Iara Török - Nefando e Inefável
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Nefando e Inefável: O horror e a impossibilidade de fala pelo
testemunho e olhar na guerra (do Paraguai)
Iara Maria Torok Pomar
O que se lerá neste livro é um discurso sobre o nefando e
sobre o inefável, um discurso sobre a experiência do Sagrado, um
discurso sobre o que não deve e não pode ser dito, quer por ser motivo
do mais desgraçoso horror (o Nefando), quer por ser motivo e objeto
da mais sublime vivência (o Inefável). (Teogonia)1
O testemunho perpassa a História, e seu espectro vaga pela memória. Mas a
fonte da Memória, Mnemósina, corre ao lado do rio Lete, do esquecimento, e segundo
Virgílio as “almas bebiam do rio Lete para se livrar da sua existência anterior e
posteriormente reencarnar em um novo corpo”.2 Essas águas se cruzam, e correm lado
a lado, a memória está sempre ligada ao esquecimento, se complementando e
entrelaçando. E o fantasma que retorna a esses rios, se embebeda da memória e se
banha no esquecimento. Fantasma esse que talvez não só se delicia dessas águas antes
de reencarnar, mas que nas experiências de vida retorna, sempre diferente, para o Lete,
onde o nefando se torna inefável.
Em Heródoto já é presente uma idéia de testemunha relacionada ao que foi
chamado de “História” fazendo “ressalvas em relação às narrações de testemunho
oculares e aos simples relatos”3. O próprio termo História deriva de historie, que por
sua vez vêem da raiz indo-europeia wid-, weid, "ver", sendo assim podemos dizer que é
“aquele que viu, testemunhou”. E ainda mais, o “radical comum (v)id está ligado a visão
(videre, em latim ver) ao ver e ao saber (oida em grego significa eu vi e também eu sei,
pois a visão acarreta o saber).”4 Dessa forma fica difícil delimitar o espaço do
testemunho, da visão, da palavra, da memória, do saber e do esquecimento. Eles se
entrelaçam e se confundem, dialogam, se tornam um problema. Heródoto investiga para
1 HESÍODO; TORRANO, Jaa. Teogonia: a origem dos deuses.São Paulo: Editora Iluminuras,1995. (pg. 9)
2 SELIGMAN-SILVA, Márcio (org). História, memória, literatura: o Testemunho na Era das Catástrofes.
Campinas: Editora da Unicamp,2003.Pg. 53
3 HERÔDOTOS. História. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985(.pg. 9)
4 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas dobra a linguagem, memória e História. Rio de Janeiro: Imago
Ed., 1997. (pg.16)
que a memória não se apague entre os homens5, investiga a partir de relatos,
testemunhos, possibilidades de fala.
Ainda somos presos aos testemunhos, documentos,imagens e língua, como
forma de investigação, caindo em armadilhas a procura do que seria “verdade”. Ao
recolher as cinzas que restam do trauma, o testemunho, ou melhor, a ausência dele -
testemunho- se afirma. O que é nefando, o que é catástrofe e horror, serve como
documento de barbárie6, mas a um certo ponto esse nefando se torna inefável, indizível,
o testemunho coloca-se desde o início sob o signo de sua simultânea
necessidade e impossibilidade. Testemunha-se um excesso de
realidade e o próprio testemunho enquanto narração testemunha uma
falta: a cisão entre a linguagem e o evento, a impossibilidade de
recobrir o vivido ( o “real”) como verbal.7
A importância da linguagem para o homem fez com que ele tivesse a experiência da
língua, e a possibilidade da impossibilidade de fala. Impossibilidade esta gerada pelo
trauma, pela feriada, pela experiência de guerra (nefando), seja ela a Guerra do Paraguai
ou as Guerras Mundiais.
Testemunho, trauma e sujeito
O sujeito é, sobretudo, o campo de forças atravessado pelas correntes
incandescentes e historicamente determinadas da potência e da
impotência, do poder não ser e do não poder não ser.8
Agamben, em seu livro “O resta de Auschwitz”, teoriza sobre a possibilidade da
não fala do homem, do que seria o nefando e o inefável, o que seria essa ausência de
linguagem e a lacuna do testemunho. “O testemunho continha como sua parte essencial
uma lacuna, ou seja, que os sobreviventes davam testemunho de algo que não podia ser
testemunhado,comentar seu testemunho significou necessariamente interrogar aquela
lacuna (...)de escutar o não dito”9. Seu trabalho se insere no horror da Segunda Guerra
Mundial, a Shoah, e nos testemunhos que restaram, ou não, dela.
5 HERÔDOTOS. História. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985( pg. 19)
6 Walter Benjamin
7 SELIGMAN-SILVA, Márcio. Op. cit., pg 46.
8 AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). São Paulo:
Boitempo,2008. (pg 149)
9 Idem, Pg 21
A experiência da linguagem é uma das características do homem, a
possibilidade de exteriorizar pela fala é a característica única em relação aos outros
animais, e a mais animalesca dependendo como é usada. A língua provem de
experiências, e essas experiências potencializam, ativam a fala, ou a eliminam ( a fala).
A experiência de guerra é vista como uma experiência que leva a uma mudez, desde
Walter Benjamin quando afirma que as pessoas voltaram mudas das trincheiras da
Primeira Guerra: “No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos
do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável.”10
Essa pobreza do comunicável é vista também por Agamben com a Shoah,
acontecimento conhecido como Holocausto11
, e ai está o indizível. O indizível como
uma possibilidade do homem de não falar.
Só existe o testemunho por que existe uma experiência que possa gerá-lo,
testemunha-se algo excepcional, que necessite de um relato. O testemunho é gerado a
partir de um impossibilidade, ou seja, se quem sofreu a experiência não pode dizer por
si surge um terceiro para testemunhar “Por que o testemunho é a relação entre a
possibilidade de dizer e o fato de ter lugar, ele só pode acontecer por meio da relação
com uma impossibilidade de dizer, ou seja, unicamente como contingencia, como um
poder não-ser”. Ele ativa a fala, é a potência da fala, que diz o que é indizível paro o
outro, o testemunho é uma potência que adquire realidade mediante uma impotência de
dizer e uma impossibilidade que adquire existência mediante uma possibilidade de
falar.”12
Dessa forma Agamben vai a origem da palavra testemunho, testis e superstes,
Sendo o que o testis indica aquele que intervém como terceiro entre a disputa entre dois
sujeitos, e por sua vez, superstes é aquele que tem a experiência, que viveu a
experiência e dela sobreviveu, podendo falar sobre aquilo. Essa dualidade do
testemunho tem um autor, vem de auctor que indica a testemunha enquanto seu
10 Walter Benjamin.
11 “Holocausto é a transcrição douta do latino holocaustrum, que por sua vez, traduz o termo grego holókaustos(
adjetivo que significa literalmente “todo queimado”(AGAMBEN,p 37) e implica numa série de problemas ao ser
utilizada. Por assim ser é utilizado o termo Shoah que remete à “ devastação, catástrofe”.
12 AGAMBEN, Giorgio. Op. cit., p.
testemunho pressupõem sempre algo que lhe preexiste13
. Sendo assim o auctor(tutor)
ativa o incapaz, e criando um vinculo, o auctor-testemunha são inseparáveis.
Esse silêncio dos que tiveram uma experiência se dá pelo Trauma, lendo trauma
como seu significado em grego, que é ferida. “Colocar o dedo na ferida” leva a ao
indizível, é algo que machuca, que incomoda. Se “escrever a História é escrever o
trauma”14
, a História é mexer nessas feridas afirmando o que Benjamin diz que “todo
documento de cultura é um documento de barbárie”. Procurar esses testemunhos é
“futucar” a ferida, é avivar o pó que resta da catástrofe. Seligman-Silva vai a Freud
quando diz que “ os exemplos de eventos traumático são batalhas e acidentes: o
testemunho seria a narração não tanto desses fatos violentos, mas da resistência à
compreensão dos mesmos”15
, afirmando o choque violento do trauma e da História.
A impossibilidade de falar por causa do trauma de guerra e do pós-guerra é vista
por Agamben com uma forma da linguagem, in-fantus. O choque da guerra, e do
campo de concentração, faz o homem voltar a um estágio de infância, estágio necessário
para o homem adquirir experiência. Mas a in-fância, como uma ausência de linguagem
necessária de tutela, não sendo um simples silêncio, mas o inefável.
Nesse sentido aquilo de que no experimentum linguae se tem
a experiência não é simplesmente uma impossibilidade de dizer: trata-
se, antes, de um impossibilidade de falar a partir da língua, isto é, de
uma experiência- através da morada infantil na diferença entre língua
e disurso- da própria faculdade ou potência de falar.16
O sujeito impossibilitado de falar, segundo Agamben, é o Muçulmano17
, der
Muselmann, o não-homem. Que nos campos se destaca pela sua aparência e pelo
abandono.
13 Idem. p150
14 LACAPRA, Dominick, 2005.
15 SELIGMAN-SILVA, Márcio. Op. cit., p
16 AGAMBEN, Giorgio. Infância e História: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte:
Editora UFMG,2005 (p 14).
17 “ sobre a origem do termo Muselmann, as opiniões são discordantes (...) A explicação mais provável remete ao
significado literal do termo árabe muslim que significa quem se submete incondicionalmente à vontade de Deus (...)
Contudo, enquanto a resignação do muslim se enraíza na convicção de que vontade de Alá está presente em cada
instante, nos menores acontecimentos, o muçulmano de Auschwitz parece ter per, pelo contrário, perdido qualquer
vontade e qualquer consciência”(agamben, pg52) . Sendo assim podemos pensar no muçulmano da segunda Guerra
Mundial como alguém que é passivo não mais as vontades de Alá, mas que não impõem sua vontade ao nazismo pois
O prisioneiro que havia abandonado qualquer esperança e
que havia sido abandonado pelos companheiros, já não dispunha de
um âmbito de conhecimento capaz de lhe permitir discernimento entre
bem e mal, entre nobreza e vileza, entre espiritualidade e não
espiritualidade. Era um cadáver ambulante, um feixe de funções
físicas já em agonia. 18
Esse homem-múmia que vagava pelo campo de concentração como espectros,
estavam em estado terminal, eles não estavam mais presentes, eram eles que viviam a
experiência. Os males físicos e psicológicos eram claros, a desnutrição, a indiferença
perante a vida.
Esse não-homem não poderia ter História, e sua não- história é contada pelas
testemunhas, pelos relatos de outros que não eram muçulmanos. As passagens de
homem para não-homem estão em relatos, mas são poucos os que sobreviveram para
poder contar, superstes. Eles são a testemunha integral, da produção de cadáveres que
foi Auschwitz, que não se comunica, que precisa de um terceiro para isso, ele é o
anônimo que só é ativado quando falam por ele.
“Auschwitz seja aquilo de que não é possível dar testemunho e que, ao mesmo
tempo, o muçulmano seja a absoluta impossibilidade de dar testemunho. Se a
testemunha dá testemunho pelo muçulmano, se ele consegue trazer a palavra à
impossibilidade de falar- se dito de outro modo, o muçulmano é constituído
como testemunha integral- então o negacionismo é refutado no seu próprio
fundamento” (pg.163)
Olhar e testemunho (mudo)
Para os gregos a Górgona, essa horrível cabeça feminina coroada de serpentes
cuja visão produzia a morte e que, por isso mesmo Perseu, sem olhar para ela,
tem de cortar com a ajuda de Atenas.19
Primo Levi, um dos principais “testemunhas” dos campos de concentração
fala também sobre o olhar desses muçulmanos, dos olhares que eles laçavam para o
mundo, olhares cansados, olhares vagos sem esperança, olhares de pessoas ausentes,
olhar mudo.
Eles povoam minha memória com sua presença sem rosto, e se eu pudesse
concentrar numa imagem todo o mal do nosso tempo escolheria essa imagem
“ deixavam acontecer o que acontecia, pois todas as suas forças estavam mutiladas e aniquiladas” (E. Kogon apud
Agamben, pg 53).
18 J. Améry, apud AGAMBEN, p. 49
19 AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). São Paulo:
Boitempo,2008. p 60.
que me é familiar: um homem macilento, cabisbaixo, de ombros curvados, em
cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o menor pensamento.20
Nesse olhar se encontra toda a mudez da guerra, citada por Benjamin. O olhar
que congela, é o olhar da medusa. O olhar opaco, que tinha a expressão de indiferença e
tristeza, olhos cobertos por um véu, e as órbitas profundamente cavas.
O olhar também é testemunho, e tal como a língua, que tem sua
impossibilidade de fala, o olhar também se impossibilita de ver. Ele mostra/vê uma não-
história, o olhar do muçulmano é turvo.
Todo esse problema da representação e da incapacidade do olho de dizer a
verdade do mundo, trazido por Um Chien Andalou, parece ter se aprofundado
com as duas grandes guerras. Suas eclosões ( voltaremos a elas mais tarde)
trazem o problema da desconfiança e porque não dizer da impossibilidade de
ver aquilo que se vê. Invisibilidade visível, ou visibilidade impossível de ser
vista, dizem a catástrofe.21
A História está banhada pelo olhar (voltando ao começo), já que está relacionada
com “aquele que viu”, e o olhar banhado pela memória. O olho, o olhar e a visão está
carregado de significados e sentidos, principalmente no sentido que a “visão é o sentido
mais explorado no ocidente”22
. Esses jogos de sentido utilizam da imagem do olho, e da
imagem que o olho vê, para diversas alegorias.“Aquele que viu” é intimamente ligado
com a sabedoria (oida em grego significa eu vi e também eu sei, pois a visão acarreta o
saber), e por sua vez o saber se embebeda também da memória. A memória é
imagética, imagem esta transmitida por um olhar, que seleciona, corta e edita ( como o
cinema). O testemunho é a ativação da memória a partir da linguagem, e a memória são
imagens potencializadas, imagens de um olhar que é objeto de intervenção. O ciclo de
memória-imagem-testemunho é criador de discursos.
O olho e suas inúmeras complexidades e incertezas, suas ilusões e seus
paradoxos entre real e simulacro pode, assim, ter também a possibilidade da fala, ou da
não-fala. “Na catástrofe não há certezas, não há voz. O campo rasgou os olhos e já não
mais possível dizer “eu”. Imagens-navalha que (não) dizem o indizível. A voz da
modernidade é justamente sua ausência, ou no murmúrio não identificado.”23
20 Primo Levi apud AGAMBEN,
21 SOUZA, Fábio Francisco Feltrin de. Olhos que queimam: (não)lugares do olhar. (...)2010 .p.6.
22 Idem.
23 Ibdem.
A impossibilidade de falar no campo, no pós-guerra, ou na catástrofe do
cotidiano, está ligada a dificuldade de ativação de uma memória. Os tipos de olhares
mudos perante o trauma, a ferida24
que quer se cicatrizar. O Olhar de horror do campo é
o mesmo olhar de choque ao olhar a Górgona, um olhar sem rosto, olhar a catástrofe.
“Se ver a Górgona equivale a ver a impossibilidade de ver, então a Górgona não nomeia
algo que está ou acontece no campo, algo que o muçulmano teria visto, e não o
sobrevivente.”25
É olhar a medusa que transforma o homem em não-homem, seu olhar
que congela e impossibilita o testemunho, “um único olhar, uma só impossibilidade de
ver"26
Depois do olhar de horror, estático e gélido, vem o olhar de indiferença, citado
por Primo Levi, o olhar apático, se vida, sem esperança. É o olhar mudo de quem volta
de uma guerra. O olhar que passou pela experiência e congelou, olhar do fantasma que
não retorna, o olhar vago que vaga pelo mundo sem palavras, sem expressão, sem fala,
que olham ao longe e não estão presentes.
Olhar e infância na Guerra do Paraguai
“Deus meu! Há pessoas que nasceram depois da Guerra do
Paraguai! Há rapazes que fazem a barba, que namoram, que se
casam, que têm filhos e, não obstante, nasceram depois da batalha
de Aquideban.”
Machado de Assis
Não é minha intenção aqui narrar a Guerra, nem discutir sobre a historiografia e
intenções políticas, mas situar a guerra do Paraguai como uma catástrofe. Como uma
guerra que aconteceu no “quintal do Brasil”, e devastou um país, gerando olhares de
horror, olhares vagos, olhares mudos.
Algo que não podemos negar é um esquecimento da guerra, Lilian Schwarcz
afirma como é comum enquadrarmos o Brasil num país de “poucos conflitos e quase
24 Talvez por que ativar essa ferida incomoda.
25 AGAMBEN, Giorgio. pg. 61
26 Idem.
nenhum combate militar”27
, e nesse “quase” está a Guerra do Paraguai, como uma
exceção, algo que pode ser deixado de lado. A grandiosidade desse “quase” foi de suma
importância para todos os países participantes, Brasil, Argentina, Uruguai, e claro,
Paraguai, em esferas diferentes. Os motivos apresentados pelas historiografias são
diversos, mas Dorattioto afirma que esta guerra se enquadra no contexto dos quatro
países, a formação de uma nação. Essas nações tinham a necessidade de demarcar um
território, estabelecendo fronteiras e limites28
, para se legitimarem. Claro que os
motivos políticos e econômicos dessa região que há muito veio sendo alvo de
mudanças, leia-se mudanças como conflitos, devido à região do Prata.
O conflito foi desastroso. A principio não se acreditava que a guerra realmente
iria durar, mas durante os anos da década e 1860 as perdas só aumentavam. Entre perdas
políticas e econômicas se ressaltava a deformação da população paraguaia. Os números
não entram em acordo, mas sabe-se que o numero de mortos equivaleu a cerca de 60 ou
70% da população deste país. “ A guerra terminava com uma vitória ofuscada pelo
número de mortes e pela crueldade das batalhas. A ‘tríplice infâmia’, como foi
jocosamente chamado o acordo aliado, errou em cheio em sua avaliação”29
. As
imagens, as fotografias e alguns relatos mostram como o horror daquela guerra se
espalhava.
.... o Paraguai fica reduzido a mulheres e nós a mendigos. Outras
questões virão após e quem sabe o que fará um exército composto de
voluntários altaneiros e indisciplinados(...). Tudo isso impressiona-me
e faz-me esmorecer.30
O caos que foi a guerra se espalhava pelas fotografias da época, e é nesse
momento que a imprensa da um importância as cenas de guerra, chegando assim as
imagens as mãos do população brasileira. A guerra produziu uma batalha de imagens,
sendo fotografada e retratada ( tela, litogravura, desenho) das mais diferentes o formas,
27 SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: Memórias e Imagens. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional,2003
(p.7)
28 Limites esse mutáveis, não podemos deixar de relevar como a fronteira é um território móvel, que por mais que se
delimite, se trace uma linha, a região de fronteira é desfocada,borrada.
29 Idem.
30 SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: Memórias e Imagens. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional,2003
pg 9
e com diversos intuitos. Esses discursos imagéticos puderam chegar às mãos da
população de e nelas estava estampada os cadáveres da guerra a lado dos generais.
De um lado as feições brilhantes do progresso, inscrita nos patamares
de civilidade da corte e até no progresso das novas armas e técnicas.
De outro, o lado destrutivo dessa história, feita de tantas mortes e que
lançou ao cenário da guerra, mulheres e até crianças.31
As cinzas da guerra se misturam a corpos, destroços e pó. São rostos anônimos,
muitas vezes nem rostos podemos identificar, pessoas que não parecem mais pessoas
em fotografias amareladas. “Testemunhos mudos, mas não menos eloqüentes, de uma
epopéia mal lembrada”32
Talvez não tivesse na Guerra do Paraguai um muçulmano como Agamben utiliza
o termo. Mas durante a guerra o número de mortos só aumentou com o passar dos dias,
a cada batalha a quantidade de corpos no chão era maior. O caos estava estampado nos
jornais, nas revisas e principalmente na feição do povo paraguaio.
Batalha atrás de batalha e o povo era cada vez recrutado para a guerra, os
homens morriam, as crianças e velhos tomaram a frente de batalha. As fotos da guerra33
muito se assemelham as fotos das Grandes Guerras Mundiais, o olhar de pavor também.
Ao falarmos em guerra pensamos nestas que ocorreram na Europa, e não na Guerra do
Paraguai, a catástrofe está lá, não aqui. Mas nos relatos dos oficiais, como o citado
acima, e as fotos amareladas das primeiras experiências com um daguerreótipo em
guerra são visíveis as conseqüências da guerra.
O pobre exercito paraguaio, muitas vezes descalços e com poucas armas, um
dos relatos fala sobre armas brancas como no diário de Francisco Pereira da Silva
Barbosa na batalha em Peribebuí:
Tivemos muitos poucos feridos e poucos mortos, devido à rapidez
com que avançávamos e também porque os inimigos estavam mal
armados, com espingardas de pederneira, e para prova de que as armas
não os favoreciam, é que os ferimentos em sua maioria, foram
produzido por garrafas, pedras e armas brancas. Serviam-se até da
31 Idem.
32 Ibdem
33 Susan Sontag fala em seu livro “Diante da dor dos outros” sobre a idéia de veracidade que uma fotografia de guerra
tem, como sempre se tem uma idéia de re-apresentação do real nestas imagens, é uma “forma convicente de
transmitir uma parcela da sua relidade para aqueles que não tem nenhuma experiência de guerra” (SONTAG, P16)
areia, jogando-a em grande quantidade que nos entrava pela boca,
nariz e quase nos cegando.34
O caos e a pobreza, a miséria da população e as condições precárias de como
diz um dos relatos: “fui à enfermaria e voltei cheio de horror por ver tanta
miséria!Pobres soldados”35
. As perdas devido as doenças, para todos os países foi de
grande relevância, Salles afirma que o número de mortos em combate foi inferior às
mortes causadas por doenças, fome, frio e exaustão. Mortos e mais mortos. Pessoas
sem-rosto, sem identidade, mulheres, crianças e velhos, todos estavam desolados pela
Guerra. A barbárie dos combates, o caos e a violência. Em uma carta de Benjamin
Constant a sua mulher é relatada uma sangrenta luta:
Então começou a cena [a] mais horrorosa que se pode observar- as
cabeças de uns eram arrancadas do tronco a um golpe de espada, as de
outros rachadas [a espada] atiravam longe os miolos, alguns eram
arrancados de cima dos cavalos atravessados pelas lanças e nos
paroxismos da morte mordiam as hastes torcendo-se em terríveis
convulsões, o sangue esguichando das feridas salpicando os nossos
cavalos; daí a pouco nada mais havia [ que um monte] de cadáveres,
ou por outra, um [monte] de postas, porque a maior parte (...) sentia
prazer em matar e em esquartejar os homens depois de mortos.36
A carta descreve a enorme atrocidade da guerra, a violência e a vontade de
matar, principalmente se formos pensar no que seria esquartejar as pessoas depois de
mortas, é apagar qualquer chance de identidade,de reconhecimento. No momento que
são esquartejados os cadáveres de misturam e se confundem, todos são mortos, todos
são não-humanos, amontoados como as pilhas de pessoas da segunda guerra.
Muitas desses atrocidades estão estampadas nas fotografias da Guerra, as
pessoas sem a menor forma de identificar quem são, corpos, somente corpos, não mais
pessoas, mas destroços. As fotografias mostram as pessoas, vivas (ou melhor não-
homens) com seus olhares mudos, olhares desolados, os presos de guerra. Eles estavam
cara a cara com a Medusa, olhares chocados. Em outras fotografias estão o grande
numero de crianças que foram combater, crianças de 10 anos, ou menos, que olhavam
atônitos para o que estava acontecendo. A potência da infância, uma infantaria de
crianças, com seus olhares mudos. Todas as impossibilidades de fala. A guerra das
34 SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: Memórias e Imagens. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca
Nacional,2003
35 Idem.
36 SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: Memórias e Imagens. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional,2003
crianças deixou muitos soldados brasileiros atônitos com aquela quantidade de criança,
sem reação, “o número elevado de crianças mortas junto às trincheiras paraguaias
recém-conquistadas (...) qualquer criança de dez anos, e mesmo ainda, morta quer bala,
quer lanceada”.37
O olhar vago, sem esperança também está presente na Guerra do Paraguai, o
olhar das mulheres que perderam os filhos, os maridos e os pais (perderam o país).
Mulheres como na tela de Juan Blanes, que olha para o deserto, com os mortos ao seu
redor, vagando a procura de uma esperança para esse novo e m devastado país.
Os relatos e fotografias levam esse olhar paraguaio tenha semelhanças com o
olhar descrito por Primo Levi, poderíamos utilizar das fotos da guerra do Paraguai como
fotos da Segunda Guerra Mundial, e vice-versa. A experiência da guerra é a mesma,
desastrosa. Se o termo Shoah remete à catástrofe, podemos utilizar ele na guerra do
Paraguai. “Basta mudar as legendas para poder utilizar e reutilizar a morte das
crianças.”38
Olhares de pessoas anônimas, sem testemunhas, não é mais o muçulmano a
verdadeira testemunha, mas as crianças que foram empilhadas nos campos de batalha,
as mulheres que vagavam pelo caos e o grande numero de soldados, civis e mortos
nessa catástrofe. O Paraguai estava em formação, estava passando pelas experiências
para criar uma língua, estava na infância. In-fância, muda, cercada pelo trauma e pela
mudez. Como foi possível um país se recuperar de uma guerra com tamanho caos, mas,
além de Machado, me pergunto como foi possível um guerra deste tamanho ser
lembrada como um apêndice da História do Brasil?
Embaixo dos escombros e ruínas das guerras está uma nação se formando,
escrevendo suas fronteiras com sangue, delimitando espaços, físicos e psicológicos por
meio da força. No campo de concentração, na guerra, na frente de batalha ou na cidade
moderna, a biopolítica não é fazer morrer ou fazer viver, mas sim deixar sobreviver.
37 Idem.
38 SONTAG, Susan. P.14.
Referencias bibliográficas:
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: arquivo e a testemunha (Homo Sacer III).
São Paulo:Boitempo,2008
_______________. Infância e História: destruição da experiência e origem da história. Belo
Horizonte: Editora UFMG,2005
______________. A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2006
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Referência de Imagens:
-SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: Memórias e Imagens. Rio de Janeiro: Edições
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