tráfico são agredidas, ameaçadas, humilhadas, comer-cializadas, desvalorizadas como pessoa humana e obrigadas ao trabalho escravo, ao transplante involuntário de órgãos ou à exploração sexual para satisfazer diversos clientes, várias vezes ao dia, em condições análogas à escravidão, ficando vulneráveis às doenças sexualmente transmissíveis. Ademais, praticamente todo o dinheiro obtido pelas vítimas com a pres-tação de serviços sexuais é repassado aos traficantes;170 por isso a “dívida” que elas contraíram para viajar ao exterior nunca é abatida.

As redes de favorecimento escondem-se atrás de falsas empresas, legais ou ilegais, do ramo de turismo, entretenimento, transporte, moda, indústria cultural e pornográfica, agências de serviços e outros mercados que facilitam a prática do tráfico humano, como prostíbulos, spas, resorts, hotéis, boates, shoppings, casas de massagem, barracas de praia, lanchone-tes, casas de shows, quadras de escolas de samba, bares e restaurantes de beira de estrada.171

Não obstante as pessoas objeto de tráfico são designadas como “ví-timas” em várias políticas e leis, a menos que se tornem informantes da polícia e denunciem os “traficantes”, elas são tratadas como imigrantes ilegais, criminosas ou ameaças à segurança nacional.172

Apesar do grande número de pessoas traficadas no mundo todo, bem como dos inúmeros prostíbulos existentes, dificilmente as autori-

blicacoes/Cartilha_MJ.pdf>. Acesso em 25 maio 2008.169 JESUS, damásio de. Op. cit., p. 19.170 ONU. Iniciativa global da ONU contra o tráfico de pessoas – UN.GIFT. disponí-vel em <http://www.ungift.org/brazil/>. Acesso em: 25 maio 2008.171 PESTRAF, 2002.172 HAZEU, 2008.

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dades policiais encontram os responsáveis pela comercialização ilegal de seres humanos e, tampouco, logram provar a materialidade do crime de tráfico de pessoas.

A natureza clandestina do tráfico de seres humanos, reforçado pelas vítimas, garante aos traficantes a censura, que silencia o sujeito violado,173 resguardando as redes nacional e internacional deste comércio ilegal.

A existência de autoridades policiais e judiciais corruptas, o envolvi-mento do crime organizado internacional, a ausência de fiscalização das fronteiras174 e a precária infraestrutura são fatores que também favorecem o tráfico de pessoas.

2 - ANTECEDENTES HISTÓRICOS

Nos povos antigos, o conceito de pessoa não corresponde ao atual. O homem, para a filosofia grega, era um animal político ou social, para em Aristóteles, cujo ser era a cidadania, o fato de pertencer ao Estado.175

do ponto de vista histórico, é a partir do cristianismo que tem lugar o conceito de pessoa como categoria espiritual, dotada de valor em si mesma, um ser de fins absolutos, possuidor de direitos fundamentais e, portanto, de dignidade.176

A dignidade da pessoa humana existe antes do ordenamento jurídi-co. É “um atributo ontológico do homem como ser integrante da espécie humana – vale em si e por si mesmo”.177

Como bem ensina Fragoso, “o tráfico de mulheres é crime de recente criação, tendo resultado da cooperação internacional na repressão ao favo-recimento da prostituição, tendo em vista a atividade de traficantes, que se projeta além do âmbito nacional”.178

A legislação internacional, a partir do século XIX, com o Tratado de Paris entre Inglaterra e França, passou a reprimir, inicialmente, o trá-fico de negros, objeto de comércio para a escravidão179.

173 lEAl, Maria lúcia. lEAl, Maria de Fátima. Op. Cit., p. 277.174 UNOdC 25 maio 2008.175 SANTOS, 1999.176 PRAdO 2007. 177 PRAdO, luiz Regis. Op. cit., p. 138.178 FRAGOSO, 1965.179 Cf. CASTIlHO, Ela Wiecko V. de. Tráfico de pessoas: da Convenção de Genebra

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No Brasil, o tráfico de pessoas iniciou-se concomitantemente com a sua descoberta e colonização. É um fenômeno que faz parte da nossa história.180 Estima-se que cerca de 3,6 milhões de escravos negros vindos da África tenham desembarcado no Brasil,181 para ser utilizados no tra-balho agrícola e, inclusive, para a satisfação sexual de seus “donos”.

Segundo Faleiros, a formação econômica, social e cultural do Bra-sil, assentada na colonização e na escravidão, produziu uma sexualidade de classe, racista, machista e adultocêntrica, cujo exemplo extremo são os “leilões de virgens”, ainda existentes no Brasil.182

Após a abolição da escravidão, nas últimas décadas do século XIX, “milhares de pessoas deslocaram-se da Europa para os países do Novo Mundo, fugindo da fome e da perseguição, em busca da realização de seus sonhos”.183 O Rio de Janeiro passou a ser escala obrigatória de na-vegação no Atlântico Sul, quando esta cidade era um importante polo nas rotas internacionais do tráfico de mulheres provenientes da Euro-pa.184

Considerando que a problemática do tráfico negreiro agregou-se à do tráfico de mulheres para prostituição, no fim do século XIX, os go-vernos ficaram interessados na sua repressão, tanto que a Inglaterra foi a primeira a reprimir tal conduta, em 1885, com o Criminal Law Amendment Act.185

Foram realizados sucessivos congressos internacionais no sentido da necessidade de uma cooperação internacional para pôr fim a esse flagelo, entre os quais se destacaram o Congresso Penitenciário de Paris, em 1885;

ao Protocolo de Palermo. In: Cartilha sobre a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Brasília: Ministério da Justiça. disponível em: http://www.mj.gov.br/trafico/servicos/publicacoes/Cartilha_MJ.pdf>. Acesso em 21 maio 2008. 180 Cf. JESUS, damásio de. Op. cit., p. 71.181 TRÁFICO dE NEGROS. In: Grande enciclopédia larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultura, 1998. v. 23, p. 5.728.182 Cf. FAlEIROS, Eva T. Silveira. A exploração sexual comercial de crianças e de adolescentes no mercado do sexo. Op. cit., p. 84.183 JESUS, damásio de. Op. cit., p. 71.184 Cf. FRANCO, 2007.185 Cf. NORONHA, Edgard Magalhães. direito Penal. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 3, p. 243.

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o International Congress on the white slave trafic, em londres, em 1899; e a Con-ferência de Paris, em 1902.186

Em 1921, 1923 e 1933, a Sociedade das Nações promoveu, em Gene-bra, a Convenção Internacional à repressão do tráfico de mulheres e crian-ças, objetivando a punição da tentativa e, inclusive, dos atos preparatórios do crime. Finalmente, patrocinada pela Organização das Nações Unidas, foi concluída, em lake Success, em 1950, a Convenção e Protocolo Final para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do lenocínio, à qual o Brasil ade-riu por meio do decreto legislativo n° 6, de 12 de junho de 1958.187 No perpassar histórico, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou, em 1979, a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discrimina-ção contra a mulher, com o objetivo de combater o tráfico e a prostituição de mulheres. Em 1994, foi ratificada na cidade do México a Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores, promulgada pelo Brasil, por meio do decreto n° 2.740, de 20 de agosto de 1998.

Por derradeiro, em 1999, o comitê intergovernamental criado pela Assembleia Geral da ONU apresentou um instrumento internacional glo-bal para a prevenção do tráfico de seres humanos, proteção das vítimas e responsabilização dos criminosos: o Protocolo adicional à Convenção das Nações Unidas contra o crime organizado transnacional relativo à pre-venção, repressão e punição do tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças, conhecido como Protocolo de Palermo.188

Segundo o Escritório das Nações Unidas contra drogas e Crimes (UNOdC), até maio de 2007, 111 países já haviam ratificado o Protoco-

186 Cf. PIERANGElI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte espe-cial – arts. 121 a 361. 2. ed. rev., atual., ampl. e compl. São Paulo: RT, 2007. v. 2, p. 522.187 Cf. PRAdO, luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte especial – artigos 184 a 288. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2006. v. 3, p. 285.188 Cf. CASTIlHO, Ela Wiecko V. de. Tráfico de pessoas: da Convenção de Gene-bra ao Protocolo de Palermo. In: Cartilha sobre a Política Nacional de Enfrenta-mento ao Tráfico de Pessoas. Brasília: Ministério da Justiça. disponível em: <http://www.mj.gov.br/trafico/servicos/publicacoes/Cartilha_MJ.pdf>. Acesso em: 21 maio 2008.

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lo de Palermo, inclusive o Brasil,189 comprometendo-se a incorporar suas disposições nas respectivas legislações internas.

A legislação brasileira inicialmente cuidou do “tráfico da prostitui-ção” no Artigo 278, do Código Penal de 1890, no período da Primeira Re-pública, dispondo: “Induzir mulheres, quer abusando de sua fraqueza ou miséria, quer constrangendo-as por intimidações ou ameaças, a emprega-rem-se no tráfico da prostituição”. Na realidade, o tipo penal incriminava o comércio da prostituição, e não o tráfico de mulheres, porquanto “quem se empregavam no tráfico não eram as mulheres, mas sim, os traficantes ou exploradores”.190

Portanto, o crime de tráfico de mulheres, denominado inadequada-mente de tráfico de brancas pela doutrina,191 somente foi objeto de repres-são no ordenamento jurídico-penal brasileiro em 1940, quando o legisla-dor tipificou o crime de tráfico internacional de mulheres no artigo 231, do vigente Código Penal192 (decreto-lei nº 2.848, de 07.12.1940), na sua redação original.

Ao longo da história do direito brasileiro, o constituinte de 1988 consagrou a dignidade da pessoa humana como essência da atual Consti-tuição da República, em seu artigo 1º ,193 privilegiando os direitos e garan-tias fundamentais em detrimento á própria organização do Estado.

189 O Protocolo de Palermo foi promulgado pelo atual Presidente luiz Inácio lula da Silva, por meio do decreto n. 5.017, de 12 de março de 2004.190 PIERANGElI, José Henrique. Op. cit., p. 522.191 Cf. PIERANGElI, José Henrique. Op. cit., p. 522.192 “Art. 231, CP: Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de mulher que nele venha exercer a prostituição, ou a saída de mulher que vá exercê-la no es-trangeiro”.193 “Art.1º, CF: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I. a soberania; II. a cidadania; III. a dignidade da pessoa humana; IV. os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V. o pluralismo político.”

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No tocante à dignidade da pessoa humana, Fernando Ferreira dos Santos adverte que instituí-la como fundamento do Estado democrático de direito importa não apenas o reconhecimento formal da liberdade, mas a garantia de condições mínimas de existência, não se tolerando, pois, profundas desigualdades entre os membros de uma sociedade.194

Segundo Alexandre de Moraes, o princípio da dignidade humana apresenta-se em duas concepções: primeiro prevê um direito individual protetivo em relação ao Estado e em relação aos demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece um dever de tratamento igualitário dos próprios semelhantes, que corresponde ao respeito exigido de um indivíduo em re-lação à dignidade do outro, ao passo que a Constituição Federal exige que respeitem a sua própria dignidade.195

Corroborando, luiz Regis Prado preconiza que “o homem existe como fim em si mesmo, e não como meio, não podendo jamais ser tratado como objeto para o uso arbitrário da vontade alheia, exatamente porque é pessoa e tem dignidade” .196

Ainda no panorama legislativo pátrio, foi instituída a Política Na-cional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, por meio do decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006, considerando, em seu artigo 2º, a expres-são “tráfico de pessoas” nos devidos termos do Protocolo de Palermo.

Em consequência, com o objetivo de estabelecer metas estratégicas ao efetivo enfrentamento do tráfico de seres humanos, foi aprovado por meio do decreto nº 6.347, de 08 de janeiro de 2008, o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas,197 instituído por um Grupo de Trabalho Interministerial.

194 SANTOS, Fernando Ferreira dos. Op. cit., p. 79.195 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitu-cional. 6. ed. São Paulo: Atlas S.A., 2006, p. 129.196 PRAdO, luiz Regis. Op. cit., p. 137. 197 Secretaria Nacional de Justiça. Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Brasília: SNJ. disponível em: <http://www.mj.gov.br/traficodepessoas/ data/Pages/MJdB245924ITEMId9565E90F2A934514AC4345BF9656d05APT-BRIE.htm>. Acesso em: 21 maio 2008.

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3 - O ATUAL TRATAMENTO JURÍDICO-PENAL DO TRÁFICO DE PESSOAS

Hoje, o crime de tráfico de pessoas está previsto no Título VI da Parte Especial, do Código Penal de 1940, intitulado “dos crimes contra a dignidade sexual”, precisamente no capítulo V, que trata “do lenocínio e do tráfico de pessoa para fim de prostituição ou outra forma de explora-ção sexual”.

A lei nº 11.106/2005 estendeu a tutela penal, antes voltada somente às mulheres, à proteção das vítimas do sexo masculino, passando a incri-minar o tráfico em duas modalidades distintas: o tráfico internacional de pessoas no artigo 231198 e o tráfico interno de pessoas no artigo 231-A199

3.1 - BEM JURÍDICO PROTEGIDO

O direito Penal visa proteger os bens jurídico-penais essenciais ao indivíduo e à comunidade, ao passo que somente os bens especialmente relevantes para a vida social recebem a tutela penal.200

de acordo com a disposição do tráfico de pessoas no ordenamen-to jurídico-penal brasileiro, o bem jurídico protegido, segundo a doutrina tradicional, refere-se tão somente à moralidade pública sexual,201 à honra-sexual202 e aos bons costumes203 .

198 Art. 231. Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estran-geiro: Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (oito) anos, e multa. § 1º. Se ocorre qualquer das hipóteses do §1º do artigo 227: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa. § 2º. Se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude, a pena é de reclusão, de 5 (cinco) a 12 (doze) anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 3º. (revogado).199 Art. 231-A. Promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recruta-mento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha exercer a prostituição: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.200 PRAdO, luiz Regis.Bem Jurídico-Penal e Constituição. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2003, p. 32.201 Nesse mesmo sentido: NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, 2007, p. 861 e FRAGOSO, Heleno C., Op. cit., p. 666.202 NORONHA, Edgard Magalhães. Op. cit., p. 244. 203 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito Penal: Parte Especial. 3. ed.

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Entretanto, modernamente, luiz Regis Prado, de forma mais acerta-da e adequada à proteção dos bens jurídicos efetivamente violados, enten-de que o bem jurídico protegido nas normas incriminadoras do tráfico de pessoas é a própria condição humana, sua dignidade de pessoa, vez que o ser humano é utilizado como objeto, em geral visando obter compensação econômica, para o exercício da prostituição, e a liberdade sexual, inclusive sua integridade e autonomia sexual.204

Pois bem, o tráfico de pessoas constitui um delito pluriofensivo, por-quanto os bens jurídicos violados são de interesse geral e individual. Ana-lisando-se a situação de uma pessoa traficada para a prostituição, temos que ela é comercializada como simples mercadoria, ameaçada, agredida e explorada sexualmente. Portanto, a ofensa não se dirige somente aos bons costumes e a moral pública sexual, pois a liberdade sexual e de locomoção, e, principalmente, a dignidade humana da vítima são atingidas.

3.2- SUJEITOS ATIVO E PASSIVO

O tráfico de pessoas é crime comum quanto ao agente. Qualquer pessoa, homem ou mulher, podem figurar como sujeito ativo dos delitos tipificados nos Artigos 231 e 231-A, do Código Penal, não se exigindo nenhuma qualidade ou condição especial do agente. Normalmente, a prá-tica delitiva é cometida por organizações criminosas ou por mais de uma pessoa em concurso.205

Além do traficante, os injustos penais em análise punem o compra-dor de pessoas, desde que tenha concorrido para o crime (art. 29, CP). Caso, entretanto, a compra seja posterior à promoção, intermediação ou facilitação, e nenhuma vinculação possua com ela, não poderá responder pelo delito.206

Em relação ao sujeito passivo, a lei nº 11.106/2005 vislumbrou que a mera inclusão do homem como vítima do tráfico de pessoas seria apta a reparar parcela das distorções que o Código Penal apresentava, promo-vendo a isonomia entre a mulher e o homem.207 Assim, tanto o homem

rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 4. p. 75.204 PRAdO, luiz Regis. Op. cit., p. 287. 205 PIERANGElI, José Henrique. Op. cit., p. 523206 Cf. JESUS, damásio de. Op. cit., p. 227.207 FRANCO; Alberto Silva; STOCO, Rui. Op. Cit. p. 1113.

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como a mulher podem figurar como sujeito passivo, “independentemente de sua honestidade sexual” ,208 e, inclusive, a criança e o adolescente, hipó-tese em que o crime é qualificado.209

A pessoa já corrompida ou prostituída também pode ser admitida como sujeito passivo, pois não se questiona aspectos de ordem moral, de moralidade pública ou privada.210

Guilherme de Souza Nucci admite, secundariamente, a coletividade como sujeito passivo do tráfico de pessoas, por se tratar de um crime con-tra os costumes.211

3.2.1- TIPO OBJETIVO E TIPO SUBJETIVO

O direito Penal é, por excelência, um direito tipológico, sendo que o tipo é a descrição abstrata de um fato real que a lei proíbe.212

3.2.2- TRÁFICO INTERNACIONAL DE PESSOAS (ART. 231)

A ação tipificada no artigo 231, do Código Penal, é promover, inter-mediar ou facilitar a entrada, no território brasileiro, de pessoa que venha a exercer a prostituição ou a saída de pessoa que vá exercê-la no estran-geiro.

Promover corresponde a atuar com a finalidade não só de arregi-mentar as pessoas, como também de organizar tudo aquilo que seja neces-sário para que o tráfico internacional seja bem-sucedido.213

Intermediar significa interceder, intervir, criar ambiente ou propiciar as condições que possibilitem o tráfico internacional de pessoas, recrutan-do, providenciando transporte, fazendo contatos.214

208 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 76.209 MIRABETE, Julio Fabbrini. FABBRINI, Renato N. Código Penal Interpretado. 6. ed. São Paulo: Atlas S.A., 2007, p. 1960.210 Cf. PRAdO, luiz Regis. Op. cit., p. 289.211 Nesse sentido: NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit. p. 860.212 Cf. PRAdO, luiz Regis. Op. cit., p. 352. 213 Cf. GRECO, Rogério. Op. cit., p. 653. 214 Cf. PRAdO, luiz Regis. Op. cit., p. 288.

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Facilitar é tornar mais fácil, concorrendo para eliminar dificuldades ao transporte ou ao ingresso ou à partida da vítima, já resolvida a entrar ou sair do país. É, portanto, atividade acessória.215

Entrada no território nacional é o ato de cruzar as fronteiras, aden-trando a base geográfica do Brasil, enquanto saída corresponde a deixar para trás a demarcação territorial de nosso país, seja, em ambas as hipóte-ses, por via área, marítima, térrea, fluvial ou lacustre.216

Para configurar o delito, basta o “simples trânsito ou permanência rápida da vítima no território nacional”,217 tendo em vista que o agente, mesmo nessas circunstâncias, promove, intervém ou facilita a saída da víti-ma que irá exercer a prostituição no país de destino, praticando, ao menos, uma das condutas previstas no tipo penal.

Como adverte Bitencourt, o tipo subjetivo é “constituído pelo dolo, representado pela vontade consciente dirigida à prática da ação tipificada, ciente de que a vítima vai entregar-se à prostituição no país a que se desti-na, seja no Brasil, seja no exterior”.218

de outra parte, José Henrique Pierangeli defende que o tipo subje-tivo reclama um elemento subjetivo especial, consistente no propósito de que a pessoa venha a exercer sua atividade no país ou no exterior.219

Entrementes, considerando-se que o agente promove, intervém ou facilita a entrada ou saída de pessoa do território nacional com o objetivo explícito de submetê-la à prostituição, tirando algum lucro ou proveito do tráfico de pessoas, parece mais adequada a posição do segundo autor.

3.2.3- TRÁFICO INTERNO DE PESSOAS (ART. 231-A)

Antes da promulgação da lei nº 11.106/2005 não era possível pu-nir os responsáveis pelo tráfico interno de pessoas, pois essa prática não configurava um fato típico e, portanto, punível. A conduta poderia, even-tualmente, consubstanciar concurso no crime de exploração do lenocínio

215 Cf. FRAGOSO, Heleno C. Op. cit., p. 688.216 Cf. FRANCO, Alberto Silva. STOCO, Rui. Op. cit., p. 1143.217 Cf. PRAdO, luiz Regis. Op. Cit., p. 288.218 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 76.219 PIERANGElI, José Henrique. Op. cit., p. 524.

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(arts. 227 a 230 do CP), caso a prostituição efetivamente viesse a ocorrer posteriormente.

O recém-criado Artigo 231-A, Código Penal, consagra a figura do tráfico interno de pessoas, aquele praticado no âmbito do território na-cional, incriminando as mesmas condutas previstas no artigo 231, com a diferença de dirigirem-se ao recrutamento, transporte, transferência, aloja-mento ou acolhimento da pessoa que venha exercer a prostituição.

Recrutamento é o ato de recrutar, aliciar pessoas; transporte é o ato detransportar alguém para um lugar em que se pratica a prostituição; transferência é o ato de mudar uma pessoa de um determinado local onde se pratica a prostituição para outro de igual destinação; alojamento signifi-ca recolher, abrigar uma pessoa.220

O tipo subjetivo está representado pelo dolo, vontade livre e cons-ciente de promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o re-crutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha a exercer a prostituição.221

3.2.4- PROPOSTA “DE LEGE FERENDA”

Analisando-se os dispositivos do Protocolo de Palermo, conclui-se que a intenção dos Estados que o ratificaram consiste em reprimir o trá-fico de pessoas para fins de exploração, ou seja, “qualquer forma de ex-ploração da pessoa humana, seja ela sexual, do trabalho, ou a remoção de órgãos, bem como quaisquer outras” .222

Entretanto, contrariando o aludido instrumento internacional e a própria Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas223, o ordenamento jurídico-penal brasileiro, nos Artigos 231 e 231-A, do CP,

220 Cf. FRANCO, Alberto Silva. STOCO, Rui. Op. cit., p. 1146.221 PRAdO, luiz Regis. Op. cit., p. 294.222 CASTIlHO, Ela Wiecko V. de. A legislação penal brasileira sobre tráfico de pes-soas e imigração ilegal/irregular frente aos Protocolos Adicionais à Convenção de Palermo. disponível em: <http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/publicacoes/docs_artigos/seminario_cascais.pdf>. Acesso em: 23 maio 2008.223 Tendo em vista que a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas adota a expressão “tráfico de pessoas” em conformidade com o Protocolo de Paler-mo.

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deixando de contemplar as demais finalidades do comércio ilegal de seres humanos, incrimina somente o tráfico de pessoas para a prostituição.

Nesse contexto, diante da omissão da lei, o tráfico para exploração de trabalho forçado poderia, eventualmente, consubstanciar crime de re-dução a condição análoga à de escravo, figura típica do Artigo 149, ca-put, do Código Penal.224 de seu turno, o tráfico para remoção de órgãos consubstanciar-se-ia delito de lesões corporais, consagrado no Artigo 129, do Código Penal.225

Todavia, tais injustos penais não vislumbram a prática das condu-tas antecedentes à exploração da pessoa humana. Ademais, essa omissão legislativa chega ao inconveniente de não considerar criminosa a condu-ta daquele que serve de intermediário na relação de exploração entre os clientes do mercado ilegal de seres humanos e as vítimas comercializadas.

Portanto, o ordenamento jurídico-penal brasileiro deve ser inovado, alinhando-se com as tendências do Protocolo de Palermo e da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.

3.2.5- CONSENTIMENTO DO OFENDIDO

O Protocolo de Palermo considera irrelevante o consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas nas hipóteses em que tiver sido utilizada qualquer forma de coação, fraude ou engano.

Ao contrário, na legislação brasileira, os dispositivos 231 e 231-A, do Código Penal, não contemplam a figura do “tráfico consentido”,226 de modo que o consentimento livre dado pela vítima não descaracteriza o delito, pois, mesmo que a vítima tenha ciência de que exercerá a prosti-tuição (no Brasil ou no exterior), ela não imagina que será comercializada, violentada, agredida, humilhada e tratada como escrava sexual.

224 Art. 149, caput, CP. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer subme-tendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.225 Art. 129, CP. Ofender a integridade corporal ou a saúde outrem: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.226 PRAdO, luiz Regis. Op. Cit., p. 288.

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Por outro lado, Alberto Silva Franco e Rui Stoco defendem que a prostituição voluntária não é suficiente para caracterizar o delito de tráfico de pessoas, sendo perfeitamente válido o consentimento dado por quem não foi ameaçado, forçado ou coagido pelo agente, hipótese que não justi-ficaria a intervenção penal, por se tratar de um crime sem vítima.

Ora, se os bens jurídicos violados são de natureza geral (a moral pública sexual e os bons costumes) e individual (a liberdade individual e a dignidade humana), e mais, se os interesses individuais atingidos são indisponíveis, imperioso considerar irrelevante o consentimento dado pela vítima.

3.3 - CONSUMAÇÃO E TENTATIVA

O tráfico de pessoas consuma-se com a efetiva prática de qualquer das condutas descritas nos Artigos 231 e 231-A, do CP, sendo suficiente o tráfico de uma única pessoa para a caracterização do delito, independen-temente do exercício efetivo da prostituição, que, se ocorrer, constituirá apenas o seu exaurimento.227

Por outro lado, há quem entenda ser imprescindível o efetivo exercí-cio da prostituição para que se reconheça a consumação delitiva, conside-rando não existir crime ainda que a pessoa ingresse no Brasil para exercer a prostituição, mas não o faça.228

No tocante à tentativa, há quem entenda ser admissível.229 Em sen-tido contrário, Guilherme de Souza Nucci defende que a tentativa não é possível por se tratar de um crime condicionado – se o ingresso ou a saída já foram realizados, a consumação fica na pendência do exercício efetivo da prostituição, de modo que, se a prostituição ocorrer, consuma-se o crime; não ocorrendo, o fato não é relevante no contexto do tráfico de pessoas, podendo constituir outro tipo de delito.230

227 Cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 76; FRAGOSO, Heleno C., Op. cit., p. 668; MIRABETE, Julio Fabbrini. FABBRINI, Renato N. Op. cit., p. 1964-1965.228 Cf. GRECO, Rogério. Op. Cit., p. 655; NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit., 861.229 Nesse sentido: FRAGOSO, Heleno C. Op. cit., p. 668; FRANCO, Alberto Silva. Stoco, Rui. Op. cit., p. 1143; NORONHA, Edgar Magalhães. Op. cit., p. 246.230 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 861.

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Entretanto, não se pode olvidar que o bem jurídico tutelado nos ti-pos penais não consiste apenas nos bons costumes e na moral pública sexual, mas na liberdade sexual, na liberdade de locomoção e na dignidade humana da pessoa objeto do tráfico. Ora, se considerarmos que o crime se consuma apenas com o exercício efetivo da prostituição, qual proteção teriam as vítimas que foram capturadas, raptadas, agredidas e violentadas, mas, conseguiram, de alguma forma, fugir dos maus-tratos dos traficantes antes do primeiro cliente?

Portanto, o melhor entendimento é aquele que defende a consuma-ção do delito com a prática de qualquer uma das condutas previstas nos Artigos 231 e 231-A, do CP, admitindo-se a tentativa, já que a consumação delitiva não está condicionada ao efetivo exercício da prostituição.

3.4- FORMAS QUALIFICADAS

Os crimes de tráfico internacional e interno do Código Penal, de pes-soas possuem as mesmas qualificadoras. A primeira está prevista no §1º, do artigo 231, que faz remissão ao §1º, do Artigo 227,231 o qual deve incidir quando o crime é praticado contra adolescente maior de 14 (quatorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se o agente do delito possui relação especial com a vítima, nos casos em que é seu ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro, irmão, tutor ou curador ou pessoa a quem esteja confiada para fins de educação, de tratamento ou de guarda, hipóteses em que a pena privativa de liberdade será de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa.

A segunda qualificadora, consagrada no § 2º, do Artigo 231, incide quando o crime é praticado com violência, grave ameaça ou fraude, hipó-tese em que a pena será de 5 (cinco) a 12 (doze) anos de reclusão, além de multa e da sanção correspondente à violência.

231 “Art. 227.§ 1º. Se a vítima é maior de 14 (catorze) e menor de 18 (dezoito) anos, ou se o agente seu ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro, irmão, tutor ou curador ou pessoa a quem esteja confiada para fins de educação, de tratamento ou de guarda: Pena -reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.

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Conforme determina o Artigo 232,232 aplicam-se as regras previs-tas no Artigo 223233 se da violência empregada resultar lesão corporal de natureza grave, hipótese em que a pena será de reclusão de 8 (oito) a 12 (doze) anos, e, se da violência resultar a morte, a pena será de reclusão, de 12 (doze) a 25 (vinte e cinco) anos. Tais formas qualificadas pelo resultado são atribuídas ao agente a título de culpa, em decorrência de preterdolo234, em que há dolo na conduta antecedente e culpa na consequente. Caso não haja culpa no resultado qualificador, não se aplica o artigo 223, em face do disposto no artigo 19235 do CP.236 Ademais, se o agente houver querido ou assumido o risco da produção do resultado mais grave, este dispositivo não será igualmente aplicado, pois haverá concurso de crimes: um contra os costumes e outro resultante da violência.237

O Artigo 232 também determina a aplicação das hipóteses de pre-sunção de violência ficta, prescritas no Artigo 224.238 Assim, se o tráfico de pessoas é praticado contra vítima que não é maior de 14 (quatorze) anos, é alienada ou débil mental (e o agente tinha conhecimento desta circunstân-cia) ou não pode oferecer resistência, mesmo que praticado sem violência alguma, será considerado como executado por meio de utilização da vis corporalis.239

232 Art. 232, CP. Nos crimes de que trata este Capítulo é aplicável o disposto nos arts. 223 e 224.233 Art. 223, CP. Se da violência resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – re-clusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. Parágrafo único: Se do fato resulta a morte: Pena – reclusão, de 12 (doze) a 25 (vinte e cinco) anos.234 FRANCO, Alberto Silva. STOCO, Rui. Op. cit., p. 1119.235 Art.19, CP. Pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente.236 Cf. PRAdO, luiz Regis. Op. cit., p. 242-243. 237 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 78.238 Art. 224, CP. Presume-se a violência, se a vítima: a) e é maior de 14 (quatorze) anos; b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância; c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.239 Cf. FRANCO, Alberto Silva. STOCO, Rui. Op. cit., p. 1120.

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3.5- PENA E AÇÃO PENAL

No tocante à aplicação das disposições do Artigo 231, do Códi-go Penal, que trata do tráfico internacional de pessoas, o Artigo 7°, II, “a”, do CP, prescreve que “ficam sujeitos à lei brasileira, embora come-tidos no estrangeiro, os crimes que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir”, devendo ser aplicada essa “extraterritorialidade condicionada”,240 nos termos do artigo 7°, § 2°,241 do Código Penal.

A pena cominada ao tráfico de pessoas na forma simples, tanto inter-nacional como interno, é de reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, cumulada com a pena de multa.

A ação penal é pública incondicionada, isto é, não depende de qual-quer condição ou manifestação da vítima ou de seu representante legal para a sua instauração,242 “trabalhando livremente a polícia judiciária e o Ministério Público, movidos pela obrigatoriedade de atuação”.243

240 NORONHA, Edgard Magalhães. Op. cit. p. 247.241 Art. 7º, §2º. Nos casos do inciso II, a aplicação da lei brasileira depende do con-curso das seguintes condições: a) entrar o agente no território nacional; b) ser o fato punível também no país em que foi praticado; c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena; e e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável.242 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit, p. 83.243 PIERANGElI, José Henrique. Op. cit., p. 525

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4- CONCLUSÃO

O tráfico de pessoas caracteriza-se como uma das formas mais gra-ves de violação dos direitos humanos, porquanto os bens jurídicos pro-tegidos nos injustos penais estudados consistem na liberdade sexual e de locomoção, na dignidade humana, nos bons costumes e na moral pública sexual. Portanto, constitui um crime pluriofensivo, diante dos diversos bens jurídicos ofendidos.

A lei nº 11.106/2005, ao alterar o disposto no Artigo 231 e criar a figura do Artigo 231-A, do CP, estendendo a tutela penal às vítimas do sexo masculino, passou a incriminar o tráfico internacional e interno de pessoas. Entretanto, não inovou o ordenamento jurídico-penal em relação aos propósitos intendidos pelos traficantes, de modo que o tráfico desti-nado às demais formas de exploração do ser humano, como remoção de órgãos e trabalho escravo, não é considerado crime.

dessa forma, considerando que 57% das vítimas traficadas são sub-metidas à exploração diversa da sexual, seria mais adequado ao enfren-tamento do tráfico de pessoas que o legislador brasileiro tivesse seguido a orientação do Protocolo para prevenir, reprimir e punir o tráfico de pessoas, em especial mulheres e crianças (Protocolo de Palermo), crimina-lizando o tráfico de pessoas para fins de qualquer forma de exploração.

Apenas por meio de uma legislação penal adequada à proteção dos bens jurídicos violados será possível enfrentar efetivamente o tráfico de pessoas.

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3º COLOCadO - eSTUdaNTeS

TRÁFICO DE PESSOAS: QUESTÃO DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Nathalia Justo

INTRODUÇÃO

O tráfico de pessoas é uma questão internacional. A globalização faz com que as pessoas sejam pensadas como objetos com menor ou maior valor agregados, as quais podem ser deslocadas e exploradas para que seu “senhor” obtenha os maiores lucros – esta é a face da escravidão moderna. As desigualdades entre os países fazem com que as pessoas queiram ou precisem migrar e ainda tenham dificuldade de pensar e planejar suas vidas sem a possibilidade de deslocarem-se. O crime organizado, transnacional, deve ser combatido por meio da cooperação entre Estados que têm a necessidade de formular um consenso sobre os valores que os norteiam, como qual é o real problema e qual sua respectiva solução.

O presente trabalho visa considerar a questão do Tráfico de Pesso-as como uma questão internacional. Além disso, pretende-se discutir as propostas e conceitos do Protocolo de Palermo, da Política Nacional [bra-sileira] de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e do Plano Nacional [bra-sileiro] de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas nos três eixos nos quais elas baseiam-se (prevenção, repressão e atenção às vítimas) a partir de uma visão das Relações Internacionais sobre a questão. Essa discussão dar-se-á em quatro áreas tema, as quais, selecionadas pela sua ligação íntima com a questão, permitem a reflexão com as Relações Internacionais.

1- OBJETIVO

Analisar as políticas de enfrentamento ao tráfico de pessoas propos-tas no Protocolo de Palermo, na Política de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e no Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP) quanto à prevenção, repressão e atenção às vítimas a partir de quatro questões das Relações Internacionais: o crime organizado, a coope-ração internacional, a questão moral e a questão migratória.

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2- JUSTIFICATIVA

O Protocolo de Palermo declara que

a ação efetiva para prevenir e combater o tráfico de pessoas, especialmente em mulheres e crianças, requere abordagem internacional abrangente nos países de origem, trânsito e destino que inclua medidas para prevenir tal tráfico, punir os traficantes e proteger as vítimas deste tráfico, incluindo a proteção de seus direitos humanos internacionalmente reconhecidos.244/245

O tráfico de pessoas é uma questão complexa e multifacetada. Al-guns de seus desdobramentos envolvem as relações internacionais. O que constituem as relações internacionais com letra minúscula, ou seja, como objeto do estudo, tem sido a principal preocupação das Relações Interna-cionais, com letra maiúscula, como área de estudo. Para saber se a questão do tráfico tem aspectos que envolvem as relações internacionais e se estes seriam melhor elucidados por contribuições das Relações Internacionais, deve-se fazer uma discussão a respeito do escopo desta disciplina.

O paradigma ou mainstream da disciplina considera relações inter-nacionais aquelas entre Estados soberanos, sendo estes considerados os únicos atores realmente importantes do sistema internacional, que é per-meado pela anarquia que faz com que esses Estados tenham de buscar o aumento e/ou manutenção de seu poder para que sua segurança e posição nesse sistema mantenham-se. “Interesses em termos de poder” é um con-ceito chave tanto para teóricos realistas como para teóricos neorealistas, os quais, com pequenas diferenças entre si, representam ainda hoje um papel preponderante entre as teorias de Relações Internacionais.246

Já o liberalismo e o neoliberalismo compartilham o pensamento so-bre a possibilidade de cooperação no sistema internacional. Para os teó-ricos liberais a cooperação visa alcançar a paz por meio de mecanismos supranacionais. Os neoliberais pensam o sistema internacional como in-

244 Protocol to Prevent, Suppress and Punish Trafficking in Persons, Especially Wo-men and Children, Supplementing the United Nations Convention Against Trans-national Organized Crime (2000). disponível em: <http://untreaty.un.org/English/TreatyEvent2003/Texts/treaty2E.pdf> Acesso em: 02.04.08.245 Tradução e grifo meus.246 Para conhecer melhor a teoria realista ver Hans Morgenthau “Política entre as Na-ções” e a neorealista Kenneth Waltz “Teoria das Relações Internacionais”.

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terdependente. Não há Estado que possa agir sem preocupar-se com os efeitos da ação dos outros sobre si. A cooperação, mitigadora da anarquia, é pensada como necessária, pois um Estado não pode impor sua vontade a outro. Podem ser estabelecidos regimes de cooperação em áreas especí-ficas nos quais há maior previsibilidade para as ações dos Estados, os quais são considerados os atores principais de uma série de atores que incluem ONGs, multinacionais etc.247

A Escola Inglesa não contesta o conceito de anarquia do Sistema Internacional nem o fato de os Estados serem seu ator legítimo. Porém, para os teóricos da Escola Inglesa, o Sistema Internacional forma uma so-ciedade que, como tal, partilha normas e valores das quais os Estados não podem fugir, pois mesmo sem um poder coercitivo há um impedimento moral em infringir as regras. O direito Internacional seria a prova de que essa sociedade existe.

Para além dessas teorias, que podem ser consideradas clássicas, sur-giram várias outras que visavam tirar o foco dos Estados e colocá-lo sobre o indivíduo. Nos anos 80, perspectivas alternativas sobre as Relações In-ternacionais começaram a surgir como contraponto ao debate neorrealista x neoliberal da disciplina.

dentre essas perspectivas, destaca-se a visão construtivista, a qual atesta ser o mundo social e político não exterior à consciência humana; ou seja, o sistema internacional existe como consciência intersubjetiva entre as pessoas. Nesse sentido, as ideias, comportamentos e identidades dos atores internacionais modelam as estruturas internacionais, do mesmo modo que os atores são conduzidos por essas estruturas, uma vez que elas compõem o contexto de ação dos mesmos.

O aspecto ideológico central enfocado pelos construtivistas são as crenças in-tersubjetivas (ideias, concepções e suposições comuns entre as pessoas. Nas RI, tais crenças englobam a noção de um grupo de pessoas sobre si mesmo como uma nação ou uma nacionalidade, suas concepções de seu país como um Estado, as noções de seu Estado como independente e soberano, a ideia de si próprios como diferentes de outras pessoas em termos culturais, religio-sos ou históricos, suas percepções de suas histórias e tradições (...).248

247 Para o pensamento liberal ver “ A paz perpétua” de Immanuel Kant, e para neoli-beralismo, ver obras de Robert O Keohane.248 JACKSON, Robert; SORENSEN, Georg. Introdução às relações internacionais:

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Já as teorias pós-modernas têm em comum o fato de questionarem a construção do conhecimento da maneira que foi realizado pelas teorias clássicas. Seu enfoque no indivíduo faz com que o objeto de estudo das Relações Internacionais amplie-se, abrangendo, por exemplo, questões de desenvolvimento e direitos humanos (de certa forma já presentes no libe-ralismo, mas agora com novo fôlego). A mulher ganha destaque na Teoria Feminista de Relações Internacionais que coloca as relações internacionais como uma construção de gênero, nas quais desigualdades entre homens e mulheres são legitimadas e perpetuadas.

Vemos, portanto, que o escopo de atuação das Relações Interna-cionais foi expandido a ponto de abranger tanto o indivíduo quanto os Estados e a cooperação entre eles. São preocupação das Relações Interna-cionais as questões humanitárias e de direitos humanos, as relações entre Estados e a cooperação entre eles, os fluxos migratórios e o crime orga-nizado.

O tráfico de pessoas abrange uma diversidade de problemas e realidades como migração, o crime organizado, a exploração sexual e laboral, as assimetrias entre os países mais desenvolvidos e mais carentes, questões de gênero, direitos humanos, quebra de suporte familiar e comunitário, entre outros.249

O crime organizado passa a ser uma questão das Relações Interna-cionais a partir de sua atuação transnacional. O tráfico de pessoas tem sido considerado, sobretudo, um problema que envolve esta dimensão criminal. O fato de o Protocolo de Palermo ter sido concebido dentro da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional evidencia não somente que a questão tem sido vista a partir desta perspec-tiva, mas também que o combate a ele (crime organizado) é considerado um dos principais meios de enfrentamento ao tráfico de pessoas.

Não só o crime organizado tornou-se transnacional e exige esfor-ços conjuntos da “comunidade” internacional, como também as desigual-

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dades que geram o tráfico podem ser consideradas responsabilidades de todos na medida em que são fruto do atual modelo de globalização. A cooperação é vista como fundamental nesta questão, tanto na prevenção (cooperação para eliminar as condições desiguais que a causam, por exem-plo), repressão (adequação das legislações domésticas aos requisitos dos tratados internacionais, por exemplo) e atenção às vítimas. A cooperação aparece como o meio pelo qual todas as outras condições para o enfrenta-mento do tráfico são discutidas. O dilema do prisioneiro é um exemplo da questão do enfrentamento do tráfico. Não adianta um país sozinho tomar suas providências se os outros não fizerem nada. Para ganhos maiores, todos devem cooperar.250

O tráfico de pessoas é uma questão migratória. Envolve a passagem de pessoas através das fronteiras de países de origem, trânsito e destino. As migrações são questões das Relações Internacionais na medida em que envolvem questões de soberania do Estado, proteção de fronteiras, condi-ções que levam as pessoas a deslocarem-se, de identidade, entre outras.

Na história da condução da discussão do tráfico, por muito tempo predominou o enfoque na mulher em situação de exploração sexual. A questão moral foi o pano de fundo destes debates a respeito do que é tráfi-co e dos valores que devem pautar a ação dos Estados. Na negociação das convenções internacionais foram discutidos valores, que se pretendiam internacionais, e, portanto, universais. As Relações Internacionais foram consideradas por muito tempo conduzidas por atores, (Estados), que não operavam segundo a moral em um ambiente de anarquia, o que faz com seja justificável qualquer ato que atinja o interessa de poder do Estado. A prerrogativa moral só se aplicava ao Estado internamente, pois a esfera interna possui o poder necessário para aplicar as leis. Já para as teorias consideradas mais “normativas”, os valores são imprescindíveis. O libe-

250 O dilema do Prisioneiro é um modelo metodológico usado para explicar a dinâ-mica da cooperação. Suponhamos que dois cúmplices sejam presos e interrogados separadamente. Aos dois é oferecida a possibilidade de denunciar seu companheiro para escapar da pena. Se há o acordo prévio dos dois e a confiança mútua entre eles, eles podem combinar de não denunciar um ao outro, saindo livres. Se um dos dois confessa, este se livra da culpa enquanto o outro cumpre pena total. Se os dois, por desconfiança, confessam, ambos cumprem uma pena reduzida. O melhor cenário é a da cooperação, mas às vezes a confiança entre as partes não é suficiente para tal.

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ralismo, com a moral kantiana e a Escola Inglesa são exemplos disso na medida em que consideram os valores de paz e sociedade, respectivamen-te, como componentes (ao menos em potencial) da ordem internacional. Porém, mesmo essas teorias que contemplam valores não dão conta de explicar a carga religiosa dos valores que envolvem a prostituição devido à sua formulação com intenção de negação da religião.

O tráfico é uma questão interna, internacional e transnacional. Con-siderando que as várias visões do que consistem as relações internacio-nais podem explicitar diferentes facetas da questão do tráfico, justifica-se a abordagem da questão por áreas-tema que surgiram do desenvolvimento das Relações Internacionais e têm implicações profundas no tema do trá-fico e como ele tem sido tratado ao longo do tempo.

3- DESENVOLVIMENTO

3.1- METODOLOGIA

O trabalho consiste em analisar os conceitos e as provisões do Pro-tocolo de Palermo, da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas a partir de perspectivas de Relações Internacionais. A metodologia esco-lhida foi a delimitação de quatro áreas tema selecionadas a partir de sua ligação e influência sobre a questão e de sua pertinência às Relações Inter-nacionais como área de estudo.

3.2- PROCESSO

Foi feita uma discussão das áreas tema com elementos de Relações Internacionais e de sua ligação com os documentos propostos ao trabalho, citando-os quando pertinente.

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4- DISCUSSÕES E RESULTADOS

4.1- QUESTÃO MIGRATÓRIA

O ato de migrar é tão antigo quanto a própria humanidade, mas a migração é considerada internacional a partir da configuração do Estado-Nação, no início do século XIX. Se o ato de migrar é antigo, a atual inten-sidade e forma das migrações internacionais são características do sistema internacional vigente. Um sistema internacional com atores tão desiguais em termos de poder e posição ocupados cria não só a vontade, mas também a necessidade da migração. Somam-se à globalização econômica, que prega o fluxo intenso de mercadorias e informação, os quais criam um estado mental de que as pessoas também têm a lucrar, participando dessas trocas e, fazen-do com que os fluxos de pessoas torna-se exponencial. Para esta circulação de bens, é assegurada ampla movimentação nas fronteiras. Mas ao mesmo tempo em que há o estímulo do fluxo de bens, os Estados, no interesse de sua segurança, impedem o livre fluxo de pessoas. Porém, esse controle não é perfeito e a imigração ilegal e o tráfico de pessoas são fatos.

Segundo Melissa ditmoreen e Marjan Wijers, a tendência natural dos representantes dos governos nas negociações para tratados à respeito do tráfico de pessoas é focarem-se na proteção das fronteiras. Acrescentam que à disputa entre os lobbies de ONGs feministas na discussão do Proto-colo de Palermo abriu caminho para que este se tornasse mais repressivo. O controle das fronteiras sobrepõe-se à atenção às vítimas, na opinião dela.251 Segundo Kamala Kempadoo, a ênfase no controle das frontei-ras dada ao Protocolo de Palermo e, portanto, ao principal norteador de políticas dos Estados Parte, é prejudicial ao enfrentamento do tráfico de pessoas. A vigilância das fronteiras apenas proporcionaria o fenômeno “esconde e aparece”, ou seja, as rotas, uma vez detectadas, se deslocariam de lugar, além de o aumento do controle deixar as vítimas em situação de maior perigo.252

251 dITMOREEN, Melissa e WIJERS, Marian. (2003) “The negotiations on the UN Protocol on Trafficking in Persons Moving the focus from morality to actual con-ditions” NEMESIS nr. 4 disponível em:< http://www.nswp.org/pdf/NEMESIS.PdFF> Acesso em:25.03.08.252 KEMPAdOO K. (2005) “Mudando o debate sobre o tráfico de mulheres” Cader-nos Pagu. disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S01048333200500

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Há muitas imbricações da questão do tráfico com a questão migra-tória. A questão do tráfico foi pensada no início do século XX, como atendendo a uma preocupação com o aumento da migração feminina e a possibilidade de a mulher migrante prostituir-se. Quando a questão do trá-fico era focada principalmente na mulher e na prostituição, uma vertente feminista afirmou que, se a prostituição deve ser encarada como trabalho sexual, a questão do tráfico deveria ser pensada como a proteção da tra-balhadora migrante.

Existem diferenças entre tráfico de migrantes e tráfico de pessoas. As principais são a relação entre o agressor e a pessoa que faz o deslocamento geográfico. No tráfico de migrantes, há um acordo entre eles. O preço cobrado para atravessar a fronteira tem a finalidade de ser lucro para o passador e após a travessia o migrante estaria livre. Há também, portanto, um consentimento por parte deste. Já no tráfico de pessoas, por mais que a vítima tenha concordado inicialmente, seu consentimento é considerado viciado, pois ela não conhecia as condições em que seria mantida ou até mesmo o tipo de trabalho que realizaria. O abuso e exploração vinculados ao tráfico manifestam-se na impossibilidade de a pessoa traficada obter sua liberdade, seja por não estar de posse de seus documentos seja por confinamento, dentre outros impedimentos. Paulo Costa afirma que, para o tráfico de migrantes, a estrutura organizacional é bem simples, podendo ser realizado até por uma pessoa somente, mas para o tráfico de pessoas é necessária uma grande estrutura.253

As semelhanças entre os fluxos de migrantes e de pessoas traficadas podem ser detectadas, pois tem-se como base da vulnerabilidade dessas pessoas “a pobreza, a falta de meios para garantir a subsistência a curto e médio prazo, a procura de melhores condições de vida, a ausência de oportunidade de trabalho e no limite, a fuga à miséria e a morte anuncia-da” .254

0200003&script=sci_arttext&tlng=pt > Acesso em: 25.08.2007253 COSTA, Paulo Manuel (2004) “Tráfico de pessoas Algumas considerações legais” Socius Working Papers n.8 disponível em:< http://pascal.iseg.utl.pt/~socius/publica-coes/wp/wp200408.pdf>. Acesso em: 21.04.08.254 OIT(2006) APUd APF – Associação para planejamento da Família, Ibidem.

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As migrações possuem uma forte questão de gênero. A feminização das migrações mostra que as mulheres migrantes estão entre as pessoas mais vulneráveis a sofrerem abusos aos direitos humanos. As desigualda-des entre homens e mulheres é ainda uma realidade. Jean d’Cunha afirma a necessidade de a questão do tráfico ser tratada a partir de perspectivas de gênero e direitos humanos.255 As mulheres emergem como grupo que merece cuidados específicos, como explicitados no Plano Nacional de En-frentamento ao Tráfico de Pessoas,256 mas maior ênfase pode ser dada a estas na implementação das metas, por exemplo.

lidar com a migração envolve questões complexas. Como já afir-mado anteriormente, existe a tendência de tratar a questão com ênfase somente na questão da segurança com controle e de fronteiras e restrição de vistos. Mas, muito pode ser feito, tanto para que a pessoa não precise deixar sua nação quanto no acolhimento do migrante, especialmente a vítima do tráfico. Não devemos confundir a prevenção de que uma pessoa saia de seu país com ações que os países desenvolvidos tomam para que, por exemplo, os refugiados não migrem para seus países.257 O direito ao desenvolvimento influi diretamente na questão da migração, na medida em que mostra a necessidade e responsabilidade globais na diminuição das desigualdades entre ricos e pobres no sistema internacional. O eixo da prevenção é essencial no enfrentamento do tráfico no que toca à migração. A cooperação pode promover medidas legislativas ou outras, como educa-cionais, culturais ou sociais, para desencorajar a demanda como explicitada no Protocolo de Palermo, artigo 9º, parágrafo 5.

Uma questão importantíssima que envolve a demanda de pessoas traficadas para o caso do Brasil é o estereótipo da mulher brasileira. Este não é citado especificamente no Plano de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, mas pode ser tratado na capacitação dos atores envolvidos no tráfico (prioridade 2) e nas reuniões com os profissionais da indústria do

255 d´CUNHA J. (2002) “Trafficking in persons:a gender and rights perspective” Ex-pert Group Meeting on Traffcking. disponível em: <http://www.un.org/womenwatch/daw/egm/trafficking2002/reports/EP-dCunha.PdF> Acesso em: 25.08.2007.256 Atividade 5.B.5.257 REKACEWICKZ, Philippe “Migração sem escolha” le monde diplomatique Brasil Março 2008 págs.30-32.

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turismo (atividade 3.C.1) e na confecção das cartilhas educativas a esse se-tor (atividade 3.C.2). O setor do turismo acaba sendo fundamental para a divulgação de uma determinada imagem da mulher brasileira. Anália Beli-za Ribeiro Pinto afirma que um conceito cultural que mostra a dominação de mulher é utilizado pelo mercado sexual:

No que concerne à mulher brasileira, o clichê básico é que ela seja paciente e erótica. O erotismo na mulher é combinado com as condições naturais do país, como o clima quente, a exuberância da natureza, e as músi-cas tropicais. As mulheres só são descritas como negras ou morenas, com maravilhosos corpos bronzeados. Estas ideias e clichês são baseados no colonialismo europeu. Os símbolos são fixados de acordo com o interesse de certos grupos sociais, e são distribuídos entre a população para servir a de-terminada exploração promovida pelo capitalismo, que explora diferenças específicas, como sexo, nacionalidade, raça e os usa quando necessário.258

O eixo de atendimento às vítimas de tráfico, presente nos três ins-trumentos focados neste trabalho não só é fundamental para o devido enfrentamento do tráfico, mas também relaciona-se intimamente com a questão migratória. Segundo Rosita Milesi, o acolhimento à pessoa que migra deve ser pautado pelo paradigma dos direitos humanos, pela ideia de uma família humana. A pessoa traficada tem os mesmos direitos de qualquer ser humano e é por isso que o Estado deve cuidar e atender a pessoa traficada que está em seu território.259

O Protocolo de Palermo enfatiza a proteção da privacidade e identi-dades das vítimas, assistência jurídica, médica, psicológica, abrigo, além de oportunidades de emprego, treinamento e educacionais. O Protocolo tem como objetivo o atendimento à vítima para que ela não sofra com a dis-criminação, principalmente nos casos de exploração devido ao estigma da prostituição, e que tenha condições de integrar-se novamente à sociedade, seja a do país receptor ou o de origem. O Protocolo reafirma o princípio

258 PINTO, A. B. R. (2002) “The Brazilian programme to prevent and combat the tra-fficking of human beings” Expert Group Meeting on Traffcking. disponível em: <www.un.org/womenwatch/daw/egm/trafficking2002/documents.html> Acesso em: 25.08.2007.259 MIlESI, Rosita “Por uma nova lei de Migração: a perspectiva dos direitos Huma-nos” Instituto Migrações e direitos Humanos disponível em: http://www.migrante.org.br/por_uma_nova_lei_migracao.doc Acesso em: 02.03.08.

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do non refoulement 260e a possibilidade de a vítima permanecer no país. Mas, há amplas provisões para a repatriação, que deve ser preferencialmente voluntária. A questão da repatriação é complexa, pois se houve um motivo para que a pessoa saísse de seu país ou um longo período de tempo desde que essa saída se deu, pode haver o desejo de a pessoa querer continuar no país de destino. Por outro lado, pode ser que, para evitar contato com os agressores, talvez seja melhor que ela volte para o país de origem, lem-brando que há incidência de pessoas retraficadas, as quais, ao voltarem a seu país de origem, voltam a cair na rede do tráfico. Por isso, é necessário que os Estados atendam não só às pessoas traficadas para seu território, mas também às que voltam de outros territórios e ampliem a possibilidade de a pessoa fazer parte de sua sociedade e de promover condições, espe-cialmente de trabalho e educação para que isto ocorra.

A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas trata bem de perto a questão migratória. Em seu artigo 3º, parágrafo II, afirma a não discriminação por situação migratória. No artigo 4º, parágrafo VI, há o fortalecimento da atuação nas regiões de fronteira parágrafo VI, e do atendimento das vítimas no exterior e em território nacional, bem como de sua inserção social (parágrafo VII). A assistência às vítimas deve ser feita independentemente de sua situação migratória (Artigo 7º parágrafo II).

Se há diferenças entre o tráfico de migrantes e o tráfico de pessoas, sendo a pessoa traficada vitima e a migrante culpada (ilegal), deve-se ques-tionar se a motivação para o deslocamento não é a mesma, ou seja, se uma forma poderosa de prevenir o tráfico de pessoas não seria o combate às causas que fazem com que as pessoas se desloquem. É por ser muitas ve-zes o tráfico e não um simples rapto, mas fruto da vontade de obtenção de melhores condições de vida, no qual há a exploração, engano, etc, que se faz relevante a discussão da questão migratória e de políticas migratórias.

A questão migratória permanece como uma característica profunda em nossa sociedade. Como Zigmunt Bauman expõe, somos ou turistas ou vagabundos. Parece que para fazermos parte deste mundo globaliza-

260 non refoulement: Princípio de direito Internacional advindo do direito do refugiado de não retornar ao local onde esteja em perigo.

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do precisamos migrar, dar conta de uma cultura global.261 Os que não possuem recursos, sejam informações e/ou dinheiro, estão propensos a passar por estes tráficos.

4.2- A QUESTÃO MORAL

Os valores das pessoas influenciam o sistema internacional, prin-cipalmente na negociação de tratados internacionais, que têm por base valores cosmopolitas e, a partir deles, são engendradas as ações de en-frentamento dos problemas internacionais, inclusive o tráfico de pessoas. de acordo com o Construtivismo, o sistema internacional é um eterno construto no qual as ideias e valores são a matéria das estruturas, papéis dos atores e interesses dos mesmos. Portanto, a natureza do cenário inter-nacional e como os atores atuarão neste serão engendrados pelos valores que os atores têm e de como estes enxergam estes valores.

A questão do tráfico começou a ser tratada internacionalmente como enfrentamento ao tráfico dos negros para escravidão, mas logo transfor-mou-se na questão da mulher prostituta. Os valores que se tinham da prostituição foram e ainda são, portanto, centrais na formulação dos trata-dos internacionais e das políticas de enfrentamento ao tráfico de pessoas.

O primeiro enfoque dado ao tráfico de mulheres foi na “mulher branca”. de acordo com Kamala Kempadoo, foi uma tentativa das femi-nistas norte-americanas da classe média de salvar suas irmãs perdidas do leste europeu da prostituição.262 E, logo a questão passou a abarcar não só as mulheres brancas, mas todas as mulheres e também as crianças.

A retomada histórica dos tratados internacionais, tanto no âmbito da liga das Nações quanto no âmbito das Nações Unidas, permite estabe-lecer que de 1904 a 2000, espaço temporal em que os principais tratados sobre tráfico foram negociados, houve discussões e mudanças sobre o valor da prostituição na comunidade internacional.

261 Estas expressões são utilizadas por Bauman para designar a diferença entre aqueles que possuem livre trânsito no mundo globalizado (os turistas) e os que não o possuem (os vagabundos). BAUMAN, Zygmunt Globalização: As consequências humanas Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.262 Ibidem.

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Em 1910, o tráfico era considerado “o aliciamento, o induzimento ou descaminho, ainda que com seu consentimento de mulher casada ou solteira menor para prostituição” e para “a maior por meio de fraude, ameaças, abuso de autoridade ou qualquer outro meio de constrangimen-to” .263 Ou seja, o tráfico era definido somente em termos de exploração sexual e a prostituição era considerada uma escolha para a mulher maior de idade. Porém, se houvesse algo que viciasse esse consentimento, como ameaças e abusos, a escolha não seria considerada livre e configurar-se-ia o tráfico.

Já na Convenção de 1933, a prostituição foi considerada um aten-tado à moral e aos bons costumes, com a necessidade de ser combati-da. O consentimento foi considerado irrelevante. Ao considerar-se que a prostituição é o abuso do feminino pelo masculino, a pior instituição do patriarcalismo, tem-se que ela não pode ser considerada uma prática social saudável.

Com a Quarta Conferência Mundial em Beijing, em 1995, houve a retomada do consentimento, presente na Convenção de 1910: o mesmo conceito utilizado pelo Protocolo de Palermo. A Convenção Interame-ricana de 1998 expandiu o escopo do tráfico e o Protocolo de Palermo utilizou-se desse conceito. Atualmente, o tráfico não se restringe a uma tipologia específica (idade, sexo e/ou raça) e baseia-se na exploração, que deve incluir, no mínimo, “a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, trabalhos ou serviços forçados, escravidão ou práticas similares à escravidão, servidão ou remoção de órgãos”.264/265

A negociação do Protocolo de Palermo foi difícil. Isso se deu porque dois lobbies divergiam grandemente em sua visão sobre a prostituição, e, por conseguinte, qual deveria ser a definição de tráfico e quais seriam os meios corretos para enfrentá-lo.266 Os lobbies eram constituídos por Orga-nizações Não Governamentais: um liderado pela Human Rights Caucus

263 CASTIlHO, E. W V. “Tráfico de Pessoas: da Convenção de Genebra ao Protocolo de Palermo”. disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/publicacoes/docs_artigos/artigo_trafico_de_pessoas.pdf>. Acesso em: 17.07.07.264 Protocolo de Palermo Artigo 3º.265 Retomada histórica baseada em CASTIlHO, E. W V. Ibidem.266 dITMOREEN, Melissa e WIJERS, Marian. (2003), Ibidem.

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(HRC) e o outro pela Coalition Against Trafficking in Women (CATW).267 Melissa ditmoreen e Marjan Wijers relatam que as negociações tiveram uma dinâmica única, pois, tinham majoritariamente homens como repre-sentantes dos Estados e mulheres como representantes das ONGs. Foi um cenário no qual os homens detinham o poder de decisão e as mulhe-res a preocupação moral. Como já foi dito anteriormente, a disputa entre essas duas visões prejudicou as negociação do Protocolo no que tangia interesses comuns aos dois lobbies – a atenção às vítimas.

A CATW tem valores religiosos como norteadores de sua ação. A prostituição é considerada uma exploração per se, sendo esta a pior institui-ção do patriarcalismo. Esta vertente pergunta-se se a mulher realmente es-colheria a prostituição se tivesse outras alternativas de vida. Para a CATW a mulher não pode ser criminalizada no combate ao tráfico, e, portanto, a melhor forma de combater o tráfico de pessoas são políticas que atuem sobre a demanda.

Já a HRC considera que assegurar a prostituição como trabalho se-xual é garantir os direitos humanos e a liberdade de a mulher dispor livre-mente de seu corpo. Considera que o mal do tráfico dá-se na exploração do trabalho, seja ele sexual ou de qualquer outra natureza.

Segundo Castillo, a redação aprovada pelo Protocolo é ambígua, jus-tamente para atender as duas tendências: uma de descriminalização total da prostituição com o reconhecimento do “trabalho sexual” e a outra de criminalização dos clientes e dos proxenetas.268

Não há dúvida de que o valor que se tem da prostituição molda a visão que se tem do tráfico e a forma que ele deve ser enfrentado. Uma vi-são negativa da prostituição visa a uma ação no sentido de coibir o tráfico no que concerne à demanda e as pessoas que lucram com a prostituição, pois foca o tráfico de pessoas nas mulheres e na prostituição. Já uma visão mais positiva da prostituição visa enfrentar o tráfico por meio do combate às condições precárias de todas as formas de trabalho, passando até pela descriminalização da prostituição, e tem uma visão mais ampla do tráfico.

Os instrumentos avaliados pelo presente trabalho tratam apenas in-diretamente a questão moral, mas podemos ver indícios desta discussão

267 Para saber mais sobre posição destas ONGs ver: www.catw.org e www.nswp.org 268 Ibidem.

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ao longo de suas redações. No Protocolo de Palermo a ênfase para de-sencorajar a demanda (Artigo 9º parágrafo 5) atendeu a reivindicações da CATW para que o problema do tráfico fosse tratado também a partir da demanda. A definição mais ampla do tráfico atendeu à HRC e também a um grupo bem maior de pessoas exploradas. O nome do Protocolo foi uma reivindicação da CATW, a qual insistiu na expressão “especialmente mulheres e crianças”. Quantos aos instrumentos brasileiros, não há inten-ção clara de explicitar uma posição acerca deste ponto. lembrando que o bem jurídico tutelado pelo direito Penal mudou da proteção da mo-ralidade social para a proteção da liberdade sexual, pode-se apontar uma disposição da legislação penal brasileira de “secularização”. Entretanto, a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas propõe tanto uma campanha de conscientização dos usuários quanto a preocupação de conscientizar a indústria do turismo sobre o tráfico de pessoas. Ela consi-dera o consentimento irrelevante para a configuração do tráfico.

dentre essas duas percepções, qual seria a melhor? Este trabalho parte do pressuposto que é direito da pessoa humana ter valores e de-fendê-los. O que não deve ser feito é uma tentativa de imposição de seus valores aos outros. Kamala Kempadoo acusa os Estados Unidos de pres-sionarem os países a aderirem a seus valores e a seus métodos de en-frentar o tráfico (por exemplo, o incentivo à abstinência) com doações condicionadas. Ela coloca as políticas brasileiras como sendo o oposto das norte-americanas.269 Utilizar-se de sua posição para influenciar a ação de outros no sistema internacional é o que pode ser chamado de hegemonia.270 O realismo, como teoria das Relações Internacionais que julga os Estados

269 Ibidem.270 “Em primeira instância, hegemonia significa simplesmente liderança, derivada di-retamente de seu sentido etimológico. O termo ganhou um segundo significado, mais preciso, desenvolvido por Gramsci para designar um tipo particular de dominação. Nessa acepção, hegemonia é dominação consentida, especialmente de uma classe so-cial ou nação sobre seus pares. Na sociedade capitalista, a burguesia detém a hege-monia mediante a produção de uma ideologia que apresenta a ordem social vigente, e sua forma de governo em particular, a democracia, como se não perfeita, a melhor organização social possível. Quanto mais difundida a ideologia, tanto mais sólida a hegemonia e tanto menos necessidade do uso de violência explícita.” dEÁK, Csaba disponível em :< http://www.usp.br/fau/docentes/depprojeto/c_deak/Cd/4verb/hegemon/index.html. Acesso em 42.04.08.

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como atores soberanos em busca de poder, julgaria essa ação como aceitá-vel, pois os Estados agem em um cenário internacional anárquico no qual a moral não impera como esta o faz dentro dos Estados. de acordo com seus pressupostos, essa atitude visa acima de tudo ao poder e não estaria preocupada com suas implicações morais. Porém, as abordagens do sis-tema internacional que levam os valores em consideração, como a Escola Inglesa, dizem que, por mais que o sistema internacional seja anárquico, há nessa anarquia uma sociedade, certos valores dos quais os Estados não podem prescindir. Os direitos humanos traduzem, por exemplo, esses va-lores.271

Na criação de políticas que visam ser internacionais é necessária a consideração das diferentes visões de mundo e a fomentação de um con-senso. Os lobbies puderam perceber que suas disputas os prejudicaram no alcance de seus objetivos comuns. Mas, é importante que a formulação de políticas internacionais seja sensível aos valores. Manuel Castells afirma que a globalização, principalmente por meio da formação das sociedades em rede, faz com que o local organize-se para fazer frente a ela e uma de suas manifestações é o fundamentalismo religioso.272 Esses movimentos surgem justamente por não reconhecerem seus valores como importantes em uma sociedade materialista.

Na medida em que não se contradigam, é válido adotar aspectos de ambas as vertentes na produção de políticas. É necessário ressaltar a pre-ocupação de Marcia Anita Sprandel sobre “a tensão e discrepâncias exis-tentes entre as categorias dos tratados internacionais (que tem poderosos reflexos sobre o modo de pensar e refletir da sociedade civil organizada) e as categorias locais, ou seja, aquelas que os próprios envolvidos utilizam para referir-se ao seu cotidiano e a seus problemas”. deve-se “identificar o processo de incorporação pelas populações locais destas pautas interna-cionais” .273

271Para conhecer melhor a escola inglesa ver “Sociedade Anárquica” de Hedley Bull.272 CASTEllS, Manuel. O poder da identidade. Tradução Klauss Brandini Gerhardt. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.273 SPRANdEl, Márcia, Anita “Tráfico de seres humanos: novas categorias, velhos problemas”disponível em: < www.fsmm2008.org/PdF/22%20Sem%20Trafico%20de%20seres%20humanos%20Evanize.pdf> Acesso: 02.03.08.

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4.3- COOPERAÇÃO INTERNACIONAL

A cooperação tem ocupado lugar de destaque nas discussões das Re-lações Internacionais. O realismo não acredita na cooperação como forma de produzir ganho para todos no sistema internacional. Para os teóricos realistas, as relações internacionais são interações de soma zero, ou seja, para que algum ator ganhe outro terá de perder. Os teóricos neorealistas admitem a possibilidade de existência da cooperação, mas somente na área de segurança e em pequenas proporções.

Já para os adeptos do liberalismo, a cooperação é a solução para mitigar a anarquia e a ausência de um poder acima dos Estados que lhes imponha obrigações. Estes também chamados de idealistas, têm uma vi-são mais otimista da cooperação do que seus sucessores, os neorealistas e institucionalistas. Enquanto os primeiros pensavam em uma cooperação mais geral, com o objetivo de alcançar a paz, os últimos pensam a coope-ração como alguma coisa mais específica, em áreas de interesse comum. Todos eles consideram as interações entre Estados de ganho para todos, mesmo que de forma assimétrica. O Estado prefere ganhar um pouco a ganhar nada por ser um ator racional. Já para neorealistas, este pensamen-to seria inconcebível, pois na sua opinião o Estado não aceitaria que outro ganhasse mais do que ele, pois afetaria suas relações de poder e posição no sistema internacional.

O tráfico de pessoas, envolvendo o trânsito de pessoas por Estados soberanos de origem, trânsito e destino, faz necessária a cooperação in-ternacional. A questão pode ser pensada como uma cooperação dos três tipos apresentados acima. Visa ser uma cooperação pontual na questão se-curitária, pois a ameaça do crime organizado para a soberania dos Estados é real e necessita ser combatida em conjunto. Mas, a cooperação também pode ser vista tanto como uma cooperação mais específica combatendo um problema comum dos Estados, a violação dos direitos humanos que acontece com as pessoas traficadas, portanto, uma cooperação mais geral, que na medida em que cita o direito ao desenvolvimento e visa promover um bem estar mais amplo, e, portanto, a paz.

Há tratados entre duas ou mais nações que cuidam do tráfico de pessoas desde o fim do século XIX. O primeiro tratado sobre o tráfico foi bilateral (Inglaterra e França) e hoje a maioria dos tratados sobre o tráfico são multilaterais (no âmbito nas Nações Unidas). Mas, não são só os Es-

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tados que influem na cooperação e na negociação dos tratados internacio-nais, grupos da Sociedade Civil também foram chamados a acompanhar as negociações, podendo expressar sua opinião, apesar de não possuírem direito de voto.

O Protocolo de Palermo, como já citado anteriormente, fala a res-peito da cooperação para reduzir os fatores que deixam as pessoas vulne-ráveis ao tráfico, como a pobreza, o subdesenvolvimento e a falta de igual oportunidade (Artigo 9º, parágrafo VI). Além disso, propõe a cooperação técnica na troca de informações que incluem os meios e métodos usados para atravessar as fronteiras para o tráfico de pessoas, rotas e ligação entre pessoas de grupos envolvidos no tráfico. A cooperação para salvaguardar fronteiras também é destacada.

A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas enfatiza em seu Artigo 3º, parágrafo V, o respeito a tratados e convenções interna-cionais de direitos humanos, além de reforçar a cooperação bilateral e ou multilateral (Artigo 4º, parágrafo II) e a cooperação entre órgãos policiais internacionais (Artigo 6º, parágrafo I). O Ministério das Relações Exterio-res deve propor e elaborar instrumentos de cooperação internacional na esfera do enfrentamento ao tráfico de pessoas; promover a coordenação das políticas referentes ao enfrentamento ao tráfico de pessoas com os países do Mercosul e da Organização dos Estados Americanos; propor projetos de cooperação técnica internacional; e coordenar e facilitar a par-ticipação brasileira em eventos internacionais de combate ao tráfico (Arti-go 6º, parágrafo II, alíneas “a”, “e”, “f ” e “g”).

O Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP) possui uma parte apenas sobre a cooperação: a Prioridade 11. Esta tem a fi-nalidade de criar metas objetivas para as diretrizes da Política citada e propõe a elaboração de instrumentos bilaterais e multilaterais na área de repressão ao tráfico de pessoas. O fomento à cooperação por meio de oficiais de liga-ção nos três países que mais recebem brasileiros traficados274 é uma ativida-de que parece que terá bastante utilidade. Além disso, ela propõe incluir na agenda das reuniões bilaterais de fronteira com os países vizinhos o tema de repressão do tráfico de pessoas e fomentar a utilização dos instrumentos internacionais para o desenvolvimento de ações penais.

274 O Plano não apresenta quais são os três países, apenas coloca como meta.

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A cooperação mostra-se bem fundamentada nos instrumentos ana-lisados, mas, para que ela seja mais eficaz é necessário que haja um verda-deiro compromisso dos Estados-Parte da Convenção e do Protocolo de Palermo. Como já foi dito, não há uma instância superior que obrigue os Estados a cumprir as obrigações assumidas e, mais ainda, ainda, em razão de o Protocolo de Palermo não possuir um mecanismo de controle, é difi-cultada a aplicação das propostas de enfrentamento ao tráfico. Para que a cooperação configure-se como realidade, ela deve ser pensada como uma necessidade para os Estados, não só a cooperação dos realistas da preo-cupação com seu poder e fronteiras, mas uma cooperação mais ampla. A maioria das ações de cooperação explicitadas no PNETP são de caráter repressivo. Ao mesmo tempo em que a cooperação nessas áreas é funda-mental, é importante que esta também perpasse a prevenção e a atenção às vítimas para que esta seja uma cooperação mais efetiva em um sentido mais liberal.

Se os Estados conceberem a cooperação como um compromisso com os direitos humanos, além da proteção contra ameaças transnacio-nais, haverá uma motivação que superará a inexistência de um poder su-premo acima deles para constrangê-los.

4.4- CRIME ORGANIZADO

O crime organizado tornou-se uma questão internacional a partir do momento em que se transnacionalizou. “A novidade é a conexão global do crime organizado, condicionando as relações internacionais, tanto econô-micas como políticas, à escala e ao dinamismo da economia do crime”.275 O tráfico de pessoas coloca-se ao lado de outros tipos de tráfico, ocupan-do por vezes as mesmas rotas, com atuação do crime organizado trans-nacional: “[...] todos os tipos de tráfico são praticados por esse sistema ‘subterrâneo’ cujo poder se estende por todo o mundo: armas, tecnologia, materiais radiativos, obras de arte, seres humanos, assassinos mercenários e contrabandos dos mais diversos tipos e para qualquer parte do mundo estão todos interligados pela grande matriz de todos os atos ilícitos – a lavagem de dinheiro”.276

275 Ibidem.276 Ibidem.

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A visão realista preocupa-se com essa questão no sentido da segu-rança e da manutenção do poder do Estado. O controle das migrações nas fronteiras reflete esta preocupação. Castells mostra o crime organizado como um indicativo de que o Estado, realidade persistente no sistema internacional, perdeu um pouco de sua força.277 O crime organizado pode ser visto como uma ameaça à soberania do Estado na medida em que o en-fraquece como mantenedor de sua soberania interna, o que é considerado requisito de legitimidade do mesmo como ator no sistema internacional. As teorias liberais e neoliberais, que enfatizam a cooperação e a existência de outros atores, veem o crime organizado como questão que não pode ser resolvida por meio da ação isolada de um Estado, mas somente com a cooperação entre todos os envolvidos.

de acordo com Castells, o crime organizado causa três impactos no Estado-Nação. Primeiramente, a estrutura do Estado, permeada por vín-culos criminosos, sofre prejuízos na condução das questões públicas. Em segundo lugar, o capital proveniente do crime organizado acaba sendo fundamental para a economia de alguns países. E, em terceiro, o impacto que mais se relaciona com este trabalho, as relações internacionais entre os Estados são influenciadas pela maior ou menor cooperação no combate ao crime organizado.278

O Protocolo de Palermo foi concebido juntamente com a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Conven-ção de Palermo). Ele define que o escopo de sua aplicação são as ofensas em conformidade com seu Artigo 5º, quando tais ofensas forem transna-cionais e envolverem um grupo do crime organizado. Quando se subor-dina a aplicação do tráfico à atuação de um crime organizado verifica-se a centralidade deste para a configuração do tráfico e, por consequência, de seu enfrentamento.

Todavia, o próprio Protocolo não se atém em demasia ao crime orga-nizado, uma vez que a Convenção encarrega-se disto. A Convenção define grupo criminoso organizado, corrupção, lavagem de dinheiro e obstrução de justiça. Segundo Rodrigo Carneiro Gomes, ela

277 Ibidem.278 Ibidem.

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... leva à comparação, coleta e análise de dados e estatísticas sobre meca-nismos de enfrentamento do crime organizado, enfocando, separadamente, a estratégia policial, os meios institucionais e os meios técnico-operacionais disponíveis (entrega controlada, inteligência policial, confisco de bens, vi-gilância eletrônica, infiltração policial e força-tarefa), que são objeto de recomendações em tratados internacionais.279

O Protocolo de Palermo em seu artigo 5º, parágrafo 2, alínea “c” de-fine como ofensa organizar ou dirigir outras pessoas para cometer alguma das ações que configuram tráfico, como

... recrutamento, transporte, transferência, isolamento ou recepção de pesso-as por meio de ameaças ou pelo uso da força entre outras formas de coerção, de abdução, de fraude, de desapontamento, de abuso de poder ou de uma posição de vulnerabilidade ou de dar ou receber pagamentos ou benefícios para alcançar o consentimento de uma pessoa que possui o controle sobre outra pessoa para fins de exploração .280

Segundo a Convenção, para que um grupo seja considerado crime organizado ele deve ser “um grupo estruturado de 3 ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material”.281 Quando uma pessoa se junta a outras para possibilitar o tráfico ou quando incita as próprias pessoas traficadas para cometer as ações que configuram tráfico, ela é considerada transgressora para o Protocolo de Palermo.

A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas trata da prevenção ao tráfico de pessoas como uma questão mais interna e da repressão a esse tráfico como mais internacional. Ou seja, para a repressão mais ações de cooperação estão previstas. A cooperação e o combate ao crime organizado estão intimamente ligados. O artigo 6º, parágrafo I, fala da cooperação entre órgãos jurídicos nacionais e internacionais.

279 GOMES, Rodrigo Carneiro (2008) “O Crime Organizado na visão da Conven-ção de Palermo” disponível em: <http://www.parana-online.com.br/noticias/index.php?op=ver&id=339000&caderno=5> Acesso em: 20.04.08.280 Protocolo de Palermo, Artigo 3º.281 GOMES, Rodrigo Carneiro (2008) Ibidem.

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No Artigo 8º, em suas alíneas “f ”, “g”, “h”,”i”, “n” e p tem-se uma preocupação especial de preparo de pessoal na área de Justiça e Segurança Pública. O fortalecimento das rubricas orçamentárias para a formação de profissionais capacitados para enfrentar o tráfico, a inclusão do tráfico nas estruturas da inteligência policial e de estruturas específicas para investigá-lo, a aproximação com a sociedade civil e a inclusão do tráfico de pessoas nos cursos sobre lavagem de dinheiro estão expressos nessas alíneas.

O PNETP, com suas ações específicas, torna mais tangíveis essas metas. Além da capacitação dos profissionais (prioridade 2), o mapeamen-to de rotas e do perfil dos atores envolvidos no tráfico são essenciais para detectar o modo de operação do crime organizado e das vítimas mais vul-neráveis a ele (atividades 1.B.1 e 1.B.2, respectivamente). A prioridade nº8, “fomentar a cooperação entre os órgãos federais, estaduais e municipais envolvidos no enfrentamento ao tráfico de pessoas para atuação articulada na repressão do tráfico de pessoas e de responsabilização de seus autores”, faz-se central na vertente repressiva que o combate ao crime organizado exige.

Salientando a extrema relevância da dimensão do crime organizado para enfrentar o tráfico, é importante que a questão não se resuma somen-te à sua parte repressiva. A ênfase que se dá ao crime não deve obliterar a questão humanitária, de atendimento às vítimas, dentre outras, que é a visão mais ampla defendida por este trabalho.

5- CONCLUSÕES

Conclui-se que as Relações Internacionais contribuem para a discus-são do tráfico na medida em que apresentam elementos para pensar as múltiplas dimensões. Apesar de nenhuma das abordagens das Relações In-ternacionais explicar sozinha o problema todo, empregar alguns elemen-tos destas permite uma visão mais apurada do que seja o internacional e de como é possível uma ação sobre ele em questões que sejam internacionais. Foi possível pensar a possibilidade da cooperação em uma questão de direitos humanos sem ignorar as características e exigências do Estado como tal.

Há, entretanto, teorias que fornecem embasamento mais amplo para a discussão das áreas-tema. As teorias liberal e neoliberal são, com certe-za, o melhor embasamento para pensar a cooperação. A teoria que mais

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trabalha com os valores é o construtivismo, e existe uma ligação profunda com das migrações e do crime organizado com as questões de segurança presentes no realismo.

No desenvolvimento das questões das áreas-tema, percebeu-se que elas estão intrinsecamente vinculadas e apresentam reflexos, influência e relações profundas entre elas. Não se pode combater o crime organizado sem cooperação, que proporciona a discussão de todos os demais fatores e permite que haja uma proposta de ação integrada internacional para lidar com a questão do tráfico que, além disso, envolve migração. As vítimas mais vulneráveis ao crime organizado são aquelas que se encontram fragi-lizadas por condições que as impediriam de migrar em por si mesmas. Em adição, o que as vítimas fazem na condição de traficadas envolve valores, principalmente os valores morais relacionados à prostituição.

O crime organizado é o foco da atuação internacional de enfrenta-mento ao tráfico de pessoas. A preocupação com o combate a ele, impor-tante e justificada, não deve obliterar outras ações que derivam de uma visão mais holística, envolvendo tanto o micro (condições que fazem das pessoas vítimas do tráfico, por exemplo) quanto o macro (crime organiza-do transnacional, por exemplo).

A cooperação deve ter o comprometimento real dos atores envolvi-dos no enfrentamento ao tráfico. As organizações internacionais fazem o papel de estabelecer regimes internacionais que a aumentem. A Sociedade Civil aparece como um ator com capacidade de fazer a ligação entre o micro e o macro na formulação de políticas internacionais.

A questão migratória deve ser motivo de especial preocupação na questão do enfrentamento do tráfico, pois o entendimento das motivações dos migrantes pode ser bastante relevante para tornar a questão do tráfico mais inteligível. É importante que o tráfico não seja tratado apenas com medidas repressivas que não contribuem para que os fluxos do mesmo realmente diminuam, mas sim a partir de uma visão abrangente que veja a motivação da migração e o quanto o tratamento destinado ao imigrante ilegal faz com que a vítima de tráfico seja vítima de humilhação;

A questão moral é fundamental na medida em que fornece aos atores a visão que terão do tráfico e a forma que o enfrentarão. A questão moral não pode ser ignorada por simplesmente pertencer ao foro individual, pois a análise deste trabalho demonstra que esta se reflete nas discussões da formulação de valores internacionais.

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Os três instrumentos tratam diretamente da questão migratória, da cooperação internacional e apenas indiretamente da questão moral. Ao tratar dessas questões, eles fazem-no de maneira interligada.

Este trabalho fez algumas sugestões como: tratar com mais atenção a questão da migração, dar mais ênfase em como o estereotipo da mulher brasileira vitimiza-a, a atenção para que a questão não se centre somente no crime organizado; e a preocupação com a efetivação da cooperação. Mas, muito além de criticar, é preciso reconhecer que os instrumentos analisados são excelentes e avançam muito em matéria de políticas públi-cas internacionais e da nação brasileira. O maior desafio é a real imple-mentação das medidas propostas, com a atuação consciente de todos os atores envolvidos.

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MeNÇÃO HONROSa

eSTUdaNdeS (1)

SITUAÇÕES DE VULNERABILIDADE PARA SER TRAFICADA

Frans Willem Pieter Marie Nederstigt

INTRODUÇÃO

“Tráfico de pessoas é causa e consequência de violações de direitos humanos” (GAATW-Brasil, 2006: 1).

Aqui se pretende discutir a última questão, abordando algumas das violações de direitos humanos que resultam no tráfico de pessoas. Em outras palavras: será apontado quem está em uma situação de maior vul-nerabilidade para ser traficado.

Para um melhor entendimento e uso prático do conceito da situação da vulnerabilidade, que também é utilizado na própria definição do tráfico de pessoas pelo Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Cri-me Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças (2000), este será ligado ao conceito das minorias.

Também serão identificados três princípios para diagnosticar a vul-nerabilidade. Assim, como temas que causam uma situação de vulnerabili-dade ao tráfico de pessoas, serão consecutivamente abordados a migração, gênero, raça e geração (crianças e adolescentes). Por fim, será argumen-tado que estar em uma situação de maior vulnerabilidade, por sua vez é incrementado pelo preconceito, pela discriminação, pela vitimização e revitimização. O próprio conceito de vulnerabilidade traz consigo o risco de afirmação de estigmas e estereótipos, devendo ser contrabalanceado pela discriminação positiva, ou melhor, a ação afirmativa.

Esta análise é relevante porque mostrará alguns caminhos para uma prevenção mais efetiva e mais eficaz do tráfico humano.

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1- TRÁFICO DE PESSOAS E GRUPOS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE: MIGRAÇÃO, GÊNERO, RAÇA, CRIANÇAS E ADOLESCENTES

“Tráfico de pessoas é causa e consequência de violações de direitos humanos” (GAATW-Brasil, 2006: 1). Causa violações de direitos huma-nos porque o tráfico humano explora a pessoa, degrada a sua dignidade, limita o seu direito de ir e vir, em outras palavras: viola os seus direitos hu-manos. É também consequência de violações de direitos humanos porque o tráfico humano é fruto de desigualdade social-econômica, de falta de educação, profissionalização, de perspectivas de emprego e de realização pessoal, de serviços de saúde precários e da luta diária pela sobrevivência. Em outras palavras: é causado por violações de direitos humanos econô-micos, sociais e culturais, também chamados os direitos humanos da se-gunda geração.282 O tráfico de pessoas, em outras palavras, encontra terra fértil na violação de direitos humanos econômicos, sociais e culturais.

Vejamos, então, o seguinte exemplo verdadeiro de uma situação de vulnerabilidade, para ‘tocar’ na realidade e entendê-la melhor:

Mariana e as Políticas Sociais

Três filhos pequenos, de pais diferentes, nenhum contribuindo com sua educação. Mariana, 21 anos, mora em Belém em uma casa de madeira que pertence a sua mãe, quer dizer, oficialmente não, porque se trata de uma área de “ocupação”, mas foi ela e seus irmãos que a construíram. Mariana acabou de perder seu emprego numa loja no shopping da cidade, que demitiu uma parte dos seus funcionários depois do natal. Sem ensino médio completo, devido às três gravidezes e o cuidar dos filhos, ela ajuda a mãe lavar roupas de outras famílias, o que rende um salário mínimo por mês. Os filhos têm 5, 3 e 2 anos. A bolsa família de 95 reais,283 que ela conseguiu, mal dá para comprar leite e remédios para os filhos. O progra-

282 direitos humanos econômicos, sociais e culturais, também denominados de direi-tos humanos da segunda geração, são aqueles direitos humanos que (ao contrário dos direitos humanos civis e políticos ou da primeira geração) precisam de uma interven-ção ativa do Estado para a sua realização. Exemplo: direito ao emprego e um salário digno. (PIOVESAN, 2007:174-183; GUERRA, 2005: 189).283 http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/o_programa_bolsa_familia/beneficios-e-contrapartidas

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ma Primeiro Emprego não a cadastrou, porque ela não estava estudando e sua carteira de trabalho já mostrava seis meses de trabalho como vende-dora, além de existir um número limitado de vagas para participar (em 2005 foram 1500 jovens, em 2006 o programa não funcionou).284 Sua filha mais nova sofre de constantes ataques de asma. No posto de saúde, quando ela conseguiu ser atendida depois de várias noites aguardando em frente do posto de saúde, o médico pediu um raio-x do tórax e exame de pele e sangue. Mariana conseguiu agendar os exames só para três meses depois da consulta. O médico prescreveu também dois remédios, um bronco dilatador e um antiinflamatório, que infelizmente não estavam disponíveis no posto.

Presentes, brinquedos, roupas novas, produtos de higiene,... não estão dentro do orçamento, menos ainda cinema, passeios ou restaurantes. Os cartões de crédito, entregues nas casas populares por lojas e supermercados, já estouraram com as primeiras compras e as dívidas saltaram para valores gigantescos. Sem crédito na praça, a única diversão é a televisão e os amigos da esquina, onde há um barzinho e ponto de táxi, conhecido como boca de fumo e objeto de constantes investidas policiais (para receber propinas ou exigir pagamento para não prender certas pessoas...)

Que Políticas Públicas chegaram até esta mulher jovem? A de moradia? Educa-ção? Assistência? Emprego e Renda? Lazer? Profissionalização? Segurança?

Chegou um convite: viajar para Suriname para ganhar, em pouco tempo, dinheiro para saldar dívidas e pagar um médico particular para seus filhos, além de contri-buir na reforma da casa. É arriscado, com certeza vai ter sofrimento, mas... é o que se apresenta neste momento. (HAZEU, 2008:19-20)

Após esse exemplo sobre a situação (de vulnerabilidade) da Mariana, é obvio que as violações de direitos humanos econômicos, sociais e cul-turais batem às portas de muitas Marianas. Não é um problema teórico. Não é uma hipótese. Por isto seria melhor não falar de tráfico de seres hu-manos, como se fosse uma modalidade do tráfico de seres, ao lado do tráfico de animais silvestres, atividade criminosa ativamente combatida pela Polí-

284 http://www.mte.gov.br/delegacias/pa/pa_relatorio2005.pdf, http://www.serpro.gov.br/noticiasSERPRO/20040901_10, Belém tem uma popula-ção estimada em mais de 1.400.000 pessoas, dos quais mais de 400.000 são jovens na faixa etária de 16 a 24 anos. dos jovens dos municípios de Belém, Ananindeua, Marituba, Benevides e Santa Bárbara 42,5% estão fora da escola, destes 68,9%, além de não estudarem, também não trabalham (Consórcio Social da Juventude de Belém – Wapokai, Belém, 2005).

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cia Federal como avisam, desde 2003, cartazes nos aeroportos brasileiros. Trata-se de pessoas traficadas; pessoas com nomes, pessoas com sonhos em busca do caminho para a felicidade, pessoas ousadas que arriscam o hoje para um amanhã melhor.

Justamente por este motivo também não se deve falar em pessoas vulneráveis. Ao contrário! No máximo são pessoas que se encontram em uma situação de vulnerabilidade. A diferenciação entre pessoas vulneráveis e pessoas em uma situação de vulnerabilidade não é uma questão meramente acadêmica. Toca na alma de uma abordagem diferenciada a essas pesso-as. Uma pessoa vulnerável é um ‘pobre-coitado’, uma vítima, alguém que precisa de uma esmola e pode (ou não) receber ajuda de uma pessoa de uma classe mais alta. Uma pessoa em uma situação de vulnerabilidade é, em princípio, capaz de sair dela, está nela por razões externas. Ela pode, quando suficientemente empoderada, exigir um reconhecimento dos direi-tos dela. No entanto, não é vulnerável como se fosse uma característica da sua própria pessoa. Resumindo: a pessoa (ou um grupo de pessoas) em si mesmo não é vulnerável, mas pode encontrar-se em uma situação de ex-ploração, de negação da sua dignidade, de violações de direitos humanos (econômicos, sociais e culturais).

Por fim, é ressaltado desde já, que essas situações de vulnerabilidade para serem traficadas, incluem e devem incluir, como será mostrado, pelo menos os temas da migração,285 de gênero, de raça e de geração (crianças e adolescentes).

285 Migração é o movimento de pessoas, grupos ou povos de um lugar para outro. Se optarmos por uma definição de dicionário, verificaremos que migrar é mudar, passar de uma região a outra, de um país para outro.Imigração é o movimento de pessoas, grupos ou povos provenientes de outras áreas, que entram em determinado país, com o intuito de permanecer definitivamente ou por período de tempo relativamente longo.emigração é o movimento de saída de pessoas, grupos ou povos de uma região, de um país, para estabelecer-se em outro, em caráter definitivo ou por período de tempo relativamente longo. Além das causas econômicas, outras podem influenciar no de-sencadeamento de movimentos emigratórios, tais como questões políticas, religiosas, raciais ou ambientais.Fonte: Instituto Migrações e direitos Humanos http://www.migrante.org.br/glossa-rio.htm acessado em 27-05-2008.

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2- SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE ≈ MINORIAS?

O Protocolo de Palermo sobre Tráfico de Pessoas286 no seu artigo 3º, alínea a), define o tráfico de pessoas como:

(...) o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o aco-lhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos (grifo nosso).

Assim, temos uma norma penal287 não incriminadora (em razão da não vinculação a uma pena), que orienta as normas penais incriminado-ras sobre tráfico de pessoas.288 A situação de vulnerabilidade, explicita-

286 O apelido Protocolo de Palermo é pouco preciso porque a Convenção das Nações Uni-das contra o Crime Organizado Transnacional (também chamada de Convenção de Palermo e ratificado pelo Brasil em 29 de janeiro de 2004, http://www2.mre.gov.br/dai/m_5015_2004.htm acessado em 27-05-2008) conta com três protocolos adicionais: um primeiro protocolo contra o tráfico de pessoas, ratificado pelo Brasil em 29 de janeiro de 2004 (http://www2.mre.gov.br/dai/m_5017_2004.htm acessado em 27-05-2008); um segundo protocolo contra o contrabando de migrantes, ratificado pelo Brasil em 29 de janeiro de 2004 (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/decreto/d5016.htm acessado em 27-05-2008); e, um terceiro protocolo contra a fabricação e o tráfico ilícito de armas de fogo, suas peças, componentes e munições, ratificado pelo Brasil em 16 de março de 2006 (http://www2.mre.gov.br/dai/m_5941_2006.htm acessado em 27-05-2008).287 Pelo fato de o Protocolo da ONU sobre Tráfico de Pessoas ser ratificado pelo Brasil, considerando os trâmites constitucionais para tal (decreto No. 5.107, de 12 de março de 2004) o Protocolo, no âmbito interno, deve ser considerado (pelo menos) uma lei ordinária. Veja também: CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 13a edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2006 (p.245-246).288 Além dos artigos 231 e 231-A do Código Penal, que se referem explicitamente ao tráfico de pessoas, há outros crimes que devem ser entendidos como tráfico de pesso-as, como aqueles definidos nos artigos 148, 149, 206, 207, 245, 249 do Código Penal; nos artigos 238, 239, 240, 241 e 244-A do Estatuto da Criança e do Adolescente; e nas leis Nº 9.434/1997 e Nº 10.211/2001.

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mente mencionada nesta norma jurídica, não é simplesmente uma análise sociológica ou social-econômica, mas também se refere a um elemento constitutivo da primeira definição universal do tráfico de pessoas. Em ou-tras palavras, aproveitar-se de uma situação de vulnerabilidade de uma pessoa quando aliciá-la, tem uma relevância jurídica e deveria ter uma definição clara, objetiva e prática.

O Protocolo da ONU sobre Tráfico de Pessoas, porém, não define o que deve ser considerado uma situação de vulnerabilidade. Contudo, a definição internacional do tráfico humano considera a situação de vul-nerabilidade como um dos meios que viciam o consentimento289 de uma pessoa adulta. Isto é, uma pessoa adulta em situação de vulnerabilidade que, inicialmente, acredita numa falsa promessa e aceita uma proposta en-ganosa (para posteriormente perder, de alguma forma, a sua liberdade e acabar sendo explorada) é considerada traficada, por ter seu consentimen-to inicial induzido.

O artigo 3º b), do referido Protocolo, reza: O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente Artigo será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios [como o aproveitamento de uma situação de vulnerabilidade] referidos na alínea a).

Isto significa que o abuso de uma situação de vulnerabilidade é um dos meios aliciadores utilizados por traficantes de pessoas. O consenti-mento inicialmente dado por alguém em situação de vulnerabilidade, deve ser considerado induzido (ou viciado). Por isto, é essencial a avaliação das circunstâncias concretas de cada caso, em especial a situação da pessoa tra-ficada, o que supõe uma grande sensibilidade e um profundo entendimen-to do operador de direito. Principalmente porque o artigo 3º, alínea a) do Protocolo da ONU sobre Tráfico de Pessoas menciona vários meios ali-ciadores, do qual a situação de vulnerabilidade parece ser o meio ‘resíduo’, que depende de uma análise caso a caso: somente quando não há ameaça ou uso da força ou outras formas de coação, rapto, fraude, engano, abuso

289 Para saber mais sobre o conceito “consentimento” no debate jurídico: PIeRaN-GeLI, José Henrique. Consentimento do Ofendido (na Teoria do delito). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

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de autoridade ou a entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração, é que se analisa se houve o abuso da situação de vulnerabilidade no momento em que a pessoa traficada foi recrutada.

Nas notas aos trabalhos preparatórios dos negociadores do Protocolo da ONU sobre Tráfico de Pessoas, a questão da situação de vulnerabili-dade é definida como “significando qualquer situação em que a pessoa em causa não tem outra alternativa real e aceitável senão submeter-se ao abuso em questão” (UNOdC, 2003:26).

Para uma utilização mais prática do conceito da situação de vulnera-bilidade, que tem uma relevância jurídica, sociológica e social-econômica também podemos recorrer a outro instrumento da normativa internacio-nal, sendo a Declaração da ONU Sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Mi-norias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas (1992).290 Esta declaração, mesmo não definindo o que é uma minoria (até porque a comunidade internacional nunca chegou a uma definição universalmente aceita), iden-tifica duas características fundamentais:

Artigo 2o

1. As pessoas pertencentes a minorias nacionais ou étnicas, religiosas e linguísticas (doravante denominadas “pessoas pertencentes a minorias”) terão direito a desfrutar de sua própria cultura, a professar e praticar sua própria religião, e a utilizar seu próprio idioma, em privado e em público, sem ingerência nem discriminação alguma. (...) (grifo nosso)Artigo 4o

2. Os Estados adotarão medidas para criar condições favoráveis a fim de que as pessoas pertencentes a minorias possam expressar suas característi-cas e desenvolver a sua cultura, idioma, religião, tradições e costumes, salvo em casos em que determinadas práticas violem a legislação nacional e sejam contrárias às normas internacionais.

290 O Pacto Internacional da ONU Sobre os direitos Civis e Políticos (1966), em seu artigo 27, estipula que: Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou lin-guísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua. Para o texto inte-gral em Português da declaração da ONU Sobre os direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e linguísticas, vide: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/discrimina/dec92.htm acessado em 27-05-2008.

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(...) (grifo nosso)Artigo 8o (...)2. O exercício dos direitos enunciados na presente Declaração será efetu-ado sem prejuízo do gozo por todas as pessoas dos direitos humanos e das liberdades fundamentais reconhecidos universalmente. 3. As medidas adotadas pelos Estados a fim de garantir o gozo dos di-reitos enunciados na presente Declaração não deverão ser consideradas prima facie contrárias ao princípio de igualdade contido na Declaração Universal de Direitos Humanos. (...) (grifo nosso)

Uma frase do sociólogo português Boaventura de Souza Santos, sin-tetiza de maneira especialmente oportuna, a diferença importante entre os primeiros dois parágrafos citados e os dois últimos: “(...) as pessoas e os gru-pos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza.” (SANTOS, 1997: 122). É bom ressaltar que a igualdade não está oposta à diferença e sim à desigualdade. diferença refere-se diretamente à diversidade e se opõe à padronização, a ‘tudo o mesmo’. Assim os princípios da não discriminação e igualdade não derrogam o direito de ser diferente ou vice-versa. Ou, em outras palavras: a obrigação de reconhecer as diferenças entre pessoas, não é uma desculpa para negar os seus direitos universais.

Para entender melhor o valor agregado do tema das minorias para a compreensão do abuso de situação de vulnerabilidade, é necessário voltar às pessoas em questão: minorias e pessoas em situação de vulnerabili-dade (GUERAldI & NEdERSTIGT, 2007). Pelo acima mencionado, o conceito de minoria poderá ser definido, grosso modo, como: grupos distintos dentro da população, possuindo costumes e/ou características étnicas, religiosas ou linguísticas, que diferem daquelas do resto da po-pulação, estando em uma posição de não dominância. “Quando falamos de ‘minoria’, devemos pensar que uma minoria existe em relação a um grupo maior, que é um grupo dominante, que submete o grupo menor a uma situação de dominação, de inferioridade numérica (nem sempre), e a uma posição de inferioridade política, social, econômica, cultural ou sexual. O grupo majoritário e dominante proporciona um tra-tamento discriminatório, desigual e impõe não apenas a sua força, mas também a sua visão de realidade” (RHENAN SEGURA, 1999).

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Assim definidas, as minorias estão em uma situação de vulnerabilida-de. E vice versa, as pessoas e grupos em situação de vulnerabilidade sofrem dos mesmos tratamentos discriminatórios e preconceituosos, provocando desigualdade. O fato de uma pessoa em situação de vulnerabilidade ser ou estar diferente, não justifica uma limitação a direitos iguais, que devem ser aplicados de forma não discriminatória.

3- PRINCÍPIOS PARA O DIAGNÓSTICO DA SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE

Para uma melhor análise do significado da situação em que a pessoa em causa não tem alternativa real e aceitável senão submeter-se ao abuso em questão, pelo menos três princípios são fundamentais para considerar. Nesse contexto da aplicação de conceitos teóricos para uma identificação da realidade, a avaliação das circunstâncias concretas de cada caso, em especial da situa-ção da pessoa traficada ou da pessoa em situação de vulnerabilidade para ser traficada, supõe uma grande sensibilidade e um profundo entendimen-to de operadores de direito e outros profissionais.291

O primeiro princípio é o reconhecimento da situação de vulnerabili-dade em toda sua amplitude. Já foi destacado que a pessoa (ou um grupo de pessoas) em si mesmo não é vulnerável, mas pode se encontrar em uma situação de exploração, de negação da sua dignidade, de violações de direitos humanos (econômicos, sociais e culturais). Isto também sig-nifica que uma situação de vulnerabilidade às vezes é uma combinação de várias situações, em que é necessário ficar atento às diferentes formas em que a dominância, a discriminação e o preconceito mostram as suas caras, utilizando-se de uma posição de inferioridade política, social, eco-nômica, cultural ou sexual. O grupo majoritário e dominante proporciona um tratamento diferenciado, desigual e impõe não apenas a sua força, mas também a sua visão de realidade. (RHENAN SEGURA, 1999).

291 Neste sentido, um dos mais úteis instrumentos são as chamadas Recomendações Éticas e de segurança da Organização Mundial de Saúde para entrevistar pessoas tra-ficadas (ZIMMERMAN & WATTS, 2003):http://www.who.int/gender/documents/en/final%20recommendations%2023%20oct.pdf acessado em 27-05-2008.

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4- REFLEXÃO

“definindo interseccionalidade: uma conceituação metafóri-ca.292

A associação de sistemas múltiplos de subordinação tem sido descrita de vários modos: discriminação composta, cargas múlti-plas, ou como dupla ou tripla discriminação. A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequên-cias estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racis-mo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discri-minatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específi-cas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento.

Utilizando uma metáfora de intersecção, faremos inicialmente uma analogia em que os vários eixos de poder, isto é, raça, etnia, gênero e classe constituem as avenidas que estruturam os terrenos sociais, econômicos e políticos. É através delas que as dinâmicas do desempoderamento se movem. Essas vias são por vezes defi-nidas como eixos de poder distintos e mutuamente excludentes; o racismo, por exemplo, é distinto do patriarcalismo, que por sua vez é diferente da opressão de classe. Na verdade, tais sistemas, fre-quentemente, sobrepõem-se e se cruzam-se, criando intersecções complexas nas quais dois, três ou quatro eixos entrecruzam-se. As mulheres racializadas frequentemente estão posicionadas em um espaço onde o racismo ou a xenofobia, a classe e o gênero encon-tram-se. Por consequência, estão sujeitas a serem atingidas pelo in-tenso fluxo de tráfego em todas essas vias. As mulheres racializadas e outros grupos marcados por múltiplas opressões, posicionados

292 CRENSHAW, Kimberlé. documento para o Encontro de Especialistas em Aspec-tos da discriminação Racial Relativos ao Gênero. Estudos Feministas. University of Califórnia, los Angeles. Ano 10, 1º semestre, 2002, p. 171-188. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2002000100011&script=sci_arttext&tlng=pt acessa-do em 27-05-2008.

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nessas intersecções em virtude de suas identidades específicas, de-vem negociar o ‘tráfego’ que flui através dos cruzamentos. Esta torna-se uma tarefa bastante perigosa quando o fluxo vem simul-taneamente de várias direções. Por vezes, os danos são causados quando o impacto vindo de uma direção lança vítimas no caminho de outro fluxo contrário; em outras situações, os danos resultam de colisões simultâneas.

Esses são os contextos em que os danos interseccionais ocor-rem — as desvantagens interagem com vulnerabilidades preexis-tentes, produzindo uma dimensão diferente do desempoderamen-to.” (CRENSHAW, 2002: 177).

Um segundo princípio a ser utilizado para uma análise correta de uma situação de vulnerabilidade, ou a identificação de uma pessoa que se encontra nela, é o reconhecimento do direito à proteção especial. Esta proteção especial está contida em inúmeros Tratados, Convenções, Pac-tos, Protocolos, Cartas, Convênios ou Acordos internacionais tratando sobre direitos humanos de determinados grupos, que foram ratificados pelo Brasil. Quando existe um Tratado de direitos Humanos que se refere a um grupo específico de pessoas, esse grupo de fato precisou de uma proteção especial, acordado pela comunidade internacional (no âmbito da Organização das Nações Unidas - ONU) ou regional (no âmbito da Orga-nização dos Estados Americanos - OEA).

logo depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) co-meçou o chamado processo de “juridicização”, visando transformá-la em um tratado internacional que fosse juridicamente obrigatório e vinculante no âmbito do direito Internacional (PIOVESAN, 2007). Esse processo foi concluído em 1966 com a elaboração de dois tratados internacionais, sendo o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, conjuntamente com a declaração Universal, denominados International Bill of Rights. depois, muitos outros documentos, em relação à matéria, passaram a tutelar determinados gru-pos tidos como vulneráveis e, ainda, outros relativos a determinadas vio-lações, até então não tutelados pelo ordenamento existente. Existem, por

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exemplo293, instrumentos internacionais e regionais tratando dos direitos humanos da mulher, da criança, contra todas as formas de discriminação racial, direitos do trabalhador migrante e suas famílias.

Na visão de Norberto Bobbio, na sua obra A Era dos Direitos (1992) o processo de “multiplicação de direitos... envolveu não apenas o aumento dos bens merecedores de tutela, mediante a ampliação dos direitos a prestação (como os direitos sociais, econômicos e culturais), como também a extensão da titularidade de direitos, com o alargamento do próprio conceito de sujeito de direito, que passou a abranger, além do indivíduo, as entidades de classe, as organizações sindicais a coletividade, os grupos vulneráveis e a própria humanidade” (PIOVESAN, 2007: 184).

O terceiro princípio que auxilia na identificação de uma pessoa ou grupo de pessoas em situação de vulnerabilidade é o da ação afirmativa, que é arraigada na discussão sobre igualdade e desigualdade. As políticas de ação afirmativa (ou, em outros países, denominada de discriminação po-sitiva), orientam a favorecer determinados grupos que tiveram, ao longo do tempo, suas oportunidades de acesso a recursos e bens da sociedade negadas ou minimizadas. Assim revertendo uma situação histórica de desi-gualdade (e consequente vulnerabilidade) por um tratamento diferenciado, favorecendo as minorias. A ação afirmativa, numa sociedade marcada pela desigualdade e fortes mecanismos de exclusão, na prática visa, em certas circunstâncias, favorecer as mulheres, a população indígena, os afro-des-cendentes ou outros grupos excluídos ou objeto de discriminação, princi-palmente no seu exercício pleno dos seus direitos. Procura-se, assim, um maior equilíbrio na sociedade como um todo.

A já mencionada Declaração da ONU Sobre os Direitos das Pessoas Perten-centes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas, de alguma forma tende a reconhecer a necessidade da ação afirmativa das minorias no seu artigo 4º, §1º, quando reza que:

293 Para mais exemplos de instrumentos internacionais que fazem referência aos di-versos direitos humanos relacionados ao tráfico de pessoas: AlIANÇA GlOBAl CONTRA TRÁFICO dE MUlHERES (GAATW). direitos Humanos e Tráfico de Pessoas: Um Manual. Bangkok: GAATW, 2006, p. 18-23 (http://gaatw.net/Portuge-se/HR%20&%20Trafficking_Portugese.pdf acessado em 27-05-2008).

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5- MIGRAÇÃO

Para começar, é necessário diferenciar o tráfico de pessoas, do con-trabando de migrantes e da migração (irregular). As definições de tráfico de pessoas e migração já foram abordadas anteriormente (pág. 4 e nota de rodapé no. 4, respectivamente).

O contrabando de migrantes, às vezes erradamente traduzido como tráfico de migrantes por via terrestre, marítima e aérea294 significa a promoção, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, um beneficio financeiro ou outro benefício material, da entrada ilegal de uma pessoa num Estado do qual essa pessoa não seja nacional ou residente permanente (definição dada pelo artigo 3º, alínea a deste Protocolo). Enquanto o tráfico de pesso-as é um crime cometido contra uma pessoa, o contrabando de migrantes é um crime contra o Estado, que tem o seu poder de controle de entrada de estrangeiros desafiado. Consequentemente, contrabando de pessoas é um crime transnacional por definição, enquanto tráfico de pessoas também ocorre no território nacional, sem precisar passar as fronteiras de um país. Como na migração, o migrante contrabandeado consente em seu deslo-camento, enquanto no tráfico de pessoas este consentimento não existe, ou quando inicialmente existiu este foi induzido. Por fim, o contrabando termina quando o migrante chega ao seu destino, livre para seguir seu próprio caminho (a personagem ‘Sol’, na telenovela ‘América’ de 2005), enquanto no tráfico a exploração começa (ou continua) ao chegar ao des-tino (a personagem ‘Taís’ na telenovela ‘Belíssima’ de 2006).

294 Vide o protocolo de Palermo contra o contrabando de migrantes, ratificado pelo Brasil em 29 de janeiro de 2004 (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/decreto/d5016.htm acessado em 27-05-2008), comparando-lo com o nome deste Protocolo em inglês: Protocol against the Smuggling of Migrants by Land, Sea and Air. Até o próprio Escritório Contra drogas e Crime das Nações Unidas (UNOdC) no Brasil diferencia entre tráfico de pessoas e contrabando de migrantes (http://www.unodc.org/brazil/pt/projects_S_35.html acessado em 27-05-2008.)

Os Estados adotarão as medidas necessárias afimdegarantir que as pessoas pertencentes a minoriaspossam exercer plena e eficazmente todos os seusdireitos humanos e liberdades fundamentais semdiscriminação alguma e em plena igualdade perante a Lei.

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O contrabando de pessoas é, portanto, uma ‘migração irregular’, que se dá com a troca de algum benefício financeiro ou material. Veja também a tabela295 (GAATW, 2006) abaixo.

Com a globalização da economia, além de produtos e máquinas, a mão de obra, e consequentemente os trabalhadores, também seguem as leis sagradas do capitalismo, as de oferta e demanda (GAATW, 2006). Já em 1885, RAVENSTEIN explica a migração através de fatores de re-pulsão nos lugares de origem e fatores de atração nos lugares de destino (RAVENSTEIN, 1885). As migrações normalmente têm uma origem socioeconômica e são resultado da busca por melhores condições de vida, porém, também existem outros tipos de migração provocados por razões políticas ou naturais.

de um país de imigração o Brasil, a partir dos anos 80, tornou-se um país de emigração. Segundo estimações do Ministério das Relações Exteriores, são cerca de 3 a 4 milhões os brasileiros que estão atualmen-

295 Baseada na tabela desenvolvida pela AlIANÇA GlOBAl CONTRA TRÁFICO dE MUlHERES (GAATW). direitos Humanos e Tráfico de Pessoas: Um Manual. Bangkok: GAATW, 2006, p. 34 (http://gaatw.net/Portugese/HR%20&%20Traffi-cking_Portugese.pdf acessado em 27-05-2008.).

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te no exterior, documentados ou indocumentados296 (CPMI Emigração Ilegal, 2006; CHAGAS, 2006).

A migração tem relação com o empobrecimento de determinadas classes sociais e a ampliação das desigualdades entre nações. A globalização da economia não só potencializa que muitos migrem em busca de oportuni-dades de mobilidade social e melhores condições de vida, mas também ao ampliar a distancia entre os que têm e os que não têm, os primeiros, como a classe media e alta dos paises desenvolvidos, tornam-se mais intolerantes contra os que não têm, os considerados estranhos, os migrantes. Mas, em grande medida, nestes tempos, todos, nativos e migrantes, são estranhos em relação a poderes e a realização da economia política. (CASTRO, 2005: 1).

É legítimo concluir que hoje em dia a maioria dos migrantes brasilei-ros, aqui e no exterior, são pessoas que tiveram de alguma forma os seus direitos humanos econômicos, sociais e culturais violados. Encontram-se, muitas das vezes, em uma situação de vulnerabilidade para serem trafi-cados, porque estão em uma “(...) situação em que a pessoa em causa não tem outra alternativa real e aceitável (...)” (UNOdC, 2003:26) do que migrar para assim talvez encontrar condições melhores de vida. O risco de ser traficado é incrementado, na medida em que as possibilidades para migrar de forma legal e segura ficam cada vez mais restritas, uma vez que os países desenvolvidos adotam medidas de contenção da imigração e de intensificação de controle nas fronteiras. Assim aqueles que seguem as leis

296 A situação de um imigrante que está sem os documentos necessários e/ou visto e/ou autorização de trabalho, exigidos pelo país de destino, normalmente não é consi-derado crime, mas uma infração administrativa, razão pelo qual a utilização do termo ‘ilegal’ deve ser evitada (pois nenhuma pessoa é ilegal). Aconselha-se no movimento migratório a utilização do termo ‘migrante em situação irregular’ ou ‘indocumentado’. Vide: CPMI Emigração Ilegal. Relatório Final. Brasília: Senado Federal, 12 de julho 2006, Apresentação, pág. 1 http://www.senado.gov.br/web/comissoes/CPI/Emigra-cao/RelFinalCPMIEmigracao.pdf acessado em 27-05-2008; e o artigo 5º, da Convenção Internacional da ONU sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias (1990) que reza: Para efeitos da presente Convenção, os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias: (a) São considerados documentados ou em situação regular se forem autorizados a entrar, permanecer e exercer uma atividade remunerada no estado de emprego, ao abrigo da legislação desse Estado e das convenções internacionais de que esse Estado seja parte; (b) São considerados indocumentados ou em situação irregular se não preenchem as condições enunciadas na alínea a) do presente artigo.

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econômicas de oferta e demanda, restam recorrer a soluções imediatas e inusitadas para chegar (até de forma irregular ou mesmo ilegal) aos países, que proporcionam melhores condições de vida. Consequentemente, caem com mais facilidade nas redes de tráfico e de contrabando de pessoas que atendem essa demanda para deslocamento (GAATW, 2006).

6 - GÊNERO

Gênero é uma categoria que está associada às relações socialmente constituídas entre homens e mulheres (SCOTT, 1995). Na verdade, as di-ferenças biológicas entre homens e mulheres, ao longo da história, foram superpostas pelas diferenças econômicas, sociais e culturais, construídas segundo cada cultura e sociedade (IBAM, 2006).

As desigualdades econômicas, sociais e culturais, em sua relação com a categoria gênero, na sociedade brasileira, podem ser observadas, entre outras, em uma falta de participação feminina na política, em um aces-so reduzido à educação, ao emprego e aos serviços de saúde, e em uma remuneração mais baixa do que os homens que têm a mesma função no trabalho. A discriminação de gênero, sexismo e machismo devem ser com-batidos com políticas públicas efetivas na área de saúde, direitos sexuais e direitos reprodutivos; educação e cultura; trabalho, geração de renda e previdência; e por fim na área de segurança e combate à violência contra a mulher (IBAM, 2006).

É importante ressaltar que os fluxos migratórios da América lati-na e Caribe mostram uma ‘feminização’ significante, sendo que mais da metade dos migrantes desta região são mulheres (PEllEGRINO, 2004). Segundo dados do censo populacional Espanhol, de 2001, publicado pelo Instituto Nacional de Estatísticas Espanhol 54,6% de todos os migrantes da América do Sul é feminina, sendo que esta percentagem cresce até 69,5% quando considera tão somente os migrantes do Brasil (PEllE-GRINO, 2004). A chamada feminização da migração pode ser explicada pela responsabilidade econômica (muitas mulheres brasileiras são chefes de família) que as mães tomam para a sustentação e educação dos seus filhos (que, em consequência dessa migração, muitas das vezes são criados por parentes, vizinhas ou amigas).

Segundo a Pesquisa Sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil (lEAl & lEAl, 2002), o trá-fico de pessoas para fins sexuais é, predominantemente, de mulheres e

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adolescentes, afrodescendentes, com idade entre 15 e 25 anos. Segundo as estimativas do Escritório Contra drogas e Crime das Nações Unidas (UNOdC)297 divulgadas no seu site, o tráfico internacional de mulheres, crianças e adolescentes movimenta a cada ano entre US$ 7 bilhões e US$ 9 bilhões, sendo uma das atividades mais lucrativas do crime organizado transnacional. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho, das pessoas traficadas, destacam-se as mulheres e as meninas como as maiores vítimas da exploração econômica (56% do total contra 44% ho-mens e meninos) e como as maiores vítimas da exploração sexual comer-cial (98% contra 2% de homens e meninos) (OIT, 2005).

Neste contexto, é bom lembrar que o tráfico de pessoas para fins de prostituição (artigos 231 e 231-A do Código Penal), tradicionalmente298 referiu-se às mulheres, e ainda tão somente menciona o tráfico de pesso-as para fins de prostituição, não diferenciando entre prostituição299 forçada ou voluntária (CAMPEllO R. AlMEIdA & NEdERSTIGT, 2007). O trabalho escravo (artigo 149 do Código Penal) refere-se, na prática, ao ho-mem (‘boia-fria’) no campo. As pessoas traficadas no campo, quando libe-radas pelos Grupos Especiais de Fiscalização Móvel, pode receber uma indeni-zação por meio da aplicação da Consolidação das leis Trabalhistas (ClT), mas para uma prostituta explorada, na maioria das vezes uma mulher, este caminho é quase,300 mas não totalmente impossível (CAMPEllO R. Al-MEIdA & NEdERSTIGT, 2007).

297 http://www.unodc.org/brazil/pt/programasglobais_tsh.html#programa acessado em 27-05-2008.298 Somente por meio da lei Nº 11.106/2005, o artigo 231, do Código Penal, que até então definiu o crime de tráfico internacional de mulheres para fins de prostituição, foi alterado e agora também inclui tráfico internacional de homens (artigo 231 do Código Penal) e tráfico interno (artigo 231-A do Código Penal). 299 A prostituição ‘autônoma’ não é proibida no Brasil, mas o fato de terceiros aprovei-tarem-se disto é considerado crime (artigos 228, 229 e 230 do Código Penal). 300 Vide duas jurisprudências (2006) do Tribunal Regional de Trabalho, 18ª região (Goiás):http://www.trt18.gov.br/pls/site/jurisp_show2?p_idrecord=63634&p_word1=reconhec imento&p_word2=víncu lo&p_word3=pros t i tu ição. http://www.tr t18.gov.br/pls/site/jurisp_show2?p_idrecord=71023&p word1=reconhecimento&p_word2=vínculo&p_word3=prostituição ambos acessa-dos em 27-05-2008.

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7 - RAÇA

Como na questão do gênero, a raça (cor/etnia) também se refere a uma situação de vulnerabilidade historicamente construída na qual o gru-po majoritário e dominante proporciona um tratamento discriminatório, desigual e impõe não apenas a sua força, mas também a sua visão de rea-lidade (RHENAN SEGURA, 1999). “Isso significa dizer que, no caso brasileiro, existe uma correlação socialmente construída entre a aparência (raça/cor) das pessoas e seu lugar na trajetória social. (...) Sabe-se, no Brasil ser branco é mais valorizado do que ser negro ou não branco” (IBAM, 2006: 26).

As desigualdades econômicas, sociais e culturais, em sua relação com a categoria raça (cor/etnia), na sociedade brasileira, podem ser observadas —como na categoria de gênero — em uma falta de participação feminina na política, em um acesso reduzido à educação, ao emprego e aos serviços de saúde, e em uma remuneração mais baixa do que os brancos que têm a mesma função no trabalho. A discriminação de raça deve ser combati-da com políticas públicas efetivas na área de trabalho, emprego e renda; cultura e comunicação; educação e saúde; terras de quilombolas; mulheres negras (gênero e raça); juventude; segurança pública; e, por fim, gestão pública (IBAM, 2006).

lembramos que o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão (1888). desde então uma das correntes feministas, que até hoje se dedica à abolição do tráfico de mulheres, origina-se nas pressões Euro-Americanas de classe média contra a prostituição em torno do “Tráfico de Escravas Brancas” (KEMPAdOO, 2005). Vale ressaltar que, em 1910, em Paris foi adotado uma Convenção Internacional contra o Tráfico de Escravas Brancas, que foram transportadas da Europa para lugares como Buenos Aires e Rio de Janeiro. Claramente, a preocupação da classe domi-nante naquela época não se estendia às mulheres negras e nem hoje todas as correntes antitráfico reconhecem a discussão em torno da raça (cor/etnia) como fundamental.

300 Vide duas jurisprudência (2006) do Tribunal Regional de Trabalho, 18ª re-gião (Goiás):http://www.trt18.gov.br/pls/jurisp_show2?p_idrecord=63634&p_word=reconhec imento&p_word2=v íncu lo&p_word3=pros t i tu i ç ão. ht tp ://www.tr t18.gov.br/pls/s i te/jur isp_show2?_idrecord=71023&p word1=reconhecimento&p_word2=vínculo&p_word3=prostituição ambos acessa-dos em 27-05-2008.

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Infelizmente, ainda há um estereótipo da mulher migrante vindo do Brasil, tentando entrar em países do chamado primeiro mundo:

A imagem do Brasil, no exterior, como país tropical, de carnaval e romantismo alimenta o estereótipo da mulher negra ou indígena como exótica, um tipo de marketing incentivado pelo cartão postal da ‘bunda com fio dental’, confirmado pelas observações antropológicas que seguem:

Conforme apontado numa pesquisa de campo em Copacabana, Rio de Janeiro, as situações de vulnerabilidade têm várias aparências: “No campo das relações sexuais entre gringos e nativos, esses entendimentos da cidade geralmente encontram expressão em três idealizações acerca dos nativos, geralmente rotulados de “brasileiros”:a) A ideia de que os brasileiros – e particularmente as brasileiras – são dotadas de uma sexualidade “natural” acentuada. (...)b) A ideia de que as relações sociais expostas na cidade – particularmente as relações familiares e o papel da mulher na família – são típicas de um outro tempo, o passado dos países de origem dos gringos em questão. Como dizia um gringo residente... Gosto do Rio, pois aqui as pessoas são como eram antigamente em nosso país – no tempo de meus avós. Aqui as pessoas pensam na família e nos amigos primeiro e no dinheiro só muito depois. Isso foi uma das razões que acabaram me fazendo casar com uma brasileira: elas sabem valorizar a família, que não é algo que a maioria de americanas sabe mais fazer.c) A visão da cidade como “perdedora” (também do país como “perde-dor”) – um espaço socioeconômico que não provê adequadamente a maioria de seus habitantes, particularmente as mulheres. Novamente, os turistas sexuais primeiro...A brasileira quer um americano, pois nós temos mais status e podemos dar uma vida bem melhor a ela.Existem tantas garotas de programa no Brasil porque, francamente, o país é um desastre. Os políticos corruptos roubam tudo, não tem emprego, está todo mundo pobre... gente morrendo de fome... Então, a maioria das

(...) muitas das que tiveram o ingresso recusado certamente não estavam viajando com o objetivo de trabalhar na prostituição. Há uma imagem cristali-zada sobre as brasileiras de certas camadas sociais, cores e estilo corporais que as constrói como prostitutas. Esse estereótipo permeia o clima de recepção das brasileiras no exterior, informando o tratamento humilhante a elas concedido (grifo nosso, PISCITEllI, 2006: 65).

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garotas de programa faz o que faz, pois é isso ou a morte. São mulheres normais que fazem programas porque o Brasil é uma merda.” (BLAN-CHETTE, 2005: 256-258).

8 - CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Crianças (0-11 anos) e adolescentes (12-17 anos) são considerados pessoas em desenvolvimento, por isto necessitando de ‘proteção especial’ conforme determina artigo 227, da Constituição: É dever da família, da socie-dade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, vio-lência, crueldade e opressão. (grifo nosso).

Como bem explica MACHAdO (2003: 123):

(...) a proteção especial conferida constitucionalmente a crianças e adoles-centes se baseia no reconhecimento de que estes ostentam condição peculiar em relação aos adultos (a condição de seres humanos em fase de desenvol-vimento de suas potencialidades) e no reconhecimento de que merecem tra-tamento mais abrangente e efetivo porque, à sua condição de seres diversos dos adultos, soma-se a maior vulnerabilidade deles em relação aos seres humanos adultos.

Nesse contexto, é importante ressaltar que, quanto às crianças e aos adolescentes, estes estão vulneráveis (ou em uma situação geracional de vul-nerabilidade) até completar 18 anos, independentemente de outras discri-minações, violações ou preconceitos a que ainda podem estar sujeitos. A necessidade da tutela especial também foi reconhecida pelo próprio Pro-tocolo de Palermo sobre Tráfico de Pessoas, quando estipula no seu artigo 3º, alínea c), que, quanto às pessoas com idade inferior a dezoito anos ainda (definição do termo criança no âmbito internacional, artigo 3º, alínea d), não há o que se falar em consentimento:

O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de uma criança para fins de exploração serão considerados “tráfico de pessoas” mesmo que não envolvam nenhum dos meios referidos da alínea a) do presente Artigo.

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Assim, estratégias efetivas e eficazes (quanto ao resultado) e eficientes (quanto à relação custo-benefício) de enfrentamento ao tráfico de crianças e adolescentes não necessariamente podem ser consideradas ‘boas práti-cas’ para o enfrentamento de tráfico de pessoas adultas. Adultos, em con-sideração ao respeito dos seus direitos humanos, devem, em princípio, ser considerados capazes de tomar decisões autônomas, reconhecendo o seu discernimento e a sua ilimitada liberdade do direito de ir e vir. A aborda-gem, na prevenção, no atendimento e na repressão do tráfico de crianças e adolescentes, deve ser diferenciada dos adultos e não padronizada (CAM-PEllO R. AlMEIdA & NEdERSTIGT, 2007).

Um caso que exemplifica a extrema vulnerabilidade das crianças e dos adolescentes no deslocamento entre fronteiras e ao mesmo tempo mostra a confusa mistura na mídia dos conceitos de tráfico, contrabando de pessoas e migração (irregular) é a chamada ‘Operação Cegonha’: uma ação policial coordenada entre Brasil e os Estados Unidos na qual, em fevereiro de 2006, foi desfeita uma suposta rede de tráfico de crianças:

Agência Estado, 10 de fevereiro de 2006 PF prende 17 pessoas acusadas de traficar crianças 301(...) A quadrilha agia desde 2002 e estava sendo investigada pela PF desde outubro do ano passado. Ela organizava um esquema de aliciamento de pessoas que a PF chama de matrizes e cegonhas. As matrizes, de bom nível socioeconômico, como profissionais liberais e funcionários públicos, registram as crianças enviadas com nomes e dados fraudulentos.

Com a certidão de nascimento e a falsificação de outros documentos, a matriz pedia o visto no consulado americano do Rio para viajar para os Estados Unidos com a família de férias. Como não têm dificuldade para conseguir o visto, muitas vezes essas matrizes viajavam elas mesmas com as crianças, fazendo papel de cegonha. Para isso, recebiam da quadrilha cerca de US$ 3 mil. Outras vezes, essas matrizes assinavam autorizações para que outras cegonhas viajassem com as crianças. Essas cegonhas, geralmente

301 Agência Estado, 10 de fevereiro de 2006, PF prende 17 pessoas acusadas de traficar crianças. (http://www.projetotrama.org.br/trafico_pessoas/noticia1.asp?id=172 acessado em 27-05-2008). Para notíciais em outros jornais com a mesma conotação: Jornal O Globo, 10 de fevereiro de 2006, p. 1 e 13; Jornal do Brasil, 10 de fevereiro de 2006, p. A6.

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pessoas interessadas na viagem, eram recompensadas com a passagem e cerca de US$ 500. Os criminosos também traficavam adultos. Aproveitando a farsa, eles en-viavam brasileiras ávidas pelo “sonho americano” como babás. Segundo o delegado, quando não podiam pagar, alguns deles eram obrigados a traba-lhos forçados em solo americano para os integrantes do grupo. (...)Presa ontem, em São Paulo, a professora Maria Júlia Silva de Oliveira foi identificada como a segunda na hierarquia do grupo. Ela seria responsável por forjar documentos e aliciar matrizes e cegonhas. Ela também receberia na capital paulista as crianças para fazê-las, em uma espécie de estágio de três dias, decorar a falsa história familiar e conhecer os responsáveis impos-tores. Em gravações telefônicas, os criminosos contam que modificavam a aparência das crianças para entrevistas no consulado do Rio, chegando a usar maquiagem. (...) (AGÊNCIA ESTADO, 2006).

Em outubro de 2006 o Superior Tribunal de Justiça, entretanto, pu-blica uma nota de imprensa relacionados ao mesmo caso no seu site:

(...) A Operação Cegonha, deflagrada em fevereiro de 2006 pela Polícia Federal (PF), resultou na prisão de envolvidos em seis estados brasileiros: Ceará, Tocantins, São Paulo, Rio de Janeiro, Maranhão e Bahia. Eles foram acusados de enviar crianças para os EUA para que encontrassem os pais, imigrantes ilegais.De acordo com as investigações da PF, a quadrilha cobrava de US$ 13 mil a US$ 15 mil por criança para providenciar novos documentos e transportá-la com falsos pais ao exterior. Em alguns casos, as crianças eram registradas como filhos dos integrantes do grupo. As investigações indicam o envolvimento de cartórios no esquema. Além das crianças, a quadrilha transportava pessoas interessadas em ar-ranjar trabalho nos EUA. Os membros do grupo se encarregavam de falsificar carteiras de trabalho, e os interessados viajavam como babás das crianças. (...) (STJ, 2006).

Por meio de uma leitura atenciosa das diferentes descrições do mes-mo caso concreto, bem como a partir da tabela (pág.300) que diferencia os conceitos de tráfico, contrabando de pessoas e migração (irregular), qual é o conceito mais adequado para caracterizar as atividades das ‘ce-gonhas’? Visto que as crianças entraram nos Estados Unidos por meio do auxílio pago de terceiros, utilizando-se de meios ilegais (falsificação de documentos), para serem entregues aos seus pais que viviam irregular-

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mente naquele país, as atividades das cegonhas provavelmente devem ser caracterizadas como contrabando de crianças e adolescentes e não como tráfico humano.

Considerando o caráter transnacional deste caso, qual poderia ser o interesse dos países envolvidos, principalmente o país de destino, em ca-racterizar o caso como tráfico de pessoas? Sob a bandeira de combate ao tráfico de pessoas, considerado uma grave violação de direitos humanos que mobiliza facilmente o interesse da mídia e da opinião pública, as con-sequências mais prováveis e bem aceitas desta ‘Operação Cegonha’ são um controle mais intensivo das fronteiras e uma repressão da imigrarão irregular nos Estados Unidos (CAMPEllO R. AlMEIdA & NEdERS-TIGT, 2007). O fato dos pais, que viviam irregularmente nos Estados Unidos, terem direito, bem como os seus filhos, à reunião e convivência familiar, num país que talvez melhor atenda às expectativas e possibilida-des socioecônomicas, não foi noticiado. Nem a probabilidade dos pais terem somente recorrido às atividades ilegais das cegonhas, em razão da inexistência de possibilidades regulares e seguras da entrada dos seus fi-lhos nos Estados Unidos. É fundamental entender por que um migrante escolhera mudar de país de forma irregular enfrentado circunstâncias tão adversas e de grande risco. O que não deixa margem de dúvida é que a migração irregular torna o migrante vulnerável à exploração e abuso.

9 - A CILADA DO ENFRENTAMENTO

Após a abordagem das situações de vulnerabilidade em que vários grupos e pessoas encontram-se (situações muitas das vezes inter-relacio-nadas e reforçando uma à outra), é importante fazer alguns avisos, que podem identificar uma grande cilada no enfrentamento ao tráfico de pes-soas. Isto porque há estratégias de enfrentamento que violam os direitos humanos. Pode acontecer que, sob a bandeira do enfrentamento do tráfico de pessoas, sejam executadas medidas e lançadas campanhas totalmente contrárias aos interesses das pessoas traficadas ou em situação de vulnera-bilidade para serem traficadas (CAMPEllO R. AlMEIdA & NEdERS-TIGT, 2007).

O próprio Protocolo de Palermo sobre Tráfico de Pessoas, mesmo sendo muito inovador, faz parte de uma Convenção que objetiva a repressão do crime transnacional organizado. Porém, reprimir o crime (ou a migração)

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talvez não seja a estratégia mais efetiva de enfrentar o tráfico de pessoas, que, acima de tudo, é uma consequência de problemas socioeconômicos estruturais, do mercado capitalista e suas leis de oferta e demanda, e ade-mais um resultado da globalização e da desigualdade. Tráfico de pessoas deve ser entendido como causa e consequência de violações de direitos humanos e por isso, a repressão criminal não resolverá o problema, sem um enfoque no empoderamento das pessoas em situação de vulnerabilida-de para terem seus direitos humanos violados (GAATW, 2006). É neces-sário um enfrentamento efetivo das causas-raízes dessas violações (como as desigualdades oriundas das diferenças em condição de cidadania, de gênero, de raça e de idade).

A Convenção Internacional da ONU sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias (1990)302 que em-podera os migrantes e inclusive reconhece certos direitos de migrantes indocumentados até hoje não foi ratificada303 por nenhum país de destino de tráfico de pessoas na Europa ou América do Norte (e nem pelo Brasil). Mesmo que, de outro lado, quase todos estes países ratificaram o Protocolo de Palermo sobre Tráfico de Pessoas. No entanto, a Convenção do Trabalhador Migrante é considerada um dos tratados mais importantes sobre direitos humanos em vigor pela própria ONU, até porque possui um comitê pró-prio para fiscalizar sua implementação – e até aceita queixas individuais, quando o país ratificante reconhece explicitamente esta competência es-pecífica do comitê, conforme seu artigo 77. Paradoxalmente, as medidas protagonizadoras, que empoderam migrantes em situação de maior vulne-rabilidade (isto é: estar indocumentado, sem os documentos e/ou visto e/ou autorização de trabalho, exigidos pelo país de destino), ainda não pare-cem ser reconhecidas como medidas efetivas e eficazes de enfrentamento ao tráfico de pessoas (PROJETO TRAMA, 2008). Com certeza em razão da política dos países mais desenvolvidos e de destino que querem conter a migração da pobreza e controlar a qualidade profissional dos fluxos que passam por suas fronteiras.

302 http://www.december18.net/web/general/UNconventionPortugese.pdf acessa-do em 27-05-2008.303 Para verificar o atual número e os países que ratificaram este tratado, procurar em: http://www2.ohchr.org/english/bodies/ratification/13.htm acessado em 27-05-2008.

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A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre Emigra-ção Ilegal, no seu relatório final (2006), identifica que os Estados Unidos pressionaram o México a pedir um visto aos Brasileiros que querem viajar para este país, com o objetivo implícito de reprimir os fluxos irregulares de brasileiros que usam o território Mexicano para entrar nos Estados Unidos (CPMI Emigração Ilegal, 2006, p. 100-109; CAMPEllO R. AlMEIdA & NEdERSTIGT, 2007). Assim, a situação de vulnerabilidade é mantida, até porque nos Estados Unidos há um debate sobre a criminalização da estadia irregular neste país, que já levantou muros e grades que separam os Estados Unidos do México.

Com as palavras reveladoras de Gabriel Garcia, chefe da unidade de combate ao tráfico humano do departamento de Segurança Nacional e Controle de Fronteiras dos Estados Unidos, em entrevista com a jornalista Marília Martins, correspondente do Globo em Nova York:

(O GlOBO, 2007). Será que dificultar a migração, por exemplo, é mesmo tão efetivo e eficaz para enfrentar o tráfico de pessoas? Principal-mente quando consideramos os efeitos negativos para os direitos huma-nos das pessoas e grupos em situação de vulnerabilidade, especialmente o direito humano de ir e vir, consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos:

Artigo 13I)Todo homem tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das fronteiras de cada Estado; II) Todo o homem tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o pró-prio, e a este regressar.

Estratégias de enfrentamento ao tráfico de pessoas devem respeitar, sempre, os direitos humanos das pessoas e grupos em situação de vulnera-bilidade para serem traficados. Uma maneira para garantir isto, é envolvê-las diretamente na elaboração, execução e avaliação destas estratégias.

O Brasil reduziu o número total de imigrantes ilegais para os EUA por causa da mudança de legislação mexicana, que passou a exigir vistos para brasileiros, dificultando assim o acesso à principal rota para entrada em território americano. (...) Mas percebemos um au-mento no número de casos de vítimas de tráfico com vistas à exploração sexual.

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ZIMMERMAN, Cathy & WATTS, Charlotte. WHO ethical and safety recommendations for interviewing trafficked women. World Health Or-ganization, 2003. (http://www.who.int/gender/documents/en/final%20recommendations%2023%20oct.pdf acessado em 27-05-2008).

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MeNÇÃO HONROSa

eSTUdaNTeS (2)

TRÁFICO DE PESSOAS: PROPOSIÇÕES PARA UMA ATUAÇÃO GOVERNAMENTAL CONSOANTE À

DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS

Raquel Negreiros Silva Lima

INTRODUÇÃO

O tráfico de pessoas nunca foi levado a sério no Brasil.Essa é a triste conclusão a que se chega quando confrontamos a

legislação brasileira com os diplomas internacionais: no Código Penal pá-trio, o tráfico de pessoas está tipificado como crime que não envolve enga-no, abuso, exploração ou coação. Trata-se apenas de hipótese qualificada de favorecimento da prostituição. O legislador brasileiro achou por bem ignorar o tráfico para remoção de órgãos, para trabalhos forçados, para casamento ou para outra atividade que não a prostituição, como se fossem menos frequentes ou irrelevantes.

Evidentemente paira um pânico moral relacionado à prostituição, o que impede o estudo aprofundado da temática no Brasil e resulta em uma punição extremamente deficitária dos traficantes. Constata-se, aqui, a irresponsabilidade do Brasil perante a ratificação do Protocolo Adicional à Convenção de Palermo para prevenir, reprimir e punir o Tráfico de Pessoas e o desca-so com o compromisso de combater a atividade criminosa, firmado junto à comunidade internacional.

Em meio a todo esse caos, em que o tráfico contido no Código Penal não corresponde ao tráfico internacionalmente considerado, a harmonia só será possível quando enfrentarmos as falhas da legislação, apontando soluções para o aprimoramento dos mecanismos de contenção do pro-blema.

Ademais, o tráfico de pessoas não preocupa simplesmente por ser atividade ilícita que movimenta grandes somas de dinheiro. Seu efeito mais nefasto é o de atentar contra a liberdade e a dignidade humanas. O so-

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frimento causado à pessoa traficada é o que confere maior relevância ao delito e uma atitude para reverter esse quadro pode ser entendida como forma de consideração e respeito pelas milhares de pessoas que sofrem, que já sofreram situação de tráfico ou, ainda, por aquelas em situação de vulnerabilidade, para que não tenham a mesma má sorte de tornarem-se vítimas.

Torna-se, necessária, pois, a inclusão do tema na pauta principal de discussões do Brasil, dado que não há incriminação adequada da conduta dos traficantes e que são frágeis, ainda, as disposições sobre a proteção e a assistência destinadas às vítimas. Nesse sentido, toma relevo, no Brasil, a apreciação das iniciativas governamentais realizadas até o momento para que se possa conhecer o grau de comprometimento do país em reverter a atual situação do problema e tratá-lo com a devida seriedade.

Em vista desses motivos, passa-se a empreender um estudo da Po-lítica Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e do respectivo Plano Nacional de ação, a partir do espectro de análise da legislação penal existente, dos fatores que impulsionam os números do tráfico, das solu-ções para o problema e da abrangência da responsabilidade do governo brasileiro.

1 - JUSTIFICATIVA

dependendo da conceituação que se dê ao tráfico de pessoas, pode-se dizer que o fenômeno data de milênios. Entretanto, por mais que se possa fazer uma analogia do tráfico de pessoas atual com algumas manei-ras históricas de exploração da pessoa, não se pode deixar de reconhecer que o fenômeno vivenciado hoje é impulsionado por fatores muito diver-sos daqueles que levavam às antigas formas de exploração, tendo, por isso, características muito peculiares.

A configuração atual do crime relaciona-se intimamente com a glo-balização, com as necessidades que o modo de produção excludente gera, com as expectativas de consumo criadas e com a intensificação do fluxo de migrantes. Assim, a abordagem do crime não pode ser feita de maneira simplória, associando-o a algumas causas comumente elencadas e a discur-sos políticos muitas vezes impregnados de interesses que não corroboram a proteção dos direitos Humanos.

Para que sejam traçados planos de proteção da pessoa que efetiva-

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mente resguardem os cidadãos do tráfico de pessoas, é necessário, primei-ramente, que a cooperação internacional se intensifique, para que a pessoa traficada não seja tratada de forma diferenciada e possa gozar das mesmas prerrogativas e garantias que têm os cidadãos do país onde se encontra. É necessário que a pessoa seja vista como cidadã mundial, que tem direito a um tratamento digno em qualquer lugar do planeta e que merece a prote-ção de todas as nações.

Por outro lado, todos os esforços para conter o tráfico de pessoas perpassam também a necessidade de que os governos dos países que têm seus nacionais traficados imponham-se na seara internacional para afirmar o direito de seus cidadãos de serem protegidos, assistidos e ouvidos sobre a experiência de tráfico vivida. É inadmissível a deportação imediata des-sas pessoas e o tratamento delas como criminosas. Ademais, tal postura dos países é contraproducente frente aos interesses de conter o tráfico, visto que a colaboração espontânea das pessoas traficadas durante as in-vestigações é de grande valia para a desestruturação das redes de tráfico de pessoas existentes.

É com inspiração nesses pressupostos básicos que o presente traba-lho desenvolve-se. As premissas mencionadas são a base de toda a inves-tigação que se faz da legislação, dos fatores que estimulam o tráfico, dos limites e das soluções para o problema. A pesquisa em epígrafe mostra-se ainda mais relevante e oportuna quando se busca debater a política gover-namental nacional sobre o tema e o alcance de suas metas.

A hipótese de trabalho seria, portanto, a construção de um modelo de controle do tráfico consciente de sua ampla responsabilidade em pro-teger os direitos Humanos e da importância da participação social para sua efetividade; ainda que o objetivo descrito deva ser perseguido a partir de metas provisórias que, progressivamente, venham a se aperfeiçoar. O colorido da política antitráfico brasileira deve ser feito a partir do esboço traçado no Plano Nacional, com a participação direta de toda a sociedade. Essa é a tônica que orienta o presente estudo.

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2 - LEGISLAÇÃO PENAL

Para que uma atividade seja considerada crime, a ordem jurídica exige que seja feita uma delimitação do seu espectro de abrangência. O direito Penal é marcado por princípios que buscam preservar o arco de liberdades do cidadão.

A legalidade é o comando que limita a jurisdição penal, a qual deverá ser chancelada pela taxatividade. A par desse princípio, segue o zelo do intérprete, o qual não poderá implementar a analogia prejudicial à parte, sob pena de ferir a lógica democrática do sistema penal garantista.

Seguindo essa linha de raciocínio, é preciso que se determine com o máximo de precisão possível o sentido da expressão “tráfico de pessoas” para, então, proceder-se à incriminação apurada dos sujeitos ativos dos delitos respectivos.

No âmbito do direito Internacional, é o Protocolo Adicional à Con-venção de Palermo para prevenir, suprimir e punir o tráfico de pessoas, especialmente mulheres e crianças (2000)304 que define o crime em questão.

de acordo com tal diploma normativo, tráfico de pessoas seria “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração.”

destaque-se que os componentes do engano, da coação, da explora-ção e do abuso são essenciais para que se possa caracterizar ou não uma situação de tráfico. Ademais, não se deve confundir o tráfico de pessoas com a migração ilegal, também chamada contrabando de migrantes, visto que nessa última não há engano, exploração ou qualquer forma de abuso da pessoa que migra.

Os requisitos do tráfico exigidos pelo Protocolo de Palermo são cru-ciais para que se inicie uma análise da legislação brasileira sobre o tema.

O Código Penal Brasileiro considera Tráfico Internacional de Pes-

304 A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transacional e seus Protocolos Adicionais em português podem ser acessados em: http://www.unodc.org/pdf/brazil/Convencao%20Palermo%20Portugues.doc.

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soas a promoção, intermediação ou facilitação da entrada ou da saída do país de pessoa que venha a exercer a prostituição. Paralelamente, aduz que a promoção, intermediação ou facilitação, no território nacional, do recru-tamento, do transporte, do alojamento ou do acolhimento da pessoa que venha a exercer a prostituição seria Tráfico Interno de Pessoas.305

de plano, é verificável a incriminação equivocada do delito em ques-tão. Nenhum dos dispositivos cuida dos requisitos descritos em Palermo para a configuração do tráfico. Infelizmente, o Código Penal trata de hipó-tese de favorecimento da prostituição306 qualificado pelo deslocamento na-cional ou internacional da vítima; o auxílio prestado pelos intermediadores da migração ilegal, por sua vez, não pode ser criminalizado como tráfico de pessoas, por não envolver qualquer componente intrínseco de abuso, engano, coação ou exploração.

Além disso, o tipo penal restringe-se a tratar da questão da prostitui-ção, perpetuando ideias de cunho moralista que associam, necessariamen-te, o tráfico de pessoas à atividade. A visão apresentada pelo Código acaba fazendo com que a sociedade reduza sua preocupação com o problema, dada a moral média que tende a desconsiderar a humanidade e a dignidade daqueles que se prostituem.

Os dispositivos em debate pecam por excluírem do universo de tute-la uma série de pessoas que são traficadas para outras ocupações, como a remoção de órgãos, casamento ou outros fins.

dessarte, por mais que haja a incriminação da redução de alguém a condição análoga à de escravo,307 esse tipo penal cuida apenas do bem ju-rídico liberdade individual, não contemplando em si a reprovabilidade da retirada do ofendido de sua própria terra, o que acarreta, evidentemente, maior carga de sofrimento.

Pode-se ainda lembrar dos tipos penais do sequestro e do cárcere privado. No entanto, a proteção ali conferida é insuficiente por não con-templar de maneira holística os componentes que a conduta revela.

305 Para apreciação do inteiro teor dos dispositivos penais referentes ao tráfico de pessoas, vide Art. 231 e 231-A do CPB. disponíveis em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm. 306 Favorecimento da prostituição Art. 228 - Induzir ou atrair alguém à prostituição, facilitá-la ou impedir que alguém a abandone: Pena - reclusão, de dois a cinco anos.307 Art. 149 do CPB.

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Ressalve-se, contudo, que a distinção explícita do tráfico em interna-cional e interno é dos poucos pontos que merecem aplauso na legislação de tráfico do país. diga-se de passagem, a explicitação dessa diferença na legislação e na política do governo brasileiro é fundamental para que se possa cuidar da temática do tráfico, vez que um descuido sobre esse tó-pico poderia deixar impunes vários agentes que atuam traficando pessoas dentro do território nacional.

Permanecendo a legislação atual sem as devidas modificações, o Bra-sil estará se furtando ao compromisso firmado internacionalmente para combater o tráfico de pessoas. Como será oportunamente abordado, esse comportamento omissivo do Estado em determinar as devidas providên-cias repressivas do crime enseja responsabilização internacional. Por esse motivo, trata-se de providência urgente a tipificação adequada do delito em discussão.

A questão do consentimento também enseja maiores cuidados nesse contexto. Até o início do século XX, os estudiosos do tráfico tendiam a desconfigurar o crime quando a vítima tivesse consentido sair do país ou mudar de região para prostituir-se, casar-se ou para outra atividade. Contu-do a corrente predominante atual afirma ser o consentimento irrelevante para a configuração do delito.

Não se pode afirmar, nos dias de hoje, que o consentimento da pes-soa traficada desconfigura o tráfico, porque essa atitude vulnerabilizaria ainda mais as vítimas, as quais deixariam de contar com a colaboração do Estado em que se encontram. Ademais, tal argumento romperia bru-talmente “com o paradigma das Convenções sobre escravidão e práticas análogas à escravidão e sobre a exploração da prostituição”.308 Necessário, pois, que a irrelevância do consentimento não seja tratada apenas na Polí-tica de Governo, mas que seja positivada na legislação do tráfico.

destaque-se que o consenso quanto ao conceito de tráfico também é de enorme relevância para a criação de acordos de cooperação inter-nacional entre os países, iniciativa crucial para o avanço das discussões internacionais sobre o tema.

Caso os governos realmente comprometam-se com a causa, não apenas os direitos humanos das pessoas traficadas serão respeitados, mas

308 Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. CASTIlHO (2006, p.15)

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também se abrirão portas para uma possível ampliação do escopo das medidas de proteção de situações fático-jurídicas relevantes como a dos migrantes.

3 - UM ENIGMA: OS REAIS FATORES DE TRÁFICO NO BRASIL

Normalmente enumeram-se como fatores confluentes para o tráfico aqueles relacionados às necessidades econômico sociais, como a pobreza, o desemprego e a mecanização da produção industrial e, paralelamente, diz-se que a feminização da pobreza e da migração, os conflitos armados, a discriminação de gênero e as práticas culturais e religiosas309 também influenciam os números do tráfico. 310

Entretanto, apesar de esses serem considerados os principais mo-tivos para o tráfico internacional de pessoas, não se tem verificado a sua incidência quando da investigação da situação dos brasileiros deportados ou não admitidos.

de acordo com a parte 2, da Pesquisa em Tráfico de Pessoas, a maio-ria das pessoas entrevistadas possuía grau razoável de instrução e não pas-sava por necessidades prementes quando optou por migrar. Assim, com base nos resultados apresentados pela pesquisa, seria razoável concluir que o fator preponderante para o tráfico de brasileiros é diverso daqueles comumente elencados. Mais: poder-se-ia supor que o fator primordial de-tráfico no Brasil seria a busca de níveis mais elevados de consumo, dada a competição que o sistema capitalista impõe e o desejo de auferir renda mais elevada.

Por outro lado, os resultados também ensejam um questionamento sobre a metodologia de pesquisa aplicada. Não se sabe se as circunstâncias em que foram coletados os dados foram inadequadas, dado o constrangi-

309 Segundo o manual do GAATW, rituais como o trokosi, em Gana, ou a similar de-vadasi e o davaki, na Índia, são práticas de escravização institucionalizadas. No caso específico do trokosi, refere-se à entrega de menina virgem da família para um san-tuário. Nesse local ela será ligada a sacerdote e forçada a passar o resto de sua vida fornecendo-lhe serviços domésticos e sexuais sem nenhum pagamento, sob pena de ser chicoteada ou privada de alimentos. NEHMÉ, lIMA e SEABRA (2008)310 GAATW (2006, p.38)

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mento e o abalo emocional dos deportados e não admitidos. Também há dúvidas sobre o fato de as pessoas vítimas do tráfico terem ou não sido silenciadas pelas ameaças dos traficantes ou pelo medo de serem incrimi-nadas por suas condutas.

dessa forma, é imprescindível que sejam repensados os métodos de pesquisa empregados e também os locais de realização das investigações, visto que o universo analisado até o momento foi o do aeroporto de Gua-rulhos/SP e há uma série de pessoas que retornam por outros aeroportos, por via marítima ou terrestre.

Procedendo-se dessa maneira, poderá ser dada maior segurança aos dados coletados e será possível a descoberta de um universo de pessoas motivadas por necessidades de sobrevivência, o que até então não fora identificável. Também facilita-se a apreensão de dados sobre os verda-deiros números do tráfico no país, se as pesquisas tomarem os devidos cuidados de distinguir as hipóteses em que incidem ou não os requisitos do tráfico.

É importante mencionar que, sejam quais forem as motivações que levam ao tráfico no Brasil e a quantidade estimada de brasileiros traficados, deve-se tratar da temática de maneira abrangente e criteriosa.

4 - A SOLUÇÃO PARA O PROBLEMA: O FORTALECIMENTO DA CIDADANIA E A CONSCIENTIZAÇÃO DOS AGENTES PÚBLICOS ENVOLVIDOS

O crime em estudo cuida de uma realidade complexa que se inicia no domicílio da pessoa traficada, nas limitações que a encorajam a migrar, perpassa o tempo em que ela é traficada e continua com o retorno à terra de origem.

Essa realidade holística exige que sejam tomadas providências estru-turais para a melhora da qualidade de vida dos cidadãos em seus próprios-países. Bons níveis de assistência, salário digno, segurança e educação são a pedra de toque para que uma pessoa queira continuar onde vive.

Uma política antitráfico só será verdadeiramente eficiente se buscar também melhorar a qualidade de vida da população em geral. Sem essa preocupação maior, não mudará o quadro de reincidência das pessoas tra-ficadas, já que persistem as esperanças de reduzir as necessidades ou de ampliar a capacidade de consumo.

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Quanto à política especializada para conter o tráfico de pessoas, não há dúvidas de que a solução para o problema em debate é o fortalecimento da cidadania ativa dos civis e a conscientização dos operadores da Polícia e do Judiciário sobre a questão do tráfico.

No tocante à formação e conscientização dos membros da fiscaliza-ção e dos operadores do direito, é imprescindível que faça parte da forma-ção deles, para o exercício de seus cargos, o conhecimento do tema tráfico de pessoas, das nuances do crime e das situações que ensejam a tipificação do delito. O olhar mais acurado do juiz, da Polícia e do Ministério Público é pressuposto para que o crime seja corretamente identificado e apenado.

Ademais, é indispensável que os funcionários dos consulados bra-sileiros no exterior sejam treinados para identificar situações de tráfico e para dar assistência integral às vítimas, incluindo-se assistência jurídica, para que não ocorram abusos ou descasos por parte dos órgãos incumb-dos de reprimir o tráfico nos outros países.

Já no que concerne ao trabalho a ser desenvolvido nas comunida-des, é fundamental a promoção de campanhas e de cursos que busquem conscientizar os cidadãos dos seus direitos em geral, incluindo-se nesse rol a proteção dos direitos humanos das pessoas em situação de tráfico. Assim é que a criação de balcões de direitos e de cursos de capacitação em direitos humanos e cidadania podem ser uma excelente ferramenta para a introdução da temática do tráfico nas comunidades. Além do que, a for-mação de agentes multiplicadores que busquem atuar na comunidade para prevenir o tráfico é uma boa consequência que esses cursos de formação podem trazer.

Nessa perspectiva, a união de esforços entre as universidades e a co-munidade também pode ser uma forma de viabilizar a proposta menciona-da. Podem ser criados projetos de extensão universitária que possibilitem a disseminação do conhecimento de direitos produzido na seara acadêmica para a comunidade. Isso sem falar no crescimento pessoal e intelectual dos alunos frente aos questionamentos e aos depoimentos feitos pelos mem-bros da comunidade sobre situações de tráfico vividas naquele local.311

311 O projeto de extensão universitária da Universidade de Brasília (UnB) Promotoras Legais Populares é um exemplo de iniciativa que pode ser aprimorada para que se atinja o objetivo de prevenção do tráfico de pessoas. Ele proporciona um curso anual para mulheres em que são ministrados temas variados como direito de Família, do Tra-

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Também se deve alertar a população para os perigos que os agencia-dores criam e incentivar a busca de informações perante a Polícia Federal quando se for viajar para trabalhar no exterior com o auxílio de terceiros.

O papel dos consulados, de suporte e auxílio aos brasileiros no exte-rior, é outra informação que deve ser amplamente difundida, bem como o dever do governo de afirmar os direitos dos seus nacionais que se encon-tram no exterior.

Enfim, além das possibilidades propostas, podem-se formular inú-meras outras que perpassem o fortalecimento da cidadania. O incentivo à atuação na comunidade é fundamental para que os brasileiros tornem a sua cidadania mais ativa e também serve para fortalecê-los enquanto povo, como sujeitos coletivos312 que atuam em busca da efetivação dos direitos já reconhecidos e da criação de novos direitos.

Conforme a cidadania dos brasileiros se fortalece, as esperanças de construir uma vida melhor no país ampliam-se e o desejo de migrar perde força juntamente com os riscos de tráfico existentes.

balho, saúde, moradia, violência doméstica, homoafetividade, prevenção à dST/Aids e outros, que surgem das demandas de cada turma. Busca-se, por meio dele, estimular a cidadania pelo conhecimento e reduzir as vulnerabilidades sociais que envolvem a situação feminina na sociedade. Iniciativas como essa podem servir de molde para a criação de cursos específicos sobre tráfico de pessoas nas regiões vulneráveis do país, gerando assim uma proteção mais efetiva aos cidadãos frente aos riscos que o tráfico inaugura. Para mais informações sobre o projeto consultar: AlVES, Raissa Roussenq; GAlVÃO, laila Maia; lIMA, Raquel Negreiros Silva; MIRANdA, Adriana Andrade. direitos humanos e gênero: capacitação em noções de direito e cidadania – O projeto de extensão universitária Promotoras legais Populares da Faculdade de direito da UnB. Texto feito para o Workshop Nacional de Educação Jurídica Popular promovido pelo GAPA/BA, com o apoio da Fundação Ford; TOKARSKI, Carolina Pereira. A extensão nos cursos de direito à luz do humanismo dialético: A experiência do projeto Promotoras Legais Populares. Monografia de final de curso. Universidade de Brasília. Brasília, 2007; e, FARIAS, Fabiana Perillo e TOKARSKI, Carolina Pereira. Promotoras Legais Populares. Coluna semanal UNB/Tribuna do Brasil – O direito Achado na Rua. Jornal Tribuna do Brasil. Publicado em 28 de junho de 2006.312 A expressão “Sujeitos coletivos de direitos” foi cunhada pelo professor José Geral-do de Sousa Jr., da Universidade de Brasília, que atualmente norteia a corrente teórica de “O direito achado na Rua”. SOUSA JR. (2002)

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5 - A RESPONSABILIDADE DO GOVERNO BRASILEIRO

É notório que, sendo a questão do tráfico de pessoas relacionada à pro-teção internacional dos direitos humanos, os países em que se encontram as pessoas traficadas são responsáveis pelo tratamento que se destina a elas.

Essa responsabilidade engloba os atos praticados pelos oficiais, sejam eles de migração, de patrulhas ou da Polícia. Soma-se aqui a responsabili-dade por leis que permitam ou encorajem práticas discriminatórias contra certos segmentos de estrangeiros e sobre a falha na acusação dos atores do tráfico e dos oficiais públicos que colaboram para as redes de tráfico.

Não se pode esquecer, também, da responsabilidade estatal pelo re-conhecimento da situação de tráfico e pela prestação de auxílio às pessoas no período pós-tráfico. 313

Além de todos esses fatores que ensejam responsabilização estatal, entende-se, atualmente, que os governos também são responsáveis pelos efeitos das políticas migratórias que conduzem. dessa forma, se o gover-no implanta políticas de cunho repressivo e gera um temor por parte das pessoas traficadas que as invisibiliza ainda mais e que torna mais difícil o controle do tráfico, ele também deve ser apenado pela atitude tomada.

Independentemente de essa responsabilização estar sendo realizada ou não no cenário internacional, dada a força política de alguns Estados recalcitrantes, o Brasil tem a obrigação de tomar todas as medidas neces-sárias para que o tráfico de pessoas seja controlado. Fortalecer os cidadãos brasileiros, buscar oferecer condições melhores de vida para a população e capacitar os oficiais e os magistrados para lidar com o tráfico são apenas uma parcela do que deve ser feito pelo país.

da mesma maneira que devem ser afirmados os direitos do cidadão brasileiro no exterior, devem ser dadas garantias aos estrangeiros que es-tão no Brasil para que eles não se intimidem e denunciem a situação de exploração e abuso que sofrem aqui.

A despeito das categorias didáticas que separam os países de oferta de pessoas daqueles que demandam pessoas para o tráfico, é comum a caracterização do lado da demanda como aquele em que há “comprado-res” de pessoas, o que engloba, por exemplo, turistas sexuais, donos de bordéis, clientes da prostituição, empregadores diversos e pessoas que se

313 GAATW (2006, p. 17)

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beneficiam com a venda de órgãos. O lado da oferta, por sua vez, trataria de áreas marginalizadas, carentes, regiões de conflitos armados e, em geral, países de economia fragilizada.

Todavia, apesar da divisão descrita, a realidade demonstra que as nações de economia mediana, como o Brasil, são tanto países de oferta como de demanda. Trata-se de países que atraem pessoas provenientes de países menos prósperos ou que passam por situações instáveis variadas, e perdem nacionais que são traficados para as grandes potências.

Esse posicionamento dúplice exige deles uma atuação em duas fren-tes: uma que afirme os direitos de seus cidadãos no exterior; e outra, que proteja e ampare os cidadãos para eles traficados e puna os traficantes. Nesse sentido, é necessário um esforço governamental no Brasil para averiguar quais são os segmentos de pessoas mais traficadas para o país, para que regiões o tráfico é mais incidente e quais são as atividades em que mais ocorre esse tráfico. A partir daí, deve ser oferecida assistência completa e acompanhamento jurídico para que essas pessoas possam se restabelecer da situação vivida e colaborar espontaneamente para que as redes do crime percam suas forças.

Esse é um passo essencial para que o posicionamento do Brasil com relação ao tráfico de pessoas adquira força política no cenário internacio-nal e para que a defesa dos direitos Humanos torne-se mais incisiva.

6 - A POLÍTICA NACIONAL DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS E O PLANO NACIONAL: PONTOS POSITIVOS E QUESTÕES QUE DEVEM SER APRIMORADAS

A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, apro-vada pelo decreto nº 5.948/2006, trouxe uma série de propostas inte-ressantes para promover e garantir a cidadania e os direitos Humanos e combater o crime. O decreto, como um todo, pauta-se pelas ideias de prevenção, repressão aos traficantes e auxílio às vítimas e esforça-se em abranger tanto o tráfico internacional quanto o interno.

Um ponto que está explícito no início do decreto é que o consenti-mento da vítima é irrelevante para a configuração do tráfico de pessoas.314 dessa forma, não há que se cogitar de qualquer desconfiguração do delito

314 decreto nº 5.948/2006, art. 2º, §7º.

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em função de preconceitos morais em relação à vítima, o que representa um avanço de suma importância.

Nesse mesmo sentido, a Política dispôs pela proteção da intimidade e da identidade das vítimas de tráfico, o que orientou o Plano e levou à fi-xação do princípio da não discriminação das vítimas por qualquer motivo, inclusive da realização de atividades consideradas imorais.

Ademais, a Política e o Plano esforçam-se em atuar de forma trans-disciplinar, para buscar informações sobre os reflexos das relações de gê-nero, entre etnias, entre faixas etárias e em relação a grupos com orien-tações sexuais diversas. Isso leva à suposição de que a complexidade dos fatores de tráfico é devidamente considerada para o estabelecimento de metas pelo governo.

No Plano, observa-se a preocupação em desenvolver metodologias de identificação das interfaces do tráfico com situações de violência ou vulnerabilidade, de trabalho degradante, de discriminação homofóbica, de crianças, adolescentes e jovens, de idosos e de portadores de HIV/Aids. Esse esforço empreendido para investigar, a fundo, os segmentos vulne-ráveis ao tráfico é central para o estabelecimento posterior de projetos de assistência e prevenção específicos para os grupos mais afetados pelo crime.

dentro dessa perspectiva, pode-se apontar a união entre as univer-sidades e o governo como estratégia para aprofundamento dos dados já pesquisados sobre tráfico de pessoas.

A questão da cooperação internacional bilateral ou multilateral tam-bém é trabalhada na Política, o que demonstra uma atitude governamental aberta ao diálogo e pronta para discutir e buscar soluções criativas para a redução do tráfico. Isso também ocorre no Plano quando refere-se ao fomento de debates com organizações internacionais atuantes nessa área.

A busca do aprimoramento da colaboração recíproca entre os países funciona ampliando a interação entre eles e dando eficácia extraterritorial às medidas processuais deles, o que se faz por meio de cartas rogatórias, de pedidos de assistência jurídica ou da homologação de sentença estrangei-ra.315 Essa postura aberta à cooperação assegura resultados mais rápidos e melhores nos processos judiciais, sendo extremamente viável para solucio-nar os problemas decorrentes do tráfico internacional de pessoas.

315 NEHMÉ, lIMA e SEABRA (2008, p. 09)

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A abertura ao diálogo ocorre ainda com relação às Organizações não - governamentais – ONGs e, dentro dessa perspectiva, entende-se que o governo superou em muito sua forma de tratar do tráfico. As ONGs são um ótimo meio que ele possui para chegar até as pessoas vítimas de tráfico e descobrir suas necessidades e suas histórias, sem intimidá-las. Por meio dessa parceria, facilita-se a delimitação das rotas do tráfico e o trabalho de repressão aos traficantes sem que se descuide de oferecer amparo e proteção às vítimas.

O caráter informal e acolhedor das ONGs proporciona não apenas informações necessárias às autoridades competentes, mas auxilia na cap-tação de demandas e na representação da vontade fortalecida das pessoas traficadas perante o poder público. As ONGs são um intermediário ne-cessário no diálogo travado entre o Estado e a sociedade e podem evitar que as vítimas retornem ao ciclo do tráfico fortalecendo a cidadania, a autonomia e a autoestima de cada uma delas. dessarte, também podem estimular a atuação das vítimas na prevenção ao tráfico, o que acaba por inter-relacionar os vetores da assistência e da prevenção e facilita o propó-sito de reinserção social das vítimas.

Algumas diretrizes da Política referem-se ao apoio, à mobilização social, ao fortalecimento da sociedade civil e à realização de campanhas socioeducativas de conscientização que considerem as diferentes reali-dades e linguagens regionais e locais. Nessa perspectiva, além de prever campanhas, o Plano aponta para uma necessidade primordial dentro desse fortalecimento da cidadania e da participação popular: o acesso a docu-mentos básicos. Por meio deles, as pessoas fortalecem o seu sentimento de cidadania e também passam a constar nos bancos de dados do país, o que facilita a sua identificação dentro e fora do território nacional e amplia o grau de proteção conferido a elas.

Além disso, o Plano busca incentivar linhas de pesquisa e extensão em universidades, o que, como apontado anteriormente, tende a gerar reflexos positivos tanto para a discussão do problema do tráfico quanto para a formação consciente dos alunos. Projetos de extensão para oferecer noções de direito e cidadania à comunidade podem ser adaptados para a temática do tráfico nas áreas mais atingidas, o que se destaca por ser uma alternativa eficaz, econômica e duplamente relevante para a comunidade e para a formação dos alunos das universidades.

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dentro da mesma perspectiva dos projetos de extensão, enquadra-se a proposta do Plano de fomentar comitês institucionais e balcões de direi-tos, ideia que pode superar o problema do tráfico por meio do esclareci-mento de direitos e da formação de multiplicadores do conhecimento.

A proposta contida no Plano Nacional para aperfeiçoamento da legislação vigente é deveras interessante no contexto brasileiro. Como trabalhado anteriormente, a tipificação penal do crime é deficitária por vários motivos, inclusive por considerar apenas o tráfico de pessoas para o fim de prostituição. Já no que tange à legislação esparsa, é indubitável que a proposta do Plano de investigar a normatização que disciplina o funcionamento de agências de recrutamento de trabalhadores, estudantes, esportistas, modelos, casamentos no Brasil e no exterior pode evidenciar lacunas de proteção a serem colmatadas pelo afazer legislativo, tornando mais seguras as opções de contratação e casamento oferecidas no país.

Ainda observando a legislação, é interessante a elaboração de ante-projeto de lei com proposta de uniformização do conceito de tráfico de pessoas, o qual poderia representar o início de um debate doutrinário que visualizasse limites e possibilidades para o conceito de tráfico em exame. Sabe-se que, por meio dessa atitude, também seria gerada maior segurança para os operadores do direito, fato que ocasionaria atuação mais incisiva dos órgãos públicos para frear o tráfico.

Abordando-se a meta de ampliar e consolidar serviços de recepção a brasileiros deportados e não admitidos nos principais pontos de entrada e saída do país, deve-se destacar a urgência dessa medida inclusive para a viabilização das pesquisas sobre os fatores reais de tráfico, os grupos vul-neráveis e outros questionamentos que se impõem ao tema.

Mais: existente a suspeita de não estarem sendo alcançadas as víti-mas do tráfico por meio dos métodos de pesquisa já utilizados, tem-se a exigência ainda maior de serem ampliados os esforços para a recepção de brasileiros em vários pontos de entrada e saída do país. Essa medida é útil não apenas para a aferição de dados mais seguros sobre as estatísticas do tráfico no país, mas também para a prevenção e a assistência às vítimas que transitam por esses locais.

Consoante a essa medida está a meta do Plano que visa a estrutu-ração de redes de abrigos a mulheres vítimas de violência e seus filhos, o que naturalmente deve ser estendido progressivamente às demais pessoas

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que retornem ao país em situação vulnerável. Todavia, para implementa-ção dessa estrutura de abrigos e também para a capacitação, publicidade e pesquisa seria central a criação de um fundo específico para financiar ações de enfrentamento ao tráfico de pessoas, estratégia que já está entre as metas do Plano.

Um tópico do Plano que também merece menção especial é a pre-ocupação com a capacitação de agentes para lidarem com o tráfico, in-cluindo-se agentes de saúde, agentes de promoção dos direitos da mulher, membros e servidores dos órgãos de justiça e segurança pública dos três níveis da Federação. Isso decorre da percepção de que, sem a devida ca-pacitação, qualquer esforço para o aperfeiçoamento da legislação será de pouca valia, sabendo-se que a visualização do tráfico para tipificação penal depende de uma ampliação do olhar do servidor ou do órgão público que examina a situação pelo prisma jurídico.

Caso o servidor ou o juiz não esteja preparado para lidar com situ-ações de tráfico, ou a denúncia pode deixar de ser feita, ou a tipificação do delito pode enveredar por dispositivos outros que não são capazes de abranger nem de punir devidamente a conduta dos traficantes. É esse o entendimento que foi consolidado na Política Nacional, a qual propôs a adoção do tema nos currículos de formação dos profissionais de seguran-ça pública e dos operadores do direito, bem como incentivou cursos de atualização permanente sobre o tema para essas pessoas.

Complementarmente, a capacitação dos agentes de saúde foi tam-bém considerada de grande valia para a recuperação integral das pessoas que viveram situação de tráfico.

Por outra perspectiva de ação, a tecnologia da rede mundial de computadores aparece no Plano Nacional como uma ferramenta para a sistematização de um banco de dados integrado que seja utilizado para prevenir e reprimir o tráfico. Essa é uma das estratégias que mais podem surtir efeitos a curto prazo. Contudo, ela requer que haja uma integração verdadeira entre o sistema de recepção da denúncias, “disque 100”, a cen-tral de atendimento à mulher, “180”, e o banco de informações da Polícia Federal para que possa funcionar bem. Ademais, essa meta aliada a uma investigação mais acurada dos desaparecimentos e do tráfico de pessoas pode levar a conclusões muito úteis no combate ao tráfico.

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No que tange à preocupação governamental em estabelecer linhas de ação focadas na proteção das mulheres e das crianças, entende-se ser legítima e essencial para solucionar o problema.

A atenção especial destinada às crianças decorre do status legal delas, da sua incapacidade absoluta ou relativa de exercer seus direitos e de suas necessidades diferenciadas de assistência, proteção e reinserção familiar e social. 316 Justifica-se, pois, a prevenção do tráfico nas escolas, para pais e alunos, especialmente nas regiões de fronteira.

A política especial para as mulheres é absolutamente necessária em vista da proeminência do número de mulheres traficadas em relação ao de homens, no Brasil e no mundo.

decerto que a remuneração desigual dos serviços prestados por ho-mens e mulheres gera disparidades no poder aquisitivo dos dois sexos. dessa forma, quando a discrepância financeira é tomada no contexto de competição e consumo que se vivencia hoje com o capitalismo, chega-se à conclusão de que o aliciamento pode impulsionar mais fortemente o segmento feminino, menos forte economicamente, a migrar em busca de padrões mais elevados de consumo.

Por outro lado, mesmo que a suposição não prospere, não há dúvida de que há fatores de gênero que realmente influenciam as estatísticas do tráfico e que, por esse motivo, deve-se tomar em consideração a proteção da mulher de maneira diferenciada.

Entretanto, o Plano aborda de maneira insuficiente a capacitação de funcionários da área consular. Apesar de a Política prever ampla assis-tência consular às vítimas de tráfico, o Plano não desenvolveu esse tópico da maneira devida e traçou como meta apenas um seminário informativo envolvendo os funcionários da área consular.

A assistência dos consulados brasileiros às vítimas do tráfico no ex-terior é de suma importância dentro da conformação de uma política an-titráfico. A primeira instância que deve estar preparada para dar todo o atendimento jurídico, psicológico e de saúde às vítimas deve ser o consula-do. Sem que isso ocorra, mais violações aos direitos das vítimas brasileiras poderão ser perpetradas.

316 GAATW ( 2006, p. 35)

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Cumpre ressaltar que a Política Nacional prevê proteção e assistência integral às vítimas independentemente de nacionalidade e de colaboração em processos judiciais. Todavia, o Plano não se ateve a esse ponto crucial da Política e deixou de prever algumas atitudes centradas na proteção dos estrangeiros traficados no Brasil. Ao longo do Plano, cuida-se de criar me-todologia de pesquisa que seja capaz de detectar segmentos de brasileiros vulneráveis ao tráfico, porém não há qualquer menção de realização dessas mesmas pesquisas com relação aos estrangeiros.

O governo esqueceu de dar a devida atenção aos estrangeiros e não relevou a importância de conhecer as suas nacionalidades, os fatores que os vulnerabilizam ao tráfico e a assistência especial que se deve dispensar a eles. Também passou em branco a proposta de fortalecimento de acordos bilaterais com os países de origem dessas pessoas, para que lhes fosse dado tratamento o mais digno possível pelo Brasil. Tal lacuna não pode deixar de ser colmatada, pois é exatamente a proteção dessas pessoas que forta-lece as reivindicações governamentais dos direitos humanos dos cidadãos brasileiros no exterior. Não há como se exigir a responsabilização dos outros governos pelos abusos perpetrados contra os nossos nacionais, se não é dado o devido tratamento aos estrangeiros no nosso país.

Como se depreende do exposto, a Política Nacional de Enfrentamen-to ao Tráfico de Pessoas foi capaz de absorver as propostas do movimento internacional de proteção dos direitos humanos, o que demonstra preocu-pação e responsabilidade do governo brasileiro no que tange à temática.

O Plano seguiu os moldes da Política, traçou metas bem definidas e repartiu responsabilidades entre os vários órgãos de governo. Essa busca por uma atuação conjunta e transdisciplinar é verdadeiramente relevante para a criação de estratégias efetivas para conter o tráfico de pessoas. Con-tudo, o Plano não se dedicou suficientemente ao papel dos consulados brasileiros no exterior e nem à pesquisa das condicionantes do tráfico de estrangeiros para o Brasil.

dessa maneira, lança-se, simultaneamente, um elogio ao trabalho do governo brasileiro e o desafio de superar os dois pontos insuficientes do plano de ação criado.

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7 - CONCLUSÃO

A abordagem do tráfico de pessoas no Brasil é instigante na medida em que são apresentados inúmeros problemas que demandam a proposi-ção de soluções criativas.

Evidenciado está que a legislação brasileira é deficitária e deve ser aprimorada. Também é notório que mesmo os dados das pesquisas recen-temente realizadas são suscetíveis de dúvidas e incertezas. Assim, há um enorme trabalho a ser feito para conhecer os fatores de tráfico no país e aprender a corrigi-los, reduzindo, consequentemente, as situações de vul-nerabilidade existentes.

A estratégia de ação deve partir da palavra cidadania. O fortaleci-mento da participação direta dos cidadãos na busca consciente de conter o tráfico é a pedra de toque para solução da questão.

Paralelamente, a capacitação dos profissionais envolvidos na temá-tica é pressuposto para a aplicação acurada da legislação de tráfico a ser implantada e para assistência integral das vítimas.

A atuação do governo brasileiro enseja responsabilização internacio-nal, dada a ratificação do Protocolo de Palermo. dessa forma, há que se colmatar as lacunas legislativas e suprir as omissões da política de governo para que se possa considerar o Brasil um país verdadeiramente compro-metido com a causa. Proceder-se às devidas medidas antitráfico é premissa para que o Brasil se imponha internacionalmente em defesa dos direitos humanos dos brasileiros traficados. Trata-se de postura coerente, que se converte em força política dentro das negociações internacionais.

Persiste, pois, o desafio de incrementar a legislação penal de tráfico e de ampliar as metas do Plano Nacional para que seja dada a devida rele-vância à atividade dos consulados e o tratamento correto aos estrangeiros traficados no Brasil.

Por fim, pode-se dizer que a palavra que deve figurar ao lado do termo cidadania quando se busca combater o tráfico de pessoas é coope-ração. deve-se primar pela cooperação ampla entre a Polícia, o Judiciário e a Administração; entre os países; entre países e organizações nacionais e internacionais; e entre os governos e a sociedade civil. Cuida-se de crime que apresenta também a feição transnacional e essa característica requer medidas igualmente transnacionais para ser contornada.

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Apenas mediante cooperação, responsabilidade e interesse serão criadas boas práticas antitráfico a serem implementadas no mundo. Sem a colaboração recíproca entre os países, pouca repercussão terão as políticas nacionais implementadas e, mais uma vez, serão violados os direitos Hu-manos das pessoas traficadas.

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REFERÊNCIAS

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COlARES, Marcos. I diagnóstico sobre o tráfico de seres humanos: São Paulo, Rio de Janeiro, Goiàs e Ceará. Brasília: Secretaria Nacional de Justiça, 2004. (Pesquisas em Tráfico de Pessoas – Parte 1)

GAATW – AlIANÇA GlOBAl CONTRA TRÁFICO dE MUlHE-RES. direitos humanos e tráfico de pessoas: um manual. GAATW: Rio de Janeiro, 2006.

GETU, Makonenº Human trafficking and development: the role of microfinance. Transformation, 2006. V. 23, Nº 3, p. 142 - 156.

NEHMÉ, Eduardo dória; lIMA, Raquel Negreiros S.; SEABRA, Sa-mira lana. Tráfico de pessoas: perspectivas jurídicas e políticas para um problema mundial. Guia para simulação do comitê jurídico da ONU do Colégio Galois. Brasília: Galois, 2008.

PICKUP, Francine. More words but not action? Forced migration and traffick-ing of women. In.: Gender and development. March, 1998. V. 6, Nº 1. p. 44 - 51.

Presidência da República: www.planalto.gov.br, último acesso em

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25.05.08.

SOUSA JR., José Geraldo de. Sociologia Jurídica: condições sociais e possibilidades teóricas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002.

VIllA, Rafael A. duarte. Formas de influência das ONGs na política interna-cional contemporânea. Revista de Sociologia e Política, junho, 1999. Nº 12, Universidade Federal do Paraná, Curitiba Brasil. p. 21 – 33.

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aNeXOS

1 - PORTaRIa No 12, de 11 de março de 2008.

designa os membros do Comitê Executivo do I Prêmio libertas: enfrentamento ao tráfico de pessoas, instituído pela Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça.

O SECRETÁRIO NACIONAl dE JUSTIÇA, no uso de suas atri-

buições legais, de acordo com decreto nº 6.061, de 15 de março de 2007, Portaria n° 1.424, de 24 de agosto de 2006, e tendo em vista o que consta no Aviso de licitação publicado no diário Oficial de 25 de fevereiro de 2008, Seção 3, página 64, resolve:

Art. 1º designar para compor o Comitê Executivo do I Prêmio li-bertas os seguintes membros:

I - Representantes da Secretaria Nacional de Justiça:a) Ivens Moreira da Gama, que o coordenará;b) Maurício Correali.II – Representante do Escritório das Nações Unidas contra drogas

e Crime (UNOdC):a) Marina Pereira Pires de Oliveira.III – Representante da Organização Internacional do Trabalho

(OIT):a) Rodrigo Penna.Art. 2° A participação no Comitê Executivo é considerada serviço

público relevante e não será remunerada.

Art. 3º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.

ROMEU TUMA JÚNIORSecretário Nacional de Justiça

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SeCReTaRIa NaCIONaL de JUSTIÇa

aVISO de adIaMeNTO1

CONCURSO

O SECRETÁRIO NACIONAl dE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições legais, de acordo com o decreto nº 6.061, de 15 de março de 2007, Portaria nº 1.443, de 12 de setembro de 2006, e tendo em vista o que consta no Aviso de licitação publicado no diário Oficial de 25 de fevereiro de 2008, Seção 3, página 64, resolve:

Art. 1º Prorrogar o prazo de inscrições do “I Prêmio libertas: Enfrentamento ao tráfico de pessoas” para o dia 30 de maio de 2008.

Art. 2º Os participantes que efetuaram inscrição dentro do prazo estipulado no item 5.1 do Edital-regulamento poderão encaminhar novo trabalho conforme o prazo estabelecido no artigo anterior, se tiverem interesse. Nesse caso, o trabalho anteriormente enviado será substituído pelo novo e será desconsiderado para fins de avaliação.

Em 25 de abril de 2008.

ROMEU TUMA JÚNIOR

1 Publicado na página 74, Seção 3, do diário Oficial da União (dOU), de 29/04/2008.

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3 - PORTaRIa Nº 44 de 25 de NOVeMbRO de 2008

O SECRETÁRIO NACIONAl dE JUSTIÇA, no uso de suas atri-buições legais e visando dar cumprimento ao decreto nº 6.061 de 15 de março de 2007:

RESOlVE:

Art. 1º - designar CYNTIA BICAlHO UCHÔA, como Coordenadora do Comitê Executivo do I Prêmio libertas – Prêmio Acadêmico de En-frentamento ao Tráfico de Pessoas, em substituição a IVENS MOREIRA dA GAMA, devido à transferência de exercício deste.

Art. 2º - Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.

ROMEU TUMA JÚNIORSecretário Nacional de Justiça

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2 - PORTaRIa Nº 45, de 25 de NOVeMbRO de 2008.

designa os membros da Comissão Julgadora do I Prêmio libertas: enfrentamento ao tráfico de pessoas, instituído pela Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça.

O SECRETÁRIO NACIONAl dE JUSTIÇA, no uso de suas atri-

buições legais, de acordo com decreto nº 6.061, de 15 de março de 2007, e tendo em vista o que consta no Aviso de licitação publicado no diário Oficial de 25 de fevereiro de 2008, Seção 3, página 64, bem como no item 4 do Edital, resolve:

Art. 1º designar para compor a Comissão Julgadora do I Prêmio libertas, sob sua presidência, os seguintes membros:

I - Anália Belisa Ribeiro Pinto;II - Adriana Gracia Piscitelli;III - Ela Wiecko Volkmer de Castilho;IV - Márcia Heloísa Mendonça Ruiz; V - Pedro Vieira Abramovay; eVI - Rosário de Maria da Costa Ferreira.Art. 2º A Comissão Julgadora terá as seguintes atribuições:a) analisar e pontuar os trabalhos, segundo os critérios pré-definidos

pelo Comitê Executivo;b) contribuir para a classificação dos finalistas, identificando e clas-

sificando os 3 (três) trabalhos que serão premiados dentre os 10 (dez) selecionados pela melhor pontuação, para cada categoria;

c) conferir menção honrosa a dois trabalhos, caso julgue pertinente. Art. 3º Os trabalhos da Comissão Julgadora serão considerados ho-

noríficos, não ensejando qualquer forma de remuneração. Art. 4º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.

ROMEU TUMA JÚNIORSecretário Nacional de Justiça

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