IDENTIDADES DE GÊNERO E PEDAGOGIAS CULTURAIS: UM … · sobre a educação de meninas, ... A...

14
IDENTIDADES DE GÊNERO E PEDAGOGIAS CULTURAIS: UM MENINO E VÁRIOS VESTIDOS João Paulo Baliscei Universidade Estadual de Maringá UEM Vinícius Stein Universidade Estadual de Maringá - UEM RESUMO As imagens e conteúdos midiáticos estabelecem distinção entre aquilo que é exclusivo para homens e aquilo que é adequado para as mulheres, desconsiderando outras combinações. O objetivo deste artigo é problematizar as representações de gêneros, com ênfase na masculinidade, e destacar a necessidade de propiciar discussões sobre gêneros no espaço escolar. Para tanto, realizamos uma pesquisa bibliográfica a partir dos Estudos Culturais e analisamos o Filme Bruno (2000), que apresenta a história de um menino de oito anos que, por preferir trajar vestido, não se encaixa nos padrões de masculinidade aceitos socialmente. Observamos que o filme retrata a discriminação daqueles/as que se desviam do hegemônico, assim como o despreparo pedagógico para reflexões de gêneros. Palavras-chave: Estudos Culturais; Gênero; Pedagogias Culturais. Cultura Visual; Formação de professores. INTRODUÇÃO Muito do modo como meninos e meninas agem, pensam e se vestem é desenvolvido a partir de referenciais oferecidos pelas imagens de seu cotidiano. Cartazes publicitários, cenas de novelas, catálogos de moda, fotografias de revistas, imagens televisivas, histórias em quadrinhos e personagens cinematográficas indicam comportamentos a serem imitados, caso se queira ser aceito/a e aprovado/a socialmente. Hernández (2000; 2007) afirma que esses e outros objetos visuais, tão

Transcript of IDENTIDADES DE GÊNERO E PEDAGOGIAS CULTURAIS: UM … · sobre a educação de meninas, ... A...

IDENTIDADES DE GÊNERO E PEDAGOGIAS CULTURAIS:

UM MENINO E VÁRIOS VESTIDOS

João Paulo Baliscei

Universidade Estadual de Maringá – UEM

Vinícius Stein

Universidade Estadual de Maringá - UEM

RESUMO

As imagens e conteúdos midiáticos estabelecem distinção entre aquilo que é exclusivo para homens e aquilo que é adequado para as mulheres, desconsiderando outras combinações. O objetivo deste artigo é problematizar as representações de gêneros, com ênfase na masculinidade, e destacar a necessidade de propiciar discussões sobre gêneros no espaço escolar. Para tanto, realizamos uma pesquisa bibliográfica a partir dos Estudos Culturais e analisamos o Filme Bruno (2000), que apresenta a história de um menino de oito anos que, por preferir trajar vestido, não se encaixa nos padrões de masculinidade aceitos socialmente. Observamos que o filme retrata a discriminação daqueles/as que se desviam do hegemônico, assim como o despreparo pedagógico para reflexões de gêneros. Palavras-chave: Estudos Culturais; Gênero; Pedagogias Culturais. Cultura Visual; Formação de professores.

INTRODUÇÃO

Muito do modo como meninos e meninas agem, pensam e se vestem é

desenvolvido a partir de referenciais oferecidos pelas imagens de seu cotidiano.

Cartazes publicitários, cenas de novelas, catálogos de moda, fotografias de revistas,

imagens televisivas, histórias em quadrinhos e personagens cinematográficas

indicam comportamentos a serem imitados, caso se queira ser aceito/a e aprovado/a

socialmente. Hernández (2000; 2007) afirma que esses e outros objetos visuais, tão

próximos dos meninos e meninas em idade escolar, compõem os artefatos da

Cultura Visual.

A Cultura Visual é entendida pelo autor como um recente campo de estudos

que investiga o modo como as mídias e a cultura popular nos representam

visualmente. Neste sentido, as imagens do cotidiano não são compreendidas como

ilustrações neutras, inofensivas e inocentes. Ao contrário, são consideradas como

Pedagogias Culturais, isto é, como maneiras culturais de se educar. Steinberg e

Kincheloe (2001) afirmam que o termo Pedagogias Culturais engloba a educação

escolar, mas não se limita a ela, uma vez que a ultrapassa conforme identifica o

potencial pedagógico inerente nos artefatos do cotidiano.

Em nosso exercício docente, percebemos que no espaço escolar ainda hoje

as brincadeiras e atividades são dicotomizados em dois grupos distintos: as de

meninas e as de meninos. Brincar com carrinhos, com ferramentas de trabalho ou

aqueles jogos que envolvam velocidade, força e competição, como corridas, “pega-

pega” e futebol são classificados como brincadeiras “de meninos”. Para as meninas,

por outro lado, as brincadeiras são relacionadas aos afazeres domésticos e

cooperação, como “casinha”, “comidinha”, cuidar de bonecas, lavar roupas ou ainda,

aos cuidados com a aparência, como fazer tranças, maquiar-se e salão de beleza.

Além das brincadeiras e dos brinquedos, percebemos também que o uso de

algumas cores é exclusividade dos meninos ou das meninas: azul e rosa,

respectivamente. Objetos, roupas e brinquedos azuis compõem aqueles próprios

dos meninos, como se não fosse admissível que um menino preferisse tons rosa aos

azuis.

As imagens que os[/as] estudantes trazem para a sala de aula ilustram e promovem, com certa "precisão" os gostos e os comportamentos aceitos para cada gênero. As crianças, através de suas preferências por determinados brinquedos, personagens e materiais escolares, demonstram que vivenciam diversas experiências visuais que delimitam o que as meninas e meninos podem fazer, pensar e agir. (NUNES, 2010, p. 70).

Moreno (2011) analisa que a capacidade de imaginar é o que diferencia os homens

e as mulheres dos animais. Segundo a autora, essa capacidade de imaginação é

limitada pelas influências que recebemos das imagens de revista, dos livros, da

televisão, do cinema e do mundo que nos cerca. Neste sentido, ainda que tenhamos

autonomia e independência, nossas escolhas são determinadas pelas referências e

vivências anteriores que temos. Por vezes, adaptamo-nos e aprendemos a

reproduzir o modo como o mundo está organizado, como se houvesse uma única

verdade inquestionável.

Moreno (2011) observa ainda que, antes mesmo de aprenderem a palavra “pessoa”,

as crianças já sabem que existe a diferenciação entre meninos e meninas. Ao tratar

sobre a educação de meninas, a autora analisa que pais, mães, professores e

professoras determinam como e com quem elas podem brincar. Quando entram na

escola: sabem como se sentar, como precisam arrumar seu cabelo e como precisam

se comportar, por exemplo.

Também os meninos acabam por repetir comportamentos e gostos considerados

como “de meninos”: por exemplo, usam shorts, calça, camiseta, não são vaidosos,

correm, mantêm os cabelos curtos e não se preocupam com a postura, dentre

outros comportamentos que são "próprios" de meninos.

Diante destes padrões de comportamento, qualquer desvio é comumente

recriminado. Esta afirmação nos remete a um relato feito por professoras das séries

iniciais, durante uma aula no curso de graduação em Pedagogia, onde refletíamos

sobre os estereótipos sobre o que é ser menino e menina. As professoras relataram

que levaram às crianças roupas de adultos e conduziram uma proposta onde elas

pudessem se vestir com os trajes e elaborar histórias a partir dos figurinos. Um aluno

vestiu um vestido e foi orientado pelas professoras a não colocar roupa “de menina”.

A criança parou por alguns instantes e argumentou que o vestido em questão não

era uma roupa “de menina”, mas sim roupa de padre. Em outro momento, o mesmo

aluno foi interpelado pelas professoras para que ao invés de brincar com bonecas, o

fizesse com carrinhos ou bolas e, novamente, a criança argumentou com

naturalidade a razão da sua escolha dizendo que era o papai da boneca.

Por meio dos exemplos relatados pelas professoras podemos questionar os valores

hegemônicos que, por vezes, são reforçados e legitimados no contexto escolar.

Quais são as respostas que temos para questões como: As crianças podem brincar

com diferentes roupas? É adequado um menino brincar de bonecas? Uma menina

pode usar cabelos curtos e jogar futebol? Por que na hora do recreio meninos e

meninas não são incentivados a brincar juntos? Porque crachás e outros materiais

que identificam as meninas são comumente elaborados com a cor rosa? Como a

postura do professor/a frente a estes elementos impactam no desenvolvimento

infantil?

Os Estudos Culturais, abordagem teórica que subsidia este estudo, compreendem

que a linguagem produz e modifica a relação das pessoas consigo mesmas e com o

mundo. Por meio de imagens, representações e discursos, nos constituímos

enquanto homem e mulher/masculino e feminino. Aprendemos quais são os

comportamentos, atitudes, gestos, profissões, pensamentos e papeis que são

socialmente aceitáveis quando desempenhados por homens e mulheres. Para

Nunes (2010, p. 58) "Isso implica dizer que não nascemos mulheres: nós nos

tornamos mulheres".

Pensar sobre gênero nessa perspectiva implica questionar posicionamentos que

vinculam as identidades masculinas e femininas às diferenças biológicas, ao sexo e

a sexualidade. Homens se tornam homens na medida em que se apropriam e

incorporam os valores que determinada cultura determina como adequados e

previsíveis aos homens. O mesmo acontece com as mulheres. Nesta perspectiva,

discutir sobre gênero,

[...] torna-se ousado e instigante para os[/as] profissionais ligados[/as] à área educacional. Isso acontece porque acreditar que gêneros não são construídos de maneira "natural" e "espontânea é uma tarefa ambiciosa para uma realidade marcada por fortes discursos que procuram enfatizar as diferentes atribuições femininas e masculinas. Gênero é uma identidade fabricada, produzida ao longo da vida por diversas pedagogias culturais, pois se aprende a viver como homem e como mulher. (NUNES, 2010, p. 59-60).

Em análise dos materiais que os meninos e meninas levam para as salas de aulas,

Nunes (2010) constata que há, além da preferência, uma insistência para que os

meninos se identifiquem com personagens grosseiros, agressivos, dinâmicos, fortes

e com superpoderes . Nestes exemplos, a autora identificou e problematizou as

imagens e textos nas fotografias, álbuns de figurinhas, mochilas, estojos e

brinquedos e outros artefatos culturais que auxiliam as crianças na construção de

suas identidades de gêneros. Conforme Momo (2008) as mochilas, cadernos e

estojos que os/as estudantes levam para a escola, ultrapassaram a funcionalidade e

a praticidade de se constituírem simples materiais escolares. São oportunidades de

produzir significados e de, no "palco escolar", expressar suas preferências e

identificações com determinada personagem, cor e filme.

Steinberg e Kincheloe (2001) assinalam o potencial das imagens da cultura popular

em diferenciar e delimitar o que é admissível para cada gênero. Desde 1950, nas

propagandas de brinquedos para meninos, por exemplo, era comum a voz forte de

locutores narrando ou projetando sons característicos das colisões entre veículos.

Nas propagandas contemporâneas, a "[...] voz masculina e adulta do locutor se foi,

mas clouse-ups dos brinquedos e vozes de garotos fazendo efeitos sonoros de

máquinas e armas continuam ininterruptos". Schor (2009) argumenta que, com

exceção das propagandas de alimentos, os comerciais destinados à clientela infantil

se submetem a necessidade da diferenciação de gênero. Isso é para menino ou

para menina?

Mesmo quando crescem, os meninos, agora homens, são interpelados a valorizar

habilidades e sensações semelhantes a essas. Propagandas destinadas ao público

masculino fazem apelo à adrenalina, a ascensão profissional, a competitividade, a

sofisticação e ao sexo descompromissado. As imagens nos diferentes meios de

comunicação procuram se associar a ideais, estilo de vida, valores e papéis de

gênero. Kellner (2013) exemplifica com análises de propagandas do cigarro

Marlboro e Virginia slims, criadas respectivamente para o público masculino e

feminino. No primeiro caso, personifica-se nas propagandas a figura de um homem

másculo, robusto, imponente em seu cavalo, um típico cowboy. A marca Virginia

slims, por sua vez, apresenta propagandas satíricas, utilizando representações de

mulheres ousadas, bem vestidas, esbeltas e sorridentes. Tirinhas com cenas de

mulheres executando afazeres domésticos e o slogan “você progrediu um bocado,

querida” também compõem a propaganda voltada para a clientela feminina.

Em análise de propagandas endereçadas à clientela masculina, Baliscei e Jordão

(2014) observam que os discursos, objetos e profissões que caracterizam o que é

"ser homem" na pós-modernidade parece convergir em representações que, longe

de representarem os diferentes modos de ser homem, simplificam-nos em

comportamentos estereotipados e caricatos.

Os discurso de "como ser homem" que ambos os anúncios (re)produzem são bastante semelhantes, enfatizam a necessidade do destaque social, sucesso profissional, boa aparência e confiança. Para que isso aconteça, sugerem características físicas e ações específicas (ser branco, jovem, vestir-se formalmente, trabalhar em escritórios, desempenhar determinadas funções e possuir determinados modelos de carros). (BALISCEI E JORDÃO, 2014, p. 13).

Wortmann (2005) reflete sobre a necessidade de compreensão sobre como os

saberes são produzidos e como eles definem nossa percepção sobre nós mesmos e

os elementos da sociedade. A autora tece reflexões a respeito das ilustrações na

literatura infantil. Destaca que os livros infantis oferecem um conjunto repetitivo de

características para representar a natureza, isto é, apresentam-na como sendo um

lugar escuro, com animais ferozes e perigosos, desagradável, assustador e que, por

isso, precisa ser evitado pelas crianças.

Em tal abordagem busca-se, também, entender como os saberes são produzidos

por determinados discursos e como tais discursos se ligam ao poder, regulam as

condutas e constroem identidades e subjetividades. Com a intenção de demonstrar

outras características e discursos sobre a natureza na literatura infantil, Wortmann

(2005) apresenta-nos histórias do escritor Angelo Machado (1934 -- ) como, “A outra

perna do Saci”, “Chapeuzinho vermelho e o lobo-guará”. Nessas histórias a natureza

é representada não mais de forma obscura e perigosa. Conforme esclarece a

autora, a natureza não é má, pelo contrário, são os homens e mulheres,

devastadores e exploradores de riqueza que levam doenças e destroem os

ambientes naturais.

Desta forma, assim como demonstra Wortmann (2005), as imagens e ilustrações

carregam consigo discursos, isto é, posições e opiniões que, muitas vezes, são

aceitas como verdadeiras. A respeito deste estudo, não analisamos as

representações de natureza, mas uma outra: as narrativas que se distanciam do

modo como os meninos são comumente representados. Sendo assim, a seguir,

analisamos e investigamos as representações de masculinidade apresentadas pelo

filme Bruno (2000).

MENINOS PODEM SAR VESTIDOS?

O filme, cujo título original é “Bruno – The DressCode”, foi lançado em 2000, nos

EUA, sob direção de Shirley Mac Laine (1934 --). Bruno Battaglia, interpretado por

Alex David Linz (1989 --) é um menino de oito anos com alguns hábitos peculiares,

entre eles, ler dicionários insistentemente e usar vestidos. Essa última prática

acarreta atitudes preconceituosos e de distanciamento de seus/suas colegas e das

professoras e professores da escola católica onde estuda.

As freiras/professoras e os demais meninos e meninas da escola não aceitam o seu

jeito de se vestir, pois acreditam que vestido é roupa "de mulher”. O filme demonstra

o quanto as pessoas têm dificuldades para lidar com o novo, com o diferente, e para

reorganizar os seus pensamentos, a sua forma de ver o mundo, principalmente no

que diz respeito aos limites e fronteiras entre os gêneros.

Em investigação das práticas pedagógicas e da construção de gêneros em sala de

aula, Nunes e Martins (2012) identificaram o poder de dominação que alguns alunos

e alunas detêm sobre os/as demais, por se aproximarem da concepção hegemônica

do que é ser menino/menina. Assim, lideram a turma e determinam quem pode ser

aceito e quem deve ser rejeitado pelo grupo. No caso de Bruno, o menino que usa

vestido, essa questão é perceptível quando aqueles/as que se enquadram na

"norma" apontam-no como sendo um "desvio" e por isso rejeitam-no.

Nunes (2010) apresenta os argumentos de meninos para se distanciarem dos

objetos e personagens "compatíveis" com as preferências e comportamentos

femininos. Um dos meninos relata:

A gente é menino, não é bichinha. Seria bichinha se tivesse desenho de menina, com caderno de cheirinho, brilho, adesivo que muda de posição. Isso é proibido pros meninos. É fora da lei! Esse caderno é proibido pros meninos se não vão achar que eles são meninas ao invés de menino. Meu próprio caderno tem que ser de carro, paraquedas ou herói. (NNES, 2010, p. 88, grifos nossos)

Em sua fala, o estudante marca os contornos do que é permitido para os meninos.

Delimita o que eles podem ter, como têm que agir e até onde podem ir, para que

estejam "dentro da lei", para que não provoquem estranhamento nos/as outros/as

membros do grupo. Mesmo quando Bruno argumenta para os/as funcionários/as e

demais crianças da escola, dizendo que não quer ser menina, e que sua roupa não

é vestido, e sim uma vestimenta sagrada, causa polêmica e desconforto. Por usar

vestido, Bruno fez algo proibido para os meninos. Infringiu a “lei” tal como se usasse

cadernos rosas, com cheirinho e adesivos.

O pai de Bruno, Dino Battaglia, bem como as crianças e as professoras,

demonstram em seus atos e falas a intenção e tentativa de "ajustar" e "regular" os

hábitos do menino para que sejam coerentes com sua identidade de gênero.

Para garantir aos sujeitos modos de conduta socialmente adequados, é necessário potencializar o discurso hegemônico de modo a forçar uma identidade definitiva e de alguma forma tentar eliminar as "marcas" da diferença. Por isso, falar de identidade implica sempre falar de diferença. (SABAT, 2010, p. 240).

Incomodado pela maneira como os demais meninos e meninas o tratam por causa

do seu modo de se vestir, Bruno dialoga com Shawniqua, uma garota negra que, em

seu modo de se vestir e de agir frequentemente também desafia as visões restritas

das freiras da escola: “Você não acha estranho eu usar vestido?”, diz o menino.

Shawniqua responde: “Por que não? Eu uso calça [...] nós somos espíritos livres

tentando nos expressar".

Os ideais de masculinidade e de feminilidade são perceptíveis não apenas na

preferência das brincadeiras das crianças, mas também em suas maneiras de

pensar, agir e falar cotidianamente. A partir dessas observações, Nunes e Martins

(2012) constataram que há produção de feminilidades e masculinidades na escola e

nos programas televisivos voltados para o público infantil. Produzir gêneros implica

construir representações que caracterizam homens e mulheres, comportamentos

masculinos e femininos. Também no filme Bruno (2000) identificamos produtores/as

e reprodutores/as de gênero no espaço e contexto escolar. Pais, mães, professoras,

alunos e alunas estão potencializam concepções cristalizadas de masculinidade,

sem problematizá-las ou dar abertura a outros modos de ser homem.

Na trama do filme, quando se inicia o 50º concurso de soletrar, organizado e

promovido pela escola, as crianças se encontram sentadas em um salão para

assistir o desempenho dos candidatos e candidatas, dentre eles, Bruno. A Madre

Superiora e três irmãs entram usando seus hábitos e sopram um apito para que as

crianças se acomodem e façam silêncio. Enquanto as outras irmãs se sentam, a

Madre Superiora anuncia que quem vencer aquela etapa irá competir no concurso

Regional, em Washington e relembra as crianças que o vencedor ou vencedora da

etapa final ganhará uma audiência particular com o Papa. Antes de chamar os

competidores e competidoras, pede para que as crianças façam uma oração com a

cabeça baixa e olhos fechados.

Enquanto os/as demais rezam, os meninos e meninas que irão competir entram

todos de uniforme escolar e em fila. Todos/as menos Bruno: o menino traja um

vestido bege, transparente, de uma manga só e com comprimento até os joelhos.

Além disso, usa uma coroa na cabeça. Quando finalizam a oração e abrem seus

olhos, as crianças e os/as adultos/as da plateia riem da aparência do menino. A

situação se agrava quando, em meio aos risos das crianças, as irmãs retiram Bruno

do palco à força.

Bruno sofre discriminação e preconceito por parte das próprias professoras que

manifestaram rejeição simbólica e fisicamente ao modo de se vestir de Bruno.

Moreno (2011) argumenta que, em seu exercício, professores e professoras

reforçam as diferenças e limites entre os gêneros, direcionando as brincadeiras das

meninas e as dos meninos, associando as últimas à violência e esportes.

Nunes e Martins (2012) vivenciaram o modo como a ação docente exerce

autoridade, podendo encerrar ou ampliar a discussão sobre identidade de gênero. A

autora e o autor pediram para que as crianças do 3º ano do Ensino Fundamental

trouxessem fotos daquilo que as representa. Ocorreu que um dos meninos

apresentou fotos de bichinhos de pelúcia. Em conversa individual com a

pesquisadora, o menino relatou que os bichinhos eram dele e manifestou seu gosto

por tais objetos. No entanto, quando as fotos foram apresentadas para a classe sua

argumentação mudou. Diante do riso dos meninos e meninas, muito rapidamente ele

disse que as pelúcias eram de sua irmã. Neste caso a autora e o autor analisam

que,

Ao escutar as risadas dos[/as] alunos[/as], reafirmei o que o menino havia dito com a intenção de protegê-lo das piadinhas dos[/as] colegas. Eu disse: Isso mesmo! Esses são da tua irmã, né?! Ele concordou dizendo que sim. Neste momento, minha voz era a voz da autoridade legitimando o que o menino falou e cortando qualquer possibilidade de que as brincadeiras continuassem. Exerci o poder de controlar a situação e dirigir as percepções e ações das crianças. Produzi gênero a enfatizar que aqueles brinquedos realmente não poderiam ser de um menino. (2012, p. 18, grifos da autora e do autor)

Assim como as professoras do filme que lidavam com um menino de vestido,

também Nunes e Martins (2012) enfrentaram uma situação atípica, um menino que

gostava/ou se sentia representado por ursinhos de pelúcia. Nestes casos, por

exercer a voz da autoridade, os/as professores podem desempenhar

posicionamentos no sentido de refletir e ampliar sobre as representações de gênero.

Iniciativas docentes como propor que as crianças tragam e apresentem seus

ursinhos de pelúcia, ou que dêem vida ao objeto, inventando histórias, narrativas e

falas para ele são estratégia para questionar e problematizar um pensamento

cristalizado a fim de flexibilizá-lo. Que tal, adotar um ursinho de pelúcia como

mascote da turma, escolher um nome e, a cada dia, permitir a um/a aluno/a que o

leve para casa e o apresente para sua família?

O filme Bruno (2000) enfatiza a falta de diálogo e de discernimento por parte das

professoras que, preocupadas em ajustar o comportamento do menino que fugia à

norma, não se interessaram por perguntar os motivos de ele usar vestido. Em sua

sala, a Madre Superiora pergunta à mãe de Bruno: “O que ele está fazendo de

vestido?”. Neste momento Bruno explica que aquilo não era um vestido, era uma

"túnica sagrada". O menino argumenta enumerando homens importantes que

usaram vestidos: anjos, escoceses, os homens do Antigo Egito, o líder religioso

Dalai Lama, assim como todos os seus predecessores, Ricardo III, os reis siameses,

o rei da China, os muçulmanos, os vaqueiros da Hungria, os africanos e até o Papa.

Bruno, inclusive, pergunta a Madre Superiora se ela ligará para o Papa advertindo-o

para não usar mais vestido.

Moreno (2011) discorre que a responsabilidade da escola em marcar a formação

intelectual e a formação social dos indivíduos. Contudo, conforme demonstrado pelo

filme, metodologias, exercícios e intervenções, ainda que espontâneas, reforçam as

identidades de gênero hegemônicas. Pais, mães, professoras e professores

precisam refletir e questionar sobre os modelos predeterminados de ser menina e de

ser menino para que as crianças tenham o direito e a liberdade de expressar seus

pensamentos, sentimentos e preferências. Para que isso ocorra, não basta pôr

meninos e meninas na mesma sala ou dar-lhes os mesmos brinquedos. Para que

essa mudança ocorra é necessário ensinar a respeitar as diferentes, ser crítico/a

com relação aos modelos femininos e masculinos, e valorizar as possibilidades de

ser homem e de ser mulher que a cultura e a sociedade oferecem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muito do modo como meninos e meninas se comportam e constituem suas

identidades de gênero é constituído na sociedade e cultura em que vivem. Neste

sentido, as imagens do cotidiano, como os filmes, fotografias, propagandas e

outdoors exercem pedagogias são produtoras de gênero, uma vez que prescrevem

ações, vestimentas e produtos adequados para homens e mulheres. Violência,

agilidade, adrenalina, racionalidade, competitividade e ganância são temáticas

recorrentes nos anúncios e propagandas destinadas ao público masculino que

legitimam o modo como os homens devem se comportar para que sejam aceitos

socialmente.

No espaço escolar, as identidades de gênero reverberam nas preferências dos

meninos e das meninas seja na capa de seus cadernos ou no modo como correm,

sentam ou brincam. Reforçam já na infância quais os gostos "compatíveis" com cada

gênero e se preocupam em ajustar aqueles/as que apresentam desvios ou

identidades de gênero diferente da esperada. Com o objetivo de problematizar as

representações de gêneros, com ênfase na masculinidade, e destacar a

necessidade de propiciar discussões sobre gêneros no espaço escolar analisamos o

filme Bruno (2000), cuja personagem principal, um menino de oito anos, parece não

se encaixar nas normas que são estabelecidas para os garotos da mesma idade.

Será que usar vestido diminui a masculinidade de Bruno? Em nosso entendimento

ações contra hegemônicas, como esta, contribuem para a ampliação do significado

de "ser homem" na contemporaneidade. Essa variedade precisa ser questionada no

contexto escolar, bem como pelas famílias e meios de comunicação. Proporcionar

que os meninos dialoguem sobre suas fragilidades, sentimentos e medo é uma ação

indispensável para ampliarmos nossa visão sobre masculinidade, assim como

investigar e problematizar as representações de masculinidade que são oferecidas

pelas imagens do cotidiano. Elas apresentam um conjunto de características que se

repetem? Em quais aspectos nós nos identificamos e nos assemelhamos a elas?

Essas imagens dão conta de representar os modos de ser masculino? Quais os

indivíduos que são deixados à margem por essas representações?

Preparar meninos e meninas para criticarem e percorrerem outros caminhos com

seus pensamentos, construir e unificar o que foi fragmentado e mostrar que a partir

das mudanças nós poderemos ampliar nossa visão sobre feminilidade e

masculinidade não é uma tarefa fácil. Compreendemos que, para que essa

discussão chegue às salas de aula, primeiramente precisamos conscientizar pais,

mães, familiares, professores, professoras e demais indivíduos ligados à educação

sobre a importância de se discutir gênero.

REFERÊNCIAS

BALISCEI, João Paulo. JORDAO, Victor Hugo. Como 'ser homem'? Investigando discursos

sobre masculinidades. In: XXIV Congresso Nacional da Federação de Arte/Educadores

do Brasil e II Congresso Internacional da Federação de Arte/Educadores, 2014, Ponta

Grossa. Anais do XXIV Congresso Nacional da Federação de Arte/Educadores do Brasil e II

Congresso Internacional da Federação de Arte/Educadores, 2014. 14p.

BRUNO. Direção e produção de Shirley MacLaine. País de origem: EUA. Cine Tamaris,

2000. 1 DVD (108 min.) son., color. Legendado. Port.

HERNÁNDEZ, Fernando. Cultura visual, mudança na educação e projetos de trabalho.

Porto Alegre: ArtMed, 2000, 262p.

HERNÁNDEZ, Fernando. Catadores da cultura visual: transformando fragmentos em

nova narrativa educacional. Tradução de Ana Duarte. – Porto Alegre: Mediação,

2007.127p.

KELLNER, Douglas. Lendo imagens criticamente: em direção a uma pedagogia pós-

moderna. IN: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). Alienígenas na sala de aula. – Petrópolis, RJ:

Vozes, 2013. p. 101-127.

MOMO, Mariângela. Condições culturais contemporâneas na produção de uma infância: o

pós-moderno que vai à escola. IN: 30ª reunião da Associação Nacional de Pós-

Graduação e Pesquisa em Educação - ANPED, Caxambu, 2008.

MORENO, Monsterrat. Como se ensina a ser menina: sexismo na escola. Editora da

Unicamp, 2011. 80p.

NUNES, Luciana Borre . As Imagens que Invadem as Salas de Aula: Reflexões sobre

Cultura Visual. 1. ed. São Paulo: Ideias & Letras, 2010. 126p .

NUNES, Luciana Borre; MARTINS, Raimundo. "Esse é o jeito rebelde de ser": produzindo

masculinidades nas salas de aula. Revista Digital do LAV, v. 8, p. 3, 2012.

SABAT, Ruth. Filmes Infantis como máquinas de ensinar. In: 25a Reunião da Associação

Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação - ANPED, 2002, Caxambu (MG).

Grupo de Trabalho Educação e Comunicação, 2002. p. 235-252.

SCHOR, Juliet B. Nascidos para comprar: uma leitura essencial para orientarmos

nossas crianças na era do consumismo. Tradução de Eloisa Helena de Souza Cabral .

São Paulo: Editora Gente, 2009. 318p.

STEINBERG, Shirley R; KINCHELOE, Joe L..Sem segredos: cultura infantil, saturação de

informação e infância pós-modernda. In: Cultura infantil: a construção corporativa da

infância. Shirley R. Steinberg, Joe L. Kincheloe (Orgs.).Tradução de George Eduardo

JapiassúBricio. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 9-52.

WORTMANN, Mara Lúcia Castagna. Dos riscos e dos ganhos de transitar nas fronteiras dos

saberes. In: COSTA, Marisa Vorraber; BUJES, Maria Isabel Edelweiss. Caminhos

investigativos III: riscos e possibilidades de pesquisar nas fronteiras. Rio de Janeiro:

DP&A, 2000.

GENDER IDENTITYANDPEDAGOGIES CULTURAL:

A BOY AND SEVERAL DRESSES

ABSTRACT

The media images and content establish distinction between what is unique to men and what is appropriate for women, disregarding other combinations. The purpose ofthis article is to discuss the representations of genres, with an emphasis on masculinity, and highlight the need to foster discussions about gender at school. Thus, we performed a literature search from Cultural Studies and analyze the movie Bruno (2000), which presents the story of an eight year old boy who, for prefer to wear dress, does not fit the socially accepted standards of masculinity. We observed that the movie portrays the discrimination of those that deviate from the hegemonic,as well as the lack of preparation for pedagogical reflections of genres.

Keywords: Cultural Studies; Gender; Cultural Pedagogies; ; Visual Culture; Teacher training.