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    Gilberto Icle professor da Faculdade de Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

    s contribuies tericas da AntropologiaTeatral tiveram um impacto relativamentegrande nos estudos sobre o trabalho doator no Brasil, nas ltimas dcadas. poss-vel que desde Stanislavski e Grotowski, ne-

    nhuma outra contribuio prtico-terica tenhaconstitudo um terreno de perguntas to pro-fcuo e com tantas possibilidades de indagao.

    Entretanto, o ensino de teatro e a peda-gogia teatral, para alm das experincias sobre oator profissional, se ocuparam muito pouco des-

    se campo de indagao, tomando proveito emcasos muito pontuais das questes levantadaspor Barba e seus colaboradores. Embora os es-tudos empreendidos sob a gide da Antropolo-gia Teatral tenham a presena do ator comoprincpio basilar do trabalho do performer, osestudos pedaggicos nessa rea pouco se debru-aram sobre a questo, apartando, muitas vezes,da rea da pedagogia do teatro, por entender aAntropologia Teatral como algo distante, pr-prio das culturas orientais, e de modo algumaplicvel sala de aula. E essas no so as nicasconfuses a serem desfeitas.

    Este texto pretende uma aproximao que

    problematize essa questo, procurando mostrarem que a Antropologia Teatral poderia contri-

    buir para as discusses no campo da pedagogiateatral e, sobretudo, no ensino de teatro.

    As visitas de Eugenio Barba ao Brasil, apartir da dcada de oitenta, do sculo passado,e a traduo e divulgao de seus textos para alngua portuguesa, iniciadas na dcada de no-venta, constituram um aporte significativo paraa compreenso de suas propostas estticas, e ain-da, para a discusso dos estudos nomeadoscomo Antropologia Teatral. Desde as primeirasaproximaes com tal tema, as confuses obser-

    vadas nas prticas teatrais, e mesmo em textosescritos, com interpretaes confusas e, por ve-zes, superficiais, se fizeram sentir em distintosambientes, artsticos e acadmicos.

    Este trabalho, em funo de suas dimen-ses, no poder dar conta de tamanha com-plexidade, mas ir procurar desfazer alguns nsna trama que poderia ligar a Antropologia Tea-tral ao ensino de teatro.

    Talvez, uma das confuses mais significa-tivas seja ao aspecto propositivo que normal-mente se imputa Antropologia Teatral. Estano implica, contudo, em uma proposta estti-ca. Ela, ao contrrio, procura olhar o fenmeno

    teatral para alm de sua pele cultural e impri-mir uma viso transcultural, em que o funcio-

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    AAAAA n t rn t rn t rn t rn t ro p o l o g i a To p o l o g i a To p o l o g i a To p o l o g i a To p o l o g i a Tea t r a l e pedagog ia :ea t r a l e pedagog ia :ea t r a l e pedagog ia :ea t r a l e pedagog ia :ea t r a l e pedagog ia :p rp rp rp rp rob lemat i zaes pa ra o ens ino de t ea t rob lemat i zaes pa ra o ens ino de t ea t rob lemat i zaes pa ra o ens ino de t ea t rob lemat i zaes pa ra o ens ino de t ea t rob lemat i zaes pa ra o ens ino de t ea t rooooo

    GGGGG i lberto Icle

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    namento da capacidade de atrair a ateno doator seja desvelado. Ora, o conhecimento de talmecanismo seria um princpio certeiro para oensino de teatro. Como nos mostram as princi-pais abordagens metodolgicas que temos a dis-posio de Boal a Viola Spolin, de Tchecovao drama de origem inglesa, do jogo dramticoao jogo teatral e que normalmente constituemos principais referenciais da rea, a presena, as-sociada, tambm, aos seus termos sinnimos e/ou correlatos como estado de jogo, prontido,disponibilidade, fisicalizao, dilatao, irradia-o, constitu o principio compreendido tantocomo natureza da arte da atuao, como inciopor intermdio do qual se d origem ao proces-so de ensino-aprendizagem em teatro. Qualprincpio seria mais adequado ao aluno inicianteapreender para iniciar-se como ator? Saber a di-ferena entre estar em cena e estar fora de cena,fazer essa diferenciao no e com o prprio cor-po, parece circunscrever muito do trabalho deensino-aprendizagem nessa rea.

    Essa , tambm, a preocupao funda-mental no campo de estudos da AntropologiaTeatral, qual seja, a presena, seus fenmenos,

    suas experincias e seus discursos. Ela, entre-mentes, no implica uma propedutica, na qualum conjunto organizado de exerccios dite mo-dos esttico-poticos para a pedagogia. Ao con-trrio, trata-se de um olhar, de uma viso, oumais ainda, de um modo de materializao.A Antropologia Teatral nasce nas preocupaesteatrais de Eugenio Barba, contudo, transcendeseu modo de operar artstico e se converte emferramenta para diferentes estilos de teatro. Elano , ao contrrio do que muitos imaginam,um tipo de teatro, uma esttica teatral, um g-nero cnico, tampouco uma mistura de teatro edana ou um teatro corporal. Ela usa diferentesexemplos para circunscrever um campo de in-dagao: a presena.

    Vejamos como so articulados os questio-namentos da presena, sobretudo na definio eproblematizao do conceito de pr-expressivi-dade, para deles extrairmos referncias ao ensinode teatro e com eles repensarmos nossa prtica.

    Uma das questes fundamentais que Bar-ba formula ao propor os estudos que se chamamAntropologia Teatral pode ser circunscrita naquesto: o que a presena do ator? (Barba,1993, p. 7). Essa, e as questes correlatas apre-sentadas logo ao incio do livro La canoa di car-ta segunda obra em que Barba explicita asteorizaes sobre a Antropologia Teatral , cons-tituem o cerne das inquietaes do diretor ita-liano. A primeira formulao sobre a Antropo-logia Teatral aparece num texto homnimo em1980, seguido da publicao deA arte secreta doator: dicionrio de Antropologia Teatral (1995),j fruto dos estudos empreendidos pela escolaitinerante ISTA International School ofTheatre Antropology.

    Conforme adverte De Marinis (s/d),A ca-noa de papelconsiste num up gradeem relaos formulaes anteriores do conceito de pr-ex-pressividade, redefinidas, recolocadas e mais ex-plicitadas em funo das crticas que os primei-ros textos receberam de diferentes instncias.

    A canoa de papelpassa a ser, ento, a obrareferncia para compreenso da proposta deEugenio Barba sobre a pr-expressividade, di-

    menso com a qual a Antropologia Teatral seconfunde, se define e se circunscreve como n-vel de organizao dos estados de representaodo ser humano. Uma leitura atenta dessa obrapode-nos indicar os possveis que a obra de Bar-ba abre para a pedagogia, no ao propor umapropedutica para o ator, mas ao desfraldar nos-so pensamento em relao ao olhar sobre o nos-so prprio trabalho e sobre o trabalho dos quenos atribuem as funes de professar e condu-zir construes de conhecimento teatral.

    O conceito de pr-expressividade supealguns paradigmas alguns constituindo esp-cies de epistemesdo pensamento e da ao tea-tral, tal qual ns os conhecemos , dentre eles,uns dos mais significativos, talvez, seja a idiade que o comportamento cotidiano do ser hu-mano , por natureza, domesticado (Barba,1993, p. 14). Essa idia fruto, provavelmente,da influncia de outros diretores-pedagogoscomo Stanislavski e Grotowski.

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    Isso implica dizer que se o comportamen-to cotidiano domesticado pelo peso da rotinae banalizao do vivido, a representao nopode ser tomada como um comportamento ro-tineiro e inconsciente, mas, antes de tudo, pormomentos de libertao do homem da sua pr-pria condio de imerso na inconscincia davida vivida, no aconchego e na segurana do nopensado. Isso define um grande par dialtico naconceituao barbiana para a Antropologia Tea-tral: a diviso entre cotidiano e extracotidiano.

    O primeiro, como momento da vida ba-nalizado, domesticado, no qual as aes soapreendidas e automatizadas em prol de umaeficincia imediata e utilitria, se diferencia dosegundo, em que o ator precisaria transpor es-ses automatismos e ser um sujeito de sua cons-cincia e no qual o esforo fsico usa a regra domaior dispndio de energia para o menor resul-tado, assim, se contrapondo s leis do cotidia-no. Na vida cotidiana [as aes e reaes] acon-tecem segundo uma organicidade no refletida,fruto de automatismos transmitidos genetica-mente e aprendidos culturalmente (Barba,1993, p. 47). No entanto, antes de se pensar

    em duas categorias completamente distintas,ainda que solidrias, necessrio lembrar que oextracotidiano se constitui a partir do cotidia-no, num processo contnuo e rduo de coorde-nao e diferenciao de aes (Icle, 2006).

    As diferenas, basicamente funcionais,entre cotidiano e extracotidiano so circunscri-tas por Barba ao mencionar que na ao cotidia-na, por exemplo, as aes ocorrem uma a uma:retrair o brao para somente depois distend-lo. Ao contrrio, no extracotidiano a fora quese impe nas aes de retrair e distender o bra-o so simultneas (Barba, 1993, p. 45).

    Ao par tir dessas idi as pode-se com-preender em que bases Barba articula o fun-damento da Antropologia Teatral: a pr-ex-pressividade como condio, como nvel deorganizao, como circunscrio do trabalho doator. Para tanto, duas experincias na biogra-fia de Barba so significativas no engendrar daidia de pr-expressividade.

    A primeira o fato de ele ter sido, poranos, estrangeiro num pas a Noruega ondese falava uma lngua completamente distinta daitaliana. Essa condio implicava um exercciode esforo para compreender o que seus com-panheiros de trabalho, seus amigos, as pessoascom quem convivia, tentavam lhe dizer. Assim,antes de compreender o significado das palavras,ele as compreendia em bases pr-expressivas, ouseja, se estavam a seu favor ou contra ele, seeram delicadas ou rudes, tristes ou alegres; e essaleitura do Outro, na ausncia de sentido dapalavra falada, lhe permitiu ver o corpo doOutro como uma organizao a fazer a expres-so eficiente, ainda que sem seu principal meio:a fala (Barba, 1993, p. 15).

    A segunda experincia foi, anos mais tar-de, nas viagens que ele empreendeu ao Orientee nas quais se empenhou em ver os longos (svezes longussimos para o olhar europeu) espe-tculos de diferentes tradies cnicas, comoKathakali, Orissi, N, Topeng, entre outros.A necessidade de se manter atento ao espetcu-lo conduziu seu olhar a determinadas partes docorpo do ator. Ele fixava o olhar somente nas

    pernas, outras vezes somente nos ombros e, as-sim, ao realizar essa brincadeira que visava ven-cer a monotonia das longas rcitas em lnguasincompreensveis, sobre temas enigmticos, elecomeou a perceber que os atores orientais man-tinham os joelhos flexionados, tal qual os seusatores do Odin Teatret (Barba, 1993, p. 17).

    Essas duas experincias levaram Barba apensar na hiptese de que existiriam princpiosrecorrentes em diferentes tradies cnicas. preciso salientar, no entanto, que esses princ-pios no definem, segundo Barba, nem a poti-ca, tampouco a esttica de cada manifestaocnica, mas tratam-se de princpios pr-expres-sivos, ou seja, que se encontram na base do tra-balho do ator.

    Torna-se mais claro, ento, compreendercomo o significado, para Barba, paralelo aonvel pr-expressivo, isto , como essa dimen-so organizadora da atuao prescinde do signi-ficado, autnoma, mas no independente, do

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    nvel semntico do trabalho do ator. O signifi-cado no suficiente para dar conta dos fen-menos humanos, ou ao menos, no a instn-cia superior e nica da legitimao da atividadesocial humana.

    Nossa dificuldade em perceber tais ele-mentos adviria do fato das sociedades ditas oci-dentais terem legitimado e tornado hegemnicoa cultura do significado, em detrimento dacultura da presena (Gumbrecht, 2004), emque o trabalho do ator, tal qual preconiza Bar-ba, poderia ser exemplo. H algo alm do signi-ficado, contra ele, ao lado dele, embora sempreo tendo como referncia. Nesse sentido, a di-viso expressivo/pr-expressivo to somentevirtual, ela aduz idia de que para alm do sig-nificado da ao do ator existem nveis de orga-nizao que o subjazem e que o emaranham, lmesmo onde a ao viva.

    Dessa maneira, se existe um nvel ou di-menso da organizao do bioscnico, no qualprincpios elementares so encontrados em dis-tintas culturas, poderamos objetar que essesprincpios no podem ser comprovados ipsisliterisna ao do ator, tampouco as experin-

    cias de Barba na ISTA, constituem experimen-tos suficientemente cientficos para essa com-provao. Sendo assim, Barba adverte que aAntropologia Teatral no passa de um conjuntode bons conselhos para os atores. Sua dupla fun-o a de desvelar o trabalho do ator pela ob-servao e da extrair conselhos para a melhoreficincia da presena cnica, implica a finali-dade ltima da Antropologia Teatral. Nas pala-vras de Barba, A Antropologia Teatral um es-tudo sobreo ator e parao ator. uma cinciapragmtica que se torna til quando faz o estu-dioso tocar com a mo o processo criativo e,quando, durante esse mesmo processo, incre-menta a liberdade do ator (Barba, 1993, p. 27).

    Poderia ser dessa finalidade que a peda-gogia extrairia para si elementos com os quaisrepensaria sua prtica. As diferentes bases deapoio, por exemplo, constituem um elementoque circunscreve ou exemplifica um princpioda Antropologia Teatral: o equilbrio precrio.

    Ao tomar como origem o olhar sobre o equil-brio do ator, ou melhor, sobre o uso do equi-lbrio, ele se converte imediatamente em ins-trumento de manipulao do ator. Ou seja,dizer que o desequilbrio precrio constitui umprincpio para o trabalho do ator, em que aampliao ou reduo da base de apoio, ou ain-da, a alterao do centro de gravidade do cor-po, podem distorcer o equilbrio cotidiano e,conseqentemente, fazer com que os msculostrabalhem em oposio para sustentar essa po-sio e, por conseguinte, dilatar o corpo atrain-do a ateno do espectador, constitui logo umalvo a perseguir. Ao percebermos, atravs da ob-servao, tal como Barba quando se deteve nosatores orientais e em seus prprios atores, queesse desequilbrio intencional do corpo podelograr uma melhor presena do ator, estamosconstituindo ferramentas para garantir que issoefetivamente acontea e torne-se uma estrat-gia pedaggica.

    No entanto, na prtica, esses princpiosesto sempre escondidos por uma roupa cul-tural, com a qual fazemos teatro. No h, por-tanto, princpios boiando no ar, sem que es-

    tejam a organizar alguma atividade expressiva.No se pode falar, assim, de um trabalho pro-priamente pr-expressivo, pois

    os princpios elementares que governam emnvel celular o bioscnico, no se apresentamnunca em estado puro, aparecem sempre soba veste de um estilo ou de uma tradio tea-tral. Acessa-se o nvel pr-expressivo, atravsdo expressivo (Barba, 1993, p. 121).

    Essa impossibilidade de dissociao im-plica, ao mesmo tempo, que no olhar e nomodo de ver a cena que a Antropologia Teatralpode oferecer uma contribuio significativa,independentemente da cena que se est olhan-do, pois o seu alvo no ser o nvel da expres-so, mas sim, o nvel pr-expressivo, em que,paralelo ao primeiro, se constitui a eficincia dacomunicao daquele. O nvel semntico, as-sim, constitui o arcabouo no qual esto engen-

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    drados os elementos que o estruturam, elemen-tos que o subjazem e que, segundo Barba, sorecorrentes em diferentes tradies teatrais, deStanislavski ao Teatro N. preciso sublinhar,entretanto, como bem alerta Barba, em diferen-tes momentos, que o prefixoprindica somen-te uma anterioridade lgica, mas no cronol-gica. No h, assim, como j vimos a pouco,um momento pr-expressivo. Esse no seria oensaio, enquanto o expressivo a apresentao doespetculo. Tampouco ele seria o trabalho doator sobre si mesmo, tal qual Stanislavki deli-mitou. Da mesma forma, seria errneo associ-lo diviso forma/contedo, pois tampouco setrata de uma preparao para uma execuo fu-tura. Todo trabalho do ator constitudo de umnvel pr-expressivo que organiza e confere efi-cincia expresso, cena, ao personagem, si-tuao, vida fictcia que requer um corpo emtrabalho para acontecer.

    claro que um olhar diferente implicafalar e fazer diferente. Embora o nvel pr-ex-pressivo no exista concretamente podemosidentificar aes que interferem diretamente noseu funcionamento.

    Se o ator entra em cena caminhando co-tidianamente podemos como professores oudiretores-pedagogos sugerir que entre comose entra num lugar proibido, como um larpioque precisa verificar a todo instante se algumo observa ou vai lhe surpreender. Essa alteraopoder produzir no corpo do ator uma mudan-a no equilbrio, por exemplo. O fato de ter quecaminhar com cuidado, com ateno e sem fa-zer barulho far, provavelmente, que mantenhaos joelhos flexionados, alterando o equilbriocotidiano. Segundo a Antropologia Teatral essaalterao proporcionar uma presena mais efi-ciente, ou seja, ele chamar a ateno do pbli-co de maneira mais sedutora. Ora, a manipula-o do nvel de organizao, a mudana nosprincpios que regulam o bios cnico , nesseexemplo, realizada pelo nvel da expresso. Po-der-se-ia, ainda, pedir a esse ator que entrasseem cena flexionando os joelhos, mas essa idia,provavelmente, no faria sentido se eu, como

    professor, ou ele como ator, no fosse capaz detraduzir esse princpio em expresso. Nesseexemplo parco e esquemtico o como sestanislavskiano no deixa de produzir, como es-tratgia para o ator, a sua funo de motivadorda ao fictcia, entretanto, o olhar de fora,daquele que induz essa estratgia, que se qua-lifica, ao incorporar a busca dos princpios deorganizao da presena.

    Assim, a Antropologia Teatral forneceuma explicao e ao mesmo tempo uma possi-bilidade de interao com o trabalho do aluno,na medida em que formula um campo de inda-gao para a questo da presena fsica do ator,ou seja, a capacidade de atrair a ateno do es-pectador, ainda que esse no compreenda o queacontece. Atrao e compreenso esto sempreatadas. Dessa forma, compreender a que se devetal atrao consiste num elemento importantepara a Pedagogia Teatral.

    Segundo Ruffini (2001), existem trs as-pectos que constituem a explicao, fornecidapela Antropologia Teatral, para a atrao quedeterminados atores geram no pblico.

    O primeiro diz respeito ao prprio nvel

    pr-expressivo que prescindiria da expresso, daatrao esttica, semntica, narrativa, emborano a exclua.

    O segundo aspecto seria a causa da atra-o: a incoerncia coerente que a ao do atorrepresenta em relao vida cotidiana. Essa in-coerncia implica trs princpios, ou melhor,Barba as apresenta como princpios. A primeiratrata da precariedade do equilbrio extracoti-diano em relao estabilidade do cotidiano,em que um dispndio mais acentuado de ener-gia se diferencia do cotidiano. A segunda a in-coerncia no movimento que, ao contrrio docotidiano, em que as trajetrias so uniformes eas velocidades so constantes, no extracotidiano,freqentemente, o movimento aparece combruscas aceleraes e desaceleraes, bem comocom trajetrias irregulares e cambiantes. Porfim, a terceira, diz respeito ao espao-tempo:enquanto no cotidiano temos a aplicao deenergia num ponto nico, no extracotidiano

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    essa aplicao sofre variaes bruscas e as passa-gens de regimes de energia potencial energiacintica so mais sensveis.

    O terceiro aspecto refere-se natureza daincoerncia dos comportamentos cnicos, doextracotidiano, que , entretanto, percebidacomo coerente aos olhos do espectador. Quan-do atinge a eficincia em atrair a ateno, o atorno aparece como deformado pelo artificialismointrnseco da encenao, mas como uma novapossibilidade da vida cotidiana, como uma di-latao dos possveis do viver.

    Essas incoerncias, tornadas coernciaspelo ator, so tomadas como princpios por Bar-ba. Os princpios, antes de se tornarem regrasou leis cientficas, constituem em verdade for-mas de ver o trabalho do ator e, ao mesmotempo, formas e possibilidades de manipulaoda eficincia da atrao, uma espcie de cama-da de organizao da energia por intermdioda qual o ator estrutura a poro expressiva dasua ao. Vejamos trs deles.

    Barba (1993, 1995) chama de Equilbrioem ao,equilbrio de luxo,desequilbrioou equilbrio precrio o princpio no qual ato-

    res de diferentes culturas usam o corpo, divi-dindo-o simetricamente em duas partes e usan-do sempre o peso de forma no-simtrica.

    Ele mostra que na vida cotidiana, re-agru-pamos constantemente nossos msculos; reali-zamos micro-movimentos em camadas no per-ceptveis de nosso corpo, com o objetivo depoder nos manter nas posies cotidianas e, es-ses movimentos, nos do energia para podermosestar no mundo. Estar em desequilbrio causaum aumento de energia, uma vez que o atordever usar muito mais fora (energia) paramanter-se na posio.

    Da mesma forma, outro princpio tratade criar tenses diversas no corpo: trata-se daoposio. Barba chama dana de oposies(Barba & Savarese, 1995, p. 12)o princpiopelo qual diferentes tcnicas causam conflitosno corpo do ator, fazendo, mais uma vez, comque o corpo vivasob a gide do extracotidiano.

    Um exemplo de oposies descrito porBarba ao relatar o incio invertido da direonos movimentos da pera de Pequim (Barba& Savarese, 1995, p. 12). Essa dana de oposi-es , na verdade, o princpio do drama: agircom base em dois plos. Um deseja algo, e ou-tro deseja o contrrio. No entanto, Barba mos-tra como a oposio vive no corpo do ator,pois dentro da fisiologiada ao, quer dizer, nonvel de estruturao corporal da ao, encon-tramos essas mesmas oposies. Pernas vonuma direo, quando o olhar se dirige outra.Uma mo assume uma figura, quando a outra anega, assumindo uma posio inversa.

    Um terceiro e, no nosso caso, ltimoexemplo de princpio da Antropologia Teatral a virtude da omisso. A omisso a forma pelaqual um ator realiza suas aes internamente demaneira integral, mas no exterior, de modo par-cial. comum encontrarmos ensinamentos demestres de teatro e dana, assim como exerc-cios de preparao, que visam a fazer com queos atores/bailarinos travem seus impulsos, dei-xando transparecer ao pblico, apenas, uma par-cela de suas intenes. Omitindo partes, o ator

    consegue concentrar maior energia pela redu-o do movimento e evitar os esteretipos deuma atuao puramente imitativa.

    Um exemplo bastante concreto do prin-cpio da omisso a imobilidade cnica. A imo-bilidade, entretanto, no ausncia de movi-mento ou de energia, mas omisso de parte oupercentual de movimento. O processo de ela-borao da imobilidade, em geral, passa poruma reduo ou miniaturizao das aes.A imobilidade , por isso, o resultado da sub-trao de partes dos movimentos ou da reduode tamanho dos movimentos, sem alterar, con-tudo, a energia original.

    No entanto, nenhum desses princpios e outros delimitados e analisados pela Antropo-logia Teatral comportam apenas elementospsquicos ou fisiolgicos, mas tambm se estru-turam e do a ver prticas sociais especficas,sustentam modos e idiossincrasias de determi-

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    nadas culturas, de determinados tempos e espa-os; circunscrevem-se no lcus da experinciateatral o corpo na medida em que as prti-cas culturais se constituem, imprimem modosde operar e articulam construes de conheci-mento, transmitindo de gerao a gerao sabe-res sobre como pensar e fazer teatro.

    preciso, mais uma vez, lembrar que es-ses princpios no constituem leis cientficas. Oprprio Ruffini (2001) esclarece que se tratamde recorrncias difusas e de carter emprico.

    Podemos consider-los como ferramentaspara a pedagogia, pois os mesmos circunscre-vem modos de estar no mundo. So, contudo,especficos e se localizam entre o cotidiano ealgo que vai para alm dele. Nesse entre-lugarda vida cotidiana, o ator constri uma ponteentre o artificial e o natural e garante sua forade atrao, estabelecendo com o pblico umarelao possvel. Ou seja,

    se a incoerncia marca uma distncia da nor-malidade da vida cotidiana, ento, a incoe-rncia pode ser qualificada como coerente se,no mesmo sentido, a distncia suficiente-

    mente grande para instituir uma diferenaobservvel, mas no to grande a ponto dedeterminar uma separao at a extravagn-cia, ou at um virtuosismo de exceo(Ruffini, 2001, p. 104).

    Vista assim, a Antropologia Teatral abririaum campo de estratgias duplo para a pedagogiado teatro. Ela prpria se constitui como uma es-

    pcie de pedagogia, muito mais do que uma ci-ncia, um estudo ou um modo de fazer teatro.Os seus bons conselhos so fruto de uma dimen-so fenomenolgica na qual se observam dife-rentes modos, tempos e espaos do fazer teatrale, um segundo momento, no qual se retira daelaboraes tericas sobre os princpios que lheso comuns. A pedagogia, ou melhor, um planode estratgias pedaggicas de interao com oaluno, poderia resultar dessa dupla funo: a daobservao e da proposio de conselhos.

    Essa proposio, contudo, possuiria umcarter distanciado at certo ponto, pois pro-curaria intervir na eficincia do que o alunoquer dizer e no na sua inteno em dizer algo.Assim, essa interveno no trabalho do Outro caracterstica da pedagogia teatral e funocom a qual o professor de teatro se depara a todoo momento e essa conduo do processo cria-tivo do aluno estaria resguardada, ao menos emparte, de uma interferncia demasiada, na qualas suas vontades estticas estariam merc daviso do professor. Mesmo que isso no fossede maneira alguma possvel em sua totalidade,uma interveno por intermdio dos bons con-

    selhos da Antropologia Teatral poderia condu-zir o professor a respeitar ainda que numa cer-ta medida o trabalho criativo do aluno eajudar-lhe a torn-lo mais eficiente, l onde elenecessita ser e estar vivo e presente na relaocom a platia.

    No seria essa uma tarefa legtima da pe-dagogia teatral? No seria esse um meio peda-ggico a ser explorado?

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    te, 2002.

    RUFFINI, Franco. Per piacere: itinerari intorno al valore del teatro. Roma: Bulzoni, 2001.

    RESUMO: Este texto explora as possibilidades que a Antropologia Teatral poderia fornecer ao en-sino teatral. Procura desatar alguns ns relacionados a idias superficiais em relao a esse tema.Conceitua a Antropologia Teatral, de forma aproximativa, como um campo de indagao ao vincul-la ao problema da presena fsica, destacando alguns conceitos e temas recorrentes. Problematiza oconceito de pr-expressividade e indaga as possibilidades e contribuies dessa discusso para a pe-dagogia. Descreve e analisa os fatores que delimitariam e explicariam a atrao exercida pelo ator nopblico, assim como, trs princpios recorrentes no nvel de organizao pr-expressivo do ator: odesequilbrio, a dana das oposies e a virtude da omisso. Apresenta, pois, os elementos da incoe-

    rncia tornada coerente e seus desdobramentos.PALAVRAS-CHAVE: teatro, educao, pedagogia teatral, Antropologia Teatral, presena.

    R6-A1-GilbertoIcle.PMD 15/04/2009, 08:26302