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Idade crtica para aquisio da linguagemAna Paula Santana*

Resumo Neste trabalho, discuto o que tem sido considerado para a sustentao da tese de perodo crtico para a aquisio da linguagem. De modo geral, tm sido considerados aspectos isolados, e o cerne da questo seria apenas a maturao cerebral. Procuro levar em conta, para essa discusso, a plasticidade cerebral, os aspectos interativos do sujeito, seu contexto social e a organizao cerebral como diretamente relacionada s prticas socioculturais. Se nenhum desses aspectos tem sido levado em conta nessa discusso, no h como concordar com o postulado de um perodo crtico rgido e definido por critrios unicamente quantitativos e endgenos para explicar a aquisio da linguagem. Palavras-chave: idade crtica; aquisio da linguagem.

Abstract In this work I discuss what has been considered to sustentate the thesis of critical age for language acquisition. In general, this thesis has considered just a few aspects of language acquisition like cerebral maturation. For this discussion I take in account cerebral plasticity, interactive aspects, cerebral organization as directly related to sociocultural aspects. None of these aspects have been considered in this discussion so we can't agree with the assumption of a crtical period of acquisition and defined only by quantitative and endogenous criterius to explain language acquisition. Key-words: critical age; language acquisition.

Resumen En este trabajo discuto las cuestiones que suelen ser consideradas para la sustentacin de la tesis sobre el perodo crtico para la adquisicin del lenguaje. En general se han considerado aspectos aislados y el centro del problema seria tan slo la maduracin cerebral. Busco tomar en cuenta, para esta discusin, la plasticidad cerebral, los aspectos interactivos del sujeto, su contexto social y la organizacin cerebral en su relacion con las prcticas socio culturales. Como ninguno de esos aspectos han sido considerados para la discusin, no hay como estar de acuerdo con el postulado respeto a un perodo crtico, rgido y definido por criterios solamente cuantitativos y endgenos, para explicar la adquisicin del lenguaje. Palabras clave: edad crtica; adquisicin del lenguaje.

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Fonoaudiloga; mestre e doutora em Lingstica (Unicamp); docente do curso de Fonoaudiologia e do Mestrado em Distrbios da Comunicao da Universidade Tuiuti do Paran; pesquisadora da rea de Neurolingstica (CCA/Unicamp).

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A idia de que h um perodo crtico para a aquisio de linguagem no recente. Em 1915, o neurologista ingls Hughlings-Jackson j afirmava que a lngua deveria ser adquirida o mais cedo possvel, seno seu desenvolvimento poderia ser permanentemente retardado e prejudicado, com todos os problemas ligados capacidade de proposicionar (apud Sacks, 1998). A teoria do perodo crtico baseia-se no desenvolvimento neurolgico e na importncia do input para a aquisio da linguagem. Enquanto o sistema neurolgico est imaturo, a natureza do input determinar o seu desenvolvimento. Mas se a maturidade j foi alcanada, improvvel que o sistema possa ser modificado por influncias ambientais. Lenneberg (1967) foi um dos primeiros defensores dessa teoria. Para ele, a poca oportuna para a aquisio da linguagem cessaria na puberdade. J para outros autores, seria aps a idade de cinco anos (Mogford e Bishop, 2002). Contudo, os argumentos apresentados para formular a hiptese do perodo crtico nem sempre so claramente especificados ou elaborados de forma sustentvel. O primeiro argumento refere-se dificuldade de aquisio de linguagem em indivduos privados da experincia lingstica e interacional. O segundo argumento baseia-se na diferena de prognstico da afasia em crianas e adultos. O tipo de alterao lingstica apresentada e a rapidez na melhora dos sintomas seriam as bases desse argumento. O terceiro argumento refere-se a diferenas lingsticas (o sotaque, por exemplo) na aquisio de uma segunda lngua por crianas e adultos. O quarto e ltimo argumento refere-se dificuldade de aquisio da linguagem em crianas surdas congnitas expostas lngua de sinais depois da puberdade. Alguns autores afirmam que essas crianas no tm a mesma proficincia na lngua de sinais que um falante nativo. Ainda no se chegou concluso sobre a idade que define o fim do perodo crtico. Isso deriva do fato de que essas teses esto subordinadas a um determinado olhar sobre o crebro e sobre a linguagem, e a uma perspectiva naturalista do desenvolvimento lingstico-cognitivo. Neste trabalho, pretendo discutir esses aspectos partindo de uma neurolingstica de abordagem discursiva.

Sobre o tempo e as etapas na aquisio de linguagem A idia de idade est diretamente relacionada idia de desenvolvimento, de tempo, de uma sucesso de eventos medida quantitativamente em anos, meses, dias, horas, minutos, segundos. Essa concepo de tempo j est to enraizada em nossa sociedade que, quando se comenta sobre o tempo, parte-se, geralmente, da suposio de que ele um dado natural, objetivo, independentemente da realidade humana ou mesmo de uma representao subjetiva. Mas o tempo constitudo socialmente. No levando isso em considerao, nas sociedades mais desenvolvidas, parece quase uma evidncia que um indivduo saiba a sua idade. Entretanto, h sociedades em que os homens no sabem datas com preciso. Na medida em que o patrimnio compartilhado pelo grupo no inclui o calendrio, difcil determinar o nmero de anos que algum viveu (Elias, 1984). O relgio e o calendrio passam, assim, a se constituir como instrumentos de medida do tempo. Segundo Elias (1984), o relgio passa a ocupar um lugar eletivo entre os dispositivos destinados a medir o tempo, mas no o prprio tempo. O que se faz com a ajuda de escalas de medio de tempo utilizar, dentro de uma certa seqncia de acontecimentos, um limite de uma outra seqncia, e com isso determinam-se comeos e fins relativos. Mas a pergunta : que relao mantm a seqncia de acontecimentos representada pelo relgio com as mudanas de ordem social ou pessoal que se produzem continuamente no mundo humano? Ora, o tempo relativo para cada sujeito e at mesmo para cada sociedade. Levar isso em considerao implica questionar se o tempo vivido por cada indivduo poderia ser medido com base em critrios exteriores aos prprios indivduos, como se as experincias individuais pudessem ser medidas em termos de quantidade e no de qualidade. As crianas passam por experincias de vida diferentes, em tempos diferentes, por interaes diferentes, por diferentes experincias com a linguagem. Mas isso no parece ser levado em conta na discusso sobre idade crtica. A idade crtica refere-se, em geral, a um perodo predeterminado (e teleolgico) para a aquisio da linguagem, um perodo que tem comeo, meio e fim. Sendo um perodo baseado fundamentalmente na maturao cerebral, cumpre determinadas eta-

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pas. Etapas essas que so definidas por padres numricos de idade cronolgica. Uma vez que o desenvolvimento humano se d numa sucesso irreversvel de acontecimentos, tanto naturais quanto sociais, a noo de etapa passa a demarcar os eventos que ocorrem com os seres humanos. por isso que os conceitos de estgios, etapas, perodos e fases so bastante usados quando se trata da discusso sobre a aquisio de linguagem. A ordenao das etapas s possvel porque existem instrumentos que ajudam a delimitar o desenvolvimento humano em datas (meses, anos, dias). Essa delimitao, claro, passa a oferecer aos pesquisadores instrumentos de medio, e um fenmeno que subjetivo passa a ser objetivo. Assim, cria-se a iluso de que se pode trabalhar com preciso e determinao, alimentando nos pesquisadores a crena de que eles podem medir quantitativamente o que da ordem do social. Na aquisio de linguagem, h diferenas individuais que impossibilitariam uma delimitao de etapas. Perroni (1994) estudou o desenvolvimento discursivo de duas crianas gmeas, um menino e uma menina, e identificou diferenas individuais nesse desenvolvimento que no poderiam ser explicadas nem pela idade nem pelo ambiente social. No menino, predominava o discurso argumentativo/explicativo, com abundncia de construes com porqus, algo ausente nos dados da menina, que consistiriam na predominncia de discursos narrativos. A questo das diferenas individuais tambm foi abordada por Scarpa (2001) para questionar a idia de perodo crtico. A autora contesta as afirmaes recorrentes na literatura, segundo as quais as crianas com Sndrome de Down nunca conseguem alcanar a criana normal porque sua capacidade para adquirir linguagem diminui depois da puberdade. A afirmao faz-se com base em seu trabalho de pesquisa (Camargo e Scarpa, 1996), que evidencia grandes diferenas individuais no sistema lingstico de crianas portadoras de Sndrome de Down. Ou seja, h crianas que param num estgio estvel de aquisio bem antes da puberdade, e outras que continuam seu processo de aprendizagem, tanto em diferentes modalidades discursivas quanto em processos autnomos e criativos de escrita. Assim, as diferenas individuais no desenvolvimento da linguagem no podem estar diretamente relacionadas idade cronolgica.

A literatura tem trabalhado com a delimitao dessas etapas como algo descontnuo e abrupto. Como uma ruptura cujo corte reside na incapacidade do crebro de reorganizao e diminuio de mielinizao do crtex cerebral. Essa questo discutida sem levar em considerao as diferenas individuais de cada sujeito, como se a maturao fosse algo apenas da ordem do biolgico. Privao social Na literatura, podem ser encontrados alguns relatos de crianas que foram isoladas do contato humano durante a infncia. Crianas abandonadas pelos pais em florestas, as chamadas crianas selvagens, o caso de Kasper Hauser; o de Vitor; o menino selvagem de Aveyron; o de Genie; o de Isabelle. Vrios pesquisadores se referem ao caso de Genie quando discutem a noo de idade crtica, uma menina que foi privada de contato com qualquer pessoa at a idade de treze anos. Genie aprendeu a falar, mas possua dificuldades na sintaxe e na fonologia. Para Newport (1990) e Newport e Johnson (1999), esse caso comprova a hiptese do perodo crtico, j que h um dficit de competncia lingstica, em particular da sintaxe, para adquirir a linguagem aps a infncia. Lebrun (1983) questiona os distrbios cognitivos de Genie. No h certeza de que eles no fossem congnitos. Poderiam ser resultado de um longo seqestro que perdurou toda a infncia. De qualquer maneira, eles no explicam as dificuldades dessa criana em no querer falar. por isso que o autor levanta tambm a hiptese de uma afasia congnita para o caso. Para Mayberry e Eichen (1991), o caso de Genie comprova a tese de que o isolamento social pode fazer com que as crianas jamais aprendam a falar normalmente. No entanto, os autores ressaltam que esse pode no ser o melhor caso para estudar a privao lingstica, pois as dificuldades com a linguagem poderiam ser devido privao cognitiva e emocional que Genie tambm sofreu. Segundo Meccacci (1987), a linguagem que ela adquiriu no era perfeita, assemelhava-se aos adultos submetidos a uma operao cirrgica com ablao do hemisfrio esquerdo. Esses indivduos poderiam recuperar a linguagem atravs do hemisfrio direito, que acabaria por incumbir-se das funes viso-espaciais passadas e das novas funes

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verbais. As caractersticas da linguagem desse crebro direito so: um conhecimento de vocbulos maior que o domnio de regras sintticas; melhor compreenso do sentido de uma frase que da sua construo sinttica; maior capacidade de compreenso da linguagem que da sua produo. O hemisfrio direito perderia, contudo, suas caractersticas especficas, relativas ao controle de aspectos emotivos, afetivos da linguagem, quando, por exemplo, com a entonao de uma palavra, comunica-se o dio ou o amor. Por essa razo, Genie conquistou a linguagem, mas uma linguagem automtica. Genie aprendera a linguagem, mas no conseguia transmitir nas palavras carga emocional ou seus sentidos implcitos. Para o autor, o hemisfrio esquerdo, que no fora posto em ao no momento crtico, no responderia mais aos estmulos verbais ambientais. Assim, a linguagem teria se tornado atributo do hemisfrio direito, mas com limitaes. Para questionar a afirmao de poca biolgica, h tambm o caso de Alex, citado por Vargha-Khadem e col. (1997). Alex era uma criana que sofria da sndrome Sturge-Weber, que afetou seu hemisfrio esquerdo com fortes convulses. Ele ainda no tinha adquirido a linguagem, mas depois que o hemisfrio esquerdo foi removido cirurgicamente, aos nove anos, teve um excelente progresso lingstico em termos expressivos e receptivos, incluindo aspectos semnticos, prosdicos, gramaticais e fonolgicos. Os autores comparam esse caso com o de Genie e argumentam que, diferentemente do caso dela, o hemisfrio direito de Alex tomou as funes do hemisfrio esquerdo normalmente, incluindo a aquisio de linguagem. Para os autores, apesar de seu alto rendimento, Alex ainda apresenta dificuldades em dois aspectos da linguagem: na linguagem receptiva, a compreenso mais difcil para enunciados complexos e, na expressiva, h mais dificuldade em manipular fonemas e slabas na segmentao das palavras e na repetio de no palavras. Perani e col. (1998) ressaltam que o caso de Alex serve para sermos mais prudentes no que diz respeito afirmao de impossibilidade de aprender a linguagem tardiamente. Esse caso tambm acaba por colocar em xeque a tese de Mecacci (1987) sobre a impossibilidade de uma criana aprender a prosdia da lngua com o hemisfrio direito ou mesmo aprender uma lngua aps o perodo crtico.

Ao que parece, pode e merece ser discutida a hiptese de que h uma poca biolgica para a aquisio da linguagem, durante a qual o crebro da criana, caso no for estimulado, poder vir a atrofiar. A maturao cerebral As bases biolgicas para o argumento da idade crtica foram estabelecidas por Lenneberg (1967) com base na maturao cerebral. Ele foi um dos primeiros a defender essa tese e teve grande repercusso nos estudos que se seguiram na rea de Aquisio da Linguagem e da Psicolingstica. Para o autor, a linguagem no pode se desenvolver at um certo nvel de maturao fsica, e isso ocorreria principalmente entre as idades de dois e trs anos, quando h uma interao entre a maturao e a aprendizagem autoprogramada. Aps esse perodo, haveria uma diminuio progressiva dessa capacidade, que se extinguiria na puberdade. Os casos que so levados em conta para discutir essa questo so os de crianas com retardo mental e os de crianas com afasia. Em patologias do hemisfrio esquerdo que ocorreram at o fim do segundo ano de vida, o desenvolvimento de linguagem pode ocorrer normalmente, apesar da afasia transitria. Contudo, se a leso ocorrer depois dos dois anos e antes de completar o desenvolvimento da linguagem, o hemisfrio esquerdo j estaria rgido e haveria muita dificuldade de adquirir a linguagem (Lenneberg, 1967). H autores, contudo, que no creditam a afasia infantil, necessariamente, a um bom prognstico. Para Lebrun (1984, p. 89), de maneira geral, a afasia adquirida na criana um problema grave:Contrariamente opinio bastante divulgada, esta uma deficincia muitas vezes prolongada e difcil de ser eliminada. Muitas crianas, tendo sofrido afasia adquirida, no conseguem jamais dominar completamente a linguagem. Especificamente, a aquisio ou a reaquisio da ortografia continua deficitria. Alm do mais, os ensinamentos escolares, que necessitam bastante da linguagem, so muito rduos.

De acordo com Mogford e Bishop (2002), medida que mais casos de afasia infantil foram sendo estudados, verificou-se que no se pode estabelecer uma relao direta entre idade precoce e evoluo do quadro afsico, como o fez Lenneberg.

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H casos de crianas que ficaram afsicas aos cinco anos e nunca recuperaram a linguagem, e outras que ficaram afsicas com dez anos e progrediram satisfatoriamente. necessrio, portanto, estudos que levem em conta outros fatores, como o local e a extenso da leso, a etiologia, etc. A maturao cerebral aparece como argumento-base na teoria da idade crtica. A concepo inatista sobre linguagem e mente uma de suas bases. A faculdade da linguagem teria um tempo prprio para desabrochar, para acionar o dispositivo para a aquisio da linguagem. A lngua seria algo, como diz Chomsky, que acontece com a criana, e no que a criana faz. Segundo Barbizet e Duizabo (1985), a maturao cerebral que a criana atinge logo aps o nascimento no serve de nada sem a interveno de fatores adquiridos, vindos do ambiente social sob a forma de estmulos que atingem seus rgos sensoriais. A criana adquire conhecimento por meio de contatos com a me e familiares. Como esses aprendizados registram-se no crebro, os autores so cuidadosos: no podemos fazer seno hipteses. De qualquer forma, diante de um estmulo, algo se modifica no crebro, manifestando-se por um novo nvel de ordem, de ligao e de organizao neuronal, permitindo a emergncia de configuraes neuronais funcionais que sero suporte de cada uma dessas experincias vividas. Questiona-se, aqui, se a maturao pode ser considerada como a nica definidora do sucesso (ou do fracasso) da criana em adquirir linguagem. Ressalto que no estou afirmando que no h maior maturao ou mesmo maior mielinizao durante a infncia,1 nem tampouco que no haja uma maior organizao neurofisiolgica e cognitiva nessa idade. O que se pode questionar, sim, a relao direta que se tem estabelecido entre maturao e sucesso na aquisio da linguagem, como se ambas se reduzissem apenas a fenmenos biolgicos (naturais).

No h dvida de que o meio ambiente e as interaes influenciam diretamente a organizao cerebral. A plasticidade cerebral est longe de reduzir-se a fatores meramente neurofisiolgicos e bioqumicos. Mayberry (1992), verificando o resultado da maturao neuronal usando EEG (eletroencefalograma) para criar um mapa topogrfico de funo cortical em crianas surdas, concluiu que o fator crucial para o desenvolvimento lingstico das crianas no primariamente o canal sensriomotor, e, sim, a abundncia e a riqueza do input acessvel e disponvel para a criana durante toda a sua infncia. Isso pode ser verificado pela aquisio da lngua de sinais em crianas surdas filhas de pais surdos. Nesse caso, o desempenho lingstico comparvel ao da aquisio da lngua oral nos ouvintes. Essa parece ser a explicao para que a maturao neuronal do hemisfrio esquerdo para a linguagem seja menor em surdos filhos de ouvintes do que nos surdos filhos de pais surdos (e em ouvintes). A autora ressalta que as crianas surdas mostram uma menor diferenciao neuronal (maturao) sobre as reas frontais dos hemisfrios direito e esquerdo.2 Hiperatividade, impulsividade, desorganizao, egocentrismo so termos que aparecem na literatura, geralmente aplicados criana surda. Para a autora, a aquisio da linguagem tem um papel significativo na socializao da emoo da criana. O atraso de linguagem pode impedir o desenvolvimento da habilidade planejadora que est associada funo do crtex frontal. Em outras palavras, a comunicao o catalisador da maturao social. O desenvolvimento da maturao atrasado em conseqncia do atraso de desenvolvimento da linguagem. Ou seja, a maturao deixa de ser apenas um fenmeno biolgico e, portanto, preestabelecido em uma idade crtica. Ela tem uma dimenso to social quanto a prpria linguagem. por esse motivo que alguns autores, como Singleton (1989), discordam de que exista um pe-

Pinker (1994) aventa diferenas maturacionais que ocorrem no crebro da criana desde antes do nascimento, como o aumento de sinapses nervosas e mudanas no metabolismo. Logo aps o nascimento, novas conexes comeam a se formar, mas h conexes mais distantes, que s se completam aps os nove meses. As sinapses continuam a se desenvolver dobrando de nmero dos nove meses aos dois anos. A depender da regio do crebro, a criana tem 50% a mais de sinapses que o adulto. Na adolescncia, o crebro j possui praticamente o mesmo metabolismo que o do adulto. 2 Vale salientar que a funo do lobo frontal foi designada por Luria (1987) como responsvel pelo comportamento verbal, onde se seleciona e programa a conduta. Para Luria, isso no fazia parte da linguagem propriamente dita. No foi toa que ele excluiu das afasias os problemas de ordem pragmtica, e os reuniu em torno de uma outra conceituao: a Sndrome Frontal. Gandolfo (1996) ressalta a natureza lingstica da sndrome frontal, e no apenas comportamental, e sugere uma substituio de terminologia (e de conceito) para esse quadro nosolgico, considerado por ela uma afasia de natureza pragmtica.

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rodo crtico para a aquisio da linguagem, pois se ele existisse, haveria um tempo para iniciar e outro para terminar no haveria, assim, uma continuidade de aquisio. Deve-se levar em conta tambm as evidncias de que o desenvolvimento da linguagem continua mesmo na idade adulta, em especial no nvel semntico e pragmtico. A maioria dos estudos, contudo, relaciona diretamente maturao com a possibilidade de adquirir linguagem, como se aps o perodo de maturao o crebro no tivesse mais plasticidade . A plasticidade cerebral pode ser evidenciada nos quadros evolutivos das afasias. Joanette e col. (1996) ressaltam que, nas afasias, o processo de recuperao complexo e multidimensional, ou seja, envolve desde aspectos celulares at aspectos psicossociais. Para exemplificar melhor tais modificaes e as evolues nos quadros afsicos, vejamos, abaixo, dois episdios coletados com dez anos de diferena de P. Ele um sujeito afsico, agramtico, que teve um AVC aos 47 anos. O episdio 1 foi retirado de Gregolin-Guindaste (1997, p. 63):Episdio 1 Inv: Acabou de escrever, faz o qu? P: Envelope. Inv: O que faz com o envelope? P: Correio. Inv: O que faz aqui? P: Selo. Episdio 2 P. Mostra recortes de jornal querendo explicar que as legendas das fotos tinham sado trocadas. Este episdio ocorreu dez anos aps o episdio 1. Foi retirado de Novaes Pinto (1997, p. 81). P: Eu comprei jornal do Dirio do Povo e vi negcio assim. So dois, n, trs, agora, trocou o negcio.

afsicos que melhoram seu desempenho ou mesmo afsicos com grandes dificuldades lingsticas que evoluem para quadros menos graves. Essas questes indicam que o crebro no um rgo esttico, fixo e programado, mas dinmico, flexvel e ativo, com uma excepcional capacidade de readaptao, evoluo e mudana, altamente dependente das necessidades e aes do organismo como um todo. H, assim, uma relao estreita entre as aes sociais do sujeito e a dinmica do funcionamento cerebral. O crebro busca caminhos diferentes para seu funcionamento, os neurnios so estimulados a estabelecer novas ligaes entre si (formando novas sinapses), numa tentativa de (r)estabelecer as funes deficitrias (Morato e col., 2003). Aquisio da segunda lngua (L2) A diferena de sotaque entre falantes nativos (FN) e falantes tardios (FT) na aquisio da segunda lngua (L2) tem sido destacada como um argumento em favor da idade crtica. Ou seja, haveria uma diferena lingstica entre aprender L2 antes e depois da puberdade. Newport e Johnson (1999), defendendo a hiptese da diferena de aquisio de L2 devido maturao, ressaltam que as crianas tm uma vantagem sobre o adulto ao adquirir uma segunda lngua, pois a aprendizagem de uma lngua diminui juntamente com a maturao humana. Haveria um plat aps a puberdade, e esse nvel difere entre os indivduos. Ou seja, a aquisio de uma lngua no impedida durante a fase adulta. No entanto, as crianas sempre tm grande proficincia, enquanto os adultos, nem sempre. O que parece ocorrer que um aumento de certas habilidades cognitivas pode paradoxalmente marcar uma aprendizagem diferente. Autores como Kim e col. (1997) e Obler e Gjerlow (2000) argumentam que a idade de aquisio pode ser um fator significativo para a organizao funcional do crebro humano na discriminao de diferenas fonticas relevantes de uma lngua. O fato de que as crianas possam adquirir a segunda lngua sem sotaque evidencia que o crebro humano, at o perodo crtico, seria capaz de desenvolver dois ou mais diferentes tipos de instrues para os rgos de articulao. O sotaque pode ser resultado de diferenas fonticas, fonolgicas e prosdicas entre as duas lnguas.

evidente a evoluo lingstica de P. aps dez anos. Ou seja, embora ele no tenha deixado de ser agramtico (cf. Novaes Pinto, 1997), esses episdios mostram que houve uma evoluo significativa em sua linguagem. Isso evidencia que casos graves de afasia podem evoluir para casos mais leves, independentemente da idade em que a leso cerebral ocorreu. V-se, assim, que um crebro maduro no implica ausncia de plasticidade cerebral. A plasticidade e a reorganizao cognitiva continuam alm da infncia. Se isso no acontecesse, no teramos

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Outra hiptese explicativa para o sotaque seria a de que um som foneticamente similar de uma primeira lngua substitui um som da segunda lngua. Mesmo quando as duas lnguas tm os mesmos fonemas, o falante de segunda lngua pode ainda ter sotaque se as regras fonotticas de uma lngua forem diferentes da outra, ou seja, ter dificuldade de pronunciar palavras que violem as regras fonotticas de sua primeira lngua. O sotaque pode ainda manifestar-se apenas no nvel prosdico. O sotaque prosdico diferente entre as lnguas pode fazer com que o falante no nativo acabe por realizar uma entonao da primeira lngua. Os autores acabam por concluir que a fonologia da segunda lngua refora a noo de estrutura e as regras de regncia na linguagem humana. Muitas pessoas que adquirem uma segunda lngua aps a puberdade tm obtido sucesso no grau de competncia gramatical e lexical, mas ainda tm sotaque. Poucos indivduos que adquiriram habilidades como nativos depois da puberdade tm sido estudados, ainda que esse fenmeno no seja possvel de acordo com a tese do perodo crtico proposto por Lenneberg. Porm, h estudos que discordam da idade como sendo a responsvel pelo sotaque. A idade pode no ser o fator principal na explicao desse fenmeno (Peani e col., 1998; Dehaene e col.. 1997). H muitos outros fatores envolvidos e que deixam de ser considerados: influncia da primeira lngua na aquisio de uma segunda lngua, modo de aquisio (mais formal, menos formal), usos da lngua (proficincia, freqncia), aspectos subjetivos do aprendizado de L2. Alm disso, h diferenas cognitivas que ocorrem em adultos e em crianas relacionadas aprendizagem. Essa questo deve tambm ser considerada em relao aquisio de L1, j que o nosso modo de apreender o mundo vai modificando-se com nossas interaes sociais. Enfim, h uma variedade de aspectos que no podem ser desconsiderados quando se supe uma idade de aquisio de L2 como um dos argumentos para a idade crtica. Newport (1990) afirma que o fato da maturao interferir tanto na aquisio da primeira quanto da segunda lngua sugere que a aprendizagem de uma lngua, no importa se primeira ou no, no est livre do efeito maturacional desenvolvido pela exposio linguagem. Ou seja, a faculdade da linguagem est intacta somente na infncia e, a partir da, ela deteriora em relao continuidade da maturao.

Newport e Johnson (1999) ressaltam que a aquisio da primeira lngua no garante a habilidade para adquirir a segunda, e que o modo diferenciado do adulto e da criana de receber o input lingstico poderia ser uma explicao para a diferena de sotaque. Segundo os autores, mesmo sendo o adulto mais consciente sobre a fala do que a criana, h uma relao entre a idade e a performance. Ou seja, se aprendemos uma lngua aps a infncia, fazemos alguns erros em determinados tipos de regras. A proficincia diria respeito a alguns tipos de regras, e estas estariam relacionadas com a idade. Com isso, os autores levantam a hiptese de uma relao inversa entre habilidades cognitivas e aprendizagem da linguagem. A aprendizagem da linguagem declina precisamente porque a habilidade cognitiva aumenta. As diferenas podem ser observadas nos erros cometidos pelos falantes nativos (FN) e falantes tardios (FT). Os sujeitos FT produzem estruturas cristalizadas, no analisam as palavras e falham nas anlises morfolgicas internas. Eles produzem palavras no analisadas em contextos, nos quais uma anlise seria necessria. Tambm fazem manuteno de formas holsticas e uma supergeneralizao de formas lingsticas. J os sujeitos FN produzem erros predominantemente componenciais, nos quais parte das estruturas produzida, em que h combinao de morfemas e generalizao de vrias regras. A diferena resultaria no modo como as crianas percebem e armazenam o input lingstico. Pela diferena de idade nas habilidades de memria e percepo, crianas novas e adultos expostos ao mesmo ambiente lingstico podem ter diferentes bases de dados internas para realizar uma anlise lingstica. A representao da criana no input lingstico inclui atividades de anlises de formas complexas para as quais ela est sendo exposta, ao contrrio do adulto, para quem a representao do input lingstico ir incluir mais formulaes acabadas. A limitao da percepo e da memria na criana far com que a anlise seja de certas partes do sistema, o que mais fcil de se realizar. O adulto, pela grande capacidade de armazenamento de palavras completas e sentenas, falha em anlises de partes das palavras. Assim, as limitaes das crianas em muitos domnios no lingsticos funcionam como ferramentas para seu sucesso na aquisio da linguagem. Os adultos seriam piores na aprendizagem da linguagem pela emergncia de habilidades ope-

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racionais que interferem na aprendizagem de estratgias mais apropriadas para a aquisio da linguagem (Newport, 1990). Em trabalhos posteriores, Newport e Johnson (1999) complementam seus estudos afirmando que a diferena poderia tambm ser provocada pelo input recebido. Os inputs do adulto contm variao limitada de construo; entre os adultos, h mais sentenas cannicas. J as crianas recebem mais deformaes, em termos de complexidade transformacional. Assim, os adultos, recebendo inputs mais simples, aprenderiam menos porque seus inputs no so complexos nem variados como o das crianas. Os autores ressaltam que h necessidade de analisar mais detalhadamente antes de decidir se o tipo de input na segunda lngua o que decide a vantagem de aprendizagem. Essa teoria parece relacionar a aquisio da linguagem com o tipo de input recebido. questionvel a afirmao de que crianas receberiam inputs deformveis porque estariam em contato com outras crianas que tambm esto em fase de aquisio e, portanto, no falam ainda corretamente. Para tal afirmao, necessrio realizar um estudo sobre os usos da linguagem e dos interlocutores proficientes que interagem com a criana. Isso parece no ter sido feito nesse tipo estudo. Um ponto importante da teoria de Newport a questo do tipo de erro produzido por FN e FT. Segundo Figueira (1996), os erros nada mais so do que as marcas daquilo que est sendo re-arranjado na produo lingstica da criana. A criana opera sobre os objetos lingsticos medida que relaciona elementos, neles reconhecendo formas, investindo na significao. A reorganizao dos erros, alm de demonstrar uma reflexo da criana sobre a lngua, demonstra tambm as mudanas nas formas de categorizao do mundo. Ou seja, o mundo s pode ser apreendido por determinados sistemas de referncia que vo se estabelecendo durante as interpretaes simblicas que o sujeito faz. O processo de desenvolvimento poderia ser entendido como processo de maturao, cristalizao, ou mesmo mudana de determinados sistemas de referncia. a que reside a mudana e, possivelmente, uma interpretao para as dificuldades fonolgicas encontradas em aquisio tardia de uma lngua. So momentos diferentes que correspondem a contextos diferentes e, portanto, a sistemas de referncia tambm diferentes.

Aquisio da linguagem na surdez A lngua de sinais O estudo da aquisio da linguagem na surdez surge como situao ideal para a discusso sobre a idade crtica, j que a grande maioria dos surdos composta de filhos de pais ouvintes e adquiriu lngua de sinais e/ou a fala em idade tardia. Vrios pesquisadores tm estudado em detalhes as diferenas encontradas entre crianas que aprenderam lngua de sinais na infncia, isto , surdos e ouvintes filhos de pais surdos, os chamados falantes nativos (FN), e crianas surdas que aprenderam lngua de sinais em idade mais avanada, aps os sete anos, os chamados falantes tardios (FT). A concluso da maioria dos estudos (Newport, 1990; Mayberry e Eichen, 1991; Mayberry, 1992; Emmorey, 1993, Newport e Johnson, 1999) de que a performance declina com a idade de aquisio, j que, em geral, os sujeitos FT cometem mais erros fonolgicos (localizao, orientao, movimento, etc.), tm maior dificuldade na compreenso de mensagens em lngua de sinais (inclusive na velocidade de reconhecimento lexical), so menos sensveis a erros na concordncia verbal espacial, so menos eficientes e lentos na interpretao do processo lingstico (no que diz respeito a aspectos fonolgicos e morfossintticos). Em suma, aspectos da morfologia e da sintaxe mostram diferenas substanciais entre FN e FT. No entanto, o mesmo no ocorreria com os processos supra-segmentais e prosdicos. H, entretanto, autores como Neville e col. (1997), que realizaram pesquisas com surdos proficientes em lngua de sinais e que adquiriram essa lngua tardiamente. Vale lembrar que os estudos sobre esse tema, em sua grande maioria, parecem no levar em conta os aspectos pragmticos e discursivos da lngua. A anlise da lngua em seu aspecto mais formal e as condies de testagens, basicamente tarefas metalingsticas, impedem que se tirem concluses sobre as reais possibilidades de usos da lngua. Aprender uma lngua no significa ser eficiente em determinadas tarefas metalingsticas (soletrar, traduzir, completar enunciados, dentre outros). No se pode tambm fazer uma relao direta com a idade sem levar em conta as interaes sociais vivenciadas pelos surdos (no foi mencionada essa questo nos testes). Ou seja, h uma grande possibilidade de os surdos FT terem

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interaes com interlocutores no proficientes em lngua de sinais. Essa possibilidade muito maior nos surdos filhos de pais ouvintes do que nos surdos e ouvintes filhos de pais surdos. A concepo de linguagem, de sujeito e de crebro que est por trs dessas pesquisas no leva em conta as diferenas individuais, as interaes sociais e os usos da linguagem. Diante disso, so necessrios estudos mais detalhados para que se possa afirmar que o surdo que adquiriu a lngua de sinais tardiamente no pode ser proficiente. Alis, h uma certa confuso, entre os prprios surdos, sobre o que seja um sujeito proficiente em lngua de sinais. O no domnio das variaes lingsticas pode ser considerado como falta de proficincia: um lxico, uma configurao de mo diferente, mas possvel, na produo de uma palavra. Indiferente a essas questes, a Feneis (Federao Nacional dos Surdos) tem capacitado esses surdos a serem instrutores, julgando-os proficientes e capazes de ensinar uma lngua para crianas e adultos. A possibilidade de uma interao eficaz com outros surdos proficientes faz com que se acredite no domnio dessa lngua pelos surdos. Devido variao lingstica, e ao estudo lingstico ainda recente da lngua de sinais, no h definio precisa em relao ao estatuto de surdo proficiente. Ressalte-se aqui, pois, a importncia de estudos que envolvam os aspectos que interferem na proficincia da lngua de sinais, as variaes lingsticas, a competncia (meta)lingstica na lngua, os processos pragmtico-discursivos envolvidos. Com base nesses estudos, poderamos questionar a noo de perodo crtico, j que pode haver surdos proficientes que adquiriram a lngua de sinais aps a puberdade. O implante coclear Mayberry (1992) afirma que pouco se sabe sobre a noo de perodo crtico para a aquisio da linguagem oral na surdez. Alguns educadores tm relatado que o sucesso depende da idade inicial em que as crianas comeam a ouvir atravs de prteses auditivas. Se a linguagem oral tem um

perodo crtico para sua aprendizagem em todos os sujeitos, seja ele surdo ou no, haveria uma idade crtica para o input auditivo. Mecklenburg e Babighian (1996), com base na plasticidade audiolgica, que seria a habilidade para mudanas que ocorrem no sistema sensorial responsvel pela transmisso de informao acstica, contrariam a afirmao de que h um perodo crtico para o input auditivo. A mudana de comportamento aps o implante coclear demonstraria uma evidncia da plasticidade audiolgica e a capacidade do crebro em adaptar-se s novas sensaes de audio, a um estmulo artificial, mesmo depois de variados perodos de privao. Apesar de a comunidade surda apresentar objees em relao ao implante coclear, argumentando que, muitas vezes, o perodo crtico pode j ter passado quando o implante realizado, Mecklenburg e Babighian (1996) ressaltam que o papel do perodo crtico aplicado percepo auditiva ainda no est claro. Eles afirmam que, nos surdos que fizeram implante, mesmo aps o perodo crtico, encontram-se evidncias de atividade cortical auditiva, o que os leva s seguintes concluses: a) a idade da plasticidade cerebral pode ser alterada, no obedecendo assim ao perodo crtico; b) mesmo que haja uma diminuio da plasticidade aps a maturao, ela continua por toda a vida; c) o responsvel pela plasticidade o meio ambiente. Os autores ressaltam que o fracasso do desenvolvimento auditivo em alguns casos de implante coclear poderia ser explicado pela falta de um ambiente propcio, com situaes efetivas de uso da fala. Geralmente, esses surdos foram pouco estimulados a ouvir (e a falar) e se comunicavam por lngua de sinais.3 Todd e col. (1991) tambm argumentam que no h diferenas significativas entre a percepo da fala em crianas com implante coclear que nasceram surdas e crianas que adquiriram surdez nos trs primeiros anos de vida, embora crianas que fizeram a cirurgia do implante coclear com mais de cinco anos apresentem um grau de percepo da fala bem menor. A experincia auditiva seria, assim, importante para a fonologia da lngua, mas

Kubo e col. (1996), em estudo feito com adultos implantados ps-linguais, encontraram em todos uma diferena de plasticidade audiolgica aps, aproximadamente, um ano de implante coclear. Como todos os adultos tiveram aumento na habilidade de perceber a fala, o autor afirma que esse aumento est relacionado possibilidade de plasticidade audiolgica (efeito da estimulao eltrica na cclea).

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em idade muito precoce essa diferena no evidenciada. A discusso sobre a plasticidade audiolgica nas crianas que fizeram implante acaba por colocar em xeque a rigidez que grande parte da literatura tem apontado em relao maturao cerebral. Para ilustrar essa discusso vejamos abaixo dois episdios de Vincios.4 Vincios passou a ouvir aos 4 anos e 10 meses, quando realizou o implante coclear em estgio ainda considerado como pertencente ao perodo crtico.5 Antes do implante ele usava prtese auditiva e a maioria das prteses, para o surdo profundo, s permite ouvir sons ambientais. Vincios faz terapia fonoaudiolgica desde os trs meses de idade, mas s a partir do momento em que ele passou a ter condies audiolgicas, a aquisio da linguagem oral realizouse. Ressalte-se que os pais sempre ofereceram interaes significativas de linguagem. Melhor dizendo, desde antes do implante coclear os pais sempre consideraram Vincios um interlocutor, mesmo quando as significaes eram mais gestuais que orais. No episdio abaixo, ele estava com sete anos e um ms (dois anos aps o implante coclear):Me do Vincios: Ah? Que isso? Vincios: A, a, a cobra fica icondida pra assim, / / deita o corpo no cho e fica encolhido como se estivesse se escondendo//. Me do Vincios: Ela fica escondida assim? Pra qu? Vincios: Pra pic a pessoa. Me do Vincios: Ela fica escondida... Vincios: E pica a pessoa // voltando a sentar-se // (...) A cobra... a cobra fica assim, , a o homem v a cobra, a // faz gesto de esfaquear o ar // mata..

A literatura tem apontado (Todds, 1991) que, quando a criana adquire linguagem na idade de Vincios, ela poderia vir a ter dificuldades com a fonologia da lngua. No entanto, percebe-se que quando se oferecem condies auditivas, lingsticas, sociais e psicolgicas para que a aquisio da linguagem possa ocorrer, h uma plasticidade au-

diolgica e cognitiva que permite a (re)organizao cerebral capaz de promover o desenvolvimento normal da linguagem (oral ou sinalizada). De acordo com Albano (1990), so quatro as condies imprescindveis para a criana adquirir linguagem: o interesse em se comunicar e interagir com o mundo; a lngua com a qual ela tem contato deve possuir um sistema minimamente auto-referenciado em termos sintticos e fonolgicos; para que a aquisio possa ocorrer, a criana deve estar imersa em rotinas significativas de usos da lngua; e, finalmente, a criana deve ter um sistema sensrio-motor ntegro (audio-verbal ou visuo-manual) para que o processo de internalizao da lngua possa acontecer. A autora cita casos de crianas que nunca falaram e, de repente, aos quatro anos comeam a falar, j com enunciados mais complexos. Como explicar esses casos baseando-se em etapas rgidas e pr-definidas? Como estabelecer um perodo crtico baseado apenas em tempo cronolgico? Com o caso de Vincios, a noo rgida de etapas tambm acaba sendo questionada, j que ele ultrapassa as ditas etapas de aquisio da linguagem numa velocidade muito superior a uma criana ouvinte. Em trs anos auditivos, ele j domina a oralidade e a escrita (ressalte-se aqui que ele est na segunda srie e acompanha bem a escola). O caso de Vincios apresenta-se como importante para mostrar que, na presena de um canal sensrio-motor ntegro (nesse caso, o implante permitiu a audio), e contemplando-se as outras condies para a aquisio de linguagem, como as apontadas por Albano (1990), a aquisio da linguagem se d independentemente da idade. Ou seja, o sucesso ou o fracasso do implante no podem ser definidos apenas pela idade da criana. esse discurso que faz com que os pais e profissionais tambm acreditem que o tempo quantitativo e base para possibilidade de aquisio de linguagem. Vejamos o exemplo de Fernando. Ele realizou o implante na idade esperada, mas no foi obser-

4 Os dados desse texto foram retirados de minha tese de doutorado Reflexes Neurolingsticas sobre a Surdez (IEL/Unicamp, 2003). Ressalto que as duas crianas que participaram dessa pesquisa so pacientes do Centro de Pesquisas Audiolgicas/USP/ Bauru. Agradeo professora doutora Maria Ceclia Bevilacqua o auxlio para que essa pesquisa pudesse ser realizada. 5 O desenvolvimento do crtex pr-frontal apresenta dois picos em termos neuropsicolgicos: um por volta de 3-4 anos de idade, associado com o aumento de crescimento dos corpos celulares; e outro, aos 7-8 anos, por aumento da massa cinzenta extracelular, isto , axnios, dentritos, sinapses, relacionado com o crescente papel regulador da linguagem na formao de programas complexos e na organizao do comportamento. Essas mesma zonas corticais continuam seu desenvolvimento, embora mais lento, at, pelo menos, a adolescncia (Damasceno e Guerreiro, 1991).

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vado, em seu caso, o resultado pretendido (pelo menos, at o momento em que este trabalho foi realizado). Fernando ouve, mas no compreende o que ouve. Repete um enunciado (com aproximaes fonolgicas), mas sem compreenso da linguagem oral ou mesmo produo espontnea. Alm disso, vivencia situaes na escola, no consultrio da fonoaudiloga e em casa, de repeties e cobranas do bem falar. Quando Fernando quer se comunicar, utiliza gestos. Vejamos abaixo Fernando com cinco anos e trs meses, e um ano e cinco meses de implante coclear.Fernando: //aponta para a figura e balana as mos rapidamente, num gesto de voar//tatatatatatatatatatatatatata. Pai de Fernando: O que que isso? Fernando: //continua a balanar as mos enquanto produz sons// titititititi. Pai de Fernando: O pssaro? Fernando: //aponta para a figura de novo e continua a balanar as mos enquanto fala// tatatatatatatata. Pai de Fernando: O pssaro? //Apontando para a figura//. Fernando: A pa. Pai de Fernando: , o auau aqui, //aponta para outra figura//. Fernando: Ouou. Pai de Fernando: Voc fala fcil//com tom de ironia//.

Consideraes finais O que foi discutido at o momento indica que a idia de perodo crtico est diretamente relacionada concepo de linguagem e de crebro, como capacidade biolgica, e a uma concepo naturalista de desenvolvimento. Sendo uma capacidade biolgica, considera-se que esta influenciada somente pela maturao cerebral. Ou seja, a maturao faz parte do desenvolvimento biolgico do indivduo e se realiza por etapas, atingindo sua evoluo mxima na idade adulta. Como a maturao atinge seu pice aps os doze anos, a linguagem e a cognio tambm teriam uma etapa de desenvolvimento mximo, haveria um incio, um meio e um fim. Por isso, se a criana no recebe o input lingstico do meio, perde a capacidade de adquirir linguagem, j que seu crebro j est maduro e sua maturao se deu sem o estmulo lingstico. Relaciona-se ainda a idade crtica ao acionamento do dispositivo para a aquisio da linguagem (perspectiva gerativista). O no acionamento desse dispositivo aps a puberdade justificaria, por exemplo, a presena do sotaque. A considerao de que o aprendizado lingstico cumpre determinadas etapas progressivas e, portanto, alcana um plat, uma etapa final de falante ideal, parte tambm da noo de que a linguagem algo esttico, um atributo, de fato, biolgico. No preciso ir muito longe para identificar evidncias que questionam a rigidez dessa teoria: os surdos que aprendem lngua de sinais em idade adulta, os adultos que aprendem uma segunda lngua em sua forma sem sotaque, a evoluo das afasias em adultos, as dificuldades de evoluo em crianas afsicas, a plasticidade audiolgica, etc. Quanto s crianas que sofreram privao social, h ressalvas. Pelo traumatismo emocional, essas crianas poderiam perder o interesse intersubjetivo de interagir com o mundo. Ressalte-se ainda que h casos em que as crianas aprenderam a falar. Diante do que foi exposto, acredito que a discusso no trata, em essncia, de saber se existe ou no idade crtica, e sim o que tem sido considerado para a sustentao dessa hiptese. De modo geral, tm sido considerados aspectos isolados, e o cerne da questo seria apenas a maturao cerebral. Partindo desse pressuposto, qualquer explicao que no leve em conta a plasticidade cerebral como contnua, que no considere os aspectos interati-

Ele fez implante coclear aos trs anos; Vincios, aos cinco. Vincios fala muito bem, Fernando ainda tenta pronunciar suas primeiras palavras espontaneamente. Esses casos servem para sermos mais prudentes no que diz respeito dificuldade das crianas surdas de adquirirem linguagem aps os cinco anos, assim como para sermos mais cautelosos na indicao de cirurgia de implante coclear em bebs, como se apenas a idade estivesse relacionada ao sucesso. Uma criana precisa, no se pode contestar, adquirir linguagem o mais precocemente possvel, por vrios motivos. No precisa, necessariamente, ser a linguagem oral. Esta pode ser adquirida, como vimos no caso de Vincios, aps os cinco anos sem dificuldades (e quando o implante coclear d possibilidades auditivas para isto). A idade pode ser considerada como uma condio desejvel, mas no suficiente para a aquisio da linguagem. No basta apenas ouvir para que a aquisio da linguagem ocorra (Santana, 2003).

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vos do sujeito e seu contexto social, que no leve em conta as mudanas nos processos cognitivos que ocorrem em decorrncia de nossas interaes sociais, restrita, pois negligencia o fato de que a organizao cerebral se d em meio a prticas socioculturais. Se nenhum desses aspectos tem sido levado em conta nessa discusso, no h como concordar com o postulado de um perodo crtico rgido e definido por critrios unicamente quantitativos e endgenos para explicar a aquisio da linguagem. RefernciasAlbano E. Da fala linguagem tocando de ouvido. So Paulo: Martins Fontes; 1990. Barbizet J, Duizabo P. Manual de neuropsicologia. Porto Alegre: Masson; 1985. Camargo EA, Scarpa EM. Desenvolvimento narrativo em crianas com Sndrome de Down. In: Marchesan IQ, Zorzi JL, Gomes ICD, organizadores. Tpicos em Fonoaudiologia. So Paulo: Lovise; 1996. v. 3: p.400-06. Dehaene S, Dupoux E, Mehler J, Cohen L, Paulesu E, Perani D, et al.. Anatomical variability in the cortical representation of first and second language. NeuroReport 1997;8: 3809-15. Elias N. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1984. Emmorey K. Processing a dynamic visual-spatial language: psycholinguistic studies of american sign language. J Psycholinguist Res 1993;22(2):153-85. Figueira RA. O erro como dado de eleio nos estudos de aquisio da linguagem. In: Castro MFP, organizador. O mtodo e o dado no estudo da linguagem. Campinas: Ed. UNICAMP; 1996. p. 55-86. Kim KHS, Relkin NR , Lee K, Hirsch J. Distinct cortical areas associated with native and second languages. Nature 1997;388:171-4. Lebrun Y. Tratado de afasia. So Paulo: Panamed; 1983. Afasia na criana; p. 55-86. Lenneberg EH. Biological Foundations of language. New York: John Wily & Sons; 1967. Mayberry, R. The cognitive development of deaf children: recent insights. In: Segalowitz, S J, Rapin I, (edits). Handbook of neuropsychology .New York; v.7, section 10. Child neuropsychology (Part 2). Amsterdam, New York, Oxford: Elsevier, 1992. Mayberry RI, Eichen EB. The lost-lasting advantage of learning sign language in childhood: another look at the critical period for language acquisition. J Mem Lang 1991;30:486-512. Mecacci L. Conhecendo o crebro. So Paulo: Nobel; 1987. Mecklenburg DA, Babighian G. Cochlear implant performance as an indicator of auditory. In: Salvi RJ , Henderson D, Fiorino F, Colleti V, org. Auditory system plasticity and regeneration. New York: Thieme Medical Publishers, Inc., 1996.p. 395-404. Mogford K, Bishop D. O desenvolvimento da linguagem em condies normais. In: Mogford K, Bishop D (orgs). Desenvolvimento da linguagem em circunstncias excepcionais. Rio de Janeiro: Revinter; 2002. p. 01-26. Neville H, Coffey SA, Lawson DS, Fischer A, Emmorey K, Bellugi U. Neural systems mediating american sign language: effects of sensory experience and age of aquisition. Brain Lang 1997;57:285-308.

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Recebido em janeiro/04; aprovado em novembro/04. Endereo para correspondncia Ana Paula Santana Rua Marechal Jos Bernardino Bormann, 1523, ap. 702, Curitiba, CEP 80730-350 E-mail: [email protected]

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