Identidade reformulada no espelho da alteridade Chico...
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VI Congresso Nacional Associao Portuguesa de Literatura Comparada / X Colquio de Outono Comemorativo das Vanguardas Universidade do Minho 2009/2010
Identidade reformulada no espelho da alteridade
Chico Buarque: Budapeste
Piroska Felkai
(Fundao para a Cincia e para a Tecnologia)
O presente trabalho tem por objecto analisar a relao entre identidade e alteridade
desenvolvida na obra de Chico Buarque Budapeste. Tencionamos demonstrar o caminho em que o
texto revela o estado ontolgico do sujeito, no como um conjunto de componentes invariveis,
mas, antes de mais, como uma identidade aberta, em construo permanente. O que decorre do
facto de sermos determinados pela relao com o Outro, ou seja, transformamos e somos
transformados atravs desta interaco. Os resultados do encontro do Eu com a alteridade tambm
se manifestam no modo como as culturas cruzadas interagem, exercendo igualmente influncia no
uso de linguagem do prprio sujeito confrontado com uma lngua alheia. Todavia, legtimo
interrogarmo-nos sobre o verdadeiro ncleo do encontro do sujeito com a alteridade. Implicaria este
processo uma aceitao mtua dos valores de ambas as partes, ou constituiria, mais propriamente,
um desafio para perceber e interpretar este processo em si, isto , revelar a ontologia da diferena?
O protagonista do romance, Jos Costa, um ghost writer que escreve na sombra textos
assinados por outros: monografias, dissertaes, peties de advogados, discursos de polticos,
autobiografias etc. Trabalha na Cunha & Costa Agncia Cultural com o seu scio, lvaro. No
primeiro captulo, Costa, o narrador homodiegtico, explica-nos como foi parar a Budapeste, e
como ficou fascinado pela lngua hngara. De tempos a tempos Costa apanha um avio e vai reunir-
se, em algum lugar do mundo, com outros escritores, como se fosse uma conveno de alcolatras
annimos que padecessem, no de alcoolismo mas de anonimato. (Buarque, 2003:23) Durante uma
dessas viagens, numa escala forada, Costa vai parar a Budapeste. Enquanto est espera da
interligao do seu voo, num quarto de hotel, aproveita para ver o noticirio da televiso hngara.
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Regressa ao Brasil, mas nada fica igual. A paixo pelo novo idioma, leva-o a deixar a sua mulher,
Vanda, e a regressar Hungria, onde conhece Kriska que se torna sua professora de lngua e sua
amante. Comea ento um movimento oscilatrio enlouquecido entre o Rio de Janeiro e Budapeste.
No primeiro captulo do romance, o narrador partilha ideias com o leitor sobre a sua prpria
identidade. Revela que o mais importante, relativamente criao artstica, ficar no anonimato.
Mas esse estado tambm lhe provoca um certo tipo de ansiedade: Naquelas horas, ver minhas
obras assinadas por estranhos me dava um prazer nervoso, um tipo de cime ao contrrio. Porque
para mim, no era o sujeito quem se apossava da minha escrita, era como se eu escrevesse no
caderno dele. (Buarque, 2003:22). Nesta passagem, j podemos perceber a importncia da
presena do Outro na formao da prpria identidade de Jos Costa. Para o protagonista, estar
dividido em vrias maneiras de ser, significa um jogo de identidade: J de algum tempo,
conforme acabei sabendo, lvaro adestrava o rapaz para escrever no maneira dos outros, mas
minha maneira de escrever pelos outros, o que me pareceu equivocado. Porque minha mo seria
sempre a minha mo, quem escrevia por outros eram como luvas minhas, da mesma forma que o
ator se transveste em mil personagens, para poder ser mil vezes ele mesmo.(Buarque, 2003:26).
Neste ponto, podemos mencionar que j desde o mundo grego, o conceito identidade compreende
vrios nveis de significao. Por um lado, como a sua etimologia indica, o termo indivduo designa
o que no pode ser dividido, o indiviso, significado que pe em evidncia a ideia de unidade, de
permanncia do sujeito que se julga contnuo relativamente sua prpria experincia de ser.
Designa tambm a singularidade de diferentes maneiras de existir por um s e o mesmo quadro de
referncia identificvel(Guattari,1993:69). A identificao o processo atravs do qual algum se
representa como uma entidade nica e distinta de todas as outras. Por outro lado, com a concepo
hermenutica do Outro, Paul Ricoeur prope a introduo dos dois conceitos de identidade
(Ricoeur, 1990: 11-15). Uma identificada como mesmidade (idem) e a outra considerada como
ipseidade (ipse). A mesmidade revela uma permanncia e imutabilidade, ao longo do tempo. Define
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uma histria existencial, em que o conceito de ser igual a si mesmo ganha relevncia. A ipseidade
est ligada ao vnculo da variabilidade e da instabilidade. A sua viso do ser apresenta-se
estreitamente ligada concepo da alteridade. a capacidade de interpretar o Outro, e de ser
interpretado pelo Outro, que permite ao sujeito definir-se como um si-mesmo. Esta dinmica de
reciprocidade, estabelece uma reversibilidade entre o si-mesmo e o Outro. Jos Costa tem de
reconhecer que a sua prpria identidade s pode ser gerada atravs da presena e da influncia da
alteridade que, neste contexto, se verifica tanto ao nvel lingustico, como ao nvel interpessoal.
Quando Jos Costa toma conscincia que ao sonhar, fala em hngaro, comea a perceber que,
devido ao influxo do novo idioma, a sua identidade no fica intacta deste encontro. Em
consequncia deste reconhecimento, o protagonista comea a distanciar-se dos seus prprios textos.
Ao redigir uma autobiografia de um cliente alemo, Kaspar Krabbe, Costa confessa o seguinte:
() aps trs meses embatucado, senti que tinha a histria do alemo na ponta dos dedos. A escrita
me saa espontnea, num ritmo que no era o meu.. Posteriormente, acrescenta: Mas o livro do
alemo, talvez por ter sido escrito assim num jorro, eu nem conseguia desfrut-lo, as palavras me
escapavam vista. Palavras recm-escritas, com a mesma rapidez com que haviam sido escritas,
iam deixando de me pertencer. Eu via minhas palavras soltas na tela e, horrorizado, imaginava que
elas me abandonavam como o alemo perdia plos.(Buarque,2003:37). Das primeiras
manifestaes do afastamento de si prprio resulta que, acabado o livro intitulado Gingrafo, Jos
Costa decide voltar Hungria. Em Budapeste encontra-se com Kriska, sua futura professora de
lngua, por quem se apaixona. Mas ser que o seu fascnio pela rapariga pode estar relacionado com
outras razes, nomeadamente lingusticas? E eu tambm me comovia, sabendo que em breve
conheceria suas intimidades e, com igual ou maior volpia, o nome delas. (Buarque, 2003:42). Ao
aprender hngaro, o protagonista inicia a construo da sua nova identidade. Este processo
explicita-se atravs da transcrio fontica do nome dele, ganhando, deste modo, a sua forma
hngara: Zsoz Ksta. A dupla identificao de Jos Costa/Zsoz Ksta demonstra-nos que a ideia
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do centro, como ncleo essencial para o sujeito existe, mas como fico, elaborao e no como
realidade imutvel(Hutcheon, 1991:90).
Atravs da formao do sujeito ex-cntrico - termo introduzido por Linda Hutcheon para designar
um Eu que se posiciona na periferia ou at dentro de um sistema, mas possui uma perspectiva
exterior (conceito originalmente aplicado para colocar no centro das atenes as perspectivas
feministas, homossexuais, ps-coloniais etc.) - a literatura ps-moderna conseguiu criar uma
perspectivao em que predomina uma focalizao dupla que permite ao sujeito observar-se a si-
prprio de um ponto de vista simultaneamente interior e a partir do exterior, estabelecendo a base
da sua auto-crtica e do seu auto-conhecimento. Este tipo de posicionamento duplo, leva Jos Costa
a interpretar a nova relao com a sua prpria lngua: Eu precisava de um tempo para me inteirar
dos assuntos, e j na primeira noite no Rio sara escuta de conversas de rua sem entender do que
tratavam, me detendo afinal numa casa de sucos cheia de gente jovem. Ali, por uns segundos tive a
sensao de haver desembarcado em pas de lngua desconhecida, o que para mim era sempre uma
sensao boa, era como se a vida fosse partir do zero. Logo reconheci as palavras brasileiras, mas
ainda assim era quase um idioma novo que eu ouvia (...) E dentro da loja de sucos eu fazia a mais
extensa das minhas viagens, pois havia anos e anos de distncia entre a minha lngua, como a
recordava, e aquela que agora ouvia, entre aflito e embevecido.(Buarque, 2003:120).
A identidade de Costa est interligada com a percepo do seu contexto e com a forma como
se interpreta e se projecta atravs da identidade do Outro. A sua contextualizao linguisticamente
apresentada e reformulada, manifesta-se no texto maneira borgesiana: Li a primeira linha, reli
e parei, tive de dar o brao a torcer; eu no saberia introduzir aquele artigo seno com aquelas
palavras (...) metforas geniais que me ocorriam de improviso, e o que mais eu concebesse j se
achava ali impresso sob as minhas mos. Era aflitivo, era como ter um interlocutor que no parasse
de tirar palavras da minha boca, era uma agonia. (...) o lvaro lograva impor o meu estilo, quase me
levando a crer que meu prprio estilo, l no comeo, seria tambm manipulao dele. (Buarque,
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2003:26).
A problemtica da multiplicao do Eu e a sua disseminao em vrios contextos tambm
implica a multiplicao da percepo que aquele tem sobre si prprio. O sujeito reconhece que est
a tornar-se fragmentado, composto, no por uma nica, mas por vrias identidades(Hall, 1999:12),
muitas vezes imaginado/fingido pelos outros: No me aborrecia caminhar assim num mapa, talvez
porque sempre tive a vaga sensao de ser eu tambm o mapa de uma pessoa.. Um pouco mais
tarde o narrador revela: Pensei que durante o sono aquela lngua invadiria minha cabea
combalida, pensei que ao despertar, me surpreenderia falando uma lngua estranha. Imaginei que no
dia seguinte sairia pela cidade estranha falando uma lngua que todos entenderiam, menos
eu.(Buarque 2003:48.). As dificuldades do sujeito em deter a prpria linguagem e as suas
manifestaes relacionadas com as configuraes do Eu assujeitado lngua surgem
constantemente na formao literria contempornea. O sujeito unitrio dissolve-se num utilizador
de linguagem significativo, ou seja, o Eu uma fico da linguagem.
Chega o momento, durante a estadia em Budapeste, em que Ksta, ao sonhar, volta a falar na
sua lngua materna (acto involuntrio idntico quilo que j lhe aconteceu, relativamente ao
hngaro) e que causa uma nova quebra na sua auto-identificao. No exagerava, Kriska, quando
me recomendou evitar outros idiomas durante o perodo letivo. Depois de uma noite a falar a minha
lngua e a sonhar que Kriska falava portugus, me vi sem embocadura para o hngaro, feito msico
soprando um instrumento em falso.(Buarque, 2003:58). Aps ter regressado ao Brasil, aprofunda-
se a diferenciao do sujeito em relao a um Outro, medida que este ltimo tambm significar a
configurao da sua prpria identidade. A diferenciao entre o Eu e o Outro caracteriza-se como
uma nova experincia da prpria identidade, ou seja, o modo como a alteridade se identifica na
ipseidade. Houve um tempo em que, se tivesse de optar entre duas cegueiras, escolheria ser cego
ao esplendor do mar, s montanhas, ao pr-do-sol no Rio de Janeiro, para ter olhos de ler o que h
de belo, em letras negras sobre fundo branco. (...) Mas agora, ainda que encontrasse os culos de
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leitura, eu no me animaria a abrir meu prprio livro, de cujo contedo mal me
lembrava.(Buarque, 2003:77). A ansiedade interior acumulada leva Costa a revelar sua mulher
que foi ele que escreveu o livro Gingrafo. O facto de ter sado do anonimato cria novas tenses
nele, por consequncia, confessa o seguinte: S se lhe pedisse para eu no ter dito o que tinha dito
Vanda. S se lhe pedisse para rasurar aquelas palavras, troc-las por outras quaisquer, cort-las da
minha histria (...) (Buarque, 2003:88). Em resultado destes acontecimentos, o protagonista volta
Hungria para reestabelecer a sua relao no s com a lngua, mas tambm com Kriska, comeando
a reconstruir uma nova identidade. Fechado no seu catre, em casa da professora, por motivos de
vingana de Kriska por ter sido abandonada, dedica-se a aprender obcecadamente o hngaro. O
dilogo intensivo com a alteridade, ou seja, a necessidade de aprofundar os conhecimentos de um
idioma alheio permite a Ksta, aparentemente, equilibrar-se consigo prprio. Mas, na realidade, no
consegue sair do quadro da sua auto-identificao pr-estabelecido. Coloca anncios nos jornais
hngaros aceitando pedidos de outras pessoas para redigir textos em nome deles.
Budapeste tambm tem como leitmotiv a questo da sua prpria natureza discursiva. O autor
j no considerado o ponto de partida ontolgico da sua obra, mas um sujeito constantemente
(re)construido no processo interpretativo do(s) texto(s). A auto-referencialidade textual manifesta-se
em vrios aspectos da narrao, interligando com a problemtica da auto-definio do sujeito. No
Rio de Janeiro, Costa e a sua mulher, Vanda, assistem a uma recepo organizada em honra do
poeta hngaro Kocsis Ferenc. O protagonista relata que A caminho da praia do Flamengo
improvisei elogios a Kocsis Ferenc, o grande intrprete da alma hngara, e citei os Tercetos
Secretos como sua obra mais notvel. Inventei na hora, esses tercetos, mas sem demora Vanda
afirmou conhec-los, tendo lido a respeito em suplemento literrio.(Buarque, 2003:32-33). Mais
tarde, j na Hungria, Zsoz Ksta comea a escrever poemas que depois se tornam a ser publicados
sob o ttulo Tercetos Secretos assinados por Kocsis. O protagonista descreve o seu encontro com o
poeta hngaro do seguinte modo: (...) com a boca mole Kocsis Ferenc disse: perdi. Retirou-se
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devagar sem falar mais nada, nem tinha por que falar, no devia sequer saber direito quem era eu. E
no entanto, bem ou mal, ele tinha inaugurado meu caderno de poesia. Deixara um ponto negro no
alto da primeira pgina, ali onde havia ficando a pena. E a partir daquele ponto escrevi um verso,
depois outro, e mais um. Li meus trs versos e fiquei satisfeito, talvez fossem aquelas mesmas as
palavras Kocsis Ferenc vinha perseguido anos a fio. No dia seguinte escrevi nova estrofe de trs
versos que com certeza Kocsis tambm gostaria de haver escrito. J os trs versos do terceiro dia
me pareceram de um nvel mais elevado, conquanto ainda lembrassem, longinquamente, o estilo de
Kocsis Ferenc. Da em diante, a cada dia me ocorria uma estrofe melhor que a da vspera, e
completei meu caderno de poesia com versos que Kocsis Ferenc jamais sonhara
escrever.(Buarque, 2003:105).
O Eu concebido como ponto de cruzamento de vrios textos, lugar mediador dos diferentes
processos de comunicao. Alm do romance autobiogrfico Gingrafo, da autoria de Kaspar
Krabbe e o livro de poesia de Kocsis Ferenc, Jos Costa/Zsoz Ksta aceita tambm a encomenda
De um estudante hngaro para desenvolver uma tese sobre o dialecto szkely. Durante a
formulao do texto em questo, revela-se perante o leitor a prpria natureza do acto de criao,
medida que este tambm implica a correco permanente daquilo que j foi escrito. Possivelmente
o mais rudimentar dos dialetos hngaros, o szkely praticado na Transilvnia oriental. Assim
principiava, em letra de mo, num caderno virgem aberto sobre a mesa de bano do velho Pusks,
minha primeira redao em hngaro. Praticado na Transilvnia oriental, o szkely possvelmente
o mais rudimentar dos dialetos hngaros. Dos dialetos hngaros, o szkely, praticado na
Transilvnia oriental, possvelmente o mais rudimentar. Rudimentar, possvelmente o mais dos
dialetos hngaros... Findou a tarde, o clube fechou as portas e eu no avanava na tarefa. (Buarque,
2003:101-102.).
Qualquer acto de compreenso envolve a apreenso de uma entidade diferente. A interaco
cultural permite um certo tipo de acessibilidade e penetrao na cultura alheia, mas tambm revela
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os aspectos deste encontro que nos fazem perceber que o acesso ao mundo do Outro, alis, sua
linguagem, s pode ser parcialmente atingido. Depois do sucesso do livro Tercetos Secretos, Kriska
revela a sua opinio sobre os poemas escritos por Ksta: Pois bem, Ksta, h quem aprecie o
extico, disse Kriska. Extico? Como, extico? que o poema no parece hngaro, Ksta. O que
dizes? Parece que no hngaro o poema, Ksta. (...) E disse mais: como se fosse escrito com
acento estrangeiro, Ksta. Esta sentena ela emitiu quase a cantar, e foi o que me fez perder a
cabea. Peguei meu prato de esparguete e o atirei em cheio na parede.(Buarque, 2003:108).
A partir deste momento, o protagonista j no tem nenhum controlo como agente que pode
influenciar os acontecimentos da realidade e o prprio destino. Ele sai da casa de Kriska e instala-se
num hotel, onde soube que j estavam sua espera por causa da conferncia habitual dos escritores
annimos. Na conferncia revela ser o autor dos Tercetos Segredos. Dias mais tarde, obrigado
pela polcia hngara a regressar ao Brasil; situao que ficar a dever-se, provavelmente,
revelao que fez de ser sua a autoria desta obra. Tenta escrever, mas confessa que recostado na
cama, eu rabiscava papis areos com o timbre do hotel, e o que me saa nem eram palavras, eram
figuras toscas, desenhos infantis.(Buarque, 2003:122). Passando pouco tempo, Costa recebe um
telefonema do cnsul hngaro que lhe transmite um convite para ir a Budapeste por ocasio do
lanamento do seu livro, intitulado Budapeste. Vendo o seu nome escrito na capa do livro, Ksta
afirma: (...) eu no tinha escrito aquele livro (Buarque, 2003:131). O texto, neste ltimo captulo,
revela ao leitor que a histria do Jos Costa/Zsoz Ksta foi escrito por uma outra pessoa, a sua
figura foi inventada, ou seja, ele apenas uma mera fico dentro do contexto fictcio da obra. Esta
maneira da ficcionalizao do sujeito faz lembrar-nos, entre outros, a criao dos heternimos de
Fernando Pessoa, nomeadamente da figura do Ricardo Reis. A sua histria foi reinventada e
acabada por Jos Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis, onde o protagonista partilha a
seguinte reflexo com o leitor: quem estar sentido o que sinto, ou sinto que estou sentido no lugar
que sou de sentir, quem se serve de mim para sentir e pensar, e, de quantos inmeros que em mim
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vivem, eu sou qual, quem, Quain, que pensamentos e sensaes sero os que no partilho por s me
pertencerem, quem sou eu que os outros no sejam ou tenham ou venham a ser. (Saramago, 1993:
12). O exemplo clssicops-moderno deste tipo de criao do sujeito pelo Outro e, a sua
contextualizao no modo auto-reflexivo, ou seja, tudo o que o texto relata passa-se
simultneamente no momento da sua escrita, a obra Se numa noite de Inverno um Viajante de
Italo Calvino.
Zsoz Ksta, de imediato, expressa uma profunda indignao: Enquanto isso o canalha
escrevia o livro. Falsificava meu vocabulrio, meus pensamentos e devaneios, o canalha inventava
meu romance autobiogrfico. E a exemplo da minha caligrafia forjada em seu manuscrito, a histria
por ele imaginada, de to semelhante minha, s vezes me parecia mais autntica do que se eu
prprio a tivesse escrito.(Buarque, 2003:132-133). Mais tarde, quando Kriska lhe pede para ler em
voz alta o romance, Costa comea a sentir um certo tipo de reencontro consigo prprio: Eu me
atrapalhava com a pontuao, perdia o flego no meio das frases, era como ler um texto que eu
tivesse mesmo escrito, porm com as palavras deslocadas. Era como ler uma vida paralela minha,
e ao falar na primeira pessoa, por um personagem paralelo a mim, eu gaguejava. () E a ss com
ela, na meia-luz do quarto esfumaado, cheguei mesmo a me convencer de ser o verdadeiro autor do
livro.(Buarque, 2003:135).
A histria do Jos Costa demonstra-nos que preservando as diferenas no Eu e no Outro,
que se pode conceber a unidade do Eu como o Outro e que o Outro, na sua alteridade, jamais me
completa, mas sempre revela, na minha incompletude, a necessidade essencial da sua
presena.(Moraes, 2001:92).
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