Igreja de Santa Efigênia, 1772 Ouro Preto, MG · porque as cabeças do poeta e dos brasileiros...

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Igreja de Santa Efigênia, 1772 Ouro Preto, MG

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Igreja de Santa Efigênia, 1772Ouro Preto, MG

Poemas

Murilo Mendes

Canção do exíl io

Minha terra tem macieiras da Califórniaonde cantam gaturamos de Veneza.Os poetas da minha terrasão pretos que vivem em torres de ametista,os sargentos do exército são monistas, cubistas,os filósofos são polacos vendendo a prestações.A gente não pode dormircom os oradores e os pernilongos.Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.Eu morro sufocadoem terra estrangeira.Nossas flores são mais bonitasnossas frutas mais gostosasmas custam cem mil réis a dúzia.

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdadee ouvir um sabiá com certidão de idade!

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O poeta MuriloMendes nasceu emJuiz de Fora (MG),em 13 de maio de1901, e faleceu emLisboa (Portugal),em 15 de agosto de1975. Algumasobras: Poemas(1930), Tempo eeternidade (com Jorgede Lima, 1935), Asmetamorfoses (1944),Mundo enigma(1945), Contemplaçãode Ouro Preto(1954), Poliedro(1974), Ipotesi (ed.italiana, 1978).

Quinze de novembro

Deodoro todo nos trinquesbate na porta de Dão Pedro Segundo.

– Seu imperadô, dê o foraque nós queremos tomar conta desta bugiganga.Mande vir os músicos.O imperador bocejando responde

– Pois não meus filhos não se vexemme deixem calçar as chinelaspodem entrar à vontade:só peço que não me bulam nas obras completas de Vítor Hugo.

Cartão postal

Domingo no jardim público pensativo.Consciências corando ao sol nos bancos,bebês arquivados em carrinhos alemãesesperam pacientemente o dia em que poderão ler o Guarani.

Passam braços e seios com um jeitãoque se Lenine visse não fazia o Soviete.Marinheiros americanos bêbedosfazem pipi na estátua de Barroso,portugueses de bigode e corrente de relógioabocanham mulatas.

O sol afunda-se no ocasocomo a cabeça daquela menina sardenta,na almofada de ramagens bordadas por Dona Cocota Pereira.

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Murilo Mendes

O menino sem passado

Monstros complicadosnão povoaram meus sonos de criançaporque o saci-pererê não fazia mal a ninguémlimitando-se moleque a dançar maxixes desenfreadosno mundo das garotas de madeiraque meu tio habilidoso fazia para mim.

A mãe-d’água só se preocupavaem tomar banhos asseadíssimana piscina do sítio que não tinha chuveiro.

De noite eu ia no fundo do quintalpra ver se aparecia um gigante com trezentos anosque ia me levar dentro dum surrão,mas não acreditava nada.

Fiquei sem tradição sem costumes nem lendasestou diante do mundodeitado na rede moleque todos os países embalançam.

Noturno resumido

A noite suspende na bruta mãoque trabalhou no circo das idades anterioresas casas que o pessoal dorme comportadinhoatravessado na camacomprada no turco a prestações.

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Poemas

A lua e os manifestos de arte modernabrigam no poema em branco.

A vizinha sestrosa da janela em frentetem na vida um camaradaque se atirou dum quinto andar.Todos têm a vidinha deles.

As namoradas não namoram maisporque nós agora somos civilizados,andamos no automóvel gostoso pensando no cubismo.

A noite é uma soma de sambasque eu ando ouvindo há muitos anos.

O tinteiro caindo me suja os dedose me aborrece tantoque não posso escrever a obra-primaque todos esperam do meu talento.

Xodó

O Cruzeiro do Sul não tira o pé do lugarenquanto os dois namorados não descolam do portão.As formas futuras esperam pacientemente no fundo dos corposporque eles evoluem em sentido verticalmisturando os cabelos e as respirações.

O cheiro dos jasmins bate no nariz dos dois cutubamas eles não sentem nadae ficam ali a noite inteira bobos ao ar livre matutando.

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Murilo Mendes

Biografia do músico

O guri nasceu no morro aniquilado de sambasbebeu leite condensadosoltou papagaio de tardeaprendeu o nome de todos os donatários de capitaniaesgotou os criouléus da Cidade Novabocejou anos e anos no Conservatórionão tirou medalha de ourocoitadoporque não tinha pistolãomais um astro que desponta no horizonte da arte nacionalbotou sapato camuflagem terno de xadrezcasou com a filha do vendeiro da esquinaque parecia com Carlos Gomesfez diversas músicas imitando o gorjeio dos pássarosmorreu vítima de pertinaz moléstiaque zombou dos recursos da ciênciaao enterro compareceram pessoas de destaquecitando palmas com sentidas dedicatóriaschegando no céu os anjinhos de calça larga e gravata borboletaderam um concerto de ocarina onde figurava a oitava notae ele desmaiou de comoção.

Marinha

A esquadra não pôde seguir pros exercíciosporque estava nas vésperas do carnaval.Os marinheiros caíram no paratie nos braços roliços e cheirososde todas as mulatas que têm aí pela cidade.

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Poemas

A esquadra tornou a não poder seguirporque era depois do carnaval,a turma se sentia mal depois do carnaval.Dava uma preguiça tamanha na guarniçãoque o almirante resolveu não fazer nada.

Depois de muita mangação a esquadra foi-se emboracom bandeirinhas, dobrados pacholas tocando no cais,mas o pessoal caiu de repente no maxixe,O Minas e o São Paulo pararam no alto mar,deu cerração, foi a conta, a esquadra voltou.

O embaixador inglês foi ao palácio do governo,engasgou, falou na aliança dos dois países amigos,acabou oferecendo dois mil contos pela esquadra.O governo aceitou, mandou mil pros órfãos turcos,com o restante deu um bruto baile depois caiu na vadiagem.

Família russa no Brasil

O Soviete deu nisto,seu Naum largou de Odessa numa chispada,abriu vendinha em Botafogo,logo no bairro chique.

Veio com a mulher e duas filhas,uma delas é boa posta de carne,a outra é garotinha mas já promete.

No fim de um ano seu Naum progrediu,já sabe que tem Rui Barbosa, Mangue, Lampião.

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Joga no bicho todo o dia, está ajuntando pro carnaval,depois do almoço anda às turras com a mulher.

As filhas dele instalaram-se na vida nacional.Sabem dançar o maxixeconversam com os sargentos em bom brasileiro.

Chega de tarde a aguardente acabou,os fregueses somem, seu Naum cai na moleza.Nos sábados todo janota ele vai pro criouléu.Seu Naum inda é capaz de chegar a senador.

Endereço das cinco Marias

Sou o tipo acabado do sujeitoque não arranja nada nesta vida.

Gosto de cinco Marias nesta vida.

A primeira tinha uma pinta na cara,eu adorava aquela pinta.Maria do Rosário jurava pela alma da mãe delaque só havia de casar comigo.Um belo dia apareceu um tenenteque usava polainas e dançava com muito garbo.Foi a conta:ela fugiu pra São Paulo com o tenentee me deixou na mão.

A segunda,Maria do Carmo,

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Poemas

era uma pequena dos bons temposque a gente conversava no portão de noite,romântica de olhos pretos não gostava de bailes.Aquela sim,mas apanhou um resfriado de tanto conversar comigo no portãoe bateu a bota.

Lá está num cemitério em BelorizonteOnde tem muita paisagem.

As três Marias restantes estão no céu.

Perspectiva da sala de jantar

A filha do modesto funcionário públicodá um bruto interesse à natureza mortada sala pobre no subúrbio.O vestido amarelo de organdidistribui cheiros apetitosos de carne morenasaindo do banho com sabonete barato.

O ambiente parado esperava mesmo aquela vibração:papel ordinário representando florestas com tigres,uma Ceia onde os personagens não comem nada,a mesa com a toalha furadaa folhinha que a dona da casa segue o conselhoe o piano que eles não têm sala de visitas.

A menina olha longamente pro corpo delacomo se ele hoje estivesse diferente,depois senta-se ao piano comprado a prestações

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e o cachorro malandro do vizinhotoma nota dos sons com atenção.

A sesta

O sol bate em chapa nas casas antigas.O mar embalança,rede mole sem corpo de mulata,verde azul lilás verde outra vez.As praias espreguiçam-se malandras,é a hora das linhas repousantes.

A buzina distante dum automóvelchega até aqui com um som de lundu.Um mulatinho magro com o desenho certochupa um pirulito devagarinho.Dentro das casas pensativasas meninas caem na madorna.

A música das serrarias aumenta a sonolência...Os comerciantes torcem pra nenhum freguês entrar.

Casamento

O violão entrou pela balalaica adentroeta palavra difícil!e saiu uma ninhada de sons povoando a floresta da noite,pulando mexendo nos corpos brancos e morenos.As cores se misturama foice e o martelo furam a Ordem e Progresso,Lampião e Lenine calçados de botas vermelhastiram o sangue do mundo e voam no caminho dos astros.

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Poemas

O povo deixa a revolução no meioe toca a dançar o maxixe,carnes morenas se esfregando pra darem poetas e operários,dança minha gente, no criouléu, na planície, na usina e no dancingue,que a música é gostosa, todas as mulheres saem pra ruae os homens vão bancar o estivador pras pequenas terem vestido de

seda.Ninguém tem a cabeça no lugar.Malazarte pegou numa tesoura e cortou o passado em mil pedaços,o índio, o português, o africano deram o foramas os tártaros ainda perturbam o sono das crianças mineirase o poeta tem a metade do corpo enfiada na noite do Brasil e da

Rússiaporque as cabeças do poeta e dos brasileiros pertencem ao

pensamento de Deus.

Sonata sem luar, quase uma fantasia

Das cinco regiões onde navios angulosossangram nos portos da loucuravieram meninas morenas,pancadões, com os seios empinados gritando

Mamãe eu quero um noivo!

Os cemitérios do ar esquentamcom o fogo saído dos sonhos da vizinharebolando no nariz do poeta dia e noite,as cordas do sangue estalam.

Não pode, não pode!É o homem que trabalha enquanto os vegetais sonham,

o mar se espreguiça,

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Murilo Mendes

os minerais dormem a vida inteira.Níquel de luz.As estrelas torram o serviço,ninguém sabe se é o céu ou o peito duma negra.Cadê o luar?Gato comeu.Greve da inteligênciae um grito deste tamanho, do homemtentando romper os moldes do previsto.Acabou o amor,cadê a lógica, a resignação?Gato comeu.

Lá onde acaba a ação, a vida curvae o abandono começa.Os cheiros da terra sumiram,cemitério, fogos fátuos, coração vazio,as cordas da vontade estalam.Além das fronteiras do espírito, mais além!O olho fixo do demônio determina a paisagem.

Eu não te disseque tu não ias pro amor, a luta, o esporte.Adeus meus lindos conhecimentos,adeus realidade, minha secretária.Venham a mim, diabos, almas penadas,venham, me arrastem!

Vida dos demônios

Demônios grandestrabalham na planície, nas montanhas,

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Poemas

nos arranha-céus,constroem o trabalho dos homens,agitam o mar,armam a mão dos padres e operários,ajuntam imagens e reflexos na cabeça dos poetas;despem as mulheres no mundo.Os demônios vêm e vãona terra, na água, no fogo, no ar.

Demônios de todas as cores, de outras cores que a gente não vêmovem os astros, balançam na consciência da terra.

Eles vão e vêm, sobem, descem,debruçam-se nos olhos da gente,no bico da minha pena.Mundo, campo de experiência dos demônios.Os demônios sitiam o plano inefávelonde Deus pensa a harmonia do mundo.

A Virgem Maria toda branca e friaatravessa no caminho,eles caem no tempo.

A luta

(Cantos virginais do mundo,planos da inocência,frêmito de amor puro.)

A vida asfixiou meus cantos de inocência,sou da noite, da assombraçãoe dos ritmos desesperados.

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Tardes calmas, vida lânguida nas varandas cariocasolhando o mar, nunca mais.Nunca mais vibrarão cantos de noivas nos meus terraços,nem vestidos suspensos lembrarão a forma da coisa amada,nem eu dançarei.Nem olharei pras rosas nem me banharei na luz das madrugadas.

Sou a luta entre um homem acabadoe outro homem que está andando no ar.

Serão

A sombra; e a noite do século passado,gemendo; e a lança no flanco do mártir;e a implacável mão da humanidadepensando sobre o dorso da estátua...Violência!Rosas de fogo ardendo no céu plano!E os cactos da violência, e a sombrados desertos futuros, e o magnetismodos olhares guardados através de gerações...

A bola noturna do mundoroda no deserto da memória de Deus.A árvore vermelha coberta de noivose de assassinosestende a sombra até ainda o século futuro.Estende a sombrapara lá da memória e das vontades pensantes,sem o som das aves idiotas,até que se possa ouvir um diaas notas do último clarim.

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Poemas

Vida de mármore

A estátua muda a camisa na praça deserta.Arcanjos violentos surgem do fundo dos minutos,carregam tua vontade para o outro lado do mundoAmor preguiça deserto revolução amor,tudo passa tudo se reduz a eternidade de olhares,tudo passa menos a memória da bem-amada.

Tudo se reduz a eternidade de contatos.O amor passa menos a memória da bem-amada.Meus pensamentos eternos ficaram à superfície do teu corpo.Toda a realidade do mundo é provisória, o mundo é provisório.Tudo se reduz a eternidade de preguiça e de olhares.A estátua mudou de camisa e se acalma na praça deserta.

Alegoria

Sombras movendo o sonhoonde uma densa cabeleira cheirosaaparece entre dois raios de pensamentono quarto pendurado na terra morena;de repente desloca-se a bruta massa do corpo dum santo, estátua me

invocando,e um diabo verde me levando pro aniquilamento.Nos jardins clarosgramados geométricosa árvore dum vestido amarelo deixando adivinhar a formaque nenhum sovaco úmido complica no gesto de apanhar uma bola,um resto de som de serestaagarra-se nas orelhas do cavalo mecânicoque rompe o espaço,

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lá vai até o oco do mundo onde as mesmas mulheres deste ladoafagam o seio pensando no cavaleiro amado,doce meditação debaixo das lâmpadas elétricassentindo a aproximação dos cheiros e dos sons do carnaval,convidando ao sononuma cama que mal dá pra um homem de estatura mediana.

Limites da razão

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Atrás do meu pensamentoos demônios destroem as meninas que eu gostei,fazem com o movimento e o espírito delasum samba pros outros dançarem.

2

O manequim vermelho do espaçoque de noite eu levanto a mão para tocarchega perto de mimtem um ritmo próprioum andar quase humano.Já vi há muitos anos numa cidade do interioruma professora inglesa que andava assim.De tanto as costureiras do ateliê de Dona Laurase esfregarem no manequim de tardeele já quer sair das camadas primitivasdaqui a mil anos será uma grande dançarinadançará sobre minha cova diante do cartaz dos astrosquando eu mesmo dançar minha vida realizadario terraço dos astros.

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Poemas

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Alongamento:tudo foge na hora extremabanhado na neblina da agoniaas constelações me abrem a portae montado no cavalo mecânico do gênio do tempoatinjo a região proibida aos humanos,mas nunca poderei ser totalmente outro.Alguma coisa me fica do mundo antigo.Desenvolvo-me em planos harmoniososdistingo a iluminação dos pensamentos,amparado pelas formas que moram no espaçorealizo a perfeição da minha unidadepenetro a vida das cores novas, dos sons definitivose enlaço a forma do amorvivendo pra sempre dentro de mim.

Ritmos alternados

Um cheiro de angélicasbrota dos cemitérios do espaço.Noite, cruzes no mundo, as idades voltam, não sei onde estou.Os relâmpagos iluminam os corpos flexíveis no outro mundo, o somdo saxofone dos anjos previne o tempo, as famílias trememdentro das casas,a terra molhada explode em formas novas, é o princípio e o fim.Homens e mulheresse arrependem de não ter realizadotodo o amor,chegam mais perto uns dos outros... o gostoda noite me leva aos teus seios.

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Evocações simultâneas

A noite curva...Seios pendurados nas janelas da terraUma larga mão vermelhame chama em alguma parte.Mensagem do tato dum espírito do ar,cheiro das namoradas, noite curva.Minha cabeça levanta-se acima do abismo e do pensamento,o espírito do ano de 1917 revive em mim.Dêem lugar aos mortos, nivelados no tempo...Relâmpagos, me abracem no quarto nupcial que é um túmulo,o olho da morta é um seio, a asa do vento desligou-se da noite,entrou em mim e desanda a bater. Abismos,pontes da noite, estrelas escarlates vagamente entrevistasnum delírio perpendicular ao sonho, existo somentepras sombras acima de mim e da miragem da morte,sono das imagens... cortam-me a cabeça.

Vertigem

Venho do ar, da multiplicação de sombras,cheiros se cruzando.A noite se espreguiça elástica, em todos os pontos da terramovem-se desejos,uma outra vida transparece no azul, danças.Coros de meninas de quinze anos em igrejas do interior,namorados pressentindo o aviso dos sentidos,um morto cruzou o espaço, treme o céu, a luapenteia os cabelos, todas as coisas se comunicam,as crianças chegam mais perto do seio materno,

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Poemas

os chefes de família vêem no espaço a projeção da vida deles.Ritmos lânguidos, cadeiras de balanço, tudo no seu lugar...Eu intervenho, chego da viagem nas almas,tonto, vários planos me invocam, estou em relaçãocom as estátuas andando na terra,mulheres que voltam pra trás sentindo o meu olhar,um barulho vem do fundo da terra, estrelas caindo,vidas rodando, os sete arcanjos tardam, estou vendominha vida pra trás e eu balançando na asa do vento.Me socorram, me levem pra outro mundoonde as mulheres sejam tão bonitas como aquie o desânimo ainda maior.

Atmosfera desesperada

Uma escada lateral por onde as formas descem,os sonhos sobem, vidasentrevistas num relâmpago... Noitemolhada, noite de fim do dilúvio, mundo suspenso,luz difusa de astros que mal aparecem numângulo do céu,vertigem. Há qualquercoisa esperando no ar, pressentimento de outrasdistâncias, realidades paralelas a esta,espíritos puros nascendo, o amoraproximando as formas. O marbalança, desligado da praia, cabeça cortada.Mundo iluminado a gás, curvas do pensamento,nós somos outros. Alguémestá andando dentro de mim, me segurando pelos cabelos,não sinto mais o meu peso,me perdi...

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O mundo inimigo

O cavalo mecânico arrebata o manequim pensativoque invade a sombra das casas no espaço elástico.Ao sinal do sonho a vida move direitinho as estátuasque retomam seu lugar na série do planeta.Os homens largam a ação na paisagem elementare invocam os pesadelos de mármore na beira do infinito.Os fantasmas vibram mensagens de outra luz nos olhos,expulsam o sol do espaço e se instalam no mundo.

Canto do desânimo

Dorme, mundo!Estrela, deita-te a meus pés,tempo, some da minha memória,infância, famílias aparvalhadas olhando pra mim,sumi.

Desaparece, gravura da primeira comunhão,some, primeiro olhar da namorada,corpo da prostituta na cidade sibilante,noite do crime, vida de amor, sombra do santo.

Desaparece,bruma da criação anterior,manequim da nebulosa vermelha ardendo no quarto em febre,vestido e sombra da mulher primitiva me tomando nos braços,apaga-te, mão de Deus me formando na manhã remota,som, movimento, vontade, tempo, energia, desaparecei.

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Poemas

Canto do noivo

Eu verei tuas formas crescerem pouco a pouco,verei tuas formas mudarem a cor, o peso, o ritmo,teus seios se dilatarem na noite quente,os olhos se transformarem quando brotar a idéia do primeiro filho.

Assistirei ao desenvolver das tuas idades,guardando todos os teus movimentos.Já está na minha memória a menina mãe de bonecas,depois a que ficava de tarde na janela,e a que se alterou quando me conheceu,e a que está perto da união das almas e dos corpos.As outras virão. Tuas ancas hão de se alargar,e os seios caídos, o olhar apagado, os cabelos sem brilhohão de te arrastar pra mais perto do sentido do amor,ó minha mártir, forma que eu destruí, integrada em mim.

Reflexão e convite

Nós todos estamos na beira da agoniacaminhando sobre pedras angulosas e abismos.Ninguém ouve o barulho da banda de músicaque está ali firme do outro lado do século.

Encontramos o sonho e o pusemos no altar.Incenso e adoração, culto ardente pra servir.Saímos dos planos múltiplos do sonho,não nos integramos na ciência da total realidade.Vamos colher as flores grandes que crescem nos abismose apreciar as explosões de luz de dois universos.

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Apressando o passo estaremos do outro lado do séculoouvindo o barulho da banda de música que não pára nunca.

História futura do cravo e da rosa

Puseram sinais semafóricosPuseram guardas aduaneirosNa estratosfera.

O Cravo de letra grandeE a Rosa de letra grandeBrigaram uma bela tardeNo aparelho de televisão.Então uma tempestadeQue desde o instante do FIATSe concentrara, esperando,Lá nas gavetas do céu,Levou as sementes do Cravo e da RosaPara os jardins do caosOnde eles cresceramBrincaram de roda– Papai e mamãe –Vestidos de rendas,Sonhando pra sempre.

A pomba da lancha

Quando a rainha Locusta chegar– Não é mais rainha, é a névoa –As estrelas formarão a palavra ÓDIO.Não haverá mais nem um capitalista,

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Poemas

Não haverá mais nem um operário,Não haverá mais nem uma rosa.Eu mesma estarei sepultadaDebaixo de pedra e dilúvio.Em cima das pedras, sozinho,Um urubu vestido com as cores do arco-írisDará milho ao fantasma de Deus.

O filho pródigo

Serenamente? A alma insatisfeitaViemos cortando as águas tenebrosas,Impulsionados pelos ventos largos.Meu pai me espera na varanda amena.(“Digo sim ao meu filhoQue volta para sugar meu sangue,Acompanhado dos pássaros do meio-diaVoando entre as arcadas tristes.Solto na frente a estátua número três.Se ouvem os clarins das vitrolas.”)

E todos me felicitam vivamente.Tenho uma grande ação a cumprir:Falta-me coragem...O peso desta ação a cumprirPesa demais sobre mim.Além disto preciso eliminarO céu, o inferno, o purgatório.Serei talhado à imagem e semelhança da pedra.

Girândolas, foguetes, abraços.Meu irmão:

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Murilo Mendes

“Não te comoves ao verA cara da tua antiga namorada?”Então olho de fato pra Maria:“Ô movimento atual de tuas ancas...”Nos retratos da sala de esperaFlutuam cabeleiras de amadas dos outros.Os outros: tios-minerais, primos-cactos...“Sim! Nunca mais nos veremos,Ó primas e tias de outrora;E as que temos agoraEstão na frente de nós,Não as podemos ver direito.”

Os vizinhos me conduzem até à varanda.“Meu pai,Ao mesmo tempo meu filho e meu irmão,Levei teu nome ao mundo inteiro,Espalhei teu sangue,Tomei éter,Dei teu dinheiro aos sem-trabalho,Não dormi, para construir as netas que não conheces...Divulguei a raça do demônio,O ódio, o mal, a desesperança.Mas não quero continuar minha tarefa.Dá tua herança aos urubus,Joga teus mantimentosAos aviadores perdidos nas ilhas;Enforquem minha namorada!”

Sacudo as asas,Parto para o empíreo da cozinha.Não me mato, estou cansado demais.

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Poemas

Tédio na varanda

Hesito entre as ancas da morenaDeslocando a rua,E o mistério do fim do homem, por exemplo,Dormir!As camélias lambemO sexo de teus lábios.Os pássaros da vertigemBicam estátuas de pano.

O mar fala a língua de pEnquanto eu não tenhoPés de vento,Mãos de metal.

As botas de sete pedrasComem léguas de aborrecimento.

O poeta assassina a musa

Há dez dias que Clotilde– Uma das musas queridas –Anda aborrecendo o poeta.Aparece carinhosa,De repente vira as costas,Diz várias coisas amargas,Bate impaciente com o pé.Então o poeta aporrinhadoJoga álcool e ateia fogoNas vestes da musa.A musa descabelada

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Sai cantando pela rua.Súbito o corpo grande se estende no chão.

Diversas musas sobressalentesDesandam a entoar meus cânticos de dor.Clotilde ressuscitará no terceiro dia,Clotilde e o poeta farão as pazes.Música! Bebidas! Venham todos à função.

A visibil idade

Passar ignorado dos homens, das palavras,Ignorado das águas, do demônio.Ignorado dos personagens da história,Ignorado até de Deus,Até dos pássaros, das pedras.Mas a luz se desfaz em vaia.Os demônios mostram os seios em arco– Arco de sua vitória exclusiva –,As águas exigem um carinho,Do contrário te afogarão.As pedras exigem teu amor– Vives em cima delas –Do contrário te apedrejarão,ApedrejarãoQuem quiser viver no ar.

Mas

As ondas amarguradasEncostam a cabeça na pedra do cais.Até as ondas possuem

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Poemas

Uma pedra para descansar a cabeça.Eu na verdade possuoTodas as pedras que há no mundo,Mas não descanso.As mulheres me dão cordaMas somem nas alturas.Eu apalpei aquele seio,Minhas mãos ficaram boquiabertas.Aqueles olhos gritaram na minha direçãoMas depois desfaleceram.O mundo se desfaz em pedraNa minha direção,Mas as pedras marcham, não param,Não poderei descansar.A poesia é muito grande,Mas o alfabeto é bem curtoE a preguiça, bem comprida.O amor é muito grandeMas não é puro, as mulheresToda a hora humilham a genteCom golpes de olhares,Com arrancadas de seios...Mas assim mesmo inda é bom.

Poema no bonde-camelo

Sou firme que nem areiaEm noite de tempestade.

Meu desânimo afinalMe segura neste mundo.

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Murilo Mendes

Estou farto de saberQue só piso no deserto.

As máquinas aperfeiçoadasDo cruzamento das raças,Aeroplanos de braços,Globos de seios cheirososNão deixam o deserto afinalFicar tão vazio assim.

Cabeleiras de palmeirasMorenas vermelhas lourasSe agitam neste deserto.Água não falta, cerveja,Uísques e aguardentesGuardados em odres finosDe cristais bem facetados.E poemas fazendo lembrarQue se deve rezar um pouco.

Às vezes a noiva mortaPassa no vento chorando,Arrisco dois olhos grandes:É a miragem nossa irmã.

Arte de desamar

Meu amor é disponível,A qualquer hora ele fecha;A crise de convicçãoÉ mesmo muito grande.

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Poemas

As pernas do meu amorDistraem da metafísica,O corpo do meu amorTem a vantagem sublimeDe disfarçar o horizonte.

Eu não amo meu amorPara quê tapeação.Não amo ninguém no mundo,Nem eu mesmo, nem me odeio.

Meu amor é uma redeOnde descanso da vadiação.Os olhos do meu amorSão bastante distraídos,Não vêem meu desamor.

Com o porta-seios modernoOs seios do meu amorAparados à la garçonneOcupam lugar pequenoNo espaço do seu corpo.

Se meu amor qualquer diaMe abandonar, ai de mim!Eu não me suicidarei...Escreverei mais poemas.

O doente do século

Meu coração vai sangrando,Se desfazendo aos pedaços,

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Murilo Mendes

Mas assim mesmo inda temUns pedacinhos de pedraQue resistem duramente:A pedra resiste ao ventoDe aridez, que vai passando,Vem rolando, traiçoeiro,Dos desertos da cabeça.O vento insinua então:“Siga firme para a frente,Deixe a luz à sua direita,Tome o rumo de Moscou,Se inebrie com este coroQue sai vibrante das máquinas,Fuzile a palavra amém.”Mas quem sou eu neste mundoPra anular a tradição?Venham, filhas da esperança,Me levem na padiolaPara o chalé da ternura,Acendam-me a luz do amor,Desenrolem seus cabelosSobre o meu corpo, senãoNão terei culpa nenhumaSe me matar amanhã.

Novíssimo Job

– Eu fui criado à tua imagem e semelhança.Mas não me deixaste o poder de multiplicar o pão do pobre,Nem a neta de Madalena para me amar,O segredo que faz andar o morto e faz o cego ver.

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Poemas

Deixaste-me de ti somente o escárnio que te deram,Deixaste-me o demônio que te tentou no deserto,Deixaste-me a fraqueza que sentiste no horto,E o eco do teu grande grito de abandono:Por isso serei angustiado e só até a consumação dos meus dias.

Por que não me fizeste morrer pelo gládio de Herodes,Ou por que não me fizeste morrer no ventre da minha mãe?Não me liguei ao mundo, nem venci o mundo.Já me julguei muito antes do teu julgamento.E já estou salvo porque me deste a poeira por herança.

Até há pouco tempo atrás no meu paísNinguém sabia que a vida é a luta entre classesE eu já era, desde cedo, inconformado e triste.Antes da separação entre os homensExiste a separação entre o homem e Deus.É doce te encarar como poeta e amigo,É duro te encarar como criador e juiz.Tu me guardas como instrumento de teus desígnios,Tu és o Grande Inquisidor perante mim.Por que me queres vivo? Mata-me desde já.Cria outras almas, outros universos,Sonda-os, explora-os com tua lente enorme.Mas faze cessar um instante o meu suplício.

Prefiro o inferno definitivo à dúvida provisória.Falaste-me pelos teus profetas e pelo Espírito Santo,Mas a última e essencial palavra está contigo.Todas as tuas obras dão testemunho de ti,Mas ninguém sabe o que tu queres de nós.

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Murilo Mendes

(Ó Virgem Maria, levanta-te da estrela da manhãE faze o sinal da cruz sobre minha alma golpeada.)

Tu também não terás teus filhos renegados?Aqueles que criaste e entregaste ao demônioPara satisfazer tua cólera e paixão?Ó Deus, tua justiça é maior que tua misericórdia.Por que me deixaste assim sem abrigo no mundo?Por que me deste passado, presente e futuro?Manda a tempestade de fogo a destruir minha existência.

– Estou contigo mesmo e não me queres terSou tua herança desde toda a eternidade.

Meu novo olhar

Meu novo olhar é o de quem já sabeQue alegria e ventura não permanecem.Meu novo olhar é o de quem desvendou os tempos futurosE viu neles a separação entre os homens,O filho contra o pai, a irmã contra o irmão, o esposo contra a esposa,As igrejas dinamitadas, depois reconstruídas com maior fervor;Meu novo olhar é o de quem penetra a massaE sabe que, depois de ela ter obtido pão e cinema,Guerreará outra vez para não se entediar.Meu novo olhar é o de quem observa um casal belo e forteE sabe que, sozinhos, se amam os dois com nojo.Meu novo olhar é o de quem lúcido vê a dançarinaQue, para conseguir um movimento gracioso da perna,Durante anos sacrificou o resto do seu ser.Meu novo olhar é o de quem adivinha na criança

197

Poemas

O futuro doente, o louco, a órfã, a perdida.Meu novo olhar é o de quem transpõe as musas de passagemE não se detém mais nas ancas, nas nucas e nas coxas,Mas se dilata à vista da musa bela e serena,A que me conduzirá ao amor essencial.Meu novo olhar é o de quem assistiu à paixão e morte do Amigo.Poeta para toda a eternidade segundo a ordem de Jesus Cristo,E aquele que mudou a direção do meu olhar;É o de quem já vê se desenrolar sua própria paixão e morte,Esperando a integração do seu ser definitivoSob o olhar fixo e incompreensível de Deus.

A musa

Estás sozinha desde o princípio,Foste imaginada na época da formação das pedras.Um violento temporal lavou a terra antes que nascesses,E muitas estrelas de perfil se inclinaram sobre teu berço.Atravessas desertos de areia e mares vermelhosSem que sujes teu corpo,Sem que ninguém penetre tua essência.Os poetas te sacrificam suas amadas retrospectivas, atuais e futuras.

Tua cabeça triste e serenaRecortada num céu de convulsões desencadeia o mito:Distribuis ao mesmo tempo consolo e desespero.Aos olhos do homem és acima do sexo como uma deusa,Aos olhos da mulher és masculina como um guerreiro.Anulas o movimento de quem soube te decifrar,E não te perturbas nem ao menos ante a idéia de Deus.

198

Murilo Mendes

Epifania

Eu te procurei tal qual os três reis magosQue caminhavam através de mares e desertos,Até que um dia uma estrela enviada por ti mesmoMe trouxe até a tua inefável presença.Não posso te ofertar o ouro, o incenso e a mirra:Ofereço-te a minha alma que tu mesmo criaste,Ofereço-te a minha aridez e o meu pecado.Ilumina agora e sempre todos os que te procuramE todos aqueles que acreditam no teu fim.Angústia e escuridão dominam o homemPorque tu ainda não deste a volta ao mundo.

Vocação do poeta

Não nasci no começo deste século:Nasci no plano do eterno,Nasci de mil vidas superpostas,Nasci de mil ternuras desdobradas.

Vim para conhecer o mal e o bemE para separar o mal do bem.Vim para amar e ser desamado.Vim para ignorar os grandes e consolar os pequenos.Não vim para construir minha própria riquezaNem para destruir a riqueza dos outros.Vim para reprimir o choro formidávelQue as gerações anteriores me transmitiram.Vim para experimentar dúvidas e contradições.

199

Poemas

Vim para sofrer as influências do tempoE para afirmar o princípio eterno de onde vim.Vim para distribuir inspiração às musas.Vim para anunciar que a voz dos homensAbafará a voz da sirene e da máquina,E que a palavra essencial de Jesus CristoDominará as palavras do patrão e do operário.Vim para conhecer Deus meu criador, pouco a pouco,Pois se O visse de repente, sem preparo, morreria.

O poeta e a musa

Vens da eternidade e voltas para a eternidade.Não tens ódio.Não tens amor.Não tens fome nem sede.Tens o ar frio de quem ultrapassou o mundo sensível e resolve lhe

dar um sinal da sua condescendência.A linha das montanhas, a linha do horizonte e a linha da tua alma

se desdobram diante de ti como um anteprojeto da eternidade.Estás desligada da geração que te trouxe ao mundo.Anulas meu interesse pelo espetáculo da existência.Olhas-me serenamente, passas a mão pelos meus cabelos e me

chamas de tua grande criança.Esperas que eu diminua minha humanidade para ficar junto de ti,

sem ação, sem impulsos, observando apenas o desenrolar do tempo,o ciclo das estações, o curso dos astros, as cambiantes da cor do céu edo oceano...

Seremos duas estátuas confabulando.Então os acontecimentos não agirão mais sobre mim.E eu sobrevoarei a vida física.E tocarei o espírito da musa.

200

Murilo Mendes

Salmo no 1

Meu espírito anseia pela vinda da esposa,Meu espírito anseia pela glória da Igreja,Meu espírito anseia pelas núpcias eternasCom a musa preparada por mil gerações.Eu hei de me precipitar em Deus como um rio,Porque não me contenho nos limites do mundo.Dai-me pão em excesso e eu ficarei triste,Dai-me luxo, riqueza, ficarei mais triste.Para quê resolver o problema da máquinaSe minha alma sobrevoa a própria poesia?Só quero repousar na imensidade de Deus.

Fil iação

Eu sou da raça do Eterno.Fui criado no princípioE desdobrado em muitas geraçõesAtravés do espaço e do tempo.Sinto-me acima das bandeiras,Tropeçando em cabeças de chefes.Caminho no mar, na terra e no ar.Eu sou da raça do Eterno,Do amor que unirá todos os homens:Vinde a mim, órfãos da poesia,Choremos sobre o mundo mutilado.

201

Poemas

O profeta

A Dante Milano

A Virgem deverá gerar o FilhoQue é seu Pai desde toda a eternidade.A sombra de Deus se alastrará pelas eras futuras.O homem caminhará guiado por uma estrela de fogo.Haverá música para o pobre e açoites para o rico.Os poetas celebrarão suas relações com o Eterno.Muitos mecânicos sentirão nostalgia do Egito.A serpente de asas será desterrada na lua.A última mulher será igual a Eva.E o Julgador, arrastando na sua marcha as constelações,Reverterá todas as coisas ao seu princípio.

Salmo no 2

Ó Deus meu e de todos,Que tenho feito até hoje no mundo,Senão te invocar para que surjas,Senão me desesperar porque sou pó?Dilata minha visão,Dilata poderosamente minha alma,Faze-me referir todas as coisas ao teu centro,Faze-me apreciar formas vis e desprezíveisFaze-me amar o que não amo.Tudo o que criaste no universoÉ a divisão de uma vasta unidadeEm espaços e épocas diferentes.Liga-me a todas as coisas em tiE ilumina-nos fora do tempo, a todos nósQue esperamos tua divina Parusia.

202

Murilo Mendes

Futura visão

Apresentam-me o livro da tua vidaEscrito por dentro e por fora:Sou digno de romper os sete selos.Logo na primeira páginaParo três anos em êxtaseDiante da tua fotografia.A lua e o mar adormecem a meus pés.Tudo o que evoco vai nascendo ao gritar o teu nomeBerenice! Berenice!E choro muitoPorque não existe ninguém digno de te olhar.

Alguém me segura à beira do abismo,Contém minha impaciência e me desarma o braço:Deverei assistir ao que se descreve no livro.Terás que parir fisicamente e espiritualmente na desgraça,Beberás o cálice da injúria e das abominações,Vestida de púrpura serás sentada no trono da solidão.

Eu devoro o livro, que amarga minhas entranhas.GLORIFICAI-A! GLORIFICAI-A!Esta é minha súplica de sempre.

O Princípio vem sobre as nuvens em fogoE clama para mim e para todo o universo:TUDO SERÁ PERDOADO AOS QUE AMARAM MUITO.

203

Poemas

Poema condenado

Eu te respiro por todos os poros:Mulher, estás em todos os lugares.Prefiro me danar a um dia te perder de vista.Teu vestido desdobrado esconde a Cruz.Se este sortilégio acabasse eu me mataria.

Tua existência é a justificação do mundo:Para que vale o solSenão para dar vida à matéria que te cerca,Para que vale a luaSenão para aumentar tua palidez,Para que valem as floresSenão para serem enfeitadas por ti,Para que valho euSenão para permanecer teu poeta,Para que vale o paraísoSe não estiveres a meu lado?

Antiguidade

Quero voltar para o repouso sem fim,Para o mundo de onde saí pelo pecado,Onde não é mais preciso sol nem lua.Quero voltar para a mulher comumQue abriga a todos igualmente,Que tem os olhos vendados e descansa nas águas eternas.

Quero voltar para o PrincípioQue nivela vida e morte, construção e destruição,Diante do qual não existe lei nem marco.

204

Murilo Mendes

Quero viver sem cor nem forma, peso ou cheiro,Fora da alegria e da tristeza.

Eu sofro a terrível pressão do que existiu,Do que não existiu e do que existirá.Eu mesmo aperto os três círculos do infernoNeste trabalho de escavação do universoPelo qual me aproximo das origens.

Começo

Uma vasta mão me sacudirá na manhã pura.Talvez eu nasça naquele momento,Eu que venho morrendo desde a criação do mundo,Eu que trago fortíssimo comigoO pecado de nossos primeiros pais.

O espaço e o tempoHão de se desfazer no vestido da Grande noiva branca.Serei finalmente decifrado, o estrangeiro da vidaDescansará pela primeira vez no universo familiar.

O emigrante

A Henri Michaux

A nuvem andante acolhe o pássaroQue saiu da estátua de pedra.Sou aquela nuvem andante,O pássaro e a estátua de pedra.Recapitulei os fantasmas,Corri de deserto em deserto,

205

Poemas

Me expulsam da sombra do avião.Tenho sede generosa,Nenhuma fonte me basta.Amigo! Irmão! Vou te levarO trigo das terras do Egito,Até o trigo que não tenho.Egito! Egito! AmontoeiPara dar um dia a outrem:Eis-me nu, vazio e pobre.A sombra fértil de DeusNão me larga um só instante.Tirai-me o colar da febre:Eu vos deixo minha sede,Nada mais tenho de meu.

A janela

Ó altas constelações,Nuvem prenhe de fantasmas,Preguiçosa onda do mar,Friíssima noite, lua!Minhas irmãs elementares,Tendes mãos, ouvidos, boca.Murmurais doces cantigasQue os homens decifrarãoNo rodízio do universo,Entre revoadas de anjos,Quando soarem os clarinsQue despertarão os mortosE a alma se reunirAo corpo que apodrecera.

206

Murilo Mendes

Minha órfã

Porque não quis te olhar, ficaste cega.Sei que esperas por mimDesde o tempo em que usavas tranças e brincavas com arco.

Sei que esperas por mim,Mas eu não quis te olharPorque me debrucei sobre o mito de outras,Porque não me sabes dar, pobre amiga,O sofrimento e a angústia que formam a catástrofe.

Roxelane, Roxelane:Porque tens olhar morto e cabelos sem brilho,Boca sem frescura e sem expressão,Eu te desdenhei e não ouvi teu apelo,Teu último apelo vindo da solidão e da infância remota.

Roxelane, Roxelane:Tua tristeza recairá sobre mim, assumirei tua orfandade,Conhecerás o gozo e verás desdobrar-se a esperança,Enquanto eu recolherei para sempreA tua, a minha e a miséria de outros,Triste e apagada Roxelane, vitoriosa Roxelane.

Canção

Para o Oriente do amorMeus sentidos aparelham.

Bandeiras azuis, vermelhas,Cruzaram-se no horizonte.

207

Poemas

De onde vem tal embriaguez,Que aurora terei tomado?Vem do fundo de mim mesmo,Vem da minha alma correndo.

Minha amada na varandaArrulha, me faz sinais.Vôo com abril nas mãos,Para continuar o cicloDe antiga revelação:Aboli as dissonâncias,O sentimento renasceComo no início do mundo.

R.

Vens, toda fria do dilúvio, com dois peixes na mão.És grande e flexível, na madrugada acesa pelos arcos voltaicos.Tua posteridade danou-se e foi expulsa dos templos serenosOnde atualmente só se ouvemCânticos de guerra e pregações do inferno.

Vens, toda fria do dilúvio,Semear a discórdia nas choupanas e nos palácios.Vens para minha maldição, para me indicar o abismoOnde ficarei só e triste, sem pianos.

Jerusalém

Jerusalém, Jerusalém,Quantas vezes tentei abrigar no coraçãoTodos os meus anseios para Deus,

208

Murilo Mendes

Como a ave abriga a ninhada debaixo das asas:E tu não quiseste, mundo,Tu não quiseste, carne,Tu não quiseste, demônio.

Jerusalém, Jerusalém,Morro de sede à beira da fonte,Morro de fome debaixo da mesa coberta de pães.

Em vez de sinos festivosOuço sirenes de aviões.Em vez da santa eucaristiaRecebo granadas de mão.Os mitos do mal desencadeados sobre mimMe envolvem sem que eu possa respirar.

Jerusalém, Jerusalém,Recolhe meu último sopro.

Idéia fortíssima

Uma idéia fortíssima entre todas menos umaHabita meu cérebro noite e dia,A idéia de uma mulher, mais densa que uma forma.Idéia que me acompanhaDe uma a outra lua,De uma a outra caminhada, de uma a outra angústia,Que me arranca do tempo e sobrevoa a história,Que me separa de mim mesmo,Que me corta em dois como o gládio divino.Uma idéia que anula as paisagens exteriores,Que me provoca terror e febre,

209

Poemas

Que se antepõe à pirâmide de órfãos e miseráveis,Uma idéia que verruma todos os poros do meu corpoE só não se torna o grande cáusticoPorque é um alívio diante da idéia muito mais forte e violenta de

Deus.

Companheira

Companheira, dou-te as sombras que me acompanham,Todas as sombras criadas pelos vivos.Companheira, dou-te a alegriaDo que nada tem a esperar do esforço humano.Dou-te a cantiga do asilado.O suspiro do menino que olha em vãoO velocípede do menino vizinho.Dou-te a nostalgia de quem soltou papagaioEm épocas muito remotas.Companheira,Dou-te a tristeza do que nada achou na sua primeira comunhão.Dou-te o desconsolo do que está sendo destruídoPelos crimes que não cometeu,Pelos crimes de outros em época distante.

Os amantes submarinos

Esta noite eu te encontro nas solidões de coralOnde a força da vida nos trouxe pela mão.No cume dos redondos lustres em conchaUma dançarina se desfolha.Os sonhos da tua infânciaDesenrolam-se da boca das sereias.

210

Murilo Mendes

A grande borboleta verde do fundo do marQue só nasce de mil em mil anosAdeja em torno a ti para te servir,Apresentando-te o espelho em que a água se mira,E os finos peixes amarelos e azuisCirculando nos teus cabelosTrazem pronto o líquido para adormecer o escafandrista.Mergulhamos sem pavorNestas fundas regiões onde dorme o veleiro,À espera que o irreal não se levante em auroraSobre nossos corpos que retornam à água do paraíso.

Canto amigo

1

Eu te direi: poderás te libertar do peso da vida,Poderás encontrar um amigo no fantasma que te habita,Os homens poderão amordaçar os tiranos se quiserem se

transformar num só.Eu te direi: da própria franqueza emerge a força,E muitas vezes a renúncia é o esquema da vitória.Se conhecesses o dom que vem do alto e que afastas!Por que aumentas o terror que rodeia o teu lar,Por que em vez dos retratos de poetasQue prolongam no tempo a corrente do amor e da fraternidadeSuspendes na tua casa fotografias de couraçados e de fortalezas

volantes?Por que acreditas no julgamento dos chefes transitórios do homem?Por que recusas pão e brinquedo às crianças, dando-lhes granadas?Que futuro preparas, homem amigo, para teus descendentes.

211

Poemas

2

Ó meus irmãos, eu ando entre vós como o sobrevivente duma cidadearrasada.

Ouvi os últimos acordes do meu canto de perdão e de ternuraAntes que os rádios extingam minha palavra com anúncios de

guerra.Ó meus irmãos, eu sou o que não ri, o que não mistifica,Eu sou o que vos deveria odiar e que vos ama,Eu sou o que espera a vitória divina sobre as forças do malQue agem poderosamente dentro de mim e de vós.

A criação e o criador

O poema obscuro dorme na pedra:

“Levanta-te, toma essência, corpo.”

Imediatamente o poema corre na areia,Sacode os pés onde já nascem asas,Volta coberto com a espuma do oceano.

O poema entrando na cidadeÉ tentado e socorrido por um demônio,Abraça-se ao busto de Altair,Recebe contrastes do mundo inteiro,Ouve a secreta sinfoniaEm combinação com o céu e os peixes.

E agora é ele quem me persegueOra branco, ora azul, ora negro,É ele quem empunha o chicote

212

Murilo Mendes

Até que o vento da noiteO faça voltar domadoAo pó de onde proveio.

Quase segredo

A velocidade da luzMe protege contra o enigma.

Mundo antigo,(Árvore de campainhas,Bola azul negra)Já conheço teu alfabetoE o que pretendes de mim.

Outrora eu tinha pés,Caminhava sobre os pianos,Às vezes até sobre a terra.

Fiz um buquê de mulheres,Respiro ciúme traição:Braços e pernas de umaEstão no torso de outra.

Quem me conheceTorna-se de repente visível.

A inicial

Os sons transportam o sino:

Abro a gaiola do céu,Dei a vida àquela nuvem.

213

Poemas

As águas me bebem.

As criações orgânicasQue eu levantei do caosSobem comigoSem o suporte da máquina,Deixam este exílio compostoDe água, terra, fogo e ar.

A inicial da minha amadaSurge na blusa do vento.

Refiz pensamentos, galeras...Enquanto a tarde pousavaO candelabro aos meus pés.

Duas mulheres

Duas mulheres na sombraDecifram o alfabeto oculto,Ouvem o contraste das ondas,Falam com os deuses de pedra

Dançam a roda, murmuram,Decifram o enigma das sombras,Uma triste, outra morena,Ambas são ágeis e esbeltas,Vestem roupagens de nuvens,Segredam amores eternos,Tocam súbito a cornetaPara despertar os peixes.

214

Murilo Mendes

Duas mulheres na sombraEncarnando lua e árvoreDecifram o alfabeto oculto.

Poema presente

O céu púbere e profundoAjunta nuvens de fogoÀ tendência dos homens, inquietante:E um pensamento de guerraAnula o que poderia virDa água, da rosa, da borboleta.

Vergéis tranqüilosDisfarçam espadas.Sombras pedindo corposEsperam desde o dilúvioO sopro de um puro espírito.Separam a luz da luz.

Poema estático

Vestir a couraça do céuE caminhar vigilante

Mesmo na música.

Ternura, doce rigor,Alguém acende meu ombro.Até o silêncio (cristal) pesa.

Confronto-me com o sexo e a sombra.

Formas esperam

215

Poemas

Nossa cooperaçãoNo campo fértilDa funda morte,Da vida envolventeSempre a crescer.

Poema da tarde

A tarde move-se entre os galhos de minhas mãos.Uma estrela aparece no fim deste meu sangue,Minha nuca recebeu o hálito fino de uma rosa branca.Todas as formas servem-se mutuamente,Umas em pé, outras se ajoelhando, outras sentadas,Regando o coração e a cabeça do homem:E dentre os primeiros véus surge Maria da SaudadeQue, sem querer, canta.

Poema antecipado

Harpa de obuses,Sempre um espírito guardião sobraPara desenvolver o germe augustoQue foi criado no princípio,Para não explodir de febreE dançar no fogo azul.

Terra e céu, jardins suspensos,Em dia remoto serão refeitos.O homem respira a Criação,O corpo todo verá(Antes de nascer eu já via).

216

Murilo Mendes

A manhã

Ninguém sabe se a manhãTraz promessa de prazer.

Anônimas sanfoninasAlternam com sabiás.

Transformou-se o vento de ontem,Agora sopra sereno.

Sai um homem para o trabalho,Saem dois, saem três, saem milPensando na volta.Ontem não haviaAquela roseira em pé,E a carícia d’agoraDesapareceu no ar.

Os braços espantamOs restos da noite.

A ceia sinistra

1

Sentamo-nos à mesa servida por um braço de mar.

Eis a hora propiciatória, augusta,A hora de alimentar os fantasmas.?Quem vem lá, montado num trator de cadáveres,

217

Poemas

Com uma grande espada para plantar no peito da Rússia.Outros estendem bandeiras de todos os países,Fazem uma cortina de névoa que esconde o cavaleiro andante:O homem morre sem ainda saber quem é.A morte coletiva apodera-se da morte de cada um.A terra chove suor e sangue,As ondas mugem.

2

O tanque comanda o homem.A alma oprimida soluçaNum ângulo do terror.Alma antiqüíssima e nova,?Tua melodia onde está.O pássaro, a fonte, a flauta,A estrela, o gado manso te esperamPara os batizares de novo.

Sentados à mesa circularAguardamos o sopro do dia.

3

Os mortos perturbarão a festa inútil.?Quem lhes trouxe ternura e presentes – em vida.?Quem lhes inspirou pensamentos e amores castos – em vida.?Quem lhes arrancava das mãos a espada e o fuzil – em vida.Agora eles não precisam mais de carinho ou de flores.Agora eles estão libertos, vivos,Pisando calmos sobre nossas covas.

218

Murilo Mendes

Abancados à vasta mesa circularComemos o que roubamos aos mortos conhecidos e anônimos.

Canção pesada

A negra penaComprime a alma,A negra penaDa massa vivaDe dores cruéis,Do amor que punge,Da glória inútil,Sutil serpenteQue morde o peito,Que enrola o homem,Constringe-o todo,A negra penaQue se alimentaDe sangue e fel,Triste cuidado,Lembrança amargaDos impossíveis,A negra penaSem remissão,Que, morto o homem,Lhe sobreviveEm novas formas,Antiga pena,Futura pena,Eterna pena.

219

Poemas

O espelho

Não surge mais a forma humana.Nem o gesto de se vingar:

Não se enxerga mais, – se ouve!Não se mira mais nem o mortoNa primeira comunhão,Debruado de esplendor,Ou na bicicleta do sol:

Mas se ouvem, claras, cristalinas,Campainhas de cristalDespertando a eternidadeQue recusa a forma humanaCansada de grito e gesto;Despertando a eternidade.

Tentação

Diante do crucifixoEu paro pálido tremendo:“Já que és o verdadeiro filho de DeusDesprega a humanidade desta cruz.”

As lavadeiras

As lavadeiras no tanque noturnoNão responderam ao canto da sibila.

“Lavamos os mortos,Lavamos o tabuleiro das idéias antigas

220

Murilo Mendes

E os balaústres para repouso do mar...Quem nos desviará do nosso canto obscuro?Nele encontramos restos de galeras,Nele descobrimos o augusto pudor do vento,O balanço do corpo do pirata com argolas,Nele promovemos a sede do povoE excitamos a nossa própria sede...”

As lavadeiras no tanque brancoLavam o espectro da guerra.Os braços das lavadeirasNo abismo noturnoVão e vêm.

Choques

O choque de teus pensamentos furiososCom a inércia da boca e dos braços de outros.O choque dos cerimoniais antigosCom a velocidade dos aviões de bombardeio.O choque da foice contra o cristal dos milionários.O choque das roseiras emigrantesCom o silêncio das linhas retas nas janelas.

A tempestade calcula um choque de distânciasCom o lúcido farol e seus presságios.Chocam-se as águias arredando a noiteCom o armário que, inalterável, rumina.Um ouvido resistente poderia perceberO choque do tempo contra o altar da eternidade.Choca-se a enorme multidão sacrificada

221

Poemas

Com o ditador sentado na metralhadora.Choca-se a guilhotina erguida pelo erro dos séculosCom a pomba mirando a liberdade do horizonte.

Homenagem a Raimundo Lulio

I

A inocência perguntou à crueldade:Por que me persegues?A crueldade respondeu-lhe:– E tu, por que te opões a mim?

II

A aveia do camponêsQueixou-se do cavalo do ditador,Então o cavalo forteQueixou-se das esporas do ditador.

III

O pensamento encontrou-se com a eternidadeE perguntou-lhe: de onde vens?– Se eu soubesse não seria eterna.– Para onde vais?– Volto para de onde venho.

Então a monarquia do corpo obumbrou-se ainda maisE a morte inclinou seu estandarte.

222

Murilo Mendes

O túnel do século

I

Sob o céu de temor e zincoOs prisioneiros caminham, tambores velados:A manopla da noite pesaSobre suas omoplatas, seus sonhos comunicantes.

As Erínias, segadoras antiquíssimas do povo, tambores velados.Caminham, passo a passo,Apresentando armas de ódio, punhos implacáveis.Toda a carne se oferece ao espanto desnudo,Os castelos de pedra vão se desfazendoÀ medida que os heróis agitam a bengala blindada.As Erínias reproduzem-se durante a noite,E pela manhã encontramos abertaA rosa dos ventres.

II

Sob o céu de temor e tremorA estátua da infância é flechadaPelos descendentes dos ídolos subterrâneosQue consagram a espada dançante.Amaldiçoam o pão e o vinho,Rasgando o caderno de roseiras– Alfabeto dos pobres migratórios.

Cegos digladiando-se num túnel,Constroem as próprias sepulturas.

Sob o céu de temor e tremorOs homens clandestinos, tambores velados, caminham.

223

Poemas

Motivos de Ouro Preto

A Ruben Navarra

1

Assombrações que sobem do barroco,Das ladeiras e dos crucifixos esquálidos,Frias portadas de pedra, anjos torcidos,Passantes conduzindo aos ombros o passado,Cemitérios aéreos de adros largosOnde noturnos seresteiros cantam,Seguindo-se de violas e violões,Aos defuntos colados nas gavetas:

A experiência de sombras trasladadasDe procissões civis, eclesiásticas,Dum antigo túnel de conspiração;A água escapando pelos chafarizes,As cicatrizes que o minério abriu;Tantos Passos fechados o ano inteiro,Ruínas de solares e sobradosOnde pairam espectros de poetas,De padres doidos, de reformadores;Algarismos gravados nas carrancasA presença do tempo traduzindo,O silêncio ao silêncio se juntandoNesses becos e vielas embuçados;A reunião de natureza e artePor um gênio severo combinadas,O espírito levando à sua origemDespojado de efêmeros enfeites,

224

Murilo Mendes

A pátina paciente de Ouro PretoSobre aparências estendendo um véu:Tudo aparelha a mente para a morte,Mas a morte em si mesma, a própria morte,Privada de artifício, a morte chã.

E contra a dispersão das ossadas no tempo,Que o amor à forma e a Promessa rejeitam,Da pedra o testemunho antigo se levanta,Poder do Itacolomi – e o da Pedra perene.

2O canto alternativo das igrejasNos leves sinos da levitaçãoCruzando-se em cerrado contraponto,São Francisco de Assis adverte ao Carmo,São Francisco de Paula à matriz do Pilar.

Devolve o ar ao ouvido o som das campainhasDessas humildes mulas pensativasQue parecem voltar da Palestina.E esses pianos dir-se-iam pianolasTangendo sons remotos, subterrâneos,Restos de roídas polcas e mazurcas...Pianos inconfidentes.Cindem o ar seco, poroso,Pancadas pacientes de relógio.Esse vago clarim nos longes do quartelAtende ao ido apelo de outro tempo:Erra insatisfeita nos aresA alma trágica do alferes Joaquim José da Silva Xavier.Os amigos chamou, e o eco respondeu...

225

Poemas

3A Viúva de Ouro Preto sobe a rua cantando,Apoiada ao bastão, na cabeça um penachoDe três cores, vestido velho e desbotadoCuja invisível cauda arrasta com desdém.A Viúva de Ouro Preto fala em frases cifradas,Pesa em partes iguais o mito e a realidade,O passado e o presente, a alegria e a tristeza,Declara que decide a guerra no estrangeiro,Rico e pobre entretém com igual polidez.A trama da sua vida é feita de fantasmasQue só se extinguirão no seu último dia:A Viúva de Ouro Preto é de grande famíliaQue possuiu fazenda, escravos e palácios,Privou com a Imperatriz, refinou-se na Europa.Serviu banquetes em baixelas persas,Depois tudo perdeu, os membros dispersou,Resta Dona Adelaide Mosqueira de Meneses,Vítima da jogatina, a Viúva de Ouro PretoQue vive numa toca de espectros rodeada,Que inda tem uma pedra onde apóia a cabeça...A Viúva de Ouro Preto desce a rua rezando.

4Ouro Preto se inclina com elegância,Ouro Preto se inclina, e um dia cairá.Nova técnica transfigura a terra,Mas os futuros engenheiros e arquitetosNão mudarão o corpo de Ouro PretoQue ainda se preserva da reformaPor sua mesma pobreza e solidão.

226

Murilo Mendes

Ouro Preto para o futuro um dia se voltara,Gerando no seu bojo a nova tradição...Acelerando a história, a vida deslocou.Mas a lenda combate aqui a história:Seus espectros e igrejas permanecemPelo ciúme da morte resguardados.

Aqui o próprio Cristo, o rei da vida,Que se diz Deus dos vivos, não dos mortos,Aqui o mestre da ressurreiçãoÉ contemplado apenas em sua morte:Parece que em sua imensa humanidadeAos espectros o Cristo se aparelha,O seu ar familiar logo assumindo,Abancado no largo das igrejasCom os amigos, extrema assombração...Aguardando seu próprio julgamento,Sua caridade a todos estendendo,Mesmo a Joaquim Silvério dá o pão.

5

Repousemos na pedra de Ouro Preto,Repousemos no centro de Ouro Preto:São Francisco de Assis! Igreja ilustre, acolhe,À tua sombra irmã, meus membros lassos.Confrontamos aqui toda a miséria,Da matéria o desgaste deduzindoEm nossa vida universal e pessoal.Ó rude tempo de aniquilamento,Ó rude tempo de desproporção!Nem nos transforma a companhia do Anjo

227

Poemas

Que estendido no teto desta igreja,Rumando para a terra, em vôo certeiroDespede ao chão a lâmpada de prata!Entretanto ele é belo! DançarinoDo sopro da saúde modelado,Asas de larga envergadura tem,E seus panejamentos apresentaCom delicada graça, mas viril.Respira o rosto, máquina rosada,Um mesmo movimento aparelhandoA boca, os olhos diurnos e o nariz;Carnal vivência o busto manifesta,Os cabelos castanhos esparzidosNuma desordenada simetriaO ritmo ajudam da composição;Os pés calçados de sandálias gregasFormam sólida base ao corpo inteiro.Mas não se vale apenas de suas asas:Os braços desenvoltos deslocandoO espaço em torno, rápido, oferecemFlores, frutos da terra ao povo fiel.Seus ornamentos sóbrios sintetizamDo barroco mineiro a austera força.Assim o esculpiu na tradução humanaO escopro genial do Aleijadinho.Mas de que serve o gratuidade do Anjo,Que pode o Anjo ante a angustura do homemE a força da caveira desarmadaQue elevada se vê no tapa-vento?Que pode o Anjo ante a manopla imóvel,Ante a pátina da morte em Ouro Preto?Kyrie eleison. Memento mori. Kyrie eleison.

228

Murilo Mendes

Romance de Ouro PretoA Manuel Bandeira

Na luz difusaQue funde os planos,Vai nas colinas,Vai nas igrejas,Vai nas lonjurasSe refratando,Na luz difusaDa manhã friaNasce Ouro PretoCongeminando.Nasce inda agoraDos astros frios,EstremunhadaDescerra as portasDe pedra frias,Desata a brumaDos dedos brancos,Levanta cruzesNo ar macio,Turva da noite,Tonta de espectros,Doida de sono,Mira-se ao espelhoLavado, oval,Da solidão.Um gênio fluidoNo ar poroso

Se balançandoDespede a lua.Desdobra templosNa luz redonda.Lava ladeiras,Lava os lavabosDas sacristias,Recobre as casasDe branco e anil,Tira o capuzDo Itacolomi;Extinto o ouro,Pequena indústriaFaz funcionar– Chá, pinga e mel –,Apruma os pobresDo álgido Asilo,Espanta as moscasQue do leprosoToldam a visão,Governa o reideCircunvolanteDos urubus.No jardim únicoDo Carmo ao ladoBalança plumasDe árvores densas,Apara arbustos,Desfolha dálias,

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Poemas

Agrupa os goivos,Cruza coroasDe crisandálias;A água limosaDos chafarizesRápido ordenha,Desmama riachos,Sutura as torresNa cerração,Dá corda aos sinos,Rói paramentos,Rói estandartes,Move estudantesAté o PalácioOnde assistiaO Governador– Máquina cinzaDe corpo espessoNo alto da PraçaBem assentada,Soturno espelhoDo grão poder;Sobe ao MuseuQue, adrede armado,Graves destroçosDa antiga MinasPrenhe, barroca– Dura escultura –,Torsos de MinasDependurados,Restos roídos

De InconfidentesNa cal propíciaRecolocados,Sombras vencidas,Sombras severas,Estranho espólio,Solene expõe;Álulas frágeisDe anjos feridosDos frontispíciosPronto refaz;As malas tangeQue dos distritosDescem ao mercadoCampainhando,Pule os minérios,Monda as arestasDos monumentosAzul e rosa,Branco e cinzento;Lumeia os círiosLá no Pilar,Renova a missaNo altar barroco,Propende o Cristo,Suscita a sombra,Suspende o sol.

Ó Vila Rica,Trânsito é o teuTão sossegado!

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Murilo Mendes

Nossa Senhora,Nosso Senhor,De pés descalços,De braços dados,Tristes, felizes,Tristes, calados,Pelas ladeirasRecuando a morte,Pelas calçadas,De dia, de noiteCorrendo vão.Ó tu, musicalTerra não és,Curva Ouro Preto,Plástica sim!Díssonos pianosDeslocam o ecoMas os teus sinosDas tuas manhãs:– Enoch e Elias,Ivo e Luquésio,Roque e Raquel –Sobem do Carmo,De São Francisco.Sonoros sagram,Bentos batizamTua atmosferaCom igual fervor,Dobram com forçaPor todos nós,Das ruínas do ar

Levando aos Três– Ventos de amor –Novas novenasE ladainhas,Teus Kyrie eleisonSantos amém.

Tu, Vila RicaDe forte exemplo,Ei, Ouro Preto!O ouro leproso,Amaldiçoado,Da luz do inferno,Do mal do infernoContaminado,Te desgraçou.Que havias feitoPra te mandaremPraga tamanha,Virgem do céu?...Tu, Vila RicaDo ouro gerada,Desde teu berçoOuro mamando,Desde menina.Já castigada– Forrada de ouro,Fecunda um tempo,Logo faminta,Depressa estéril –,Estrela obnóxia

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Poemas

Vinda de Oblívio,Luz de presságiosNa cauda de ouroMorna arrastando,Ai! te obumbrou.

Maior na morteQue no esplendor,Espectro enxutoDe olho de pedraQue absurdo adoroTanto que aguardo,Roxo, tremendo,Últimos fins,Tuas colunasTão inspiradas,Curvas e rampasAo pensamentoRude inclinando,Nobres portadas,Pátina cinza,Muros de cangaE anjos ambíguos,Anjos oblíquos,Anjos oblongos,Torres torcidas,Torres chuvosas,Olho-de-boiLentos absorvemTua agoniaLogo cercadaDe fogos-fátuos,

Almas penadasCom véus de viúvasQue pelas vielasE pelas pontesSutis deslisamE entre ais e uivosPerdidos vão:Triste Ouro PretoA quem a cinza,O tempo e o mitoServem de pão.

Mortos teus dentes,Teu ouro extinto– Virou esterco –,AbandonadosOs teus pendões,Podres os bosquesDas sesmarias,Paços queimados(Nos mornos morrosCorrem manadasDe assombrações),Mantos roídos,Trompas sem bocaQue te acordavam,Prismas partidos,Morta a euforia,Toda a ambição:Vive tua plásticaNa forma estática.

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Murilo Mendes

Só para a morteGuardaste a luz,Tu, Ouro Preto,Dama de pedra,Demente lúcida– Dobras a morteCom teu palor –,Tu, Ouro Preto,Que outrora fosteE agora inda és.

De qualquer ânguloTu sempre és bela!De qualquer ânguloAo olho amanteSempre és igual.Perto, distante,Quer vista sejasNa luz redonda,No prisma azul,Na trovoada,Na refração,À chuva espessa,Ao sol friorento,Ao sol violento,Ao luar das Lages,Na cerração,Vista de frente,Vista dos fundos,Lá das Cabeças,Lá do Rosário,

Do Grande Hotel,Do Alto da CruzQue Chico ReiDançando o congoFez levantar,Glória a Jesus;De São Francisco de PaulaA massa branca, maciça,Sempre de frente,De qualquer pontoSe mostra à luz.Bela Ouro PretoVinda do caos,Tua unidade– Tácito acordoEntre homem e Deus –No entrosamentoDe forma e fundo– Subido exemplo –Com teu engenhoSe resolveu.

Vi quantas belasAdormecidasNessas varandasDesguarnecidas,Pelo nevoeiroLogo veladas:Vaga Marília,Doce Ifigênia– Zéfiro brando –

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Poemas

Que do BrasilFoste noivada,Nise saudosa,Glaura de seda,Bárbara míseraDo norte estrelaQue teu destinoMal sabes guiar,Clara ConstançaDe negras trançasBreve roídasNa escuridão...Musas oclusas,Tristes, heróicas,Tontas, alegres,Santas, vadias,Musas obscurasDe igual valor,Quantas MariasTrabalhadeiras,Requebradeiras,Doidas de amor,Belas doceiras,Ó costureiras,Ó lavadeiras,Corpos em florQue a minha lira– Pulsa, suspira –Do tempo caídoQuer suscitar,Finos fantasmas

Que a névoa filtra,AdormecidosNas lájeas frias,Em balcões frios,Finos fantasmasFrios da noite,Frescos do orvalho,Brancos da morte,Puros do luar...

Nas tuas navesLimpas, lavadas,Qual céu de MinasApós trovoada,Nas tuas navesClaras, azuis,Abrindo os braços,Fechando os olhos,Cinzas tomei,Bíblico eu fui.Nas tuas lájeasVerde-cinzentas,DesconsoladoMoendo o mundo,Roucos soluçosTriste abafando,Me prosternei;Dos teus santeirosTortos, anônimos,Nos oratóriosO gênio rústico,

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Murilo Mendes

Crispado, áspero,Interpretei;E ante os teus santosÓsseos, cavados,Escalavrados,DesencarnadosPela oração,Que pedem graçasDo alto do nichoEm vez de as dar– Míseros são –,Fiz a exegese,Dei o balançoDa nossa lepra,Nossa paixão.

Do Aleijadinho– Pernas de pedra,Tronco de igreja,Testa de morroDa Minas bíblicaQue a Santa Bárbara,Grã domadoraDa trovoada,Se consagrou,Do Aleijadinho,Macho escapadoAo próprio escopro,– Sua obra inteiraÉ auto-retratoDe corpo inteiro

Revelador –,Do AleijadinhoSevero ancestreMal-encarado,EncapuzadoNo seu furor,Alma barroca,Fundos refolhosDe obscura raivaGuardando em si,Na dura entranhaDe penha humanaCom fortes peitosGerado à luz,Do AleijadinhoSóbria lição– Suma piedadeRígida, austera,Na bruta BíbliaCedo assentada,De um mundo novoMantido em pedraConsolidadaNa criação,Do AleijadinhoForça fogosa,Grã-liberdadeNa disciplinaDo Antigo amorMovendo os dedos,Movendo o engenho

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Poemas

Com seu vigor,Força madura,Fundamental,Que à alma imprimeImperecível,Sempre impassível,Grave postura,Nobre feição,Do Aleijadinho– SimplicidadeDentro do excesso,TransbordamentoNão sem rigor,Conselho altivoQue vence a morte,Nutrido a sangue,Na chaga inscrito,Rasgado a escopro– Transverte a dor –,Do AleijadinhoQue transfixadoNo seu grabato,Contempla o CristoCom febre e amor,Do AleijadinhoSopro do eternoRolando em Minas,Gravado em pedra,No pau esculpido,Firme palpei.

Tuas velhinhas

Mal-assombradasQuase que amei,Teus seresteirosAo luar propícioPerambulando,Cismando ouvi– Cantam Dalilas,Dizem de dálias,Bordam perpétuas,Choram saudades,Longos degredos,Penas de amor;E de teus bêbedosDe noite e diaA lengalenga,Ladeira abaixo,Ladeira acima,Ainda ajudei;E de tuas bruxas,Teus monsenhores,Teus sacristães,Lendas, parlendasMole girando,ReconstituindoTempos soberbos,Quentes distúrbiosNos arraiais,AlumbramentosDo ouro gerados,Superstições,Cruzar de espadas,Punhos suspensos,

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Murilo Mendes

Membros candentes,ConspiraçõesCedo morrendo,– Vem, liberdade,Ainda que tarde –,Uivos de dor,Poetas tangidosPara o degredo,Secos de amor;Do TiradentesRubra cabeçaLogo tornadaConstelação,Ó Excelências,Ó Reverências,Bailes, fanfarras,Clarões, clarins,Ó luminárias,Ó lumaréus,Bruscos archotesQueimando o céu,Ó procissõesPagãs, festivas,EntrelaçandoVirgens e Vênus,Paulo e Plutão,Ó serenatas,Ó cavalhadas,Ricos senhoresEm coches de ouroVindos de longe,

Lá do Tijuco,De Gongo Soco,Cavalos épicosSe esperdiçando,Longos delírios,Damas possessas,Descabeladas,GirogirandoPelas estradas,Lançando fábulasFilhas do ouro,De áureo clarão;E ouro rodandoPelas calçadas,Nas capistranas,Templos crescendoCom ouro e fé,Negras escravasBamboleando,Cobrindo as testasCom ouro em pó:Tudo isto agoraQuero evocar.Tempo danadoDe assombração,És filho do ouroCom a maldição.Tu, Vila Rica,Auto-espantalhoQue nada assusta,O próprio Cão

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Poemas

Montando a MorteQuer te assombrar,Que tu refugasNo ventre fundoDos teus minérios,Lá nas profundasDa noite oclusa,Cruz-credo, amém.

Na luz difusaQue se arredondaE se refrataNos planos frios,Três sinos sobemLentas ladeiras,Dobram a defunto,Declina o dia.Deus nos assistaCom sua alegria,Deus nos liberte,Ave, Maria.Musa, te rogo,Despede o manto,Grossa estamenhaPronto reveste,Ouve em silêncioDesta cantigaDesconjuntadaO som final:Nobre Ouro PretoTalhada a escopro,

Gele-me o corpoSe te esquecer,Seque-me a línguaSe te maldar;Nesta retinaCedo alumbrada,Desconsolada,Tua luz difusaNo amor filtradaQuero guardar– Imagem de outraMais alta luz –;Roupas não rasgo– Tradição morta,Disse Jesus –Mas breve rasgo– Rito profundo,Viva oração –Diante do altarQue aos Três consagraNossa oblação,A Cruz mirandoQue altera o mundo,Sagrado lenho,De Deus dossel,Mas breve rasgoDepois de aberto,De escalpelado,Contrito, amargo,Descompassado,Mina de males

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Murilo Mendes

Que não se extingue,Tosca oferendaQue a luz severaDos teus santeirosInconformadosReflete inteiraNesta angustura,Mas breve rasgoMeu coração.

Poema pessoal

Levanto-me da carruagem de paixões e plumasAparentemente guiada pelas irmãs Brontë.

Deu uma tristeza agora nos telhados...

As cigarras sublinham a tarde emparedada,O trovão fechou o piano.Surge antecipadamente o arco-íris,Aliança temporária de Deus com o homem,Sem a solidez da eucaristia:Surge sobre encarcerados, órfãos, marginais,Sobre os tristes e os sem-solução.

Dos quatro cantos de mim mesmoIrrompe um Dedo terribilíssimo que me acusaPorque sem os olhar deixo de ladoOs restos agonizantes do mundo.

Transformou-se agora o céu.Céu patinado, que escureza.

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Poemas

Céu sempre futuro e amargo,Como são fundamentaisEstes sofrimentos de segundo plano!

Mais o quê mesmo lembrar?Ah sim – esta arrastada caranguejola da vida...

O quarto da infância

Quem canta? Ninguém mais canta.Seria preciso cantar para o morto na sua cova,Para o vivo na sua cova. Seria preciso estenderBraçadas de canções ao órfão espiritual.E até mesmo as estrelas pedem consolo,Todos pedem consolo.Quantos olhos desabitados,Antigas ruínas que nenhum peregrino visita;Quantas mãos cobertas de heraAntecipando a paz definitiva.Quanto seio que não foi acariciado,Quantos pés caminhando sem consciênciaDa passagem de um Deus pelos mesmos caminhos.

Trocamos o que não se pode trocar,Abandonamos o reflexo do fogo,O eco de uma perdida gavotaE o gesto de nós meninos no espelho do soalho.Trocamos a vela do barco solitárioE a inscrição na pedra de madressilvasPela moeda concreta do demônio,Pelo demônio mesmo.

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Murilo Mendes

A peregrinação

Investe-me o pavor do tempo restituídoÀ noite antes do Senhor, à cólera fria,Ao desespero que contorna a cruz.

Minha alma cai do cavalo, parte de novo a galope,Mas na curva do caminho enfrento os espantalhosDo passado, do provisório e do futuro– relâmpagos embuçados no horizonte. –Em Antioquia, em Bizâncio e Ouro Preto me achei,Levado pelo passo de animais familiaresCom asas e olhos plantados ao redor do corpo.Volto as costas ao cemitério dos antepassados,E, palpando a trilha vermelha de Pentecostes,Bato furiosamente à porta de Simão PedroQue prometeu me ressuscitar dos mortos,E que um dia havemos de julgar os anjos.Assimilo sem cerimônia o próprio CriadorEscondido sob o fantasma do pão e do vinho.Desde antes do começo da era atômicaEspero sem paciência o fim do mundoEm novas formas de ressurreição.Acaba logo, ó mundo; ó Cristo, vem depressa.

Pássaros noturnos

Pássaros noturnos:Ao longe balançam o canto obscuroPois nas grutas profundas se encolheram

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Poemas

E nos maciços de árvores.Pela noite seu canto oblíquoNa soledade do silêncioConfigura-os a bichos desconhecidos,São provisoriamente outros bichosNascidos sem lei nem formaDo intocado abismo e da folhagem.Pássaros fantasmas,Pássaros noturnosAnunciadores de uma vida livreCujo segredo ao nosso ouvido escapa,Uma vida de ignota relação.

Indicação

Sim: o abismo oval atrai meus pés.Leopardo familiar, a manhã se aproxima.Preciso conhecer em que universo estouE a que translações de estrelas me destinam.Em três épocas me observo sustentado:Na pré-história, no presente e no futuro.Trago sempre comigo uma morte de bolso.Assalta-me continuamente o novo enigmaE uma audácia imprevista me pressinto.Arrasto minha cruz aos solavancos,Tal profunda mulher amada e odiada,Sabendo que ela condiciona minha forma:E o tempo do demônio me respira.Gentilíssima dama eternidade

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Murilo Mendes

Escondida nas raízes do meu ser,Campo de concentração onde se dança,Beatitude cortada de fuzilamentos...Retiram-me o véu que sei de mim.Ontem sou, hoje serei, amanhã fui.

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Poemas