identidade no Choro

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade de Brasília Ano II, v. 1, dezembro de 2008 TABORDA, M. O Choro, uma questão de estilo? Música em contexto, Brasília, n. 1, 2008, p. 47-69 O CHORO, UMA QUESTãO DE ESTILO? Marcia Taborda Resumo: A partir da consulta aos registros fonográficos reali- zados entre 1902 e 1937, propõe-se investigar as abordagens do choro na tentativa de identificar diferentes estilos interpre- tativos. Palavras chave: choro; música popular brasileira; violão; grava- ções fonográficas Abstract: This article examines the approaches of “choro” in an attempt to identify different interpretative styles referring to sound records made between 1902 and 1937. Keywords: choro; Brazilian Popular Music; guitar; sound recor- ds; Q uando se abre um dos muitos livros dedicados ao estudo do jazz, encontra-se em geral uma proposta estilística de perio- dização do gênero: Ragtime, New Orleans, Dixieland, Chicago, Swing, Bebop, Cool, Free, etc. Tendo em vista esse pressuposto, tenta- mos nesse artigo estabelecer um paralelo que permita uma aproxima- ção ao choro com o objetivo de compreendê-lo enquanto gênero que permite diversas abordagens estilísticas. Ou seria o contrário, o choro como estilo interpretativo que finalmente se consolidaria num gênero musical. Para tentar responder às questões em lugar de utilizar exclusi- vamente a documentação bibliográfica, pretendemos recorrer aos fo- nogramas como fonte primordial para um possível reconhecimento de estilos na interpretação do choro. Revista Música em contexto 23-11-2009 - N2 2008.indd 47 23/11/2009 16:44:56

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analisa estilos interpretativos no choro.

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    TABORDA, M. O Choro, uma questo de estilo? Msica em contexto, Braslia, n. 1, 2008, p. 47-69

    o cHoro, uMa quEsto dE Estilo?

    Marcia Taborda

    resumo: A partir da consulta aos registros fonogrficos reali-zados entre 1902 e 1937, prope-se investigar as abordagens do choro na tentativa de identificar diferentes estilos interpre-tativos.

    Palavras chave: choro; msica popular brasileira; violo; grava-es fonogrficas

    abstract: This article examines the approaches of choro in an attempt to identify different interpretative styles referring to sound records made between 1902 and 1937.Keywords: choro; Brazilian Popular Music; guitar; sound recor-ds;

    quando se abre um dos muitos livros dedicados ao estudo do jazz, encontra-se em geral uma proposta estilstica de perio-dizao do gnero: Ragtime, New Orleans, Dixieland, Chicago, Swing, Bebop, Cool, Free, etc. Tendo em vista esse pressuposto, tenta-mos nesse artigo estabelecer um paralelo que permita uma aproxima-o ao choro com o objetivo de compreend-lo enquanto gnero que permite diversas abordagens estilsticas. Ou seria o contrrio, o choro como estilo interpretativo que finalmente se consolidaria num gnero musical.

    Para tentar responder s questes em lugar de utilizar exclusi-vamente a documentao bibliogrfica, pretendemos recorrer aos fo-nogramas como fonte primordial para um possvel reconhecimento de estilos na interpretao do choro.

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    1. cnones:

    1.1 A palavra e os significados:

    Os mais importantes estudiosos da msica brasileira propuse-ram diferentes origens ao sentido musical da palavra choro. Cmara Cascuda, no Dicionrio do Folclore Brasileiro, cita o Negro brasileiro de Jacques Raimundo, livro publicado em 1936:

    Choro a denominao de certos bailaricos populares, tambm conhecidos como assustados ou arrasta-ps. Essa parece ter sido a origem da palavra como explica Jacques Raimundo, que diz ser originria da contracosta, havendo entre os cafres uma festana, espcie de concerto vocal com danas, chamado xolo. Os nossos negros faziam em certos dias, como em So Joo, ou por ocasio de festas nas fazendas, os seus bailes, que chamavam de xolo, expresso que, por confuso com a parnima portuguesa, pas-sou a dizer-se de xoro, e, chegando cidade foi grafada choro (Cascudo 1972, 275).

    Mrio de Andrade, por sua vez, no verbete choro do Dicionrio Musical Brasileiro informa que da expresso chorar empregada meta-foricamente em msica, de extenso de sentido, a palavra afinal se de-senvolveu aplicada ao sentido dum gnero musical, msica noturna de carter popular coreogrfico, pra pequena orquestra.

    Para Ary Vasconcelos o termo deriva de choromeleiros, corpo-rao de msicos de atuao importante no perodo colonial brasileiro (Vasconcelos 1984, 17). Como os choromeleiros executavam no ex-clusivamente a charamela mas outros tantos instrumentos, a expres-so passou a ser empregada em sentido geral dando por abreviao o nome de choro ao grupo instrumental.

    Jos Ramos Tinhoro refere-se a esquemas modulatrios que partindo do bordo para descarem quase sempre rolando pelos sons graves, em tom plangente, os responsveis pela impresso de melan-

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    colia que acabaria conferindo o nome de choro a tal maneira de tocar (Tinhoro 1986, 103).

    No conjunto das possibilidades acima descritas cada uma de sua maneira relaciona a palavra s acepes musicais nas quais o termo vi-ria a ser empregado: a palavra serve pra nomear o conjunto e tambm uma forma de tocar que exprimiria um estilo interpretativo tipicamente brasileiro.

    1.2 A abrangncia do termo

    No decorrer da segunda metade do sculo XIX e princpios do sculo XX a palavra choro foi adquirindo mltiplos significados. Inicial-mente nomeava o conjunto musical. Alexandre Gonalves Pinto, no li-vro O choro: reminiscncias dos chores antigos abona esta acepo do termo: O seu pai era um distinto advogado que dava em sua casa choros agradabilssimos, indo daqui da capital o competente choro, que eram: Henriquinho, de flautim; Lica de bombardo; Galdino de cavaqui-nho; Felisberto de flauta; Espndola, e muitos outros (Pinto 1936, 46).

    Alm dos significados de pequena orquestra e de sarau tambm explcito na citao acima, choro ainda podia designar os gneros abor-dados nos encontros pelos conjuntos, como sugere Alexandre G. Pin-to: tocava os choros fceis como fosse: polca, valsa, quadrilha, chotes, mazurka, etc. Pode-se ainda interpretar que o repertrio dos choros na verdade podia incluir toda e qualquer msica instrumental: toca mui-tos choros americanos e tambm nossos com grande facilidade (Pinto 1936, 94).

    2. um pouco da identidade

    A bibliografia brasileira unnime ao escolher para o nascimento simblico do choro, os anos de 1870, perodo em que Joaquim Antonio

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    da Silva Callado, professor de flauta da Academia Imperial de Belas Ar-tes formou o Choro Carioca, grupo em que o solista (flauta) era acom-panhado por violo e cavaquinho executados por msicos populares.

    Embora a contribuio de Antonio Callado para a consolidao do choro conjunto tenha sido inestimvel, a difuso deste grupamento vinha de muito antes. Nas festas cariocas j se podia identificar a pre-sena do terno de pau e corda, como descrito por Mello Moraes Filho no livro Festas e tradies populares do Brasil. No captulo dedicado Festa do Divino, especialmente ao tratar da atividade artstica/musi-cal promovida pela barraca Tres cidras do amor, tambm conhecida como Barraca do Teles, o autor observa: O teatro do Teles era ilumi-nado a velas e a azeite; pagava-se 500 ris de entrada, incluindo neste preo o bilhete da rifa; tinha, alm da orquestra para a grande diviso do cenrio, uma outra de violo, flauta e cavaquinho, que tocava oculta, quando danavam os bonecos (Moraes Filho 1905, 123).

    Certamente a mais completa fonte de informaes sobre os con-juntos de choro entre 1870 e 1936, o livro de Alexandre Gonalves Pinto. Nele verifica-se que a maioria dos msicos citados no estava profissionalizada. A norma no era o conjunto fixo, onde os executantes tinham o hbito de tocar juntos. Em consequncia, os acompanhamen-tos eram improvisados, at porque os tocadores de instrumentos de cordas na maioria no conheciam msica. Mesmo os msicos de ins-trumentos de sopro que dominavam a leitura musical, acompanhavam quase sempre de ouvido, como aquele Henrique Martins, professor de msica e subdiretor de harmonia do Ameno Resed, fazendo coisas impossveis com o seu trombone e bombardino nos contracantos (Gonalves Pinto 1936, 97), ou o Barata, que no s conhecia com pro-ficincia a msica, como tambm acompanhava o choro de ouvido, de fazer xtase, tal a sua mestria no oficleide (Gonalves Pinto 1936, 101). Pixinguinha, que dominava a leitura e escrita musical, quando foi traba-lhar no Teatro Rio Branco, por volta de 1910, fez sucesso principalmente

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    pelas bossas que inventava por fora, acostumado que estava a impro-visar nas rodas de choro (Barbosa e Oliveira Filho 1979, 33).

    Nessas rodas, o que mais se exigia e o que mais se apreciava nos acompanhadores, sobretudo de violo e cavaquinho, era o ouvido, ap-tido consagrada na expresso tocar de ouvido. Gonalves Pinto qua-se que em cada pgina de sua obra menciona o fato: Ventura Careca, violo de fama, no admitia que lhe dessem o tom, tal a confiana que ele tinha em seu ouvido (Gonalves Pinto 1936, 86). Quando o acompanhador no conseguia atinar com a harmonia do solista, dizia-se que tinha cado. Essa expresso foi to vulgarizada, que aparecia frequentemente no ttulo de polcas como Caiu, no disse, de Viriato e No caio noutra, de Ernesto Nazareth.

    Baptista Siqueira descreve esses costumes com preciso:

    Era o flautista que costumava incentivar o gosto pelo choro, agu-ando as qualidades musicais inatas dos acompanhadores de ou-vido, arranjando tropeos atravs de modulaes exaustivas em-pregadas nas polcas de serenata. Quase sempre essas obras eram de autoria do prprio flautista e nunca chegaram a ser editadas, porque no tinham sentido danante; sugeriam apenas pessoas danando. A finalidade da composio de tais peas era jocosa: fa-zer cair o acompanhador de cavaquinho (Siqueira 1970, 140).

    Esse hbito de fazer peas difceis de acompanhar e consignar tal inteno no ttulo, conservou-se, bastando para tanto lembrar o choro Derrubando violes, composto pelo maestro Carioca em 1950.

    3. a genealogia do choro:

    Deve-se a Ary Vasconcelos a primeira tentativa de periodizao da trajetria do choro. No livro Carinhoso e etc: histria e inventrio do choro, Vasconcelos conta que entre fins dos anos de 1970 e comeo

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    dos anos 80, decidiu embrenhar-se pela documentao musical fazen-do um levantamento de cerca de 3 mil obras; organizou ento essa pro-duo e seus autores em seis geraes:

    Aprimeiragerao,queflorescenosprimeirosvinteanos

    do Imprio, composta por autores como Antonio Callado, Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Viriato, etc.

    A segundageraoaparece comaRepblicaqueaoabrir

    um novo captulo na histria poltica do Brasil, serviu de marco a partir do qual comea a florescer uma nova e mara-vilhosa gerao de chores. Como maior representante do perodo, destaca Anacleto de Medeiros, alm dos composi-tores Albertino Pimentel, Irineu de Almeida, Mrio lvares, Candinho Silva, Louro, etc.

    Situadaentreosanosde1919e1930aterceirageraode

    chores tem em Pixinguinha o grande expoente. Aparecem tambm Donga, Romeu Silva, Romualdo e Luperce Miranda, Luis Americano e Bonfiglio de Oliveira.

    Estabelecida entre os anos de 1927 e 1946; relacionada ao

    surgimento do sistema eltrico de gravao e do sucesso dos cantores como Francisco Alves, Carmen Miranda, Silvio Caldas, Orlando Silva, etc; segundo Ary, num clima pouco estimulante para o choro que acaba se difundindo apenas para um pblico restrito; destaque para a criao do choro paulista com o sur-gimento da orquestra Colbaz e de msicos como Armandinho, Jos Rielli, Garoto, Ga; destaque ainda para Copinha, Anten-genes Silva, Radams Gnattali, Gasto Bueno Lobo, Benedito Lacerda e Dante Santoro, Carolina Cardoso de Meneses.

    Surgidanasegundametadedadcadadequarentauma

    fase bem mais propcia para o gnero que se estende de 1945 a 1950, quase uma pequena fase de ouro. Surgem os

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    grupos, Quarteto Brasil (Luperce, Jos Meneses, Tute, Val-zinho), Os Milionrios do Ritmo (Djalma Ferreira, Oscar Be-landi, Jos Meneses, Chuca-Chuca) e a Orquestra Tabajara de Severino Arajo. a gerao de Abel Ferreira, Jacob do Bandolim, Raul de Barros, Valdir Azevedo, Altamiro Carrilho, Pedroca, Chiquinho do Acordeo, Sivuca, Bola Sete, Ca-nhoto da Paraba, Avena de Castro, Paulo Moura, Do Rian, Evandro, Isaas e Rossini Ferreira.

    Chegamosa1975(..)comoaBelaAdormecidaochoropa-rece despertar de seu letargo, novos conjuntos de choro co-meam a se formar e so reciclados diversos j existentes. Surge o Clube do Choro. Em So Paulo o Conjunto atlntico e o conjunto do Evandro. No Rio cria-se o conjunto Os Cario-quinhas (1976); Grupo Chapu de Palha, etc.

    A proposta de Vasconcelos ecoa em trabalhos recentes como o ensaio publicado por Anna Paes na enciclopdia eletrnica Msicos do Brasil. J Henrique Cazes organiza o livro O choro: do quintal ao Municipal respeitando a trajetria cronolgica da produo musical na qual destaca alguns personagens e seus instrumentos.

    O que inicialmente chama a ateno na periodizao de Vascon-celos a ausncia de um denominador comum para o estabelecimento das geraes: uma gerao pode ser determinada tanto pela produo de compositores como pela atividade de msicos, ou mesmo um mo-vimento como o festival do choro nos anos 70, o que nos faz lembrar o mesmo argumento usado por Curt Sachs ao propor a mudana de princpios norteadores na classificao de instrumentos: a presena de um denominador comum que possa organizar as categorias.

    Do ponto de vista estilstico tal classificao cairia por terra na medida em que a cronologia no estabelece nem considera as possibili-dades de abordagem interpretativa do repertrio. Tradio e moderni-

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    dade convivem continuamente no choro o que faz com que os autores da primeira gerao tenham suas obras executadas como peas fun-damentais do repertrio desde fins do sculo XIX at os dias de hoje, e a obra revivida por diferentes abordagens interpretativas. Por outro lado, Maurcio Carrilho ao divulgar a enorme produo de choros encontra-dos em pesquisas nos diferentes acervos no Rio de Janeiro, fez suas gra-vaes reproduzindo no acompanhamento - por exemplo, de polcas, o padro rtmico que considera caracterstico do estilo interpretativo e de uma sonoridade que remete aos primeiros fonogramas.

    4. os chores e as gravaes fonogrficas:

    Um conjunto de circunstncias surgidas no sculo XX tornaram-se decisivas para a evoluo da msica popular brasileira: a gravao de discos, o surgimento de uma msica especfica para o carnaval, o nascimento do samba, o rdio e o cinema.

    As inovaes foram apresentadas na capital. O Rio abrigou a in-dstria fonogrfica e o rdio, veculos que divulgaram o choro e o sam-ba, filhos musicais da cidade que da espalharam-se para todo o pas. As novas possibilidades e oportunidades oferecidas pela Capital irradian-te (expresso de Nicolau Sevcenko), atraram imigrantes de todas as partes, dos mais variados padres sociais. Transferiram-se para o Rio de Janeiro dos mais humildes e annimos profissionais aos grandes nomes da elite cultural e artstica.

    Dentre os imigrantes que aportaram cidade estava Frederico Figner, comerciante que apresentou aos cariocas a novidade das m-quinas falantes. O processo de gravao de discos no Brasil foi iniciado em 1902, quando Figner, ento estabelecido Rua do Ouvidor, passou a comercializar fonogramas originais da Edison. Em 5 de agosto de 1902, publicou o Correio da Manh:

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    A maior novidade da poca chegou para a Casa Edison, Rua do Ou-vidor 107. As chapas (records) para gramophones e zonophones, com modinhas nacionais cantadas pelo popularssimo Baiano e apreciado Cadete, com acompanhamento de violo e as melhores polcas, schottisch, maxixes executados pela Banda do Corpo de Bombeiros do Rio, sob a regncia do maestro Anacleto de Medeiros.

    Neste perodo inicial que corresponde chamada fase mecnica (1902-1927), foram gravados cerca de 7.000 mil discos, mais da metade lanados pela Casa Edison. Os primeiros 100 registros fonogrficos fo-ram realizados pelas vozes dos cantores Baiano e Cadete acompanha-dos exclusivamente de violo. Numa indstria incipiente, os riscos que envolviam o investimento de transformar msica em produto, deve-riam ser os mais comedidos possveis. Dessa forma, os registros base de violo sero sempre muitos numerosos, rivalizando em quantidade apenas com as Bandas de msica, que desempenharam papel musical e social da maior relevncia.1

    Os primeiros registros fonogrficos nos deram a possibilidade de vislumbrar o ambiente musical que vinha se desenvolvendo desde fins do sculo XIX. Como no poderia deixar de ser, os gneros executados eram o repertrio dos chores: valsa, schottisch, quadrilha, mazurca, polca, tangos, modinhas, canonetas e lundus, veiculados por vozes acompanhadas de violo, piano, pelas bandas e finalmente pelos gru-pos de choro. Tal aspecto tambm ressaltado por Tinhoro:

    De fato, so os velhos discos Zonophone e Odeon da Casa Edison, da Casa Faulhaber, Columbia Grand Record Brazil e Victor, que permitem agora, mais de sessenta anos passados, levantar um grande repertrio de gneros hoje desconhecidos em suas formas autenticamente populares, como a modinha seresteira, os lundus cantados, as canonetas de teatro e palquinhos dos cafs cantan-

    1 Para maiores informaes ver: Marcia Taborda, Dino Sete Cordas e o acompanhamento de violo na msica popular. Dissertao de Mestrado, UFRJ 1995.

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    tes, as marchas dos primeiros ranchos carnavalescos, as chulas e as chamadas cantigas sertanejas, entre as quais muitas vezes se incluam msicas do folclore (Tinhoro 1981, 27).

    As gravaes nos deram ainda conhecimento dos grupos de choro organizados no Rio de Janeiro, que eram tantos, de to variada formao, mas sempre obedecendo base original: instrumento solista acompanhado de violo e cavaquinho. No reduzido grupo de cantores que fizeram sucesso no incio do sculo alm de Baiano e Cadete esto Eduardo das Neves, Mrio Pinheiro e Geraldo Magalhes.

    Apesar da predominncia da msica instrumental nos primeiros anos do processo de gravao de discos, foram poucos os solistas de sucesso. Destacaram-se o flautista Patpio Silva, que apesar da morte prematura continuou com uma grande vendagem de discos, o pianista Artur Camilo, em registros dedicados principalmente obra de Ernesto Nazareth, alm do prprio, que gravou algumas peas em duo com o flautista Pedro de Alcntara, e uns poucos registros como solista.

    Desde o perodo inicial das gravaes e do advento do rdio, ad-quirindo maior relevncia no processo eltrico de gravao que coin-cidiria com a chamada poca de Ouro, os conjuntos de choro foram bastante aproveitados, designados por esse mesmo nome choro- ou pela denominao de grupo ou conjunto. Enquanto formao original, compunha-se de um instrumento solista, violo e cavaquinho, onde apenas um dos componentes (o solista) sabia ler e escrever msica; to-dos os demais deviam ser improvisadores do acompanhamento har-mnico, isto , tocavam de ouvido.

    Os componentes dos conjuntos de choros cariocas - os chores- eram elementos quase que exclusivamente oriundos da baixa classe mdia: funcionrios pblicos federais, principalmente da Alfndega, Central do Brasil, Tesouro, Casa da Moeda dos Correios e Telgrafos; servidores municipais, trabalhando em cargos como os de guarda mu-

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    nicipal, a funcionrios da Light. Segundo June E. Haner, na virada do sculo XIX para o XX, a msica e a dana permaneceram como fonte geral de prazer para o trabalhador pobre, no apenas no perodo do carnaval. Nas estalagens do Rio de Janeiro, os inquilinos tocavam vio-les e acordees, cantavam e danavam animados fandangos (Hahner 1993, 233).

    A importncia desses grupos para a histria da msica popu-lar brasileira enorme: acompanharam modinhas que ganharam o nome de seresta e acabaram por incluir os sambas-cano lentos- lun-dus, maxixes, marchas, sambas e, quando foi preciso, boleros, foxes, tangos argentinos, rumbas e at rias de pera. Os msicos de ouvi-do em alguns minutos faziam um arranjo para qualquer tipo de pea, sem partitura e quase sem ensaio. Era essa dinmica que possibilitava o funcionamento das emissoras de rdio, onde chegavam e saam com frequncia cantores diversos. Havia programas de calouros que apre-sentavam todo tipo de msica, e no havia possibilidade econmica de pagar ensaios, partituras, nem havia tempo para tal. O processo de gravao de discos e a consequente possibilidade de registrar msicas para venda permitiu a profissionalizao de numerosos msicos.

    5. sobre estilo e gnero

    No objeto desse artigo esmiuar as possveis definies e abrangncia do termo gnero, tampouco ser possvel aplicar a pro-posta de Franco Fabbri brevemente descrita a seguir; no artigo A The-ory of Musical Genres: Two Applications, Fabbri fornece ferramentas que se mostram teis no estabelecimento da identidade de um gnero musical. Para o autor, um gnero configura-se num tipo de msica re-conhecido por uma comunidade por qualquer razo, objetivo ou crit-rio, uma srie de eventos musicais cujo rumo governado por leis (de qualquer tipo), aceitas por uma comunidade; sem pressupor qualquer

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    relao de hierarquia, as regras que contribuem para a definio de um gnero podem ser de natureza formal, tcnica; semitica, comporta-mental, social e ideolgica assim como de natureza econmica e jurdi-ca. So naturalmente inter-relacionadas. A proposta de Fabbri revela-se pertinente na medida em que expande os horizontes na compreenso de uma categoria que em geral definida por suas propriedades tcni-cas e formais.

    Para a noo de estilo seguiu-se definio do Grove Music On-line, termo que denota maneira de discurso, modo de expresso; mais particularmente a maneira na qual um trabalho artstico executado.

    6. os fonogramas e os estilos de interpretao

    A escuta de fonogramas realizados entre 1904 e 1937 permi-te identificar em linhas gerais caractersticas bastante distintivas na abordagem interpretativa. A fase mecnica de gravao marcada primordialmente pelos registros de msica instrumental, notada-mente realizados pelas Bandas de msica e pelos conjuntos de cho-ro. Nos primeiros anos do sculo XX destacou-se a banda do Corpo de Bombeiros, mas muitos fonogramas foram tambm realizados pela Banda da Casa Edison; houve inmeros conjuntos de pau e cor-da e tambm pequenos grupos compostos s por instrumentos de sopros.

    A srie brasileira de nmero 40.000, com registros feitos aproxi-madamente entre 1904-1907, foi a primeira a usar o selo Odeon, e os discos foram fabricados pela International Talking Machine para a Casa Edison. A consulta Discografia brasileira em 78 rpm, revela que entre os pequenos grupos de sopro estavam o Grupo Luis de Souza (40. 736 a 744) que gravou peas designadas como choro, chtis e valsas sem referncia autoria, a exceo de Nair, chtis de Catulo Cearense e Edmundo Otvio Ferreira.

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    Na srie com numerao de 10.000, realizada entre 1907 e 1913, aparecem grupos compostos s por instrumentos de sopros como o Grupo do Malaquias (10.023- 10.216 a 219) com registros de choro sem referncia a autor, Grupo dos Irmos Eymard (10.027) que gravou a polca Flor Amorosa de Callado alm de Ismnia, choro de Anacleto e as peas Ser verdade e Hermantina de Arthur Ferreira e Araci choro de J. de Castro; dos trios relaciona-se o Grupo do Novo Cordo composto de clarineta, violo e cavaquinho, o Grupo da Casa Edison (10.170), Grupo do Honrio (10.237 a 252). Na srie 137.000 da Odeon realizada entre 1912 e 1914, constam os registros do Grupo Irmos Ba-tista (s sopros 137046), Grupo Luprcio Vieira, Grupo Francisco Oli-veira Lima (sax, violo e cavaquinho) e Grupo do Ulisses, (sax/clarineta, violo e cavaquinho).

    Nos registros da srie 120.000 da Odeon, por exemplo, constam: Grupo do Canhoto (clarinete, violo e cavaquinho); Grupo Lima Vieira e Cia (saxofone, flauta, violo e cavaquinho); Grupo Chiquinha Gonza-ga (flauta, violo e cavaquinho); Grupo Terror dos faces (duas flautas, violo e cavaquinho); Grupo do Louro (clarinete, violo e cavaquinho); Terceto Francisco Lima (saxofone, violo e cavaquinho); Grupo Ulisses (clarinete, violo e cavaquinho); Grupo O Passos no choro (flauta, violo e cavaquinho); Grupo Odeon (bombardino, trompete, clarinete, violo e cavaquinho), Grupo dos Sustenidos, Grupo dos Chorosos (violino, violo e cavaquinho); Grupo do Ulisses (clarineta, violo e cavaquinho); Grupo O Passos no choro (flauta, violo e cavaquinho).

    A execuo do terno de choro tem por caracterstica recorrente o acompanhamento de violo extremamente marcado e sempre pon-tuado pela farta execuo dos baixos; embora o primeiro registro iden-tificado de um violo de sete cordas esteja por vir, a atuao do seis cordas exatamente a mesma que reconhecemos hoje como tpica do acompanhamento do sete cordas; como ainda no havia nos grupos da poca dois violes atuando juntos, era o violo o responsvel pelos baixos e o cavaquinho cumpria a funo de centro da harmonia.

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    Pela audio dos fonogramas pode-se inferir que o trio de choro tinha por identidade e padro sonoro a interpretao das bandas, uma referncia explcita, e nesse sentido o violo cumpre exatamente o pa-pel de sustentar e conduzir harmonias atravs do percurso dos baixos buscando reproduzir o enunciado e a funo dos graves das bandas. O cavaquinho executa um padro rtmico quase sempre sem variaes e o instrumento solista apesar da oportunidade de enunciar o tema por trs vezes o fazia tambm sem variaes.

    Entre os anos de 1910 e 1913 surgem os discos Favorite, fabrica-dos na Europa para a Casa Faulhaber, situada na Rua da Constituio 36. Na srie de n. 1-450004 foram feitos registros nos quais apontamos a presena de uma novidade no estilo de interpretao que seria definiti-vamente incorporada identidade do choro: contracantos e improviso. O Choro Carioca foi um conjunto integrado pelos mestres Irineu de Almeida (bombardino e oficleide), Bonfiglio de Oliveira (pisto), e o jo-vem estreante Pixinguinha (flauta), com acompanhamento feito pelos irmos deste ltimo, Leo e Otvio (violes) e Henrique (cavaquinho). Otvio, mais conhecido pelo nome China, tem uma biografia tanto quanto desconhecida, fator acentuado por sua morte prematura; deste violonista temos dos primeiros e rarssimos documentos iconogrficos de um executante do violo de sete cordas, instrumento certamente manejado por ele nessas gravaes que infelizmente tem uma audio de pouqussima clareza. Gravaram na ocasio as polcas Nininha, Dai-nia e Albertina e os tangos So Joo debaixo dgua e O morcego peas compostas por Irineu de Almeida. Registraram tambm a polca Isto no vida. Pouco depois gravaram para a Phoenix (srie 70.000) as polcas Carne assada e No tem nome, de Pixinguinha e Guar e Roseclair de Bonfiglio. Em Guar o dilogo se estabelece entre me-lodia solada pelo pisto de Bonfiglio e os baixos de Irineu; enquanto isso a flauta de Pixinguinha faz um movimento contnuo entoando um discurso que parece passar ao largo dos dois instrumentos; essa carac-terstica da interpretao de Pixinguinha gerou a lenda de que o msi-

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    co chegaria a criar um novo choro na realizao desses improvisos. Em Dainia a bela conversa entre a flauta e oficleide parece ser a gnese do posteriormente famoso contraponto entre o sax de Pixinguinha e a flauta de Benedito Lacerda consagrado nas gravaes de 1946.

    Se muitos dos primeiros registros no mencionavam o autor das peas, nos anos seguintes quando mais grupos aparecem, o repertrio passa a ser composto por obras dos prprios solistas, lderes de con-juntos, dos quais muitos eram grandes chores que participavam das bandas como Casemiro Rocha, Albertino Pimentel, Pedro Galdino; alm destes entre os autores mais gravados esto Ernesto Nazareth, Chiqui-nha Gonzaga, Callado e Anacleto de Medeiros.

    Abaixo uma lista no exaustiva dos grupos cujos registros reali-zados entre 1915 e 1921 constam da srie 121.000.

    1. Grupo Carioca trombone, violo (vl), cavaquinho (cv)

    2. Grupo do Louro clarineta (cl), vl, cv

    3. Grupo Odeon bombardino, trompete, clarinete, vl, cv

    4. Grupo O Passos flauta, vl,cv

    5. Grupo Mrio bandolim,vl, cv

    6. Grupo Paulista cl, sax, vl, cv

    7. Grupo Mineiro requinta, vl, cv

    8. Grupo Fco. Lima sax, vl, cv

    9. Grupo Canhoto trombone (tb), cl, vl, cv

    10. Grupo Bomios cl, vl, cv

    11. Grupo Odeon Paulista cl, vl, cv

    12. Grupo dos Chorosos violino (vli), vl

    13. Grupo dos Bomios cl, vli, ac, vl

    14. Grupo Vienense vli, ac, vl

    15. Grupo do Pixinguinha fl, cv, vl

    16. Grupo Checon (Demtrio Checon) viola, vl, cv

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    17. Trio Royal vli, vl, cv

    18. Grupo Del R tb, vl, cv

    19. Grupo Louro cl, tb, vl, cv

    20. Grupo do Roldo (Albertino Pimentel) sopros

    21. Grupo do alm cl, vl, cv

    22. Grupo do Elias trompete, cl, flautim, vl, cv

    23. Grupo dos Jacars (Albertino Pimentel) sopros

    24. Grupo do Moringa (Jos Napolitano) cl, tb, vl, cv

    25. Grupo Marabu (Guarabu)

    26. Grupo Pimentel tb, sax, vl

    27. Grupo do Moringa cl,tb,vl,cv

    Um novo momento na trajetria dos conjuntos de choro, ainda nos primeiros anos do sculo XX, deveu-se onda de exacerbao do que nosso; imbudos do esprito de divulgar a produo e a identi-dade verdadeiramente nacional os choros passaram a se apresentar com programa de variedades e obras de temtica regional.

    Nesta linha de atuao, alcanou destaque o Grupo do Caxan-g, conjunto de inspirao nordestina, tanto no repertrio, na indu-mentria, e at mesmo no nome dos integrantes que adotaram para si codinome sertanejo. Em 1916, Joo Pernambuco organizou a Trupe sertaneja, que realizou apresentaes em So Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. O Caxang, continuou atuando com grande brilho espe-cialmente nos carnavais dos anos de 1917, 1918 e 1919. Pouco depois, Pixinguinha formou o conjunto Os oito batutas, requisitando quase todo o Grupo do Caxang para compor seus quadros, este que foi sem dvida o mais famoso do perodo.

    O conjunto Os Oito Batutas foi integrado inicialmente por Al-fredo da Rocha Viana Junior (Pixinguina), flauta; Ernesto dos Santos (Donga), violo; Jac Palmieri, pandeiro; Jos Alves de Lima, bandolim;

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    Luiz Pinto da Silva (bandola e reco reco); Nelson dos Santos Alves, cava-quinho; Otvio da Rocha Viana (China), violo e voz.

    O grupo estreou em abril de 1919, na sala de espera do elegante cinema Palais, situado na Avenida Central (atual Rio Branco), tornando-se uma atrao a parte, maior at que os prprios filmes. Ernesto Na-zareth, Rui Barbosa e Arnaldo Guinle eram seus admiradores. O povo aglomerava-se na calada s para ouvi-los. Conquistaram rapidamente a fama de melhor conjunto tpico da msica brasileira, empreendendo excurses por So Paulo, Minas Gerais, Paran, Bahia e Pernambuco. Em 1922 viajaram para Paris onde fizeram grande sucesso, realizando em seguida uma temporada na Argentina, onde gravaram vrios discos. O repertrio do grupo fugia do trivial, porque alm de tocar msicas de choro apresentavam um espetculo teatral de variedades, compos-to de sambas, desafios, canes e sapateados sertanejos, conforme divulgado nos anncios de propagandas. Embora a base fosse o trio flauta, violo e cavaquinho, houve uma modificao na instrumenta-o devida principalmente ao aumento do nmero de integrantes do conjunto.

    7. choro e Jazz

    comum dizer-se que o choro o jazz brasileiro assim como a contrapartida de que o jazz seria a verso americana (do norte) do nos-so choro, esta provavelmente mais coerente do ponto de vista docu-mental, uma vez que a meno ao gnero sul-americano anterior aos registros do jazz. H inclusive especulaes sobre a semelhana (?) estilstica entre os ragtimes de Scot Joplin e a produo de tangos de Ernesto Nazareth, o que no ser comentado neste artigo. Houve tam-bm muita crtica a grupos brasileiros, Pixinguinha foi alvo frequente, acusados de sucumbirem influncia do gnero estrangeiro.

    Mrio de Andrade no verbete choro do Dicionrio Musical, observa:

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    Outro disco a citar o Urubu, maravilhosamente executado por Pixinguinha, uma das excelncias da discoteca brasileira. (...). Pode-se lembrar aqui que tais choros (quero dizer, tais agrupamen-tos), so a equivalncia brasileira do hot-jazz, que tambm tantas vezes j puro gozo instrumental, mesmo quando unido voz, e duma violncia de movimento, verdadeiramente dionisaca, como o caso do Chinatown, my Chinatown e I got rythm, fox-trots, o segundo de Gershwin, executados pelo hot-jazz admirvel de Luis Armstrong. So por assim dizer choros-hot, a que o prprio carter improvisatrio das linhas e s vezes o processo de variao, ainda ajuntam mais carter (Andrade 1989, 137).

    O termo hot foi usado como referncia msica dos pioneiros do jazz, atribudo a diferentes tipos de bandas, grupos em que ressal-tam qualidades como intensidade, paixo, o tal elemento dionisaco a que Mrio fez referncia. Nos anos 20 Louis Armstrong intitulou dois de seus grupos com o termo Hot Five e Hot Seven. As gravaes citadas por Mrio foram feitas em 1931, por Louis Armstrong and his Orchestra, uma das mais populares bandas de jazz do suingue, estilo de msica predo-minante nos anos de 1930 e 1940.

    Se h semelhana entre os grupos ela est provavelmente muito mais na forma do que no contedo. Tanto Os Batutas quanto a orques-tra de Armstrong faziam um espetculo de entretenimento, com temas cantados, num estilo coloquial onde s vezes aparecem algumas falas no meio das canes.

    Em I got rythm, um compasso quaternrio muito marcado execu-tado num pulso rapidssimo estabelece a base rtmica que d sustento e ligadura melodia; essa, por sua vez, apresentada numa sucesso de timbres da orquestra e depois dos 16 compassos de enunciado, abre-se o espao para a improvisao livre, um solista de cada vez trombone, sax, clarineta, trompete, banjo, contrabaixo, etc, no havendo nos solis-tas qualquer referncia explcita ao tema; em seguida inicia-se um di-logo de mltiplas vozes com algum solista em destaque at a conduo desse clima festivo ao fim da pea.

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    No caso de Urubu um pulso tambm marcado, mas que a me-tade do andamento de I got rythm, se estabelece e se mantm especial-mente na funo do banjo (bandola); a melodia aparece na flauta de Pixin-guinha que passa ento a realizar toda sorte de variaes que acontecem sempre em torno do tema; essas elaboraes so feitas apenas pela flauta e de forma contnua; ao final da pea a bandola ensaia uma modesta e nica resposta ao solista; v-se que no h aspectos comuns na estrutura de improvisao tpica de um e outro grupo; no jazz de Armstrong enun-cia-se uma alternativa de elaborao meldica e rtmica ao texto principal e o papel dos instrumentos no grupo bastante definido; na elaborao do choro dos Batutas apresenta-se uma variao atrelada ao enunciado original. Essas, as chamadas bossas que criaram a identidade do estilo interpretativo de Pixinguinha. Nos Batutas no aparece qualquer princpio estrutural de organizao, o que levou anos mais tarde Radams Gnattali a comentar em entrevista ao Pasquim que os Batutas eram uma esculham-bao onde cada um fazia uma harmonia, um baixo, etc.

    8. o regional apolneo

    O ano de 1927 marca o advento da fase eltrica de gravao e a substituio das gravaes de msica instrumental pelo repertrio can-tado que culminaria com os sucessos estrondosos da chamada poca de ouro caracterizada pelo culto s grandes vozes dando surgimento aos primeiros dolos populares.

    O primeiro grande dolo de massa foi sem dvida o cantor Or-lando Silva, que com uma voz privilegiada interpretou os mais varia-dos gneros da msica popular. A seu lado brilharam Francisco Alves, Slvio Caldas e Carlos Galhardo, cantores chamados pela imprensa de Os quatro grandes. A mais importante figura feminina da poca foi a cantora Carmen Miranda, que com sua personalidade e carisma desen-volveu carreira brilhante, transformando-se em dolo nacional e estrela

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    internacional. Destacaram-se ainda sua irm Aurora Miranda, Marlia Batista, Araci de Almeida, Linda e Dircinha Batista.

    No perodo de 1931 1940 o samba foi o gnero mais cultiva-do, sendo tambm expressivo o nmero de marchas gravadas. Para seu desenvolvimento, alm da contribuio pioneira dos compositores do Estcio como Ismael Silva e Alcebades Barcelos, desempenharam pa-pel fundamental Noel Rosa, Ari Barroso, Assis Valente, Orestes Barbosa, Custdio Mesquita, Lamartine Babo e Joo de Barro. A msica america-na, influncia trazida pelo cinema, implantou a moda do fox-trot, aqui intitulado fox-cano, gnero intensamente cultivado por composito-res brasileiros.

    nesse contexto que se desenvolve a carreira do Regional de Be-nedito Lacerda grupo nascido no final dos anos 20; inicialmente chama-do de Gente do Morro, uma designao dada por Sinh, depois de ouvir o grupo na gravao do samba No Sarguero, tinha como integrantes Lacerda, Valdiro Frederico Tramontano- Canhoto, Maurinho, Bernardo e Doidinho, respectivamente na flauta, cavaquinho e percusses.

    Essa instrumentao foi influenciada pela inovao de Almiran-te, que em 1928 para gravar Na Pavuna (que se tornaria grande su-cesso), organizou um conjunto composto de percusses. Desde ento o pandeiro estar definitivamente incorporado organologia do choro conjunto.

    Pouco depois a orientao do grupo mudou, a preponderncia da percusso foi abandonada em favor do sopro e das cordas. Rece-beu novo nome, Conjunto Regional de Benedito Lacerda, que em sua primeira formao foi integrado por Benedito Lacerda, Gorgulho e Nei Orestes (violo), Canhoto (cavaquinho) e Russo (pandeiro). Quando Gorgulho foi substitudo por Carlos Lentine e este ltimo por Meira e quando Dino (Horondino Jos da Silva) substituiu Nei Orestes, o grupo finalmente chegou formao que atuaria por cerca de meio sculo: Lacerda, Canhoto, Dino e Meira. Esse Regional estabeleceu modelo de

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    organizao e sonoridade que permaneceria na msica brasileira, como uma influncia para as geraes futuras.

    O novo modelo de acompanhamento contava agora com dois violes e cavaquinho, e tinha as funes harmnicas distribudas entre eles; um dos violes (os dois de seis cordas), dedicava-se sobretudo aos baixos enquanto o outro se encarregava dos acordes na regio mdio-aguda; o cavaquinho passou a realizar padres rtmicos variados as levadas- que seriam consagradas pela atuao de Canhoto. Em geral para o acompanhamento das canes fazia-se sempre uma introduo de flauta, sustentada por uma base harmnica de total entrosamento e complementaridade.

    Como se trata de uma pesquisa em andamento, no h possibili-dade de aprofundar o assunto no contexto desse artigo.

    Apresentou-se uma proposta de periodizao do choro utili-zando como fonte os registros fonogrficos em lugar da comumente utilizada abordagem cronolgica. Desta forma foi possvel identifi-car no terno de pau e corda uma primeira referncia prtica mu-sical do choro; respeitando a periodizao proposta para a investi-gao, chegou-se atividade de Benedito Lacerda, que sedimentou um modelo de organizao e sonoridade que teria decorrncias na continuidade da trajetria estilstica do choro. Passando a chamar-se Regional do Canhoto (1950), o conjunto teve influncia direta no trabalho de Jacob do Bandolim, msico que abriu novas perspectivas na organizao e funo dos instrumentos. Embora consagrado pelas atuaes no conjunto poca de Ouro, destacam-se desse intrprete as gravaes feitas apenas com dois violes (no h sete cordas), que funcionam como o reviver da sonoridade dos conjuntos dos anos 30; as frases so executadas em total sincronia e encaixe que remetem a um trabalho de ourivesaria na concepo do acompanhamento, como se abrissem mo da improvisao para ater-se escritura r-mico-meldica. Essa trajetria desembocar na criao de Radams

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    Gnattali cuja atuao determinar novos paradigmas na concepo e execuo dos arranjos de choro.

    Em termos gerais, e a grosso modo, tendo por base os registros fonogrficos, prope-se uma primeira reviso na classificao dos esti-los do choro a partir da filiao aos grandes modelos:

    1. O terno dos anos 10, 20

    2. O Choro Carioca como o modelo para Pixinguinha Benedi-to (1946)

    3. A organizao e a sonoridade do Regional de Benedito Lacerda

    4. As gravaes de Pixinguinha e Bendito com seu regional (1946)

    5. Jacob do Bandolim

    6. Radams Gnattali

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