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Identidade e Narrativa: Influência Judaica de Arthur Miller sobre o tema do Holocausto na peça After the Fall* Alexandre Feldman Palavras-chaves: identidade, narrativas, mito, história, literatura, memória, teatro, holocausto e estudos culturais. Introdução Este trabalho tem por intuito sintetizar os estudos efetuados acerca de identidade e narrativa e remetê-los à obra After the Fall de Arthur Miller. Serão levantados pontos relevantes e discussões desses estudos para depois serem transportados à obra de Miller e analisados dentro desta perspectiva. Os tópicos de identidade e narrativa compõem uma condensação dos textos apresentados na bibliografia. O leitor poderá verificar desde já que ficamos um pouco confusos em nosso dia-a-dia no momento em que somos perguntados acerca de nossa identidade e nem sempre imaginamos que as narrativas que cercam o mundo a nossa volta influenciam esta formação da chamada "nossa, minha ou sua identidade", e que mostram ao longo dos estudos ser tão sociais quanto a própria linguagem. Claro que isto não implica na eliminação do indivíduo e de seu papel como membro da sociedade, porém trazer este questionamento à tona pode e deve ampliar um horizonte preso no individualismo pós-moderno. Poder-se-ia argumentar que até mesmo este discurso do individualismo é narrado e, portanto, não é tão individualista quanto pretendia ser. Devemos, porém, nos lembrar de que não podemos cair na armadilha do conhecimento e aceitarmos tudo como válido e simplesmente dizer que somos narrados e nossas identidades são forjadas nessas * Estudo publicado na Revista Vértice no. 3 FFLCH/USP.

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Identidade e Narrativa: Influência Judaica de Arthur Miller

sobre o tema do Holocausto na peça After the Fall*

Alexandre Feldman

Palavras-chaves: identidade, narrativas, mito, história, literatura, memória,

teatro, holocausto e estudos culturais.

Introdução

Este trabalho tem por intuito sintetizar os estudos efetuados acerca de

identidade e narrativa e remetê-los à obra After the Fall de Arthur Miller. Serão

levantados pontos relevantes e discussões desses estudos para depois serem

transportados à obra de Miller e analisados dentro desta perspectiva. Os tópicos de

identidade e narrativa compõem uma condensação dos textos apresentados na

bibliografia.

O leitor poderá verificar desde já que ficamos um pouco confusos em nosso

dia-a-dia no momento em que somos perguntados acerca de nossa identidade e nem

sempre imaginamos que as narrativas que cercam o mundo a nossa volta

influenciam esta formação da chamada "nossa, minha ou sua identidade", e que

mostram ao longo dos estudos ser tão sociais quanto a própria linguagem. Claro que

isto não implica na eliminação do indivíduo e de seu papel como membro da

sociedade, porém trazer este questionamento à tona pode e deve ampliar um

horizonte preso no individualismo pós-moderno. Poder-se-ia argumentar que até

mesmo este discurso do individualismo é narrado e, portanto, não é tão

individualista quanto pretendia ser. Devemos, porém, nos lembrar de que não

podemos cair na armadilha do conhecimento e aceitarmos tudo como válido e

simplesmente dizer que somos narrados e nossas identidades são forjadas nessas

* Estudo publicado na Revista Vértice no. 3 – FFLCH/USP.

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narrativas. Temos, sim, de procurar localizar os fatores sociais da narrativa e

explorar várias de suas implicações com relação à identidade e história. Seguindo

este caminho poderemos delinear o papel da consciência histórica ao conquistarmos

uma identidade moral.

Identidade

Ser identificado como esta ou aquela pessoa ou ser qualificado como bom,

honesto ou desagradável é perceber-se na linguagem. O modo pelo qual

compreendemos a identidade é um produto da elaboração do discurso. Assim os

limites de nossas tradições narrativas servem como limites de nossa identidade.

Embora a identidade individual seja importante, devemos lembrar de que o discurso

existe no meio social e de que a criação discursiva da identidade é

fundamentalmente social. Na narrativa ocidental tendemos a narrar o indivíduo

como tendo uma identidade coerente e constante, esquecendo de que conforme o

posicionamento adotado, o indivíduo assumirá uma identidade específica.

In speaking and acting from a position people are bringing to the particular

situation their history as a subjective being, that is the history of one who has been

in multiple positions and engaged in different forms of discourse. Self reflection

should make it obvious that such a being is not inevitably caught in the subject

position that the particular narrative and the related discursive practices might

seem to dictate.1

Obviamente existem contradições que surgem a partir dessas concepções.

Uma delas é que as pessoas e os falantes adquirem crenças sobre si mesmos que não

necessariamente formam um todo coerente. Eles mudam de um posicionamento para

o outro conforme o discurso muda de acordo com os acontecimentos. Cada um

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desses "eus internos" pode entrar em contradição internamente ou externamente em

diferentes situações. Assim, uma pessoa pode ter um determinado comportamento

no ambiente de trabalho, onde ela é empregada e em sua casa, onde ela emprega,

uma outra pessoa, e assumir um posicionamento diferente que a coloca num outro

discurso. Vemos, então, que os interlocutores (falante e ouvinte) constantemente

negociam seus posicionamentos dentro do discurso. Este modo de pensar através do

posicionamento consegue explicar as descontinuidades na produção da identidade

(do eu) pela multiplicidade de discursos e interpretações conforme os interlocutores

se posicionam numa conversa.

A identificação da identidade também passa pelo crivo da história e valor

cultural. Então, podemos afirmar que a identidade também é social. Podemos

amplamente dizer que a história e a comunidade estão interligadas, onde o início da

inteligibilidade narrativa sinaliza o início da comunidade. É quando duas ou mais

pessoas se encontram e criam uma narrativa do que se passou que encontramos a

semente da comunidade. Ao assumirmos que a consciência histórica é uma herança

da consciência narrativa, dizemos que as realidades criadas no discurso narrativo

exercem funções de valor na cultura. Vivemos cercados por narrativas históricas,

como as de nosso povo, família, nação, região, etc. Essas narrativas históricas

servem de base para atingirmos uma identidade moral dentro da comunidade.

Seguindo uma lógica em que pessoas do grupo A não fazem x, pois fazem y, se

alguém escolhe x não é um de nós, e se alguém escolhe y é um de nós e um ser

moral. Entretanto, esta consciência moral que foi introduzida a partir do cristianismo

foi, ao longo do tempo, assumindo uma perspectiva relegada ao reino da natureza,

ao plano biológico, que diferenciou o homem em diferentes raças. A cada raça foi

atribuído um potencial de desenvolvimento da sua humanidade. Por isso, apesar da

vigorosa crítica dessa dimensão racista do evolucionismo, o racismo continua

presente. Há um imaginário que se constrói em torno da diferença com base numa

leitura que tenta explicar as diferenças das sociedades e das culturas e a identidade

1 Smith (1988: XXXV).

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de cada grupo por esse prisma. Porém não é a raça, e sim a cultura, que define a

diferença. Devemos desarticular esse pensamento ao demonstrar que a identidade

não é uma coisa fixa, mas algo que resulta de um processo de construção e de

negociação fundado em elementos estruturais.

Estamos sempre construindo identidades num jogo de contrastes, com elementos

que não são aleatórios, mas que são, no entanto, re-significados em função do

contexto, de interesses e de posições de poder, que fazem com que um grupo

reivindique uma nova visibilidade dentro da sociedade.2

Enfim, quer estejamos falando no plano psicológico quer no social, individual ou

coletivo, a identidade significa, na verdade, um recorte num jogo de identificações,

que vai permitir a um determinado grupo reconhecer-se e ser reconhecido pelas

características que o identificam e que o distinguem dos demais.3

Num outro ponto de vista, antes de encerrarmos esta introdução acerca da

identidade, podemos ressaltar o projeto crítico de Bhabha, que postula a passagem

do crítico ao político passando pelo processo da construção da identidade. É

importante lembrar que Bhabha coloca tais posições discursivas no sujeito colonial,

que servem de base para a construção do discurso colonial de supremacia. A

dialética da alteridade abrirá um caminho para a construção da identidade. O esforço

colonial que assume um discurso da necessidade de civilizar cria uma cadeia de

estereótipos que precisam ser contados e recontados várias vezes para serem

reconhecidos. O sujeito tem de assumir a "imagem" de identidade que lhe é dada,

tomando assim força e validade. Entretanto, o discurso colonial não percebe sua

imbricação na alteridade do colonizado, que ao ser civilizado apagará a diferença da

supremacia que fora construída. Assim, em termos psíquicos, a identidade "nunca

2 MONTES, M. Lucia. Raça e identidade: entre o espelho, a invenção e a ideologia. In: Raça e Diversidade.

Lilia Moritz Schwarcz e Renato da Silva Queiroz (orgs.). Edusp.

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existe a priori, nunca é um produto acabado; sempre é apenas o processo

problemático de acesso a uma imagem de totalidade".4 O conceito de imagem para

Bhabha é tão perigoso quanto a economia do suplemento de Derrida criando a já

citada cadeia de estereótipos via metáfora – enquanto substituição – e metonímia –

enquanto falta.

Para melhor definirmos o que vem a ser a economia do suplemento segue a

explicação abaixo:

Para Bakthin quem faz a ligação entre significado e significante é o usuário,

dependendo da ordem histórica e social. Por exemplo, casa (significante) terá

diferentes significados em diferentes épocas, contextos sociais, etc. Antes de

chegarmos ao significado precisamos lembrar o espaço social, a ideologia. Este é o

espaço da anterioridade. Não devemos confundir signo lingüístico com símbolo.

Símbolo não pressupõe outros significados. É convencional, pois não depende de

interpretação. É uma convenção social, fixo, estável e imutável. Já o signo é aberto,

mutável e depende da ideologia. A identidade é como o signo, ela pode mudar.

Saussure havia dividido o signo em significado/significante sem possibilidade de

divisão – ao se deparar com uma palavra, ela chama à consciência um determinado

significado. Derrida negara essa separação como se fossem dois pólos separados

afirmando que o significado não existe em si.

Fazendo uma associação entre a economia do suplemento e o conceito de

Bhabha encontramos três momentos da colonização. No primeiro momento, ao

deparar-se com a rejeição, o colonizado tenta igualar-se ao colonizador, que

ridiculariza esta tentativa. Depois vem a fase da vingança, com um discurso

semelhante ao do colonizador. E por fim o equilíbrio em que o colonizado percebe

que não existe essência, ele é híbrido.

3 Idem.

4 BHABHA, Homi. DissemiNation: Time, narrative and the margins of the modern nation. In: ________. The

Location of Culture. Routledge, 1994. p 40-65.

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Faz-se necessário salientar com o máximo de atenção que o hibridismo aqui é

um e o outro. Por exemplo, um indivíduo é ao mesmo tempo pai e filho, patrão e

empregado, etc., não sendo um mais o outro e transformando-se num terceiro.

O colonizador precisa do colonizado. Aqui temos o suplemento – se a obra

necessita do suplemento, então não se pode dizer que seja a parte mais importante.

Chamamos de economia do suplemento porque não há valores estáveis e fixos. O

"eu" nunca é completo, ele precisa do outro numa relação que não é harmoniosa: um

elemento precisa do outro, nunca haverá síntese; identidades e alteridades

coexistem.

Na narrativa, o receptor fará a sua leitura funcionando como suplemento onde

a difference5 terá seu significado sempre adiado.

Pensar nossa identidade apenas como nossos nomes ou o documento de

identidade é seguir uma tradição antropológica que pensou a noção de identidade

como algo individual.

Narrativas

Ao aceitarmos as narrativas como um fenômeno lingüístico, definimos que

uma estória6 ou narrativa aceitável dentro dos padrões ocidentais deve em princípio

estabelecer uma meta, um evento a ser explicado, um estado a ser alcançado ou

evitado, ou seja, um ponto. A narrativa estará dentro de um molde que fará com que

ela produza elementos bons ou ruins, cujo valor é determinado pelo narrador. Uma

estória inteligível é aquela na qual os eventos selecionados servem para transformar

a função da narrativa mais ou menos provável, aceitável ou importante. É importante

5 Vide conceito de differance (Derrida) e BROTHERSTON, Gordon. Towards a Grammatology of America:

Lévi-Strauss, Derrida, and the Native New World Text. In: Barker F. et al. Europe and its others. Vol. 2.

Colchester: University of Essex, 1985. p. 78-90. 6 Preferiu-se aqui a forma "estória" ao contrário do Dicionário Aurélio, que recomenda a grafia "história"

tanto no sentido de ciência histórica, quanto no de narrativa de ficção, conto popular ou demais acepções,

devido à relevância que há neste trabalho e que será abordada mais à frente entre o que é considerado história

ou ficção na cultura ocidental e as diferenças ou igualdades entre os termos história e estória nas culturas

tradicionalmente orais.

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ressaltar que as pessoas não são livres para incluir em suas narrativas tudo aquilo

que quiserem; tudo depende do ponto de vista ou do resultado em que se pretende

chegar. Usamos a forma de seqüência linear e temporal na maioria das vezes.

Devemos notar que as narrativas consideradas bem escritas procuram estabelecer

uma estabilidade da identidade, ou seja, um protagonista não pode ser vilão em um

momento e herói em outro. Pode-se criar uma falsa impressão acerca de uma

personagem mas no final há uma identidade estável, ou seja, cria-se assim uma

identidade coerente, fixa e imutável. Os modelos contemporâneos ideais são também

aqueles nos quais as ligações de eventos oferecem uma explicação e justificativa

para o evento a ser narrado, gerando assim um sentido de coerência aos eventos da

vida em si. Assim a vida adquire sentido e significado. Chegou-se a um

questionamento que vem passando pelo tempo desde a época de Aristóteles a

respeito das narrativas, que foi a tentativa de desenvolver um vocabulário específico

para a trama que estaria intimamente ligada à experiência do narrador junto à

natureza.7 Percebemos, então, que, com efeito, as narrativas exercem uma variedade

de funções na vida social, fazendo mais do que criar realidades para a troca de

pensamentos, conversas, etc.; elas próprias são constituintes de modelos de conduta

social atuais. Nesse sentido, as narrativas servem para gerar e sustentar as tradições

culturais. Bem verdade é que as narrativas servem às vezes também para romper

estas relações. Podemos agora ampliar um pouco mais esta abordagem sobre a

narrativa lembrando que ela pode ser tanto oral quanto escrita e levantar alguns

pontos a este respeito. Pensando primeiramente na produção oral e adotando um

ponto de vista imanentista, assumiríamos que existem apenas conversas verdadeiras,

passado e presente e as memórias humanas do ocorrido que formam a fonte

necessária tanto cultural quanto pessoal para a construção do presente. Para irmos

além deste ponto e se quisermos falar de diferenças entre os sexos, idades e

linguagens, devemos introduzir um outro ponto, que é o do posicionamento.

Considerando que as conversas são formas sociais de relacionamentos interpessoais,

7 Vide Northrup Frye (1957) e Joseph Campbell (1956).

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chegamos ao ponto em que o conteúdo social do que é dito será mostrado como

dependente do posicionamento dos interlocutores que são em si um produto da força

social que o próprio ato oral contém. Em outras palavras estamos dizendo que saber

algo é saber dentro de um ou mais discursos e que o posicionamento adotado pelo

interlocutor é que inevitavelmente oferecerá as imagens, metáforas, histórias e

conceitos que são relevantes a partir daquele posicionamento específico. Assim, uma

pessoa verá uma coisa como cidadão de um determinado país, diferentemente de

cidadãos de um outro país; contudo, esta mesma pessoa terá posicionamentos

diferenciados dentro do próprio país no que se refere a diferenças culturais, sociais,

ideológicas, sexuais, religiosas, até chegar ao âmbito familiar etc., assumindo um

posicionamento em cada uma das situações e gerando uma multiplicidade de "eus",

fato que foi abordado na parte de identidade. Voltando ao ponto das narrativas orais

e escritas, podemos delinear algumas características que levaram às formulações dos

modelos ocidentais e demonstrar sua influência sobre o conceito de história e

memória.

Quando uma geração transmite sua herança cultural para a seguinte, ela passa

os recursos materiais existentes, os modelos de agir daquele determinado grupo, que

são parcialmente transmitidos pela oralidade, enquanto a maneira de cozinhar,

plantar ou se comportar são transmitidos pela imitação direta. Contudo, os

elementos mais significativos em qualquer cultura são transmitidos e residem nas

palavras cuja gama de significados é dada pelos membros da sociedade. A

comunicação oral tem um efeito considerável no conteúdo e na transmissão do

repertório cultural. Cada palavra é ratificada em uma situação concreta

acompanhada por diferenças na tonalidade e gestos. Então o conteúdo total da

tradição social, com exceção da herança material, é armazenado na memória. O que

o indivíduo consegue lembrar é o que tem importância para a sua experiência das

relações sociais mais importantes. A cada geração os novos elementos serão

ajustados aos antigos num movimento e processo de interpretação no qual o que

deixar de ser relevante será naturalmente descartado pelo processo do esquecimento.

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Assim a função social da memória pode ser vista como o estágio final da

organização da tradição cultural em sociedades orais. A linguagem é desenvolvida

em associação íntima com a experiência da comunidade e é aprendida face a face

com os outros membros. O que possui relevância social continua armazenado na

memória, enquanto o restante é geralmente descartado. Como exemplo mais direto,

poderíamos citar vários povos indígenas das Américas, cujos mitos são

constantemente recontados e muitas vezes sofrem mudanças. As mudanças são

incorporadas pelas novas gerações e não são vistas como uma violação do mito

inicial, pois não há a referência escrita. A autenticidade é ratificada no presente e

assim sucessivamente nas gerações vindouras. Por isso que a partir do momento em

que se começou a escrever os mitos indígenas criou-se uma problemática que antes

era inexistente nos povos de cultura oral. Uma vez escritos, os contos assumem uma

forma final e "verdadeira", o que impediria sua modificação, ou seja, o mecanismo

de memória e esquecimento não estaria mais podendo operar, e o mito ficaria no

passado, enquanto estas culturas são culturas que essencialmente ligam o passado e

o presente num momento concreto aqui e agora sem distingui-los do modo

ocidental. Por outro lado a tentativa de vários antropólogos ou historiadores de

tentar registrar os mitos e tradições indígenas encontra base na necessidade de

manter registros de tais culturas frente a uma destruição constante desde a chegada

das primeiras caravelas.

O processo de mudança (memória e esquecimento, também conhecido como

structural amnesia) está presente em todas as culturas orais, e o modo pelo qual

essas culturas concebem o mundo passado depende do processo pelo qual a

transmissão é efetivada. Mito e história se fundem em um só. Assim os mitos e a

história dos povos de tradições orais se confundem, e numa visão ocidental

positivista, seriam considerados povos sem história. Contudo, podemos ampliar este

enfoque e ver que do ponto de vista deles a história e o mito são a mesma coisa, e

são a condição de relação com o tempo presente. No nosso caso, procuramos dividir

mito de história, e a memória não é mais tão necessária, ela é secundária

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(entendendo memória como o processo utilizado pelos povos de tradição oral e

levando em consideração o ponto de vista grego da necessidade da dialética para a

compreensão mais ampla do que é escrito [a seguir]). É importante salientar que no

Ocidente considera-se que a origem da história coincide com a origem da escritura

alfabética, e por isso aos poucos vai-se gestando a consciência de que os povos

ágrafos são povos sem história. Verificaremos que o conceito de história no mundo

grego (istoreo) era o de informe de testemunhas oculares e que em Roma o mesmo

vocábulo como verbo adquiriu uma dimensão cronológica que não havia no conceito

grego. O passado em si depende de uma sensibilidade histórica que dificilmente

opera sem registros escritos que alteram o modo de transmissão, bem como o

repertório cultural. Várias civilizações na antigüidade, como os sumérios, egípcios,

hititas e chineses, eram alfabetizadas até certo sentido, e os seus grandes avanços em

campos administrativos e tecnológicos dependeram do sistema de comunicação

escrito. Mas estes sistemas apresentavam limitações. Foi somente com o

aparecimento do sistema fonético, que foi adaptado para expressar qualquer nuance

do pensamento, que fatos pessoais como fatos de importância social puderam ser

igualmente transmitidos.8 Até então, os sistemas de escrita não-fonética tendiam à

transmissão apenas dos elementos selecionados pelos especialistas da escrita e

expressavam o posicionamento coletivo. O sucesso do alfabeto vem do fato de que

seu sistema de representação gráfica leva vantagem sobre o modelo social da

linguagem em todos os sistemas de línguas. Ao simbolizar em letras as unidades

fonêmicas, o alfabeto torna possível ler qualquer coisa sobre a qual a sociedade

possa falar. Entretanto, é importante ressaltar que a passagem de uma cultura de

transmissão oral para uma cultura escrita foi gradativa. Como exemplo podemos

citar que apesar da adoção do sistema de escrita semita pelos hebreus, não foi antes

do tempo de Ezra (c. 444 a.C.) que um texto oficial da Torah foi publicado e que o

corpo religioso se transformou num livro selado e com acesso a qualquer um que

quisesse estudá-lo. Verificamos, então, que a escrita cria um processo de

8 Vide Goody/Watt: The consequences of Literacy. 1967.

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substituição do mito pela história (no conceito ocidental), porém o conceito de

história no mundo grego é investigativo e pretende depreender a realidade em todas

as áreas do conhecimento humano. A escrita também não foi facilmente adotada no

mundo grego, e houve várias discussões a respeito de sua utilização e valor com

relação à oralidade. As razões que Platão e Sócrates dão à dialética como o método

essencial de se procurar atingir a verdade são muito próximas das formas

apresentadas na transmissão das tradições culturais nas sociedades orais.

The first advantage is that possible confusions or misunderstandings can always be

cleared up by question and answer; whereas 'written words', as Socrates tells

Phaedrus, 'seem to talk to you as though they were intelligent, but if you ask them

anything about what they say, from a desire to be instructed, they go on telling you

just the same thing for ever'. The second intrinsic advantage is that the speaker can

vary his 'type of speech' so that it is 'appropriate to each nature... addressing a

variegated soul in a variegated style... and a simple soul in a simple style'. And so,

in the Phaedrus, Socrates concluded that 'anyone who leaves behind him a written

manual, and likewise anyone who takes it over from him, on the supposition that

such writing will provide something reliable and permanent, must be exceedingly

simple-minded. (Phaedrus, 275 d; 275 c; 277 c).9

Ao contrário do que se poderia imaginar, o surgimento da escrita não

implicou numa seleção final do que deveria ser considerado mito ou história nem

legou o conhecimento total, o que ocorreu foi que nas sociedades alfabetizadas, por

não possuírem um sistema de eliminação, ou seja, sem terem a "structural amnesia",

o indivíduo foi impedido de participar plenamente na tradição cultural total, como

ocorre nas sociedades orais. Mais além, chegou-se na atualidade à conclusão de que

temos um outro ponto a ser resolvido não apenas da diferença entre mito e história,

mas também entre o que é história e o que é literatura. Segundo Walter Mignolo "a

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convenção de ficcionalidade não é uma condição necessária da literatura, ao passo

que a adequação à convenção de veracidade é condição necessária para o discurso

historiográfico"10

. Já Searle (1975) ofereceu a solução de que o discurso que se

enquadra na convenção de ficcionalidade corta as relações que se estabelecem entre

o discurso e o mundo, enquanto a convenção de veracidade assume uma relação de

correspondência. Por sua vez, White (1978) postula a similaridade entre história e

literatura, e história e ficção, e considera o relato historiográfico também uma ficção

verbal cujo conteúdo é tanto inventado quanto encontrado e cujas formas têm mais

em comum com a literatura do que com as ciências. Fica assim difícil delimitar

romance, testemunho, literatura-testemunho, etc. Para Alfredo Bosi11

, a história vem

do olhar, do testemunho ocular, daí ser baseada em testemunhos oculares, enquanto

a literatura é um espaço de linguagem que está na história e está na poesia. A frase

do romancista não precisa passar pelo teste da realidade, o que se faz necessário no

discurso historiográfico. Para Bom Meihiy12

a realidade é sempre uma tradução

literária e a impossibilidade de recriação do acontecido leva à inevitável "construção

do fato", e, assim, a história e a antropologia nada mais seriam do que a

"literaturização" mais ou menos eficiente, procedida em termos de análise de um

episódio eventualmente ocorrido. E conclui repetindo Marx, dizendo que "tudo é

história" (até mesmo a literatura).

Tendo introduzido o campo da narrativa oral e escrita e as discussões do que

consideramos mito, história e literatura, passemos à obra de Miller.

Arthur Miller e After the Fall

A maioria das pessoas aceita que Arthur Miller mereça o título de

"dramaturgo social", e a dúvida que nos salta aos olhos é se deveríamos considerá-lo

9 Vide Goody/Watt: The consequences of Literacy. s.d.

10 Chiapini, H. e Aguiar, F (orgs.). Literatura e História na América Latina. Edusp, 1993.

11 Idem.

12 Ibidem.

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marxista ou humanista. Vários críticos acreditam que sua obra apresenta uma visão

socialista dentro da estrutura econômica dos Estados Unidos. Levantando questões

de ordem política e ideológica, ele trabalha e cria o ambiente capitalista no qual as

personagens estão inseridas, numa sociedade baseada em ideais fictícios de ganhos

financeiros e materiais cujos ideais são transmitidos dos pais aos filhos.

Mesmo quando o espectador (ou leitor) não chega tão longe e não enxerga

Miller como um socialista que tenta reformar ou modificar a situação vigente,

consegue identificar críticas aos valores contemporâneos. Ele critica o sistema e traz

à superfície da consciência a responsabilidade social. Por isso, Arthur Miller é

considerado um escritor de mensagens, sejam elas positivas ou negativas,

humanistas ou socialistas. Em muitos de seus ensaios ele reafirma sua crença de que

a tragédia "nos traz o conhecimento". No seu artigo intitulado The Shadows of the

Gods, escrito durante os anos da depressão, ele escreve que tinha sido surpreendido

pelos "poderes das crises econômicas", como a personalidade de um homem era

mudada por seu mundo e como ele poderia mudar esse mundo: "You can't

understand anything unless you understand its relation to its context".13

A obra After the Fall, de Arthur Miller, possui certas peculiaridades mesmo

se comparada com outras obras do autor no que se refere desde a montagem do

cenário até o texto. Este último traz à superfície da consciência não apenas a

responsabilidade social, mas uma memória social. Esta obra é a mais introspectiva

da carreira de Miller, pois, diferentemente das outras, "a ação se passa na mente,

pensamento, e memória de Quentin". Por esse caráter introspectivo a obra foi (e

ainda é) considerada por muitos uma obra autobiográfica, apesar de o autor negar tal

fato.

Centola: The one play that seems to provide the clearest revelation of your vision is

After the Fall.

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Miller: Just about, yes.

Centola: Not many people see it that way.

Miller: Well, I think they were blinded by the gossip and the easy way out. But it's

not only in my work. I think people go for tags for any writer; you don't have to

think about what he's doing any longer, especially if he's around a long time.14

Análise

Podemos, então, iniciar nossa análise a partir do posicionamento do autor.

Apesar de Miller negar que a obra seja autobiográfica, e apesar de no meio literário

ser constante a diferenciação entre o autor e o "eu lírico", podemos assumir pela

introdução efetuada neste trabalho que o autor e o "eu lírico" têm pontos em comum,

não dizendo em nenhum momento que os dois sejam um, mas que um contém

elementos do outro. Assim, quando o autor escreve uma obra, isto já é feito dentro

de uma língua específica, já temos aqui um posicionamento cultural. Obviamente se

nos aprofundarmos verificaremos que existe um espiral de elementos culturais que

são transmitidos consciente e inconscientemente para dentro da obra. Algumas obras

de ficção não têm vínculo direto com a realidade, porém mesmo essas têm uma base

na realidade. Uma obra não existe ex nihilo. Ela é um produto social também.

Portanto, não há uma diminuição no valor qualitativo da obra o fato de ela possuir

elementos do autor que na verdade são elementos da cultura (ou culturas) na qual ele

está inserido. É importante retomar que o autor não é livre para escrever tudo aquilo

que queira. E que mesmo a inconsciência do eu-lírico não pressupõe uma liberdade

total do ponto de vista do autor, porque não se espera, devido às convenções

literárias, que um autor escreva sobre o modo como escova os dentes ou paga suas

13

MOSS, Leonard. Arthur Miller. New York, Twayne Publishers/G. K. Hall & Co., 1980. 14

MILLER, Arthur. The Theater Essays of Arthur Miller. New York, Da Capo Press, Inc. 1996, p. 401.

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contas. Tal relato poderia caber em uma obra biográfica, e não numa obra de ficção.

Apesar de termos consciência de que as obras biográficas também sejam fictícias,

uma vez que é impossível retratar a totalidade da vida de alguém, quando uma obra

dessas é escrita ela própria já é feita a partir de um posicionamento que leva em

consideração uma "seleção" de fatos considerados importantes. Por outro lado, o

próprio eu-lírico não é tão livre, pois ele pode escrever sobre o que quiser, mas

sempre estará enraizado na linguagem e cultura às quais pertence.

Além de analisarmos o posicionamento do ponto de vista autor/eu-lírico

podemos lembrar de que, por se tratar de uma peça teatral, devemos demonstrar as

diferenças de posicionamento no modelo dramático e numa realidade onde

interlocutores se comunicam (um eu épico? Mas sendo épico, não seria um nós ou o

plural é apenas uma miragem do texto que se projeta no teatro?). No modelo

dramático as pessoas são construídas como atores com as falas já escritas e seus

papéis determinados pela peça em que atuam. Eles não têm escolha de como encenar

(desenvolver) seus papéis. Aprendem a assumir um determinado papel através da

observação. Ao contrário, o posicionamento nos permite pensar em nós mesmos

como sujeitos e nos posicionando nas conversas de acordo com as narrativas.

Somos, assim, agentes (produtores/diretores), bem como autores, e os outros

participantes são co-autores e co-produtores do drama. Mas somos ao mesmo tempo

o público variado e amplo que vê a peça e que acrescenta a ela as múltiplas e

contraditórias interpretações baseadas em nossas próprias emoções e leituras de nós

mesmos na situação. Aqui novamente poderíamos levantar a imagem de uma espiral

em que há ligações entre os fatos, pontos e as personagens com o mundo externo à

obra, um distanciamento com relação ao centro, mas parte de um todo maior.

Obviamente no teatro sabemos que os atores não têm a "liberdade" de

posicionamento como nós no dia-a-dia, porém cada personagem é um recorte de

algo que foi extraído de um meio cultural. O modelo dramático clássico focalizou o

papel das personagens como determinante, embora tenham sido feitas algumas

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tentativas de associação/aplicação de modelos disponíveis na psicologia social

àqueles do drama.15

O tema aqui proposto é o da memória do holocausto, e se considerarmos que

o autor é de origem judaica e durante a infância foi educado dentro de um lar judaico

(não necessariamente religioso, mas culturalmente judaico), podemos transplantar

que a imagem de tal evento na memória de Quentin, que quando encenada se utiliza

do recurso de uma projeção da imagem de uma torre de um campo de concentração

que é iluminada no palco, traz algo da cultura de Arthur Miller, do meio em que ele

vive e de sentimentos que são próprios de quem adota tal posicionamento como

pode ser observado na entrevista abaixo:

Centola: In a few different places, you say that man is in the society and society is in

the man, just as the fish is in the water and the water is in the fish. That statement

reminds me of Jung, and I was wondering if you believe his theory about the

individual carrying around with him in the collective unconscious, deep within his

psyche, the cargo of his ancestral past?

Miller: Yeah. I've often been tempted to believe that, although, of course, it's

unprovable. And in my own case, I think, for example, I was never really a religious

person in any conventional sense. I didn't even make sense out of the Bible. Yet, all

of the ideas that we are talking about now are stemming from the Old Testament.

The more I live, the more I think that somewhere down the line it poured into my

ear, and I don't even know when or how. But I'm reading it again now, and I'm

amazed at how embedded it is in me, even though, as I say, I never dealt with it

objectively before.16

15

Vide Cappieters, 1981. 16

MILLER, Arthur. The Theater Essays of Arthur Miller. New York, Da Capo Press, Inc. 1996, p. 408-9.

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Centola: Do you think that we also contain racial instincts?

Miller: Yeah, I think so. I think that they're not racial instincts; that's kind of a gross

way, a gross measure of it, calling it a racial instinct. There is a culture that is in

gestures, in speech, in temperament, and in the reactions of one to another, which is

certainly so basic that it is the first thing probably a kid, I think, is taught. And it

goes right into the irrational of the unconscious before the child even gets asleep.

We call this some kind of an ethnic or racial inheritance.17

O próprio autor reconhece a influência do meio cultural na vida das pessoas e,

portanto, na produção intelectual e artística. Este fato, não impõe que uma obra

acerca da temática do genocídio ocorrido na Segunda Guerra possa apenas ser

produzida por judeus. Contudo, observa-se que a grande produção artística a

respeito tem esta origem.18

Contudo, não é tão fácil assim falar de um assunto tão cheio de controvérsias

quanto o holocausto. Em primeiro lugar porque estaríamos aqui retomando o duro

ponto de ser difícil demarcar o que é ficção do que é realmente história. Se é

história, será que a ficção ou o drama, como é o caso da peça que analisamos, têm o

direito de usar esses elementos que cabem à história? Qual o perigo de usarmos

elementos históricos nas obras de ficção? O efeito inverso no qual toda a história

pode virar ficção pode existir? Tentaremos aprofundar tais pontos e remetê-los a

After the Fall.

Em princípio faz-se necessário fazer uma correção ao termo holocausto,

amplamente utilizado, inclusive no âmbito literário e histórico. O termo em si

carrega um significado de sacrifício, imolação, expiação e abstração da vontade

própria para satisfação de outrem. O que não corresponde com o que ocorreu na

17

idem, p. 409. 18

Para mais detalhes acerca desta produção leia

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Segunda Guerra. O que tivemos lá foi o genocídio sistemático de milhões de pessoas

e, portanto, este será o termo que utilizaremos para nos referir ao holocausto.

O tema do Genocídio é amplamente abordado na literatura hebraica israelense

e por autores judeus por todo o mundo. A literatura do Genocídio envolve várias

questões judaicas modernas, em oposição à identidade judaica da diáspora, os

conflitos ideológicos e sociais que surgiram a partir da Segunda Guerra Mundial, a

maneira pela qual os mortos e os sobreviventes são encarados, dentre vários outros

enfoques. O Genocídio do povo judeu ocorrido neste século é um tema que resiste à

capacidade da mente. Podemos ler o Genocídio como evento central deste século;

podemos reconhecer que ele nos deixa intelectualmente desarmados, fitando

desamparadamente a realidade ou mistério do extermínio em massa, como na fala de

Holga

Nobody is innocent they didn't kill 19

e na de Miller

The Holocaust – the story of a great nation turned criminal on a vast scale –

implicitly defeated us, broke confidence in our claims to being irrevocably in the

camp of what was once securely called humanity, and left us with absurdity as the

defining human essence.20

Há pouca probabilidade de encontrar uma estrutura racional de explicação

para o Genocídio: ele forma uma seqüência de eventos sem precedentes históricos

ou morais cuja gênese pode ser identificada na história ocidental e derrocada do

capitalismo no século XX. Pensar em caminhos em que a imaginação literária

poderia "usar" o Genocídio seria emaranharmo-nos numa multiplicidade de

19

MILLER, Arthur. After the Fall. A play in two acts/final stage version. New York, Penguin Books, 1979. 20

MILLER, Arthur. The Theater Essays of Arthur Miller. New York, Da Capo Press, Inc. 1996, p. 549.

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problemas para os quais nenhuma estética pode nos preparar. Será que horror e arte

podem coexistir? Talvez combinar os dois seja outra expressão de horror. O famoso

dito de Theodor Adorno – que após Auschwitz seria barbárie escrever poesia lírica –

é mais do que compreensível. Adorno não era ingênuo a ponto de prescrever aos

escritores uma linha de conduta que ameaçasse o seu próprio futuro como escritores.

Ele pretendeu focalizar a dificuldade completa – o risco literário, o perigo moral –

de lidar com o Genocídio em literatura. É nessa fala que encontramos a justificativa

e a aceitação da representação na literatura e mais especificamente na peça After the

Fall. É importante também lembrar que nesta peça o tema do Genocídio não é

central. A personagem Quentin passa por um processo de lembrança e destas

lembranças surge a imagem da torre do campo de concentração. Os recursos

expressionistas usados por Miller chegam a um grau de profundidade que a

lembrança de Quentin é uma lembrança não mais de uma pessoa (ou um judeu – não

há referência explícita à identidade judaica de Quentin no texto), mas do grupo, da

humanidade.

Interviewer: Why did you choose to use a concentration camp in the first place?

Miller: Well, I have always felt that concentration camps, though they're a

phenomenon of totalitarian states, are also the logical of contemporary life. If you

complain of people being shot down in the streets, of the absence of communication

or social responsibility, of the rise of everyday violence which people have become

accustomed to, and the dehumanization of feelings, then the ultimate development

on an organized social level is the concentration camp. Camps didn't happen in

Africa where people had no connection with the basic development of Western

civilization. They happened in the heart of Europe, in a country, for example, which

was probably less anti-Semitic than other countries, like France. The Dreyfus case

did not happen in Germany. In this play the question is, what is there between

people that is indestructible? The concentration camp is the final expression of

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human separateness and its ultimate consequence. It is organized abandonment...

one of the prime themes of After the Fall.21

É este abandono da consciência e responsabilidade social que Miller critica.

O campo de concentração é em After the Fall a representação do abandono social.

É comum ouvirmos que a literatura tem de permanecer fora da zona de fogo e

que os números, os documentos e os fatos bem formulados devem falar. Tal

argumento é válido, mas desejamos demonstrar que os números e os fatos foram os

recursos próprios e bem provados dos assassinos. O homem como um número é um

dos horrores da desumanização.

It may be the Holocaust clinched the case for reducing personality to a laughable

affection.22

Nem englobando teoria ou fé religiosa nos tornamos habilitados a alcançar

uma firme convicção de que agora, finalmente, entendemos o que aconteceu durante

a Solução Final. Miller traz à consciência de Quentin uma lembrança que deve ser

transmitida ao público e guardada nas diversas consciências sem que as pessoas

passem a considerar o fato como apenas literário. O fato foi até a literatura e a

literatura não tira o fato de sua historicidade. Seria um erro grave transformar o

Genocídio ou "elevá-lo" a uma ocorrência fora da história, um tipo de visita

diabólica, pois então absolveríamos tacitamente os seus agentes humanos e sua

responsabilidade. O Genocídio foi preparado ao longo da história da civilização

ocidental, embora nem todos aqueles que participaram da preparação soubessem o

que estavam fazendo ou teriam aceitado o resultado. A necessidade permanente da

memória é justamente fazer a ligação entre história e literatura. Através da memória

podemos ser lembrados, como ocorria nas culturas orais, de fatos que hoje

21

idem, p. 289. 22

ibidem, p.549.

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influenciam nosso presente, sem termos consciência direta. Memória nesse sentido é

a ligação entre ciência (história) e humanidade (literatura/arte). É exatamente neste

ponto que a literatura tangencia a história, num ponto em que a identidade do ser

humano é incoerente, e pode nos levar a diferentes níveis de reflexão. Ao trazer à

tona o tema do Genocídio, Arthur Miller questiona nossas memórias sobre o que

somos como seres humanos e sobre nossa responsabilidade coletiva.

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