Identidade Líquida

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Identidade Líquida Pedro Victor Modesto Batista Resumo: A identidade é um dos temas mais em pauta na atualidade. Visando amplificar as discussões acerca desse conceito, deu-se um mergulho no mundo líquido-moderno da obra do sociólogo polonês Zygmunt Bauman e com o objetivo de esclarecer como ele conceitua a vigente época pós-moderna ou a Modernidade Líquida e dela inferir o que vêm a ser a identidade e as possíveis influências dessa atual configuração a esse constructo. Usou-se da pesquisa bibliográfica para tal. Portanto, na atual conjuntura as identidades são melhor caracterizadas como líquidas, pois não possuem um princípio norteador, são fugazes, consumíveis, vestidas e descartáveis; são ambivalentes e incertas. Entendendo que a identidade sempre será algo a ser construído e nunca solidificado, um campo de batalha e de interesses, sua definição se dá pelas identificações e o cíclico uso/consumo das mesmas. Conclui-se que o autor ao sancionar a liquides chama a atenção para a construção social das identidades e que é na consideração da diferença enquanto diferenças, que uma ordenação humanitária e global poderá ser sonhada. Palavras-Chave: Modernidade Líquida, Zygmunt Bauman, Identidade líquida.

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Apresentação sobre o conceito de identidade na obra de Bauman

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Identidade Líquida

Pedro Victor Modesto Batista

Resumo: A identidade é um dos temas mais em pauta na atualidade. Visando amplificar as

discussões acerca desse conceito, deu-se um mergulho no mundo líquido-moderno da obra

do sociólogo polonês Zygmunt Bauman e com o objetivo de esclarecer como ele conceitua

a vigente época pós-moderna ou a Modernidade Líquida e dela inferir o que vêm a ser a

identidade e as possíveis influências dessa atual configuração a esse constructo. Usou-se

da pesquisa bibliográfica para tal. Portanto, na atual conjuntura as identidades são melhor

caracterizadas como líquidas, pois não possuem um princípio norteador, são fugazes,

consumíveis, vestidas e descartáveis; são ambivalentes e incertas. Entendendo que a

identidade sempre será algo a ser construído e nunca solidificado, um campo de batalha e

de interesses, sua definição se dá pelas identificações e o cíclico uso/consumo das mesmas.

Conclui-se que o autor ao sancionar a liquides chama a atenção para a construção social

das identidades e que é na consideração da diferença enquanto diferenças, que uma

ordenação humanitária e global poderá ser sonhada.

Palavras-Chave: Modernidade Líquida, Zygmunt Bauman, Identidade líquida.

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Alegam que a água cava a areia por baixo.

Assis Brasil

Introdução

Uma das maiores redes de “relacionamento virtual”, a rede de comunicação social,

Orkut lança aos seus usuários a seguinte questão: “Quem sou eu?”, em uma visita rápida às

respostas dadas pelos integrantes dessa “comunidade”, os “amigos”, encontram-se letras

de música, poesia, espaços em branco, características físicas, profissionais e de interesses,

essa variedade de expressões sucintas introduz os sujeitos virtuais a questionar-se sobre o

que pode identificá-los para os demais membros desse espaço. Afinal, o que vêm a ser a

identidade para o sujeito contemporâneo?

Identificar-se e se auto-referenciar é uma das problemáticas levantadas ao conceito

de identidade, conceito estudado pelas diversas áreas da ciência social (Antropologia,

Psicologia, Arqueologia, Filosofia, Sociologia, História e etc.) considerado complexo,

ambíguo e inconclusivo (Hall, 2005; Vecchi, 2005). Pois o que se observa é que os sujeitos

estão cada vez mais sem uma referência sólida que estabeleça os seus lugares “no mundo

social e cultural quanto de si mesmos” (Hall, 2005, p. 9). Dentro desse enfoque, percebe-se

que o terreno da identidade é movediço, extremamente espinhoso, já que grupos, sujeitos e

nações usam desse conceito para defender sua cultura, etnia, crença, sexualidade, gosto e

modos de ser.

Portanto, tomando como exemplo as contribuições de Stuart Hall (2005), vê-se que

o conceito de identidade é referente a três sujeitos implicados por uma realidade histórica e

social. Têm-se o sujeito do iluminismo que possui uma identidade baseada na noção de

“individuo totalmente centrado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de

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ação” (p. 10), portador de um núcleo interior – a identidade – que surge no nascimento e

permanece essencialmente o mesmo até sua morte.

Com a crescente complexidade do mundo moderno, surge um sujeito sociológico

que questiona essa idéia de núcleo interior e percebe que o mesmo não possui uma

autonomia e auto-suficiência, porém, era formado na interação/relação com os outros

sujeitos e instituições (família, escola, igreja e etc.), com os outros sociais, que serviriam

de agentes de mediação para os valores, costumes, normas, sentidos, enfim, a cultura.

Nesta perspectiva, “a identidade é formada na „interação‟ entre o eu e a sociedade” (Hall,

2005, p. 11) e vêm preencher o espaço “entre o „interior‟ e o „exterior‟ - entre o mundo

pessoal e o mundo público” (Hall, 2005, p. 11).

É justamente essa dinamicidade que ampliará a complexidade do processo de

identificação, pois ele torna-se “mais variável, provisório e problemático” (Hall, 2005, p.

12) e também dará tecido para o atual sujeito pós-moderno caracterizado por meio dessa

mobilidade e transitoriedade dos modelos de identificação ou representação, este sujeito

representa diferentes identidades em diferentes contextos das mais variadas formas. Sua

identidade não é “fixa, essencial ou permanente” (Hall, 2005, p. 13), é histórica e não

biológica e está em constante deslocamento ou decentração.

Em síntese, a identidade é entendida inicialmente ao que diz respeito a um eu

centrado e organizado por uma identidade fixa, que logo é indagada sobre sua constituição

imutável e passa a se ter um eu definido pelas relações, um eu relacional, essas relações

deslocam os sujeitos de um centro unívoco e fazem da instabilidade e carência de modelos

de identificação a marca do sujeito contemporâneo, apresenta-se um eu em fragmentos

respondendo a situações de ambientes reais ou virtuais que estão em uma contínua

processualidade e movimento (Hall, 2005).

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Desse ponto, em que se fez essa discussão preliminar sobre a identidade visando

expor a relevância do tema, tomar-se-á em nível de contribuição a essa problemática a obra

do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, tendo em vista que se trata de um autor que

trabalha com a compreensão dos aspectos contemporâneos da estruturação da sociedade,

as relações humanas, a globalização, a urbanização e dentre outros temas que estão

associados com a época pós-moderna1, chamada de Modernidade Líquida pelo mesmo.

Então, para adentrar na sua conceituação de identidade uma breve caracterização do que

vêm a ser o mundo líquido-moderno se faz necessária para daí definir e traçar a possível

influência do atual período para esse constructo.

Modernidade Líquida

Como metáfora para caracterizar a atual conjuntura contemporânea, Bauman

(2004b) usa a definição da Encyclopædia Britannica de “fluidez”, que em sua leitura é a

qualidade dos líquidos e dos gases em não manter constâncias na sua forma, pois não

suportam tensões, estão sempre em mudança por meio dos seus fluxos; são transitórios,

não podem ser definidos pelo espaço que ocupam ou o tempo. Eles podem ser datados, já

que o espaço é irrelevante frente a sua mutabilidade e o tempo fundamental para uma

aproximação fidedigna de significação. Sua mobilidade ou “fluidez” os associa a idéia de

“leveza” (apesar de haver líquidos mais densos que muitos sólidos, pontua o autor), pois

1De acordo com Severiano (2001) o conceito de pós-modernidade sugere uma mudança de

uma época para outra, com a interrupção da era moderna e o estabelecimento de uma gama

de transformações na cultura, economia, sociedade e política. Iniciadas na década de 60

com os movimentos: estudantis, de minorias; “pós-modernistas” na arte, arquitetura,

literatura e academia; bem como, a ascensão das tecnologias de comunicação e

informática, a derrocada do socialismo por um domínio econômico de mercado capitalista

e com a expansão exacerbada da “globalização”. Pós-moderno é um mundo globalizado

que transpõe as estruturas (classes sócias, grupos, nações e etc.) e influência a qualidade de

vida urbana a experiência do tempo, espaço e das concepções do próprio eu.

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“la práctica nos demuestra que cuanto menos cargados nos desplacemos, tanto más rapido

será nuestro avance” (Bauman, 2004b, p. 8).

É justamente nessa fluidez, leveza, instabilidade, mobilidade e contínua transição

que se encontra o poder de transformação dos “líquidos”. O sociólogo contrapõe o atual

mundo líquido-moderno da visão de modernidade sólida, aquela que é baseada na fixação

de padrões, normas e condutas; resistente a mudança, ou seja, dogmática. Ele questiona se

o projeto da modernidade em seu princípio, já não se mostrava líquido. Visto que,

“derreter os sólidos” no que condiz com a mudança de uma sociedade estagnada e

amalgamada pela tradição via “profanación de lo sagrado” (Bauman, 2004b, p. 9) foi à

estratégia de emancipação utilizada pelo “espírito da modernidade” (Bauman, 2004b).

Entretanto, o derretimento do que é sólido era uma tentativa de estabelecer novos

sólidos mais duradouros e confiáveis e de certa forma administráveis. Com a dissolução

das tradições, o enfraquecimento das obrigações e deveres com a família, a política, a ética

e a cultura, as relações sociais tornaram-se suspensas e desprotegidas, a mercê de uma

“razão” ou racionalidade conduzida pela óptica da economia e dos negócios ostentando um

discurso pautado no progresso advindo de um saber proveniente de uma “racionalidade

instrumental” (Bauman, 2004b).

O que vêm após essa crescente falta de referências (de padrões, normas, códigos e

regras) ou solidez é um quadro, ou melhor, é um quebra-cabeça no qual se pode reencaixar

e realocar constantemente os indivíduos, que estão a cargo das suas próprias e intimistas

escolhas, responsáveis pelo fracasso de suas referências. Nas palavras do autor:

En la actualidad, las pautas y configuraciones ya no están “determinadas”, y no

resultan “autoevidentes” de ningún modo; hay demasiadas, chocan entre sí y sus

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mandatos si contradicen, de manera que cada una de esas pautas y configuraciones

ha sido despojada de su poder coercitivo o estimulante. Y, además, su naturaleza ha

cambiado, por lo cual han sido reclasificadas em consecuencia: como ítem del

inventario de tarefas individuales. En vez de preceder a la política de vida y de

encuadrar su curso futuro, deben seguirla (derivar de ella), y reformarse y

remoldarse según los câmbios y giros que essa política de vida experimente. El

poder de licuefacción se ha desplazado del “macronivel” al “micronivel” de la

cohabitación social (Bauman, 2004b, p.13).

A Modernidade Líquida é individualizante, ansiogênica e em constante

processualidade, que nada é “determinado” ou fixo o suficiente para se estabelecer

enquanto regra ou orientação. É nesse sentido de brevidade e rapidez que essa era

globalmente conectada produz vidas cada vez mais descartáveis e precárias; as relações

interpessoais estão curtas e ambíguas, pois é na certeza do término que se vinculam e na

virtualidade que se sustentam (navegam); a fuga e a ilusão é a escolha sensata para se

enfrentar os múltiplos medos dos cidadãos do mundo líquido-moderno. (Bauman, 2004a;

2004b; 2007; 2008).

A identidade como se perceberá a seguir está implicada nessa complexa

configuração contemporânea que até aqui foi resumidamente caracterizada para se

prosseguir com as reflexões de Zygmunt Bauman do que vêm a ser a identidade.

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Identidade/Identificação

Bauman (2005) inicia sua conversa2 sobre identidade situando sua condição de

identidade e narra um episódio sobre a escolha do hino para a cerimônia de doutor

hounoris causa conferida a ele. Sua indagação era sobre qual hino escolher? O polonês de

seu país de origem, que o exilou ou o do país que o acolheu e o naturalizou, a Grã-

Bretanha. Sua esposa (Janina Bauman), que influenciou suas reflexões deu-lhe a sugestão

do hino europeu. E ele acatou, pois “Europeu, sem dúvida, eu era, nunca tinha deixado de

ser” (Bauman, 2005, p. 16).

Tal acontecimento ilustra a controvérsia que o tema da identidade carrega, pois

aqueles que buscam uma identidade estão tentando “alcançar o impossível” (Bauman,

2005, p. 16) algo que não pode ser realizado em “tempo real” (Bauman, 2005, p. 17). As

identidades são intangíveis por serem pautadas no conceito de pertença a uma comunidade,

compreendidas como comunidades de vida, o compartilhar de uma vida junto em ligação

absoluta e a comunidade de destino, aquela que há uma junção por idéias e por uma

variedade de princípios (Bauman, 2005).

A identidade emerge no segundo conceito de “comunidade”, pois é através do

policultural e da diversidade de idéias que o indivíduo vai identificar-se. Uma escolha ou

filiação (pertencimento) deverá ser exposta ou colocada a prova. Assim, o pertencimento e

a identidade não são sólidos, não podem estar acabados, mas em um constante processo,

um não poderá ser o destino do outro. Como explica Bauman (2005):

o “pertencimento” e a “identidade” não tem a solidez de uma rocha, não são

garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis... a idéia de “ter

2 Entrevista concedida a Benedetto Vecchi via email, publicada em livro.

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uma identidade” não vai ocorrer às pessoas enquanto o “pertencimento” continuar

sendo o seu destino (pp. 17-18).

Deste ponto, têm-se uma abertura e aproximação do que vêm a ser a identidade no

mundo líquido-moderno, já que existências “individuais são fatiadas numa sucessão de

episódios fragilmente conectados” (Bauman, 2005, pp. 18-19), deste modo, “As

„identidades‟ flutuam no ar” (Bauman, 2005, p.19), são transitórias, podem ser de escolha

própria ou lançadas por outros, e entre próprios e alheios há negociações e embates que

têm a pendência como o resultado. Por isso:

A identidade só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como

alvo de esforço, “um objetivo”; como uma coisa que ainda se precisa construir a

partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la,

lutando ainda mais – mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a verdade sobre

a condição precária e eternamente inconclusa da identidade deva ser, e tenda a ser,

suprimida e laboriosamente oculta (Bauman, 2005, pp. 21-22).

Para esclarecer essa idéia de identidade como “objetivo” ou tarefa e como terreno

de batalha a ser conquistada, Bauman (2005) afirma que a identidade surge de uma crise

de pertencimento, pois dizer “„quem você é‟ só faz sentido se você acredita [grifo nosso]

que possa ser outra coisa além de você mesmo” (p. 25), e é com a desintegração do poder

congregador das vizinhanças, a revolução dos transportes e a criação de um Estado-nação,

que ele nos traz o exemplo da identidade nacional para explanar essa crise (Bauman,

2005).

O Estado-nação fixa nos indivíduos a idéia de identidade nacional a partir do

nascimento dos mesmos, em outras palavras, para pertencer a uma nação os indivíduos

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precisam nascer nelas. Essa idéia de identidade é o modo pelo qual o Estado mantém sua

soberania, segrega e aglutina as variedades de dialetos, tradições, leis e modos de vida

locais, portanto, construir uma identidade nacional serve para o Estado, além de manter a

obediência dos sujeitos, garantir a sua continuidade (Bauman, 2005).

E é no não encontrar preciso de ancoradouros sociais para a identidade que surge os

“problemas de identidade”, pois como visto, há uma naturalidade imposta para a

identidade pelo Estado que atualmente é ineficaz, qualquer base sólida e ortodoxa laçada a

identidade é factível de falhar, já que “em nossa época líquido-moderna, em que o

indivíduo livremente flutua, desimpedido, é o herói popular, „estar-fixo‟ ser „identificado‟

de modo inflexível e sem alternativa – é algo cada vez mais malvisto” (Bauman, 2005, p.

35).

Assim, “identificar-se com...” ou falar de identificação é mais preciso do que falar

de identidade, pois os indivíduos são os responsáveis pelas suas próprias escolhas, usam a

vestimenta da identidade como lhe convêm, ou melhor, pelo período que dura o espetáculo

em suas “comunidades guarda-roupa” (Bauman, 2004b; 2005, p. 37), sempre de curta

duração e transitórias. A identidade não pode ser única, mas uma crescente “rede de

conexões” (Bauman, 2005, p.37). Os habitantes do mundo líquido-moderno estão cada vez

mais individualizados e essa se reverbera na sua identidade:

a “individualização” consiste em transformar a “identidade” humana de uma coisa

“dada” em uma “tarefa” [algo a ser conquistado] − e encarregar os atores com a

responsabilidade de desempenhar essa tarefa e de arcar com as conseqüências (e

também com os efeitos colaterais) de seu desempenho (Bauman, 2009, p. 183).

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O que paira como conseqüência é o sentimento de ambivalência, entendido como a

capacidade de alocar a um objeto ou evento, nesse caso a identidade, mais de uma

possibilidade, confusa, indecisa e irresoluta; ampliando um sentimento de “perda de

controle” gerando sentidos ambíguos (Bauman, 1999; 2005).

Mais uma das conseqüências pertinentes para a identidade no mundo líquido-

moderno é o temor a exclusão e dos “perigos que ameaçam o lugar da pessoa no mundo –

posição na hierarquia social, a identidade” (Bauman, 2008, p.10) e isso ocorre porque há

uma crescente ambivalência nas escolhas; continuamente deve-se fazer escolhas e se

responsabilizar por elas. Escolher uma identidade e logo se desfazer quando elas não

servirem mais a suas satisfações, literalmente consumi-las, enfrentar a competição coletiva

do “faça o melhor que puder”, seja notado via seu esforço individual, enfim, participe do

processo de exclusão e consumo (Bauman, 2005; 2008).

Com a exclusão e o consumo, aumenta-se a pilha de lixo humano e se fragiliza as

relações interpessoais:

Hoje em dia... somos consumidores numa sociedade de consumo. A sociedade de

consumo é a sociedade do mercado. Todos estamos dentro e no mercado, ao

mesmo tempo clientes e mercadorias. Não admira que o uso/consumo das relações

humanas, e assim, por procuração, também de nossas identidades (nós nos

identificamos em referência a pessoas com as quais nos relacionamos) se

emparelhe, e rapidamente, com o padrão de uso/consumo de carros, imitando o

ciclo que se inicia na aquisição e termina no depósito de supérfluos (Bauman,

2005, p. 98).

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Os vínculos humanos tornaram-se nesse ínterim de uso/consumo frágeis e

descartáveis. Relacionar-se passou para o conectar-se, as “redes” e as “relações virtuais”

respaldam a facilidade de conectar ou desconectar. Os relacionamentos de bolso, definido

como o uso apenas quando necessário das relações e o armazenamento das mesmas assim

que utilizadas, são mais freqüentes. Manter a distância; os laços frouxos; o não assumir

compromissos e exigências; possuir a segurança do termino dos envolvimentos, sem

muitos problemas de forma rápida ou fluida e prezando a quantidade em detrimento da

qualidade, são todas características dos cenários para a vida no mundo líquido-moderna e é

dessa miscelânea que se busca um (a) identificar-se/identidade (Bauman, 2004a; 2005).

Rovirosa-Madrazo (2010) ao comentar a obra de Bauman, salienta que conceitos

como o de comunidade, identidade e instituições são todos construídos socialmente, são

precários e fugazes, pois dão lugar a “identidades líquidas” (p. 15) em um mundo que a

erosão do Estado e a diluição das fronteiras nacionais (globalização) são irreversíveis. E

continua, ao expor que a identidade (mesmo a de gênero) é provisória e torna-se

irrelevante para o pensamento sociológico e feminista, por fazer com que a identidade não

estabeleça a Diferença (com D maiúsculo e no singular), mas as diferenças (com d

minúsculo e no plural) sempre mutáveis. Desta forma, “a identidade em Bauman é uma

substância temporária, [e] o outro não passa de uma invenção” (p. 18), que como já

discutido causa tanto relações e identificações passageiras como temor, ansiedade e

ambivalências.

Para melhor aludir o caráter transitório, fluido ou líquido da identidade veja-se nas

palavras de Bauman (2005):

eu diria que a ambivalência que a maioria de nós experimenta a maior parte do

tempo ao tentarmos responder à questão da nossa identidade é genuína. A confusão

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que isso causa em nossas mentes também é genuína. Não há receita infalível para

resolver os problemas a que essa confusão nos conduz, e não há consertos rápidos

nem formas livres de risco para lidar com tudo isso. Também diria que, apesar de

tudo, teremos de nos confrontar vezes sem conta com a tarefa da

“autoidentificação”, a qual tem pouca chance de ser concluída com sucesso e de

modo plenamente satisfatório. É provável que fiquemos divididos entre desejo de

uma identidade de nosso gosto e a escolha e o temor de que, uma vez assumido

essa identidade, possamos descobrir... que não existe uma “ponte, se você tiver de

bater em retirada” (p. 105).

Tentou-se até aqui se aprofundar nessas águas, que é a teoria de Bauman, e

perceber que o solo ou o fundo desse oceano é abissal, pois tomando como perspectiva a

crescente mutabilidade, frágil, globalizada, ansiogênica, precária, excludente e sempre

móvel Modernidade Líquida. Com seus problemas globais erroneamente buscando

resoluções locais; com seu Estado em falência; com as divisórias entre mundos públicos e

privados quase que inexistentes, mas amplamente fortificadas e vigiadas; com cidadãos

transformados em mercadorias e ensinados a consumir para satisfazer-se; com indivíduos

individualizados lançados a sua própria sorte; com relacionamentos midiatizados em

quantidade crescente e qualidade parca; carentes de modelos e padrões norteadores. Toda

essa profusão nos faz retomar a pergunta inicial feita pelo Orkut: “Quem sou eu?”, e como

o ouroboros engolimos a própria calda e fazemos do nosso princípio o nosso fim e do fim

o nosso princípio. É nesse giro cíclico e eterno nos diz Bauman que somos algo a ser

definido (em busca de identificações), porém, nunca acabados (inconstante e líquido).

Hoje, eu não tenho a certeza do que sou, amanhã eu já posso ser você. É a incerteza a

única certeza desse tempo.

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Considerações finais

Passamos a se identificar, ao invés de ter unicamente uma identidade. Então,

responder ao Orkut: “Quem sou eu?” está em desuso e passamos a responder “O que você

está pensando agora?”, nos padrões do Facebook e Twitter, redes de “relacionamento

virtual”, trazidas para exemplificar a forma cada vez mais provisória de nos

autoreferenciar na contemporaneidade. Notoriamente deixa-se de fixar a identidade a um

único padrão de referência, pois isso mostraria o quão desconectado se está do mundo

globalizado, exigente e sempre em transição.

A confusão que se vivência ao tentar definir-se, a fazer a escolha do que você vai

ser agora (se filho, aluno, amigo, professor, homem/mulher, consumidor ou mercadoria)

traz consigo o temor da exclusão, do não pertencimento a comunidade, de se tornar

descartável e ir parar na pilha de lixo humano. Essa visão catastrófica e apocalíptica é um

puxão para a realidade e faz nos refletir sobre o que estamos fazendo as nossas relações

pessoais, a organização da sociedade, com a ética, a politica e a cultura.

Bauman pinta um quadro de cores vivas e agressivas a visão, feito isso, chama nos

a atenção e põe em pauta o mecanismo facilmente imperceptível e naturalizante, que

possuem discursos enrijecidos ao tentar instalar normas e padrões, que na verdade são

construídos socialmente. Ao caracterizar a época como líquida quer nos mostrar que a

globalização, a crescente midiatização das nossas relações, a fragilização do Estado e etc.

Influencia diretamente a maneira de ser e compreender o mundo.

Mostra o quão tendencioso é afirmar uma etnia, gênero, religião, sexualidade, ou

seja, identidade. Essa se torna um palco de batalhas de grupos em busca de afirmação de

direitos, alegando exclusão e preconceito, que exigem tratamento próprio ou

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individualizado para a sua condição. Esquecendo-se que as diferenças sempre existiram e,

assim, ao buscar uma resolução intimista/ individual nada é feito para considerar a

diferença enquanto diferenças, que poderia contribuir com a criação da identidade norteada

por preceitos humanitários ao invés de excludentes.

Portanto, à medida que estivermos sempre em luta consigo e com os outros para

referenciar uma identidade em contrapartida a outras, não saberemos como lidar com a

flexibilidade, mutabilidade e transição, característica dos seres humanos e do atual

momento. Tentaremos por toda a vida nos identificar com coisas, relações, ideias, amores,

gostos, desejos... e ao afirma-los e solidifica-los podemos estar perdendo o fluir que é a

vida.

Não quero dizer que não devamos se preocupar com as condições ditas peculiares

que envolvem também as vidas, mas sim devemos buscar resposta para os problemas

globais de forma global e não através de fanatismos e esforços hercúleos, que visam sanar

esses problemas globais apenas por ações locais ou politicas de vida. Uma comunidade

coletiva, que discute seus problemas da mesma forma que norteia suas ações via a

reflexão, parece-nos uma utopia, mas tendo em vista, que grandes conquistas também o

foram no passado e ter a ciência de que as coisas não são rochas, mas maleáveis e líquidas

dar-nos uma chance para cavar essa areia por baixo.

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Referências Bibliográficas

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