Identidades no Santo Daime: caminhos da tradição e da inovação

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Revista Estudos Amazônicos • vol. X, nº 1 (2014), pp. 61-85 Identidades no Santo Daime: caminhos da tradição e da inovação Julia Lobato P. Moura Resumo: Este artigo procura analisar como os conceitos de “tradição” e “nova era” são utilizados para diferenciarem os dois principais grupos ligados a Doutrina do Santo Daime: o CICLU Alto Santo, fundado por Raimundo Irineu Serra em 1954, e o CEFLURIS (atual ICEFLU) inaugurado em 1974, por Sebastião Mota de Melo. A pesquisa tem por base uma revisão bibliográfica, a observação e experiência vivenciada com os grupos, e as narrativas de seus representantes, disponíveis na publicação ‘Comunidades tradicionais da ayahuasca: construindo políticas públicas para o Acre’ de 2010. Objetiva-se analisar se as identidades daimistas estão se diferenciando a tal ponto que configuram duas tradições: a tradicional, aquela que trilha o caminho ortodoxo, e a “nova tradição”, em construção, que vem incorporando novos elementos sob o signo do “novo povo e nova era”. Palavras-Chave: Santo Daime; Identidades; Tradição. Abstract: This article aims to analyze how the concepts of "tradition "and" new age" are used to establish a difference between the two main groups linked to Santo Daime: the CICLU Alto Santo, founded by Raimundo Irineu Serra in 1954, and CEFLURIS (current ICEFLU) founded in 1974 by Sebastião Mota de Melo. The research is based on literature review, observation and experience with the groups, and the narratives of their representatives which are available at the publication ‘Traditional ayahuasca communities:

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Revista Estudos Amazônicos • vol. X, nº 1 (2014), pp. 61-85

Identidades no Santo Daime: caminhos da tradição e da inovação

Julia Lobato P. Moura

Resumo: Este artigo procura analisar como os conceitos de “tradição” e

“nova era” são utilizados para diferenciarem os dois principais

grupos ligados a Doutrina do Santo Daime: o CICLU Alto Santo,

fundado por Raimundo Irineu Serra em 1954, e o CEFLURIS

(atual ICEFLU) inaugurado em 1974, por Sebastião Mota de Melo.

A pesquisa tem por base uma revisão bibliográfica, a observação e

experiência vivenciada com os grupos, e as narrativas de seus

representantes, disponíveis na publicação ‘Comunidades

tradicionais da ayahuasca: construindo políticas públicas para o

Acre’ de 2010. Objetiva-se analisar se as identidades daimistas

estão se diferenciando a tal ponto que configuram duas tradições:

a tradicional, aquela que trilha o caminho ortodoxo, e a “nova

tradição”, em construção, que vem incorporando novos elementos

sob o signo do “novo povo e nova era”.

Palavras-Chave: Santo Daime; Identidades; Tradição.

Abstract: This article aims to analyze how the concepts of "tradition "and"

new age" are used to establish a difference between the two main

groups linked to Santo Daime: the CICLU Alto Santo, founded

by Raimundo Irineu Serra in 1954, and CEFLURIS (current

ICEFLU) founded in 1974 by Sebastião Mota de Melo. The research

is based on literature review, observation and experience with the

groups, and the narratives of their representatives which are

available at the publication ‘Traditional ayahuasca communities:

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building public policies to Acre’, in 2010. My objective is to analyze

whether the daimistas identities are being modified to the point that

it may have turned into two traditions: a tradition which works on

orthodox ways, and the "new tradition", under construction, which

has been incorporating new elements that come under the banner

of "new people and new era".

Keywords: Santo Daime; Identity; Tradition.

Introdução

Santo Daime, ou simplesmente Daime é uma das chamadas três

religiões ayahuasqueiras ditas tradicionais. O nome foi dado por

Raimundo Irineu Serra à poderosa infusão psicoativa da Amazônia, a

ayahuasca, bebida que ele conheceu nos seringais peruanos na fronteira

com o Acre em meados da década de 1920, quando trabalhava na

comissão de demarcação de fronteiras Brasil-Peru.1 Irineu Serra inicia os

trabalhos com o Daime em Rio Branco na década de 1930, em sua

residência na Vila Ivonete, e inaugura a primeira sede para os trabalhos

espirituais na década de 1950, quando então é fundado o Centro de

Iluminação Cristã Luz Universal (CICLU – Alto Santo). O uso ritual do

Daime ganhou nos últimos 40 anos ampla difusão fora de sua região e

contexto de origem, expandindo-se na escala nacional e internacional. O

objetivo deste trabalho é fazer uma análise de algumas das consequências

deste processo de expansão na diferenciação das identidades daimistas.

Com o falecimento do Mestre fundador ocorreram diversas divisões.

Entre estes novos grupos, o que ganhou maior repercussão e adeptos foi

o de Sebastião Mota, que fundou o Centro Eclético da Fluente Luz

Universal Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS) atualmente denominado

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Igreja do Centro Eclético da Fluente Luz Universal – Patrono Sebastião

Mota (ICEFLU). Aos poucos o grupo fundado por Sebastião Mota na

Colônia Cinco Mil, zona rural de Rio Branco, foi introduzindo novos

elementos ao ritual, o vem suscitando polêmicas desde aquela época, e

contribuindo para a demarcação das diferentes identidades daimistas. A

transformação e adaptação do uso do Santo Daime é consequência do seu

contato com pessoas de outras partes do país que trouxeram novos

elementos culturais e espiritualistas ao rito tradicional, principalmente

elementos da contracultura, da nova-era, e das religiões afro-brasileiras.

Alguns trabalhos já foram publicados com o objetivo de analisar a

expansão da ayahuasca de uma forma geral, e também as variações

ocorridas nos rituais daimistas a partir do falecimento de Irineu Serra e

subdivisões consequentes, segundo Glauber Loures de Assis,2 Antônio

Marques Alves Junior3, Beatriz Caiuby Labate,4 Isabela Oliveira,5 Tom

Orgad.6 Estas pesquisas, juntamente as falas dos representantes das duas

vertentes citadas, expressas no Seminário ‘Comunidades tradicionais da

ayahuasca: construindo políticas públicas para o Acre’ realizado em 2010,

serão fundamentais para analisar como os conceitos de “tradição” e “nova

era” são utilizados para diferenciarem dois dos mais antigos grupos

daimistas.

A hipótese aqui investigada é que a incorporação destes novos

elementos culturais e espiritualistas dá origem a outra tradição, que está

em formação, e vem sendo assumida pelo grupo dissidente, o que é

desejado pelo grupo fundador. As questões são: como a diferenciação das

identidades daimistas está se consolidando, na medida em que avançam as

políticas públicas relacionadas à regularização do uso religioso da

ayahuasca? Trata-se de uma pesquisa teórica e participativa que consiste na

revisão da literatura, no levantamento das referências bibliográficas e

vivências em campo. A metodologia utilizada é essencialmente qualitativa,

que de modo geral tem como característica principal a não generalização

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dos fenômenos e a singularidade das experiências humanas. Portanto, não

se espera chegar a uma análise comparativa modelar para diferenciar as

práticas daimistas, nem um modelo fechado relativo às suas identidades.

Ayahuasca: tradições e identidades

A ayahuasca é utilizada por diversos povos indígenas no Peru, Bolívia e

Brasil, mas foi somente em nosso país que se desenvolveu e se difundiu

seu uso entre populações não indígenas, em centros urbanos e

congregações institucionalizadas. As chamadas religiões ou comunidades

ayahuasqueiras tradicionais surgiram na primeira metade do século XX, e

são o Santo Daime, fundada por Raimundo Irineu Serra, a União do

Vegetal (UDV) fundada por José Gabriel da Costa e a Barquinha fundada

por Daniel Pereira Matos. Elas possuem em comum, além do uso ritual

da bebida indígena, um Mestre fundador que faz uma releitura do

cristianismo reunido a elementos indígenas, afro-brasileiros e/ou

espiritualistas.

Em 2010 estes três mestres fundadores dos grupos considerados

ayahuasqueiros tradicionais receberam homenagens na Assembleia

Legislativa do Acre em um solene ato de reconhecimento do legado

deixado por estes três mestres da cultura nacional, homens humildes,

negros, que instituíram admiráveis tradições, mas seus nomes não constam

nos livros didáticos e a população em grande parte os desconhece. As

manifestações religiosas por eles inauguradas encontram cada vez mais

adeptos nas diversas regiões do Brasil e do mundo, e, por isso, Rio Branco

atrai grande número de turistas e visitantes anualmente.

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A relação destes grupos com o poder público do

Acre e a transição da ayahuasca do estigma de droga

perigosa para status de patrimônio cultural regional

e nacional representam uma importante

transformação, e muito pouco foi escrito sobre isto

até o momento.7

Além dos grupos ayahuasqueiros tradicionais, e dos grupos daimistas

que surgiram a partir da dissidência do CICLU – Alto Santo, outras

denominações e usos diversos também vêm surgindo nos últimos anos, e

segundo Beatriz Caiuby Labate8 geralmente associadas a um líder

carismático que dirige um grupo determinado, em práticas espiritualistas,

neoxamânicas, psicoterápicas, algumas influenciadas por movimentos

espirituais do Oriente, ou ainda em experiências artísticas. Sabemos que o

conceito de tradição remete a uma ideia de pureza, unidade e certeza. Para

Stuart Hall,9 existe o mito da identidade cultural como algo fixo desde o

nascimento, ligada a um núcleo imutável e atemporal, que tem por intuito

moldar comportamentos dentro de uma determinada tradição. Para ele a

identidade cultural não é ontológico, do ser, mas do se tornar. É uma

questão histórica, pois via-de-regra os povos tem origens diversas, são

misturas.

A ayahuasca é milenarmente conhecida e utilizada pelos povos nativos

da Amazônia, preparada a partir da cocção de um cipó, o Banisteriopsis caapi,

comumente conhecido como Jagube ou Mariri e das folhas do arbusto

Psychotria viridis, comumente conhecido como Rainha, ou Chacrona.

Ayahuasca é uma palavra de origem quíchua, traduzido como vinho das

almas. Dentro dos diversos contextos culturais, usam-se outras

nomenclaturas para esta bebida, como por exemplo, no Santo Daime e na

Barquinha chama-se Daime, na UDV chama-se Hoasca ou Vegetal, e entre

as denominações indígenas como Caapi, Yagé, Kamarampi, Honixua, Natema

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entre outros. É uma planta de poder, um enteógeno, termo para

substâncias psicoativas, que se diferem das alucinógenas, e que em grego

significa o ‘que gera o divino em seu interior’.

Para entender os discursos adotados pelos grupos que se diferem

dentro da doutrina do Santo Daime parte-se do reconhecimento de que

sua origem é uma manifestação religiosa e cultural cabocla tipicamente

amazônica que se expandiu e ganhou adeptos no espaço urbano no Brasil

e no Mundo, dialogando com outras culturas e assumindo formas mais

híbridas. Desta maneira, objetiva-se compreender os efeitos simbólicos

destas mudanças sobre as identidades dos diferentes grupos daimistas e

suas formas de territorialização em Rio Branco, Acre.

Stuart Hall, ao analisar o movimento migratório que acompanha a

humanidade e como as formas diaspóricas promovem continuamente

novas configurações culturais, conclui que estas novas configurações são

marcadas pela vagarosa assimilação e por contínuas rupturas. Seus estudos

serão uma base teórica para percorremos o labirinto discursivo da

diferenciação entre “tradição” e “nova era” que envolve as identidades

daimistas, pois pensar as questões relativas a identidade e pertencimento é

complexo, uma vez que não há modelos fechados de explicação.

Doutrina do Santo Daime e os centros tradicionais

O uso da ayahuasca no Brasil por comunidades não indígenas inicia-se

nos anos 1930, com Raimundo Irineu Serra, que nasceu em 189210 em São

Vicente de Férrer, Estado do Maranhão, numa família humilde,

descendente de escravos. Segundo Edward MacRae e Paulo Moreira,11

Irineu Serra foi de navio até Belém/PA em 1912, onde trabalhou como

jardineiro e seguiu viagem até Manaus/AM onde se juntou a um grupo de

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nordestinos que vinham para o Acre. Trabalhou na Comissão de Limites

instaurada entre 1924 e 1928, ocasião em que percorreu o interior do Acre

e tomou ayahuasca com diferentes povos indígenas da fronteira. Conforme

narra a tradição, Irineu Serra vivenciou uma rigorosa experiência de alguns

dias de retiro na floresta de jejum de água e macaxeira insossa, tomando

ayahuasca, e assim aconteceram os contatos com a espiritualidade, o

recebimento da doutrina, pelas mãos da Virgem da Conceição.

Quando acabou a Comissão Brasileiro-Peruana de Demarcação de

Limites, Irineu entrou para a Guarda Territorial do Acre. Estabeleceu-se

em Rio Branco, Acre, no bairro Vila Ivonete em 1930 e fundou o grupo

religioso sincrético e esotérico para consagrar o Santo Daime. Em 1945

Irineu Serra e um amigo, o senhor José das Neves, compraram uma posse

de estradas de seringa em uma colocação chamada Espalhado, no local

conhecido como Alto da Santa Cruz. Posteriormente em 1954 uma área

maior da Colônia Custódio Freire é doada a Irineu Serra pelo ex-

governador e senador José Guiomar dos Santos naquela mesma região. Ali

foi construída a primeira sede para a realização dos trabalhos religiosos da

comunidade, e passou a abrigar a primeira escola denominada Escola

Cruzeiro.

Desta forma se deu a colonização da área onde hoje é o bairro Irineu

Serra, iniciado através do fracionamento dos lotes entre os irmãos

seguidores da doutrina daimista, e utilizados ao longo dos anos para

agricultura e criação de subsistência. Em 6 de julho de 1971 Irineu Serra

fez a passagem e segundo MacRae e Moreira foi neste ano que “recebeu

do astral” o “comando geral da missão”, tornando-se o chefe da doutrina,

após 50 anos do início dos trabalhos. Ele já havia passado a presidência da

Sede para Sr. Leôncio Gomes, que assumiu efetivamente após seu

falecimento, apesar da comunidade em grande parte, não ter reconhecido

nele um sucessor, capaz de manter a coesão do grupo, por exemplo.

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À Revista do Centenário Percília Ribeiro, uma das primeiras

seguidoras, narrou que embora o Mestre Irineu tenha passado a

presidência para Leôncio Gomes, ele não seria o chefe, pois o comando

da missão continuaria com Irineu Serra, que o faria do astral. Este era uma

pessoa conhecida e respeitada na cidade de Rio Branco, o governador

divulgou nota de pesar sobre o falecimento de um “grande líder”,

estabeleceu-se luto oficial, além de oferecer uma homenagem da banda da

Polícia Militar, e veículos para o transporte das pessoas para o velório e o

enterro.12 Com relação ao comando da doutrina, dali para diante algumas

medidas seriam tomadas pela nova presidência no sentido de centralizar a

produção e consumo do Daime, o que resultou em descontentamentos, e

diferentes correntes de poder tornaram-se mais evidentes, provocando

divisões a partir de núcleos familiares. Este trabalho foca no núcleo

fundado por Sebastião Mota em 1974 por ser ele o que possui o maior

número de adeptos e filiais no Brasil e no mundo, mas poderíamos citar

outros grupos que se separaram da Sede como o Centro Luz do

Firmamento Raimundo Ferreira – CLFRF do Sr. Loredo, primeiro

dissidente em 1972, do Sr. Francisco Fernando Filho (Tetéo), desligado

do CICLU em 1981, e o Centro Eclético Flor do Lótus

Iluminado (CEFLI), localizado no Seringal Fortaleza

(zona rural de Capixaba/AC), fundado em 1994,

presidido por Saturnino Nascimento, sobre a liderança

espiritual do Sr. Luiz Mendes. Atualmente a presidência do

CICLU é da viúva do Mestre Irineu, Sr.ª Peregrina Gomes Serra.

Em setembro de 2006 o CICLU Alto Santo foi tombado como

patrimônio histórico e cultural de Rio Branco e do Acre, por decretos

simultâneos do então governador Jorge Viana e do prefeito Raimundo

Angelim. Foi o primeiro passo para o processo de tombamento da

doutrina do Daime como patrimônio histórico e cultural da humanidade.

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O tombamento inclui a casa do Mestre, transformada em memorial da

comunidade, a Sede dos trabalhos espirituais, a casa do feitio e o poço

aberto pelo próprio Irineu Serra. Também a Escola Municipal Raimundo

Irineu Serra, que é uma construção recente, mas originou-se da Escola

Cruzeiro, a capela com o túmulo do Mestre e de dois importantes

discípulos, o Conselheiro José das Neves e o Presidente Leôncio Gomes

da Silva e, finalmente, a casa de Leôncio Gomes, que ainda guarda as

características da época em que foi erguida. Considerando o debate sobre

patrimônio histórico, comunidades, populações tradicionais e os critérios

de definição, analisamos a seguir as falas de Antônio Alves,13 representante

do CICLU Alto Santo, no Seminário Temático “Comunidades tradicionais

da ayahuasca: construindo políticas públicas para o Acre”. Destacam-se

neste momento seus comentários sobre a Carta aberta de Alex Polari,

representante da Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal –

Patrono Sebastião Mota de Melo (ICEFLU, antigo CEFLURIS).

Nota-se por vezes um esforço por parte dos centros tradicionais para

se diferenciarem dos demais segmentos surgidos depois do falecimento do

Mestre fundador Raimundo Irineu Serra, sobretudo do segmento de

Sebastião Mota de Melo, o responsável pelo processo de expansão, e

consequente internacionalização da doutrina. Mesmo reconhecendo que

o conceito “comunidades tradicionais da ayahuasca” está em construção,

o jornalista e representante destas comunidades enfatiza a importância de

definir a identidade das tradições ayahuasqueiras.

Para Antônio Alves

A doutrina do Mestre Irineu está pronta, ele

colocou um ponto final. Ela se atualiza, mas não

muda, ela não está se transformando e

incorporando novas coisas. A doutrina do Mestre

Gabriel está pronta, ele deixou um corpo

doutrinário que pode se atualizar ao longo do

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tempo, mas outros elementos doutrinários não vão

ser acrescentados. A doutrina do Mestre Daniel está

pronta, do mesmo modo. Outras doutrinas estão

em construção, incorporando elementos novos e se

transformando. Não estão apenas seguindo os

trilhos de uma tradição, estão criando uma nova

tradição.14

Antônio Alves também salienta que os centros tradicionais da

ayahuasca fazem uso de apenas ayahuasca isto é, não incorporam a

sacralidade de outras medicinas e/ou plantas de poder. “Que fique,

portanto, claro o nosso respeito e ao mesmo tempo a nossa diferença.”15

Salienta ainda que todos os problemas enfrentados em relação a

legalização da ayahuasca junto ao CONFEM, atual CONAD, vieram de

denúncias de surtos psicóticos e comportamentos bizarros no Céu do

Mapiá, comunidade que atualmente é a sede do ICEFLU, localizada no

Estado do Amazonas. Além da sede CICLU Alto Santo, existem três

centros daimistas tradicionais, todos dentro do bairro Irineu Serra, que são

considerados mantenedores dos princípios doutrinários, ao contrário dos

grupos que se afastaram da sede, instalando-se como, por exemplo, na

Colônia Cinco Mil, alvo do nosso estudo, ou no município de

Capixaba/AC, como a comunidade fundada pelo Sr. Luiz Mendes, para

citar alguns no contexto acreano.

Os centros daimistas do bairro Irineu Serra e seus respectivos

representantes são:

Centro Rainha da Floresta – CRF João Araújo Facundes - Presidente

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Fonte: Plano de Gestão APARIS, 2013.16

Na década de 1980 a localidade ficou estabelecida como zona urbana,

embora ainda hoje conserve traços predominantemente rurais. A escola

ganhou sua sede própria, construída em madeira, passando a chamar

Escola Mestre Raimundo Irineu Serra. Em 1990 foi inaugurada sua última

instalação em alvenaria e iniciou-se o processo de infraestrutura da região,

com abertura da estrada e instalação da rede elétrica, momento em que foi

denominado de Vila Raimundo Irineu Serra, por meio da criação da

Associação de Moradores. Em 1992 após as comemorações do centenário

de nascimento de Mestre Irineu a comunidade ganhou transporte público

e rede telefônica. A mobilização de moradores ligados aos centros

daimistas tradicionais, através de um abaixo assinado, resultou em uma

grande conquista em relação a afirmação da identidade cultural e de sua

territorialidade: foi criada através do Decreto Municipal de nº 500, de 07

de junho de 2005, a Área de Proteção Ambiental Raimundo Irineu Serra

(APARIS), com aproximadamente 900 ha, com o objetivo de proteger o

maior fragmento florestal dentro do perímetro urbano de Rio Branco e

resguardar as tradições culturais do local.

Para planejar a gestão territorial da área foi e continua sendo

necessário, conhecer suas características socioambientais e determinar

fragilidades e potenciais usos dos espaços, além de envolver as

comunidades residentes em atividades de educação ambiental e gestão

Centro de Iluminação Cristã Luz

Universal Juramidan – CICLUJUR Ladislau Nogueira/ Presidente

Centro de Iluminação Cristã Luz

Universal Alto Santo - CICLU ALTO

SANTO

Peregrina Serra-

Madrinha/Presidente

Centro Eclético Flor de Lótus Iluminado

Maria Marques Vieira - CEFLIMMAV José Silva e Souza - Presidente

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72 • Revista Estudos Amazônicos

participativa. É importante considerar que assim como a ideia de tradição,

o próprio conceito de populações tradicionais é algo polissêmico e

controverso. O Plano de Gestão da APARIS (2012) a partir das definições

do Sistema Nacional de Unidades de Conservação SNUC (2000) verificou

que o termo “população tradicional” não é representativo das populações

residentes no bairro Irineu Serra, portanto dentro dos limites da APARIS

há características urbanas, com forte vínculo com a cidade de Rio Branco.

A definição do SNUC diz que populações tradicionais são:

Grupos humanos culturalmente diferenciados,

vivendo há, no mínimo, três gerações em um

determinado ecossistema, historicamente

reproduzindo seu modo de vida, em estreita

dependência do meio natural para sua subsistência

e utilizando os recursos naturais de forma

sustentável. (grifo nosso)

Ao mesmo tempo, o Plano da APARIS prevê entre seus objetivos de

criação, salvaguardar práticas religiosas de populações tradicionais:

II – proteger e garantir as manifestações culturais

originárias (Santo Daime e Vegetal), bem como o

plantio e o cultivo das espécies Bannisteriopsis caapi

(jagube ou mariri) e Psychotria viridis (rainha ou

chacrona);

III - incentivar a manutenção das populações

tradicionais, garantindo-lhes o uso sustentável dos

recursos naturais;

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Revista Estudos Amazônicos • 73

IV – incentivar o manejo e o uso sustentável dos

recursos naturais existentes, pelas populações

tradicionais residentes, conforme definido no Plano

de Manejo da Unidade a ser elaborado pelo órgão

executor.17

Sobre o potencial turístico da APARIS a questão ainda não está bem

definida no Plano de Gestão da unidade de conservação. Fato é que a

cidade de Rio Branco e o Estado do Acre recebem um grande contingente

de turistas em função da cultura e das tradições daimistas e ayahuasqueiras

em geral. Os centros mais tradicionais tendem a adotar uma postura mais

discreta, justificada nos princípios esotéricos da doutrina, não muito

favorável à prática turística e exposição dos ritos. Nota-se, por exemplo,

no fato de que grande parte dos monumentos tombados como patrimônio

histórico e cultural, como o Memorial, espécie de museu com objetos de

Irineu Serra, de grande interesse de visitação por parte dos adeptos da

Doutrina, estão em área particular, onde o visitante comum não tem

acesso.

Segmento de Sebastião Mota, a vida comunitária e a expansão

da doutrina

O Santo Daime é uma “autêntica” religião brasileira, amazônica,

acreana e foi a partir da década de 1970 que a doutrina da floresta começou

a se expandir para diversas partes do país. A Colônia Cinco Mil, igreja e

comunidade fundada por Sebastião Mota na década de 1970, é o segmento

que ganhou maior visibilidade no início deste processo de expansão. Ela

foi assim chamada porque o governo loteou as terras do "Seringal

Empresa" transformando-o em colônias vendidas pelo preço de cinco mil

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74 • Revista Estudos Amazônicos

cruzeiros antigos. Era o início do processo de pecuarização do Acre,

quando o baixo custo da borracha determinara o “fim” dos seringais,

principalmente daqueles próximos a Rio Branco. A política econômica

voltava-se para a agricultura familiar e para atração de investidores e

criadores de gado do Centro-Sul.

Sebastião Mota de Melo nasceu em Eirunepé, Estado do Amazonas e

estabeleceu-se com sua familia em Rio Branco no final da década de 1950.

Procurou o Santo Daime e o Mestre Irineu após consultar vários médicos

e frequentar centros espíritas. Começou a participar do Alto Santo,

conseguiu se curar tomando o Daime e levou consigo um grupo de

pessoas, a maioria seus vizinhos na Colônia Cinco Mil. Neste momento, o

acesso ao Alto Santo era difícil, distava muito do centro de Rio Branco.

Mestre Irineu, já na casa dos setenta anos de idade, orientou a Sebastião

para ser feitor de Daime na Colônia Cinco Mil, onde este morava com

companheiros de trabalho. Wilson Carneiro de Souza morava na época

em uma residência próxima ao centro de Rio Branco, e passou a ter a

incumbência de ter Daime para poder atender qualquer membro da

irmandade necessitado de um pronto socorro na cidade, já que o caminho

até o Alto Santo nem sempre era acessivo.

Não apenas Sebastião Mota e Wilson Carneiro, como outros

seguidores de confiança do Mestre Irineu, como Francisco Granjerio,

Loredo, tinham autorização para fazer o Daime e possuir e servir Daime

em trabalhos em casa. Sr Leoncio Gomes tentava proibir esta prática

como o novo dirigente, o que é apontado por MacRae e Moreira18 como

o principal motivo das dissidências posteriores. Segundo o site oficial do

ICEFLU, Sebastião Mota registrou o Centro Eclético da Fluente Luz

Universal Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS) localizada na zona rural de

Rio Branco (o site, curiosamente, não cita o nome Colônia Cinco Mil). Rio

Branco passou a ser visitada por várias pessoas. Um dos primeiros

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mochileiros e hippies que conheceram o Daime e seguiram com Sebastião

Mota foi Lúcio Otávio Mortimer. Chegou à Colônia Cinco Mil em 1975 e

com o tempo passou a ser considerado o padre da comunidade, porque,

tendo sido seminarista, celebrava casamentos e batizava crianças.

Alguns destes viajantes decidiram levar a doutrina para além das

fronteiras acreanas, e assim começou a nascer os primeiros centros

daimistas na região Sudeste, posteriormente nas demais regiões brasileiras.

De 1975 a 1980 a Colônia Cinco Mil recebeu muitos dos

futuros líderes das igrejas a serem abertas no Sudeste,

que trouxeram consigo novos hábitos e influências. A

primeira igreja fora do Acre foi fundada em 1982, o Céu do Mar (RJ),

liderada por Paulo Roberto Souza, que hoje conta com

cerca de 300 fardados. Em 1976 foi implementado um

sistema comunitário igualitário na Colônia Cinco Mil,

mediante a doação de terras por seus integrantes,

trabalho e consumo coletivo, num total de 60 ha.,

congregando na época 45 famílias de ex-seringueiros e

agricultores, que viveram em sistema comunitário até o

final da década de 1990.

Estes mochileiros, alguns hippes, trouxeram as influências do

movimento Nova-Era para a comunidade daimista na Colônia Cinco Mil.

O movimento da Nova Era nasceu nos Estados Unidos e faz parte do

movimento de contracultura dos anos 1960 e 1970. Tem como

característica o interesse por ensinos metafísicos de influência oriental,

teologias, animismo e paraciência, com uma proposta de um novo modelo

de consciência e sociedade. Propõem uma integração com a Natureza e o

Cosmos, afinando-se neste aspecto com movimentos ambientalistas. De

caráter libertário, muitas vezes faz oposição à ortodoxia e ao

conservadorismo das religiões. Segundo Guerrieiro19 não é novidade que

o circuito Nova-Era tem verdadeiro apreço por religiões nativas e que os

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defensores de um purismo tradicional correm para afirmar que a Nova-

Era está deturpando estas religiões. Na Carta aberta de Alex Polari de

Alvarenga,20 Membro do Conselho Superior Doutrinário e Assessor de

relações institucionais e comunicação do ICEFLU, enviada à

Coordenação do Seminário “Comunidades tradicionais da ayahuasca:

construindo políticas públicas para o Acre”, parece claro o

reconhecimento, por parte do representante do ICEFLU, que o segmento

de Sebastião Mota constitui-se outra tradição, quando ele fala que:

Na continuidade desta síntese cultural, cabocla e

urbana, ele (Mestre Irineu) foi seguido, também, por

muitos outros irmãos, mestres e fundadores de

outras tradições que expressam esta mesma verdade

em outros contextos doutrinários e rituais. Como é

o caso do Mestre Gabriel (UDV), Frei Daniel

(Barquinha), e também, do Padrinho Sebastião

(CEFLURIS).21

Ao mesmo tempo em que consideram o ICEFLU uma derivação

legítima e autêntica do tronco do Mestre Irineu, colocam o Padrinho

Sebastião (denominação usada entre seus seguidores) ao lado dos outros

mestres fundadores das tradições ayahuasqueiras. Desta forma dá a

entender que o tronco fundado por Sebastião Mota, assim como o do

Mestre Daniel, nasceu dentro dos trabalhos do Santo Daime com Irineu

Serra, mas se desfilhou, fundando uma nova tradição. Alex Polari destaca

a aliança espirituais com outras medicinas sagradas, o que é elemento

significativo de diferenciação e aproximação com os preceitos da Nova-

Era notáveis nos ritos do ICEFLU.22

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Poderíamos destacar outros elementos de

diferenciação do ICEFLU dos cultos tradicionais mantidos

pelos grupos localizados no bairro Irineu Serra em Rio

Branco. Tom Orgad é um pesquisador israelense da Universidade de

Tel-Aviv, que reside no Brasil e frequenta o CICLU Alto Santo, autor de

uma tese de doutorado, ainda não traduzida do hebraico para o português,

intitulada "O Daime: de um ritual comunitário local a uma religião

messiânica expansiva" em que objetiva demonstrar as diferenças entre as

duas principais versões do Santo Daime. No resumo da tese, disponível

em inglês, Tom Orgad sintetiza as principais diferenças entre os dois

grupos: o primeiro é esotérico, evita o título de religião no sentido

convencional, o outro tem um forte caráter messiânico, expandindo filiais

dentro e fora do país, com o intuito, segundo o pesquisador, de globalizar

o Daime.23 Além disto, o segmento de Sebastião Mota vem incorporando

elementos da Umbanda nos ritos, e características do movimento new age

ou nova-era, como anteriormente citado.

There are significant differences

between the beliefs and religious

conducts of the two groups. While

CICLU-Alto Santo rigidly follows its

original values and rejects any external

influence, CEFLURIS has a dynamic and

flexible belief system, often influenced

by New-Age thought and the

globalization process.24

Atualmente o Céu do Mapiá e o segmento daimista ICEFLU são as

referências para grande parte dos centros daimistas fora do Acre e para a

maioria dos estrangeiros que vem ao Brasil em busca de conhecer o

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Daime. O ICEFLU está sobre a liderança do filho de Sebastião Mota,

Alfredo Gregório de Melo que recentemente recebeu um hino

que sintetiza, declara e esclarece esta distinção e

constituição de uma nova identidade e uma nova

tradição: O hino diz: “O velho tempo passa, novo tempo

chegou. Novo mundo, novo povo, nova era e um novo

professor.” As crenças e rituais das religiões tradicionais em contato

com elementos da Nova-Era passam a ser vivenciadas a partir de novos

referenciais, e podem ser compreendidos como “articulações híbridas

realizadas por atores inseridos numa dinâmica urbana pós-moderna,

valorizando uma religiosidade não institucionalizada e vivenciada nas

subjetividades.”25 Labate destaca que a linha do Padrinho Sebastião já é há

muito tempo reconhecida como uma “dissidência”, mas a sua associação

aos elementos da “nova era” começou a adquirir força a partir da década

1990.26

Para a autora

Para além de eventuais classificações religiosas, o

que é relevante destacar aqui é que a linha do

Padrinho Sebastião não tem sido convidada a

participar dos debates no Acre – ainda que continue

como personagem ativo no cenário nacional e

internacional. Este isolamento local da ICEFLU é

um processo de mão dupla e está ligado também à

sua falta de interesse ou capacidade de articulação

política em Rio Branco, e sua fragilidade

institucional, além de outros fatores que veremos

adiante.27

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Revista Estudos Amazônicos • 79

Labate aponta outros fatores que podem explicar porque o grupo

ICEFLU encontra-se isolado das políticas públicas de reconhecimento das

tradições ayahuasqueiras em Rio Branco, Acre. As lideranças do Alto

Santo têm uma forte ligação com o governo do PT, que vem implantando

estas políticas voltadas à edificação da identidade acreana. Também a linha

do Padrinho Sebastião tem sido historicamente, uma das mais polêmicas,

devido entre outras razões, utilizarem a cannabis sativa, no passado,

sobretudo na Colônia Cinco Mil e Céu do Mapiá, e no presente em

Amsterdam, com o nome de Santa Maria. Outro fator apontado pela

autora é que as comunidades da ICEFLU atualmente possuem baixa

expressão numérica e política em Rio Branco, pois quando Sebastião Mota

partiu no início da década de 1980 para o Rio do Ouro, e posteriormente

para o igarapé Mapiá em 1983, grande parte do grupo migrou junto com

ele para o interior da floresta no Estado do Amazonas, buscando fundar

uma nova comunidade mais próxima e integrada à floresta considerada a

Nova Jerusalém. O comando da Colônia Cinco Mil foi entregue à Wilson

Carneiro de Souza, que a partir daí passou a zelar junto com sua família

pelos hinários e feitios da igreja até o final da década de 1990.28

Em 1981 houve o surgimento do trabalho de São Miguel,

iniciado por Alfredo Gregório, na Colônia Cinco Mil,

incorporando mudanças significativas nos aspectos

doutrinários, aproximando-se da Umbanda e dos

processos mediúnicos de incorporação, ausentes na

doutrina de Irineu Serra. O aspecto messiânico, a difusão do

Daime e o incentivo ao intercâmbio e ao turismo religioso são

características fundamentais do tronco fundado por Sebastião Mota, que

difere do núcleo tradicional.

Em 1999 Raimundo Nonato, filho de Wilson, solicitou à família de

Sebastião Mota que assumisse o comando da Colônia Cinco Mil, que

passou para Maurílio Reis casado com uma das filhas do Padrinho

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80 • Revista Estudos Amazônicos

Sebastião, Maria das Neves. Foi inaugurado o Centro e Pronto Socorro

Raimundo Irineu Serra (CEPSERIS), localizado na Vila Carneiro,

desdobramento simbólico das terras da Colônia Cinco Mil. Cabe salientar

que o é hoje uma instituição autônoma, mas suas terras estão dentro da

área da Colônia Cinco Mil. Ao contrário dos grupos tradicionais, os dois

localizados nas terras da Colônia Cinco Mil, assim como o Céu do

Mapia/AM e a Comunidade Fortaleza em Capixaba/AC estimulam o

turismo espiritual e o intercambio de conhecimentos entre os centros

daimistas de diversas partes do país. O ‘Encontro dos Prontos Socorros e

Centros Filiados’ é realizado desde 2004 no mês de julho no CEPSERIS

e reúne, em média, 100 pessoas por ano em um festival onde são realizados

vários trabalhos e um feitio nos moldes tradicionais, como Raimundo

Nonato gostava de ensinar e zelar, isto é, sem o uso de máquinas para

triturar o Cipó Jagube, por exemplo.

A Comunidade do Seringal Fortaleza organiza há 14 anos um festival

ecumênico denominado ‘Encontro Para o Novo Horizonte’29 que também

agrega pessoas de diversas partes do Brasil e do mundo durante 10 dias,

realizando os rituais sagrados da Doutrina do Santo Daime conforme o

legado do mestre fundador Raimundo Irineu Serra. A programação deste

evento inclui sessões de concentração, festejos oficiais, trabalhos na

floresta, trabalhos de cura, lazer, cultura e entretenimento. Portanto

compartilho a ideia de que existem diferenças significativas entre os dois

grupos daimistas, bem como existem semelhanças. O mesmo Mestre

fundador, o mesmo fardamento, as mesmas datas festivas, o mesmo

sacramento, os mesmos hinários, símbolos, instrumentos e bailados, isso

faz com que o público em geral e até alguns pesquisadores não percebam

as diferenças entre as duas tradições. É necessário vislumbrá-las também,

pois elas existem. Além das já citadas ao longo do texto, podemos destacar

que novas datas e hinários foram incorporados, ainda que os tradicionais

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Revista Estudos Amazônicos • 81

estejam mantidos, o que implica em um maior número de trabalhos por

mês, e mudanças na forma de preparo do Daime, incorporando máquinas

ao processo, o que descaracteriza consideravelmente o ritual do feitio.

Considerações Finais

O Santo Daime se expandiu nacional e internacionalmente através de

grupos não associados ao tradicional e fundador, e sim a partir do fundado

por Sebastião Mota, que vem incorporando diversas novas características

e práticas sociais ao rito tradicional. O resultado é um choque entre as

ideologias e identidades destes grupos, cada vez divididos, e cada vez mais

diversos. É bom salientar que nesta compreensão-interpretação que

apresentamos, notou-se que cada vez mais há o reconhecimento destas

diferenças, que elas são propositais e que deve haver, portanto, um

respeito mútuo e um reconhecimento da diversidade das identidades

daimistas: a original, ortodoxa e tradicional, a nova, eclética e messiânica,

e as que transitam entre estas.

Nota-se que estas comunidades procuram afirmar suas identidades e

apesar de representarem aspectos aparentemente antagônicos, o

‘tradicional’ e o ‘novo’, estão em relação dialética com a identidade que os

encerram: o mesmo mestre fundador, o mesmo fardamento, o mesmo

sacramento. Algumas transformações em certa medida são desaprovadas

pelo grupo fundador, que se identifica como portador da tradição deixada

pelo mestre Raimundo Irineu Serra, e por isso busca sua diferenciação dos

demais. Este grupo se mantém como uma comunidade forte no contexto

acreano, que vem sendo alvo das políticas públicas que visam salvaguardar

a tradição, e demarcar seu território. Contudo, é um grupo fechado que

exerce propositalmente pouca influência fora de Rio Branco.

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Dessa maneira, percebemos que a cultura é um elemento de

constituição das identidades, que se imiscui na formação dos indivíduos e

nas dimensões simbólicas e territoriais da vida coletiva. O uso da ayahuasca

está se diversificando e se difundindo. O Daime está em transformação.

Não existem apenas estes dois grupos dentro da doutrina do Santo Daime.

Existem muitos grupos daimistas que se identificam parcialmente com o

CICLU, e parcialmente com o ICEFLU, sem se ligar a nenhum deles

institucionalmente. Cabe salientar também que apesar do aspecto

messiânico caracterizar o segmento do ICEFLU, existem núcleos

fundados por seguidores de Sebastião Mota que, como ele recomendou,

procuram viver uma vida comunitária, mais próxima à natureza, em áreas

rurais distantes dos grandes centros urbanos, que não estão preocupados

com a expansão da doutrina, criação de filiais ou com o processo de

mecanização do feitio, por exemplo.

Entre outras coisas que ainda podem ser relacionadas e melhor

pesquisadas é o fato de que não apenas o segmento ICEFLU, mas também

a União do Vegetal está empenhada no processo de internacionalização,

atuando no campo jurídico para garantir o direito ao uso religioso da hoasca

por adeptos de outros países, como no Estado do Novo México nos

Estados Unidos. A ayahuasca é utilizada tradicionalmente em países como

Peru, Bolívia, Chile e Equador, e o Santo Daime já está regularizado na

Espanha e Holanda. A luta pelo reconhecimento legal do sacramento

Santo Daime/ayahuasca fora do Brasil continua no Canadá, Itália,

Alemanha entre outros.

Essas transformações ocorridas na doutrina do Santo Daime que

procuramos refletir neste artigo corroboram para a afirmação da ideia de

que há duas tradições daimistas, ainda que mantenham semelhanças. É

necessário refletir este fenômeno, pois as mudanças ocorridas envolvem

localização, espaços, tipos de rituais e usos, a maneira de preparo,

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cozimento e distribuição do chá, as características das lideranças, dos

participantes, além do crescimento de um turismo religioso, étnico e

xamanístico.

Artigo recebido em agosto de 2014.

Aprovado em dezembro de 2014.

NOTAS

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Professora do Centro de Filosofia e Ciências Humanas na área de Ensino de Geografia e Geografia Humana da Universidade Federal do Acre (UFAC). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade na mesma Universidade. E-mail: [email protected] 1 MOREIRA, Paulo & MACRAE, Edward. Eu venho de longe: Mestre Irineu e seus

companheiros. Salvador: EDUFBA, EDUFMA, ABESUP, 2011, p. 589. 2 ASSIS, Glauber Loures de. Encanto e desencanto: um estudo sociológico sobre a inserção do Santo Daime no cenário religioso contemporâneo, 2013. Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), p. 115. 3 JUNIOR, Antônio Marques Alves. Tambores para a Rainha da Floresta: a inserção da Umbanda no Santo Daime, 2007. 272 f. Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Ciências da Religião da Faculdade de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). 4 LABATE, Beatriz Caiuby. A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos. Campinas: Mercado de Letras/Fapesp, 2004, p. 535. LABATE, Beatriz Caiuby. As religiões ayahuasqueiras, patrimônio cultural, Acre e fronteiras geográficas. Disponível em http://www.pontourbe.net/edicao7-artigos/124-as-religioes-ayahuasqueiras-patrimonio-cultural-acre-e-fronteiras-geograficas – Acessado em 11/09/2014, p. 09. 5 OLIVEIRA, Isabela. Santo Daime: sacramento vivo uma religião em formação, 2007, 290 f. Tese de Doutorado defendida em História Cultural da Universidade de Brasília (UNB). 6 ORGAD, Tom. Daime: from a local, community-based ritual – to an expanding messianic religion. Thesis submitted for the degree "Doctor of Philosophy". Tel-Aviv University – School of Philosophy: July 2013, p. 16. 7 LABATE. As religiões ayahuasqueiras, patrimônio cultural, Acre e fronteiras geográficas. Op.,

cit., p. 01. 8 LABATE. A reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos. Op., cit., p. 535. 9 HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 223. 10 Esta data é contestada na pesquisa documental feita por Paulo Moreira e Edward MacRae que encontraram o registro de batismo de Raimundo Irineu Serra na cidade de São Vicente de Ferrer, Maranhão, que indica a data de 15 dezembro de 1890 como ano de seu nascimento. MOREIRA, Paulo & MACRAE, Edward. Op., cit., p. 70. 11 MOREIRA, Paulo & MACRAE, Edward. Eu venho de longe: Mestre Irineu e seus companheiros. Salvador: EDUFBA, EDUFMA, ABESUP, 2011, p. 589. 12 SILVA, Percilia Matos da. Depoimento. In: Revista do 1º Centenário: Mestre Imperador

Raimundo Irineu Serra, Rio de Janeiro: Beija Flor, 1992. 13 ALVES, Antônio. Comentário da Carta aberta de Alex Polari. In: Comunidades tradicionais da Ayahuasca: Construindo Políticas públicas para o Acre – Seminário. Assembleia Legislativa do Estado do Acre. Rio Branco, 2010.

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14 Idem. P. 46. 15 Idem. P. 47. 16 RIO BRANCO. Secretaria Municipal de Meio Ambiente. Plano de Gestão da Área de Proteção Ambiental Raimundo Irineu Serra. Rio Branco: SEMEIA, 2013, p. 211. 17 Plano de Gestão APARIS, 2013, p. 15. 18 MOREIRA & MACRAE. Op., cit. 19 GUERRIERO, Silas. “A influência da Nova-Era nas religiões tradicionais”. In: XI Simpósio Nacional da Associação Brasileira de História das Religiões. Realizado entre 25 e 27 de maio Goiânia: UFG, 2009, p. 01 20 ALVARENGA, Alex Polari de. Carta aberta de Alex Polari à Coordenação do Seminário. In: Comunidades tradicionais da Ayahuasca: Construindo políticas públicas para o Acre – Seminário. Assembleia Legislativa do Estado do Acre: Rio Branco, 2010, p. 44. 21 Idem. 22 Idem.

23 ORGAD. Op., cit. 24 “Existem diferenças significativas entre as crenças e condutas religiosas dos dois grupos. Enquanto CICLU –Alto Santo procura seguir rigidamente seus valores originais e rejeita qualquer influência externa, o CEFLURIS tem um sistema dinâmico e flexível de crença, muitas vezes influenciados pelo pensamento Nova Era e pelo

processo de globalização.” Op., cit., p.15. 25 GUERRIERO. Op., cit. p.3. 26 LABATE. As religiões ayahuasqueiras, patrimônio cultural, Acre e fronteiras

geográficas. Op., cit., p. 09. 27 Idem. P. 05. 28 Idem.

29 Ver: Encontro para o Novo Horizonte. In: Disponível em

http://www.luizmendes.org/wordpress/?page_id=36. Acessado em 18/09/2014.