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FELIPE DANIEL AMORIM MACHADO FLAVIANE DE MAGALHÃES BARROS (Organização) ANAIS DO 4º CONGRESSO CONSTITUIÇÃO E PROCESSO: UMA LEITURA HERMENÊUTICA DA (RE)CONSTRUÇÃO DOS CÓDIGOS Belo Horizonte, 2012

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FELIPE DANIEL AMORIM MACHADO FLAVIANE DE MAGALHES BARROS (Organizao)

ANAIS DO 4 CONGRESSO CONSTITUIO E PROCESSO: UMA LEITURA HERMENUTICA DA (RE)CONSTRUO DOS CDIGOS

Belo Horizonte, 2012

ANAIS DO 4 CONGRESSO CONSTITUIO E PROCESSO:

UMA LEITURA HERMENEUTICA DA (RE)CONSTRUO DOS CDIGOS

Instituto de Hermenutica Jurdica Felipe Daniel Amorim Machado Flaviane de Magalhes barros

(Organizao)

Copyright desta edio [2011] INITIA VIA EDITORA LTDA ME

Rua dos Timbiras, n 2250 sl. 103-104 Bairro Lourdes

Belo Horizonte, MG 30140-061

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C749

Congresso Constituio e Processo (4. : 2011 : Belo Horizonte, MG) Uma leitura hermenutica da (re)construo dos cdigos: anais do 4 Congresso

Constituio e Processo / Instituto de Hermenutica Jurdica, Felipe Daniel Amorim Machado, Flaviane de Magalhes Barros (organizao). Belo Horizonte : Initia Via, 2012.

299p. ISBN 978-85-64912-07-6 1. Direito constitucional Congressos. 2. Direito processual Congressos. I. Instituto de Hermenutica Jurdica. II. Machado, Felipe Daniel Amorim. III.

Barros, Flaviane de Magalhes. IV. Ttulo CDU: 340(061.3)

APRESENTAO A evoluo da sociedade brasileira transforma e cria novas relaes cada vez mais

complexas e dinmicas, de modo que o direito tradicional no mais comporta uma adequada prestao s suas demandas. Essas novas e urgentes questes levaram os atores do cenrio jurdico poltico brasileiro a refletirem sobre a necessidade de reformas macroestruturais das legislaes, o que culminou, em especial, nas propostas de reformas dos Cdigos de Processo Penal (CPP) e de Processo Civil (CPC) brasileiros.

O Brasil convive desde a promulgao da Constituio da Repblica de 1988 com uma legislao processual recepcionada, com modificaes decorrentes de minireformas ou reformas parciais do texto legal. A crtica ao modelo das reformas parciais clara e persistente, eis que mudanas pontuais fragmentam o texto e produzem distores importantes na interpretao dos institutos processuais. Mais importante, talvez seja a constatao de que muitas das reformas processuais parciais contrariam a Constituio, exigindo dos operadores jurdicos o esforo hermenutico de buscar e apresentar uma interpretao constitucionalmente adequada.

No incio da dcada de 1990 instituiu-se uma comisso de juristas dirigida prioritariamente pelos ento Ministros Slvio de Figueiredo Teixeira e Athos Gusmo Carneiro que, com o auxilio do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), iniciou os trabalhos que deveriam rever tanto o CPC quanto o CPP. A comisso deu origem a diversos projetos de leis aprovados pelo Congresso Nacional que modificaram pontualmente o CPC, instituindo, por exemplo, a tutela antecipada, a tutela especfica, a audincia preliminar, a ao monitoria, bem como, mudanas na fase recursal e executiva. Foi, ainda, alterada a sistemtica dos recursos extraordinrios para se adequar emenda 45 da Constituio da Repblica que estabeleceu a reforma do Poder Judicirio, sistematizando a repercusso geral e os recursos repetitivos na legislao processual civil.

Houve, ainda, uma comisso organizada pelo IBDP, que foi presidida por Ada Pellegrini Grinover, para rever o CPP, dando origem a sete projetos de lei, apresentados em 2001, sendo que alguns projetos foram aprovados, modificando pontualmente o CPP em matrias como o interrogatrio do acusado, provas, sujeitos processuais, sentena, procedimento ordinrio e procedimento do Tribunal do Jri.

Todas as comisses optaram por propor reformas parciais, organizadas em diversos projetos de leis, justificando a opo em razo da morosidade legislativa e da dificuldade da tramitao de um projeto global perante o Congresso Nacional.

Somente em 2008, foi instituda pelo Senado Federal uma comisso de juristas responsvel por apresentar um anteprojeto de CPP. A tarefa cumprida em tempo recorde foi concluda em maro de 2009, quando o anteprojeto de CPP foi entregue ao Presidente do Senado Federal, tramitando naquela casa legislativa sob o nmero 156/2009. J em 2009, institui-se outra Comisso de Juristas para proposio de um novo CPC. O Anteprojeto foi apresentado em junho de 2010 pela Comisso e tramita no Senado Federal sob o nmero 166/2010.

O processo legislativo da reforma dos cdigos de Processo Penal e de Processo civil est tramitando no Congresso Nacional. Atualmente encontra-se no incio da tramitao da Cmara dos Deputados sob o numero PL 8.045/2010 e PL 8.046, Projeto de Novo Cdigo de Processo Penal e Processo Civil, respectivamente.

Contudo, mesmo com o movimento de reforma total dos Cdigos e com toda a crtica s reformas processuais parciais, a Cmara dos Deputados ainda lana mo de tal prtica como ocorreu, recentemente, na Lei 12.403 de 05 de maio de 2011, que reformou mais uma vez um captulo do Cdigo de Processo Penal, das medidas cautelares e das prises processuais, retomando um dos projetos de lei de 2001.

No panorama atual, busca-se uma mudana de perspectiva de um movimento de reformas pontuais para a discusso de novos projetos de Cdigo de Processo. As reformas parciais se tornaram um problema, pois, as legislaes processuais se tornaram desconexas e sem coeso interna, o que dificulta a compreenso pelos prprios operadores do direito, potencializando a complexidade processual.

Ser a primeira vez que se pretende organizar de forma completa e integral, um texto legislativo processual penal e civil estruturado a partir da nova ordem democrtica consubstanciada no Estado Democrtico de Direito. Logo, seu esforo principal advm da necessidade de as novas normas processuais se adequarem interpretao dos direitos e garantias fundamentais definidos no texto constitucional. Isto , o processo legislativo tem a tarefa de pensar a reforma processual a partir da Constituio.

Se a proposta de reforma global tem como aspecto positivo a definio de um texto com coeso sistmica, ela traz a lume uma discusso mais complexa, que exige a definio das bases estruturantes da reforma, bem como, exige maior respeito ao devido processo legislativo, prprio do Estado Democrtico de Direito, que garante aos cidados e em especial a sociedade civil organizada a possibilidade de participao. Nesse sentido, importante a crtica reduzida participao da sociedade civil, das Universidades e da comunidade jurdica como um todo, na produo do CPP E CPC. Por outro lado, deve-se ressaltar o papel de algumas instituies acadmicas, bem como do Ministrio da Justia, que mesmo aps a tramitao no Senado Federal pretendem ampliar a discusso da reforma. Nesse sentido, importante iniciativa foi levada a cabo pelo Ministrio da Justia que em seu site tem promovido um debate pblico sobre o projeto que tramitar na Cmara dos Deputado.

nesse contexto que o Instituto de Hermenutica Jurdica (IHJ) em parceria com o curso de Direito da UFOP, o curso de Cincias do Estado da FDUFMG e o Programa de Ps-graduao em direito da PUC Minas, por meio do Projeto de Cooperao Acadmica entre a PUC Minas e a UNISINOS, elegeram o tema da reforma do processo para o IV Congresso Constituio e Processo.

SUMRIO

APRESENTAO ......................................................................................................................... 3

SEO 1 DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS NA REFORMA PROCESSUAL CIVIL

ARGUMENTAES SOBRE O INCIDENTE DE RESOLUO DE DEMANDAS REPETITIVAS NO NOVO PROJETO DO CDIGO DE PROCESSO CIVIL .............................................................................................. 8

ANA SURANY MARTINS COSTA

APONTAMENTOS CRTICOS MANUTENO DO RECURSO DE EMBARGOS DE DECLARAO FRENTE TCNICA RECURSAL E AO DIREITO FUNDAMENTAL S DECISES RACIONALMENTE FUNDAMENTADAS 21

DIOGO HENRIQUE DIAS DA SILVA GUILHERME CSAR PINHEIRO

REFORMA DO PODER JUDICIRIO: DO NOVO CDIGO DE PROCESSO CIVIL PADRONIZAO DECISRIA .......................................................................................................................................... 33

FELIPE DUTRA DEMETRI O NOVO CDIGO DE PROCESSO CIVIL E O RETROCESSO SOB O PRISMA DEMOCRTICO COM A MANUTENO DO PROTAGONISMO JUDICIAL .................................................................................... 44

FRANCISCO RABELO DOURADO DE ANDRADE A INVERSO DO NUS DA PROVA NO NOVO CDIGO DE PROCESSO CIVIL E A DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL ............................................................................................................................................. 56

GABRIELA SOARES BALESTERO REPERCUSSO GERAL COMO INSTITUTO DO PROCESSO COLETIVO NO ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO ............................................................................................................................................... 72

GABRIELA OLIVEIRA FREITAS EXECUO DE ALIMENTOS: A NECESSRIA ADEQUAO PROCEDIMENTAL SOB A PERSPECTIVA DO ACESSO JUSTIA ............................................................................................................................... 87

GISELLE PICORELLI YACOUB FABIANA ALVES MASCARENHAS

DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS NA REFORMA PROCESSUAL CIVIL: ACERCA DA INTERDEPENDNCIA ENTRE PROCESSO E DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTRUO DEMOCRTICA DIANTE DO CONTEXTO DA CELERIDADE E PRODUTIVIDADE DECISRIA NO BRASIL ........................... 103

MARIANA PEREIRA LANZA VIOLAO DO DIREITO FUNDAMENTAL DO CONTRADITRIO E DA AMPLA DEFESA PELA PADRONIZAO DECISRIA NO BRASIL: BREVES CONSIDERAES DO CIVIL LAW E DO COMMON LAW ......................................................................................................................................................... 118

RICA MONTEIRO BARBOSA RAFAELA MARJORIE DE OLIVEIRA CATERINA

O PROCESSO EXECUTIVO NO DIREITO COMPARADO: A REFORMA EXECUTIVA EM PORTUGAL ........... 133

RAFAELA CATERINA

SEO 2 DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS NA REFORMA PROCESSUAL PENAL

O PROCESSO COMO GARANTIA DE (IN)APLICABILIDADE IMEDIATA DA LEI PROCESSUAL PENAL NO ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO .................................................................................................. 147

FILIPE CESAR LOPES LETCIA LACERDA DE CASTRO

TUTELA JURISDICIONAL DA FAMLIA: INTERVIR PARA PROTEGER OU MEDIAR PARA PACIFICAR? ESTUDO DAS RAZES ACERCA DO VETO PRESIDENCIAL MEDIAO NA LEI 12.318/10 .................... 162

FABIANA ALVES MARCARENHAS O PROCESSO LEGISLATIVO DO NOVO CDIGO DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO: INTERNET ENQUANTO INSTNCIA DEMOCRTICA? .............................................................................................................. 174

GIL DE SOUZA VON DER WEID

O RECONHECIMENTO EX OFFICIO DA PRESCRIO PELO MAGISTRADO NO PARADIGMA DO ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO ............................................................................................................... 186

GUILHERME FELIPE MENDES MACRIO CARNEIRO SEGURANA JURDICA: O EDIFCIO DE PONTA-CABEA ARQUITETADO NA EXPOSIO DE MOTIVOS DO PROJETO DO NOVO CDIGO DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO ........................................................... 205

ROBERTA MAIA GRESTA PROPOSTA DE ALTERAO DO REEXAME NECESSRIO E SUA REAL POTENCIALIDADE DE EFETIVAR O DIREITO FUNDAMENTAL DURAO RAZOVEL DO PROCESSO ........................................................ 219

ARIANE SHERMAM MORAIS VIEIRA ROSANA RIBEIRO FELISBERTO

DA NECESSRIA VINCULAO DAS REFORMAS LEGISLATIVAS NO MBITO PROCESSUAL CIVIL AO MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSO ......................................................................................... 230

TEREZA DE ASSIS FERNANDES

PROJETO DE REFORMA DO CPC (PL N 8046/2010): PONDERAES SOBRE A INFORMATIZAO DO PROCESSO JUDICIAL, PROVAS E DOCUMENTOS ELETRNICOS. ......................................................... 242

WESLEY ROBERTO DE PAULA

SEO 1 DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS NA REFORMA

PROCESSUAL CIVIL

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ARGUMENTAES SOBRE O INCIDENTE DE RESOLUO DE DEMANDAS REPETITIVAS NO NOVO PROJETO DO CDIGO

DE PROCESSO CIVIL

REFLECTIONS ON GROUP LITIGATION IN THE PROJECT OF A NEW BRAZILIAN CIVIL PROCEDURE CODE

Ana Surany Martins Costa1

RESUMO

Em breve teremos um novo Cdigo de Processo Civil. Essa a promessa do Projeto de Lei n 8.046/10. Porm, com tal promessa vm inmeros desafios, entre os quais figura o incidente de resoluo das demandas repetitivas. Por tal mecanismo os processos identificados como relativos mesma questo de direito so paralisados e uma causa piloto encaminhada ao tribunal a fim de que o julgamento da tese comum seja efetuado com eficcia para todo o conjunto de demandas iguais. Tal incidente expresso dos precedentes judiciais (common law), os quais merecem cautela quando colocados no seio da processualstica brasileira, posto que, no caso do incidente em comento, h o risco de que, ao se padronizar julgamentos, se judique sem se levar em conta as especificidades da causa, ensejando uma deciso inefetiva e injusta de forma massificada. nesse contexto que se analisar o incidente de resoluo de conflitos seriados, traando-se suas linhas gerais, nascedouro e seus riscos enquanto modelo de mecanismo de padronizao decisria, alm de se tecer crticas pontuais quanto a alguns de seus principais aspectos. PALAVRAS-CHAVE: Processos em massa; Padronizao decisria; Projeto de Lei n 8.046/10.

ABSTRACT

Brazil will soon receive a new Code of Civil Procedure, in the form of Bill No. 8.046/10. But with the promise of this new piece of legislation comes many challenges, which includes the issue of group litigation. This mechanism works by selecting a case forwarded to the higher courts as a model or pilot for all current or subsequent cases featuring similar key legal questions. Such an incident would create similarities between the Brazilian legal procedure to the ones observed in countries which adopt the common law system by giving relevant expression to judicial precedents. The risk that trials may suffer a process of standardization must be taken into account, if we are to avoid ineffective and unfair decisions on a massive scale. It is in this context that we consider the issue of group litigation, by drawing their outlines, the birthplace and its risks as a mechanism for standardized decision-making. KEYSWORDS: Bulk processes, standardization decisions; Draft Law No. 8.046/10.

1 Bacharel em Direito (Centro Universitrio Newton Paiva), Especialista em Direito Previdencirio (Instituto de Estudos Jurdicos Avanados - IEJA) e advogada militante.

ANA SURANY MARTINS COSTA

Instituto de Hermenutica Jurdica; Machado, Felipe D.A; Barros, Flaviane de M.(org). Anais do 4 Congresso Constituio e Processo: uma leitura hermenutica da (re)construo dos cdigos. Belo Horizonte : Initia Via, 2012. 978-85-64912-07-6.

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I INTRODUO

O Projeto do Novo Cdigo de Processo Civil, que est tramitando na Cmara dos Deputados sob o n 8.046/10, tem como um dos objetivos principais tornar o Processo Civil mais clere, efetivo e com o mnimo de incidentes possveis, possibilitando uma rpida prestao da tutela jurisdicional.

A proposta da processualstica implementada no Projeto do Novo Cdigo tem o nobre intuito de harmonizar o futuro Cdigo de Processo Civil com a Carta Poltica de 1988. Para tanto, incluiu em seu texto diversos princpios constitucionais e reduziu alguns incidentes, visando alcanar um processo que seja efetivo e com uma durao razovel.

Uma das principais modificaes que tem chamado a ateno da comunidade jurdica o relativo ao incidente de resoluo das demandas repetitivas como forma de valorizao dos precedentes judiciais para combater a avalanche de feitos que inundam nosso Judicirio.

Por tal instrumento, os processos identificados como relativos a mesma questo de direito so paralisados e uma causa piloto encaminhada ao tribunal a fim de que o julgamento da tese comum seja efetuado com eficcia para todo o conjunto de demandas iguais.

Com isso, nota-se que o sistema processual brasileiro confere forte nfase jurisprudncia sob o argumento de que tal postura possa eventualmente contribuir para julgamento clere das demandas de massa, garantir maior segurana jurdica e evitar a disperso excessiva da jurisprudncia.

Todavia, tal tcnica de julgamento tem causado impacto e discusses no meio jurdico, vez que o ato de padronizar julgamentos traz em si o risco de se judicar sem se levar em conta as especificidades da causa, que pode ter uma deciso mais efetiva e justa quando julgada individualmente e no molecularmente, evidenciando, assim, a relevncia da discusso de tal temtica.

sob tal vis que o presente artigo abordar o incidente de resoluo de demandas repetitivas, propondo uma reflexo sobre a viabilidade ou no de sua futura aplicao em nosso ordenamento, tendo por norte principal a questo da utilizao automtica dos precedentes sem a reconstruo do histrico de aplicao decisria, ou seja, com as questes, debates e teses que lhes deram origem.

Para tanto, tecer-se-o linhas gerais sobre o incidente de resoluo de demandas repetitivas, ressaltando seu contexto, suas principais caractersticas, diferenciando-os dos direitos coletivos e difusos, alm de demonstrar que o sistema de precedentes judiciais se iniciou de forma lenta e gradual desde o Cdigo de Processo Civil de 1973.

Em seguida, ser brevemente analisada a influncia do modelo alemo de processos repetitivos em primeiro grau (musterverfahren) sobre o incidente brasileiro de resoluo de causas seriadas, de modo a demonstrar que o incidente em comento preserva a natureza individual das aes seriadas.

Posteriormente, tendo em vista que o incidente em comento representa um reflexo dos mecanismos de padronizao decisria, que ser analisada a questo do julgamento uno para vrias causas em nosso ordenamento, tendo em mente que a construo do direito dinmica e no esttica, no sendo aconselhvel que se lance mo dos precedentes como um dado do passado a que se deva repetir de forma mecnica e fria.

Por ltimo, sero feitas crticas pontuais ao incidente de resoluo de causas repetitivas, tendo por base a redao apresentada no Projeto do Novo Cdigo de Processo Civil.

Advirta-se, ainda, que o presente trabalho passa ao largo de ser definitivo quanto sua temtica, mas aberto reflexo e, sobretudo, estimulador de futuros debates.

ARGUMENTAES SOBRE O INCIDENTE DE RESOLUO DE DEMANDAS REPETITIVAS NO NOVO PROJETO DO CDIGO DE PROCESSO CIVIL

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Em sntese, o contexto que nortear o presente artigo e que apresentar, dentro do ambiente composto por demandas massificadas, o incidente de resoluo de demandas seriadas como um instrumento que requerer muita cautela na sua futura utilizao.

II LINHAS INICIAIS SOBRE O INCIDENTE DE RESOLUO DE DEMANDAS REPETITIVAS

Hodiernamente, vive-se na era dos processos massificados, os quais so os frutos da excitao da litigiosidade por quase qualquer querela, sendo inevitvel o brotar das demandas repetitivas que substitui o dilogo intersubjetivo, partindo-se direto para o duelo judicial seriado.

evidente que a massificao geral das relaes de consumo e da interferncia do poder pblico no domnio econmico trouxe consigo aspectos desafiadores para a cincia jurdica, vez que inviabiliza o ideal de celeridade da prestao jurisdicional, quebrando a garantia constitucional do tratamento igualitrio para todos perante a lei (art. 5, caput da Constituio Federal de 1988)

Para aplacar o furor da litigiosidade, lanou-se mo de um progressivo desenvolvimento dos precedentes na processualstica brasileira, atravs de diversas medidas que pudessem contornar a avalanche de feitos, tanto nas instncias inferiores como nos tribunais. .

interessante notar que o sistema de precedentes no se iniciou no Projeto do novo Cdigo de Processo Civil, havendo um processo lento e gradual de insero do sistema de precedentes no Cdigo de 1973.

O Cdigo de Processo Civil de 1973 possui diversos dispositivos que do nfase ao entendimento consolidado na jurisprudncia dos tribunais e, como exemplos disso, mencione-se: o art. 120, pargrafo nico, que dispe que, havendo jurisprudncia dominante do tribunal sobre a questo suscitada no conflito de competncia, o relator poder decidir imediatamente, dispensando o julgamento pelo colegiado; o art. 518, pargrafo nico, autoriza o juiz de primeiro grau a no receber o recurso de apelao quando a sentena estiver em conformidade com smula do Superior Tribunal de Justia ou do Supremo Tribunal Federal; o art. 557 dispe que o relator do recurso negar seguimento a recurso quando este estiver em confronto com smula ou com jurisprudncia dominante do respectivo tribunal, do STF, ou de Tribunal Superior; alm disso, o pargrafo primeiro do mencionado art. 557 dispe que, se a deciso recorrida estiver em manifesto confronto com smula ou com jurisprudncia dominante do STF ou de Tribunal Superior, o relator poder dar provimento imediato ao recurso.

Nos dias atuais, para enfrentar a massificao dos processos surgiram diversas medidas, tais como: a smula vinculante do STF (Emenda Constitucional n 45/2004) e o regime de repercusso geral como pressuposto do recurso extraordinrio (Lei n 11.418/2006; art. 543-A do CPC), alm da tramitao especial, com eficcia cumulativa para todos os recursos oriundos de causas repetitivas, tanto para o recurso extraordinrio (Lei n 11.418/2006; art. 543-B do CPC), como para o especial (Lei n 11.672/2008; art. 543-C do CPC).

Note-se que, na seara das causas seriadas, inovaes para abreviar julgamentos originrios e recursais foram criadas para o primeiro e o segundo graus de jurisdio, com o propsito de se adotar mecanismos para permitir a rejeio liminar das demandas iguais a outras j decididas pelo mesmo magistrado (Lei n 11.277/2006; art. 285-A do CPC) e para vedar recurso de apelao contra a sentena pronunciada em conformidade com smula do STF ou do STJ (Lei n 11.276/2006; art. 518, 1 do CPC).

ANA SURANY MARTINS COSTA

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Nesse ambiente composto por demandas massificadas, o Projeto de Lei n 166/2010 criou um incidente a ser instaurado nos tribunais de segundo grau, cognominado como incidente de resoluo de demandas repetitivas2 (arts. 895 a 906).

Em que pese as alteraes propostas no substitutivo (PL n 8.046/10) do Projeto em meno, por tal instrumento, os processos identificados como relativos a mesma questo de direito so paralisados e uma causa piloto encaminhada ao tribunal a fim de que o julgamento da tese comum seja efetuado com eficcia para todo o conjunto de demandas iguais.

Aclare-se que se est diante de interesses/direitos repetidos ou seriados, os quais correspondem a direitos transindividuais que no possuem origem comum, sendo apenas semelhantes.

Assim, diferentemente dos interesses difusos ou coletivos, os titulares dos direitos repetidos no formam uma coletividade alm daquela que s pode ser constatada no caso concreto, analisando-se quem tem um direito semelhante a outro (ROSA, 2010).

No se trata, contudo, de uma coletividade, no sentido que se empresta ao vocbulo nos processos coletivos, posto que coletividade haveria se houvesse um liame jurdico. E o que h um lao exclusivamente de fato: coincidentemente todos tm um direito semelhante aos demais, exercvel contra pessoas diferentes (ROSA, 2010).

Consequentemente, o incidente, na verdade, de molecularizao de demandas, forando-se a uma reunio para julgamento conjunto das questes comuns.

O incidente tem cabimento nos caso em que for identificada uma controvrsia com potencial de gerar relevante multiplicao de processos fundados em idntica questo de direito e de causar grave insegurana jurdica, decorrente do risco de coexistncia de decises conflitantes (artigo 930, caput).

Desse modo, no h cabimento do incidente para questes de fato, apenas para questes de direito em discusso, lavrando o acrdo respectivo, cujo teor ser vinculante e imposto a todos os juzes ou rgos fracionrios no mbito de sua competncia territorial (artigo 933, 2). Ressalvam-se as medidas de urgncia que sejam necessrias durante a suspenso dos processos (artigo 934, pargrafo nico).

Nesse ponto, cumpre observar que a deciso proferida no incidente tem a natureza de uma smula vinculante em tribunal local; tratando-se, sob nosso olhar, de um precedente judicial vinculante, em face da deciso ser oriunda do rgo especial ou do plenrio do tribunal e do seu resultado dever ser imposto a todos os processos pendentes sobre o mesmo assunto, sob pena de reclamao ao Tribunal.

Sero ouvidos ento todos os interessados, inclusive entidade com interesse na controvrsia, que, no prazo de 15 (quinze) dias, apresentaro documentos ou suas manifestaes; depois se ouve o Ministrio Pblico (artigo 935).

Feito isso, remete-se para julgamento pelo rgo colegiado (plenrio ou rgo especial), oportunidade em podero manifestar autor e ru do processo originrio, bem como o Ministrio Pblico, cada um com 30 (trinta) minutos (artigo 936). Depois, manifestam-se os demais interessados, no prazo comum tambm de 30 (trinta) minutos.

Julgado o incidente, a tese jurdica ser aplicada a todos os processos que versem idntica questo de direito e que tramitem na rea de jurisdio do respectivo tribunal. (art. 938).

2 Muito se debateu na Comisso de Juristas a respeito da denominao do incidente em comento, pois se propunham como sugestes as seguintes expresses: incidente de coletivizao, incidente de processos representativos da controvrsia, processo teste, processo piloto, aes repetitivas, etc.

ARGUMENTAES SOBRE O INCIDENTE DE RESOLUO DE DEMANDAS REPETITIVAS NO NOVO PROJETO DO CDIGO DE PROCESSO CIVIL

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Se o incidente no for julgado em 06 (seis) meses, cessa a eficcia da ordem de suspenso dos processos sobre a mesma questo, salvo deciso fundamentada do relator (art. 939). E, aps o julgamento, qualquer parte poder interpor recursos especial ou extraordinrio, que sero dotados de efeito suspensivo, ao contrrio da regra geral, presumindo-se a repercusso geral da questo constitucional eventualmente discutida (art. 940).

Alm disso, no ser feito juzo de admissibilidade na origem, como tambm a regra geral, remetendo-se diretamente para o tribunal competente julgar o recurso interposto (art. 940, pargrafo nico).

Por fim, encerrando as disposies do incidente, se no for observada a tese adotada na deciso paradigmtica (proferida no incidente), tem cabimento reclamao para o tribunal competente (art. 941), que ir decidir se houve usurpao de desrespeito autoridade de sua deciso, nos termos do regimento interno de cada Tribunal (pargrafo nico do art. 941).

Logo, restaram lanados os breves contornos do procedimento do incidente de resoluo de demandas coletivas o qual fruto da tendncia atual que adota como modelo os precedente judiciais e antecipa a tese que seria adotada pelo Tribunal aps a pacificao da jurisprudncia (ou em um eventual incidente de uniformizao de jurisprudncia). III A INFLUNCIA ALEM SOBRE O INCIDENTE BRASILEIRO DE RESOLUO DE CAUSAS SERIADAS

O incidente de resoluo de demandas repetitivas tem origem no modelo alemo de

processos repetitivos em primeiro grau, que denominado como musterverfahren. Essa inspirao foi afirmada na exposio de motivos do anteprojeto, com as seguintes palavras:

Com os mesmos objetivos [entre eles o de evitar a disperso excessiva da jurisprudncia], criou-se, com inspirao no direito alemo, o j referido incidente de Resoluo de Demandas Repetitivas, que consiste na identificao de processos que contenham a mesma questo de direito, que estejam ainda no primeiro grau de jurisdio, para deciso conjunta. (BRASIL, 2010 in ROSA, 2010, p. 15)

Assim, pelo musterverfahren se gera uma deciso que serve de modelo (muster) para a

resoluo de uma quantidade expressiva de processos em que as partes estejam na mesma situao, no se tratando, necessariamente, do mesmo autor nem do mesmo ru (ROSA, 2010).

Elucide-se que a Alemanha vinha discutindo, desde a dcada de 1970, a adoo de tratamento coletivo de demandas, sem quaisquer inovaes, exceto em relaes de consumo, que surgiu na dcada de 1990 (ROSA, 2010).

Passou-se a discutir, na dcada seguinte, a respeito da adoo de medidas similares s class actions norte-americanas; todavia essas inovaes no tiveram apoio. Diversos processos contra companhias alems passaram a ser ajuizados em corte norte-americanas, o que gerou na Alemanha uma grande insatisfao.

E, para corrigir essa situao, o legislador alemo criou, especificamente no mercado de capitais, um instrumento que permite o tratamento coletivo de demandas de indenizao em massa (mass tort litigation) (ROSA, 2010).

Surge ento na Alemanha o musterverfahren, que pode ser traduzido como procedimento-modelo, procedimento-piloto ou ainda procedimento-padro, previsto na lei que entrou em vigor em 1 de novembro de 2005 (ROSA, 2010).

ANA SURANY MARTINS COSTA

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O objetivo deste procedimento lidar principalmente com a legislao que impe s empresas atuantes no mercado de capitais o dever de prestar informaes, informar fatos relevantes etc. No caso de descumprimento destes deveres, surge para todos os investidores no mercado de capitais o direito a uma indenizao, pois a tomada de decises se deu de maneira assimtrica e por responsabilidade da companhia que violou os deveres (ROSA, 2010).

Resta evidente que se trata de demandas extremamente massificadas, com o potencial de ser necessrio indenizar todos os investidores, pois mesmo os que investiram em outras companhias o fizeram por acreditar ser esse o melhor investimento e, se a companhia que deveria ter revelado uma informao o tivesse feito, tal investidor poderia ter preferido esse investimento. Assim, est-se diante de vtimas impossveis de serem definidas.

Todavia, o procedimento-modelo, adotado na Alemanha no setor de mercado de capitais, representa apenas uma ilustrao de como lidar com as demandas repetitivas.

O modelo alemo foi declaradamente adotado pelo nosso incidente de resoluo de demandas repetitivas que tambm adota um sistema no-representativo para julgamento de tais demandas.

H outros pases, como os de common law (especialmente a Inglaterra, EUA e Canad) que possuem um sistema de litigncia em massa. Nos Estados Unidos tem-se, ao menos em nvel federal, um sistema uniforme de class actions, enquanto no Canad tem-se uma legislao diferente para cada provncia, algumas adotando aes similares s class actions.

J na Inglaterra, apesar de no haver uma ao coletiva, h um incidente, uma ordem, que determina o processamento de demandas de grupo.

Assim, na Inglaterra e Pas de Gales, que adotam um nico ordenamento jurdico consuetudinrio, foi criado um instituto denominado de Group Litigation Order (ou simplesmente GLO), que uma determinao judicial associada a case management (administrao de processos) para lidar com a multiplicidade de demandas sobre as mesmas questes de fato ou de direito.

Insta esclarecer que, por motivos editorias, no ser possvel discorrer com a mincia merecida os principais sistemas jurdicos aliengenas que realizam um nico julgamento para causas repetidas.

Mas, com tal exposio, percebeu-se que o incidente de resoluo de demandas repetitivas teve sua criao apartada da noo de ao coletiva, tal como concebida no Brasil.

Desse modo, ao invs de se buscar uma adaptao do procedimento da ao civil pblica (sistema de representatividade, ou substituio processual), partiu-se para o objetivo de se reunir exclusivamente o julgamento das aes, mas mantendo-as de modo individual.

Logo, no se coletivizou o processo, mas se manteve a natureza individual das aes, permanecendo intocvel o direito de acesso ao Judicirio.

IV INCIDENTE DE RESOLUO DE DEMANDAS REPETITIVAS: OS RISCOS DE UMA

PADRONIZAO DECISRIA O incidente de resoluo de demandas repetitivas desperta a observao de que mais uma

vez se valorizam os precedentes judiciais, que, na sistemtica processual, esto inseridos numa das transformaes mais amplas por que esto passando tanto os sistema jurdicos do common law como os sistemas do civil law.

O tema incita a necessidade de garantia da igualdade na medida em que se deve buscar o estabelecimento de uniformidade nas decises, posto que o fato de haver divergncia sobre um mesmo tema viola a garantia constitucional de tratamento isonmico. Porm, h muito, a igualdade deixou de ter apenas um contedo negativo (isonomia), como o era nos sculos XVIII e

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XIX e passou a incorporar tambm uma dimenso positiva (direito diferena) (THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010).

Assim, preserva-se a igualdade quando, diante de situaes idnticas, h decises idnticas.

Entretanto, viola-se o mesmo princpio quando, em hipteses de casos semelhantes, aplica-se, uma tese anteriormente definida sem consideraes quanto s questes prprias do caso a ser decidido e o paradigma, havendo, ai tambm, uma violao igualdade, no seu sentido positivo, ou seja, como direito constitucional diferena e singularidade.

Sob tal tica no mais possvel simplificar a questo almejando to s resolver o problema da eficincia quantitativa, tendo como pressuposto uma interpretao desatualizada do que representa a atual concepo de igualdade. Mesmo porque isonomia e diferena seriam co-originados na formao da igualdade (THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010).

A tradio dos precedentes dos pases do common law pode, assim, ser bem aproveitada para este debate em relao igualdade, para se evitar a antiga crtica realizada de que ela poder ser vista como uma frmula da perpetuao do erro (WHITTAKER, 2008 in THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010).

Nesse sentido, mencione-se que na tradio inglesa:

[...] o ponto de partida do Common Law significa que a natureza do material sobre o que se constroem muitas decises judiciais inglesas difere radicalmente daqueles sistemas jurdicos cuja base legislativa. Com efeito, o lugar de incio no se acha num nico texto qualquer que seja sua extenso ou impreciso mas sim em diversos textos, isto , na reconstruo de decises que abarcam um perodo que com freqncia [sic] remonta dois sculos passados e s vezes perodos maiores. Assim mesmo, a classe do texto de uma sentena inglesa se distingue fundamentalmente de todo texto legislativo, sendo aquele por regular de modo discursivo ou argumentativo, no qual o juzo ou os juzes sopesam as consideraes em disputa nos casos prvios para alcanar sua deciso. Inclusive, se um juiz busca expor o Direito em um ou vrias proposies, essas palavras, por si ss, carecem de toda fora, salvo (inter alia) em seu respectivo contexto jurdico e ftico. Esto reafirma a idia [sic] de que as resolues anteriores no so simples toques num quadro pontual mais amplo (apesar de que um jurista ingls sempre deve retroceder para apreciar uma rea do Direito), porque os textos das sentenas almejam por si mesmos sua relao com o que ocorreu antes e, em algumas oportunidades, o que pode acontecer posteriormente. Certamente, muito mais decises recentes (discursos) dos membros da Cmara dos Lordes buscam delinear o modelo das proposies jurdicas que respeita o tipo de assunto submetido ao seu conhecimento, conferindo sentido diversas decises anteriores. (WHITTAKER, 2008, p. 44 in THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010).

Assim, percebe-se que nem em pases em que tradicional o uso de precedentes pode

haver sua utilizao automtica sem a reconstruo do histrico de aplicao decisria e sem se discutir sua adaptabilidade, mesmo que se busque tal fim com base na lgica da aplicabilidade da igualdade (THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010).

A defesa dessa pseudo-igualdade para aumentar a eficincia, fomentar uma previsibilidade pelo engessamento dos posicionamentos (em funo do modo superficial que o sistema brasileiro impe a aplicao do direito aos juzes), favorecer uma concepo hierrquica (e no funcional da diviso das competncias do Poder Judicirio com ruptura da independncia interna) e desestimular o acesso justia (que fruto de uma luta histrica e se que tornou um problema funcional, pela ausncia de uma efetiva reforma do judicirio e de um aparato adequado), deve ser tematizada com muita cautela (THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010).

ANA SURANY MARTINS COSTA

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Nesse passo, no possvel mais refletir somente nas consequncias (demandas em profuso), eis que, do ponto de vista institucional, o sistema jurdico funcionaria bem melhor se impedssemos as causas delas (no cumprimento de direitos fundamentais sociais etc.) (THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010).

Dessarte, uma das questes mais tormentosas a tendncia tcnica de criao de mecanismos de padronizao decisria para a resoluo quantitativa das demandas seriais (THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010).

Tcnicas de julgamento liminar ( 1 do art. 518 e art. 285-A, do vigente CPC e 307 do PL n 8.010), smulas, repercusso geral, recursos especiais repetitivos e o projetado incidente de resoluo de demandas repetitivas, demonstram que se almeja, mediante um pressuposto exegeta, padronizar comportamentos mediante decises padro que no conseguiro e no conseguem (como os grandes Cdigos do sculo XIX no conseguiram) fechar o mundo nos textos (antes os Cdigos, hoje as decises padro) (THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010).

Ressalte-se que no se pretende negar o fenmeno da convergncia de sistemas (common law e civil law), mas entend-lo, adapt-lo e aplic-lo de modo eficiente e legtimo (efetivo) em nosso Pas, com o olhar acurado em nossas especificidades e, inclusive, aprendendo com os erros e acertos trazidos por nossa experincia e pela de outros pases (THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010).

A questo se torna mais grave em face da ausncia de percepo da amlgama entre sistemas (ou sua percepo equivocada) que tipicamente eram de civil law ou de common law (THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010).

Existem inmeros estudos nos ltimos anos que mostram essa tendncia de juno das tradies j no sculo XX: na experincia continental europeia tornou-se evidente a concesso de maior espao ao direito jurisprudencial e, em sentido inverso, uma desordem legislativa que oferece formas legais s regras do common law clssico (THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010).

E tal tendncia nos sensibilizou, pois temos presenciado o reforo da importncia dos julgamentos dos Tribunais, especialmente superiores, na fundamentao das decises proferidas.

Todavia, tal fenmeno de um common law brasileira se d sem a preocupao cientfica de consolidao de uma teoria dos precedentes para nosso Pas. Isso porque, no Brasil, a referncia s smulas e mesmo a processos anteriormente julgados se d de forma desconectada com as questes, debates e teses que lhes deram origem.

Desse modo, ao se invocar certa smula, a mesma autnoma frente discusso subjacente diferentemente do que ocorre com os precedentes dos pases de stare decisis.

Costumeiramente, no direito comparado se problematiza a questo do modo como os Tribunais superiores se valem dos precedentes (RE, 1994 in THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010).

A primeira questo que, mesmo havendo precedente, a atividade judicial ordinria de soluo de um caso no se realiza apenas pela repetio dos casos anteriores, pois o precedente um principium, um ponto de partida que contribuir para a deciso.

E nem todos os precedentes tm a mesma fora. E entre eles h os vinculativos e os meramente persuasivos: o que diferencia uns de outros a praxis argumentativa nos tribunais.

Alm disso, no interior de um precedente ainda se diferencia entre a parte de fundamentao do precedente (princpio) e o simples dictum (sem fora vinculante) (THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010).

Disso, percebe-se com nitidez que um sistema fundado no stare decisis no est preso leituras exegticas dos precedentes, sendo a relao dinmica, de construo do direito e no esttica de quem toma os precedentes como um dado do passado a que se deva repetir de forma mecnica. (THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010).

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interessante observar que h duas tcnicas que nos interessam em particular. Uma delas o mtodo de superao dos precedentes (overruling): os demandantes podem

postular, junto Corte que emitiu o precedente (ou esta pode faz-lo, de ofcio), a abolio/releitura do antigo precedente, mostrando a alterao nas hipteses fticas/jurdicas que lhes deram origem.

A outra o distinguishing, uma forma de se fugir ao rigor dos precedentes, pode-se mostrar que o caso possui particularidades que o diferenciam, isto , para alm das similaridades, advoga-se para que o Tribunal julgue o caso em razo de novas questes jurdicas (ou de particularidades fticas) no pensadas/discutidas no precedente) (GARCIA, 1996 in THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010).

Tanto uma como a outra tcnica podem ser plenamente utilizadas no Brasil como forma de se contornar as violaes constitucionais na aplicao radical das Smulas (e da repercusso geral das questes constitucional e federal).

Todavia, o problema se torna mais grave na aplicao de casos anteriormente julgados, uma vez que no se faz uma reconstruo discursiva de um caso do passado para sua aplicao no caso presente a ser julgado (THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010).

Os Tribunais, ao julgarem um novo caso, devem respeitar a histria institucional da aplicao daquele instituto (tese ou caso) como um romance em cadeia, mas permitindo rupturas devidamente fundamentadas e consonante a sua concepo de integridade (THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010).

Contudo, em face da pressuposio brasileira de que os Ministros (e juzes) devem possuir liberdade decisria, cria-se um quadro de anarquia interpretativa, na qual nem mesmo se consegue respeitar a histria institucional da soluo de um caso dentro de um mesmo tribunal.

Assim, cada juiz e rgo do Tribunal julgam a partir de um marco zero interpretativo, sem respeito integridade e ao passado de anlise daquele caso, permitindo a gerao de tantos entendimentos quantos sejam os juzes (THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010).

No Brasil, a utilizao do aludido marco zero se apresenta, inclusive, quando so utilizadas smulas e casos passados, isto , a mera referncia a teses colhidas daqueles no garante maior integridade (THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010).

E uma das utilizaes mais preocupantes desse fenmeno a fundamentao de decises com base em princpios (como, por exemplo, dignidade humana), clusulas gerais (tal como a boa-f objetiva) e conceitos indeterminados (como o fundado receio de dano irreparvel), nos quais cada juiz promove uma integrao anrquica dos seus contedos, mesmo sem respeito ao contraditrio (THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010).

lgico que esse quadro pode ser visto como exagerado; no entanto, ele tenta promover um alerta e uma provocao aos pesquisadores e operadores em geral dos riscos de uma padronizao decisria sem uma teoria consistente de como se articularem os precedentes em nosso Pas.

No est a afirmar que h malefcios com a aproximao com o direito anglo-saxnico e com a jurisprudncia sumulada, pois tal proximidade inevitvel e tem suas indiscutveis vantagens (agilizao e economia processuais). Todavia:

O que no se pode aceitar a via da padronizao da tutela jurisdicional pura e simples. Se os enunciados da lei no conseguem aplicao automtica e indiscutvel em todos os casos prticos submetidos deciso judicial, por que isto aconteceria com os enunciados jurisprudenciais sumulados pelos tribunais superiores? Acaso os juzes teriam alcanado o milagre que os legisladores confessadamente se revelaram impotentes de conseguir?

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bvio que a simples literalidade de regras hipotticas e generalizantes, sejam elas primrias como as do legislador ou derivadas como as dos tribunais, jamais ser suficiente para proporcionar aos litigantes a justa composio dos conflitos prometida pelo Estado Democrtico de Direito (THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010, p. 27)

Assim, mais importante do que padronizar os julgamentos , conforme Aristteles, dar a

cada um o seu, ou como Chiovenda, dar ao jurisdicionado tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tenha direito de conseguir, pois:

No pela padronizao fria e estril dos julgamentos que a tanto se chegar. Muito mais importante ser, nesse rumo, a sentena bem e racionalmente fundamentada, luz das peculiaridades do caso concreto, em contraditrio, ainda quando se esteja a aplicar enunciados sumulares de precedentes judiciais (THEODORO JNIOR; NUNES; BAHIA, 2010, p. 27).

Ademais, no se pode prever com segurana as consequncias do uso futuro do incidente

de demandas repetitivas, posto que hoje muito escasso o nmero de pesquisas empricas em tal sentido no direito processual brasileiro.

Logo, a par de tais colocaes que se afirma que devemos estabelecer uma sistemtica dos precedentes a partir de uma teoria da deciso judicial por ns elaborada e assentada em nossa cultura jurdica, para que, desta forma, o sistema de precedentes funcione adequadamente no Brasil.

V CRTICAS PONTUAIS AO INCIDENTE DE RESOLUO DE DEMANDAS SERIADAS

No se nega que o incidente de resoluo de demandas repetitivas possa ser um

instrumento positivo, desde que possibilite o pleno exerccio do contraditrio no processo piloto por todos aqueles que podero sofrer prejuzos na sua esfera jurdica pela futura deciso paradigmtica.

A colocao acima ganha reforo na medida em que se recorda que a molecularizao das demandas se encaixa nos fins da terceira onda renovatria, capitaneada por CAPPELLETTI e GARTH, segundo a qual preciso se conceber mecanismos processuais que permitam o efetivo acesso justia. Nesse sentido, o tratamento jurdico-coletivo de demandas individuais repetidas que ir efetivar o acesso de tais litigantes atomizados Justia.

Contudo, h alguns aspectos pontuais que merecem reflexo, tal como, por exemplo, a previso de um banco de dados alimentado pelos Tribunais e administrado pelo Conselho Nacional de Justia, conforme o art. 931, do CPC.

Sobre isso resta saber se esse registro ser efetivo e bem gerido, sob pena de se ter a multiplicao de um mesmo incidente acaso o cadastro no seja atualizado devidamente.

Outro ponto que merece ateno que o incidente no tem cabimento para questes de fato, mas apenas de direito.

Ora, possvel a existncia de centenas ou at mesmo milhares de aes com a mesma tese jurdica, mas dependentes de provas distintas e no notrias. Em tais casos, resta certo que a utilidade do incidente pode ficar prejudicada se for levado em conta somente a tese jurdica.

Outrossim, absurdo que no haja controle da representatividade adequada no incidente de resoluo de demandas repetitivas. No projeto do Novo Cdigo de Processo Civil, tal como proposto, os autores e rus do processo que originou o incidente (no qual fora suscitado) so as suas partes (suscitante e suscitado) e o sustentam oralmente no tribunal, interpem recursos, apresentam manifestaes etc.

No h uma participao efetiva de qualquer outra pessoa que ser afetada, apenas a oportunidade de apresentar documentos e interpor recurso especial e extraordinrio, na condio

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de terceiro interessado, bem como sustentar oralmente, em um perodo de 30 (trinta) minutos, a ser dividido entre todos os interessados no incidente.

fato que essa participao no ser efetiva e no assegurar a representatividade adequada da pessoa que suscitou o incidente (ou da parte contrria, que tambm participa).

Por essas razes, entende-se que a verdadeira utilidade do incidente de demandas repetitivas seria a escolha, pelo Tribunal, de outras pessoas que viessem nos autos do incidente solicitar a substituio do legitimado original, tornando-se legitimados extraordinrios, para dar efetividade uma adequada representao (por substituio) e legitimao coisa julgada ultra partes.

Do contrrio, quem primeiro suscitar o incidente ter prerrogativas que no assistir aos demais litigantes que ficaro sujeitos ao resultado do incidente, em detrimento de pessoas possivelmente mais capacitadas.

Se for escolhido um representante adequado, o conflito ser melhor debatido e analisado e os julgadores tero melhores subsdios para julgar, com fora de grande extenso territorial.

Desse modo, sugestiona-se que o incidente preveja um meio de controlar a representatividade adequada do sujeito que ir no incidente atuar em nome de toda uma gama de pessoas (os titulares dos direitos repetidos), cujos processos foram suspensos e sero afetados pelo resultado do incidente, por sua eficcia ultra partes.

Por ltimo, porm no menos relevante, que se traz baila aspecto relevante e ausente no procedimento do incidente do Novo Cdigo de Processo Civil, ou seja, a questo da suspenso (ou no) de aes propostas (distribudas) aps o incidente ser suscitado, posto que importante saber se as aes propostas na pendncia do incidente devem ou no ter seu seguimento suspenso.

Compreende-se que tais aes devam ficar suspensas, vez que, se havia motivos para se suspender as aes j em curso, com mais razo ainda devem ser suspensas as que so propostas, como aes individuais, depois do incidente ser suscitado e, at mesmo, ter o seu processamento determinado (verificao da admissibilidade).

Como bem se v, as crticas ao incidente de demandas repetitivas no so poucas e se prestam ao fomento da reflexo sobre o futuro de milhares de demandas, ou seja, milhares de expectativas ou pretenses, que so entregues pelos jurisdicionados ao Judicirio.

A questo sria e envolve no s o alcance da celeridade com o julgamento de vrias demandas com uma deciso una. Envolve a credibilidade do prprio Poder Judicirio em judicar em milhes de processos, de forma responsvel e principalmente qualificada, sob pena de cometer milhes de injustias.

Logo, espera-se que as crticas alhures feitas possam contribuir para o aperfeioamento do instrumento alvo do ensaio em tela.

VI CONSIDERAES FINAIS

A par das colocaes lanadas neste artigo, observou-se que o incidente de resoluo de

demandas repetitivas teve como bero o modelo alemo de resoluo de aes seriadas (musterverfahren), de onde adquiriu feio prpria, possibilitando no ser confundido com as aes coletivas brasileiras.

A anlise do incidente de resoluo de demandas repetitivas permite concluir que ele representa, na prtica, um mecanismo de padronizao decisria, a qual muito comum e afeta famlia da common law.

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fato que a valorizao da jurisprudncia tem deixado de ser exceo, tornando-se uma tendncia, que enseja uma boa compreenso da sistemtica dos precedentes judiciais pelos operadores do direito, tendo em vista suas vantagens (tais como a segurana jurdica, isonomia e o julgamento num prazo razovel, conforme prev a Constituio Federal de 1988).

O que significa um alerta indicativo da necessidade de se refletir e discutir se o transplante de um sistema que foi concebido em pases com cultura jurdica totalmente diferente da brasileira dar certo no Brasil, o que abrange a sria anlise do incidente de resoluo de demandas repetitivas tal como consta no Projeto do Novo Cdigo de Processo Civil.

fato que desejamos julgamentos em que paire o princpio da igualdade; no entanto, tal argumento no pode servir de subterfgio para que nos utilizemos da tradio dos precedentes judiciais dos pases do common law de modo frio, automtico e simples, sem nenhuma reconstruo do histrico de aplicao decisria e, principalmente, sem se discutir sua cabal adaptabilidade em nossas terras.

Nesse ponto, recorde-se que no se pode prever, com segurana, as consequncias do uso do incidente de demandas repetitivas em nosso ordenamento, vez que hoje muito escasso o nmero de pesquisas empricas em tal sentido no direito processual brasileiro.

Sob tal tica que se afirma que o incidente de resoluo de demandas repetitivas pode ser benfico ou malfico. Tudo depender da forma como for utilizado, posto que muitos dos enunciados da lei no possuem aplicao automtica em todos os casos prticos, ou seja, no ser possvel padronizar, em larga escala, os julgamentos, podendo ser de bom alvitre o prolatar de uma sentena coadunada com particular individualidade da causa.

Dessarte cr-se que devemos estabelecer uma sistemtica dos precedentes a partir de uma teoria da deciso judicial por ns elaborada e assentada em nossa cultura jurdica, para que o sistema de precedentes brasileiro funcione bem.

Acerca das crticas pontuais dirigidas ao instituto do incidente de resoluo de demandas repetitivas, conclui-se que elas refletem o despreparo do prprio Poder Judicirio, posto que o mesmo no se preparou para o numeroso aumento das demandas no processo de redemocratizao.

Nesse sentido, imagina-se que uma melhor soluo seria no apenas resolver a presente avalanche de processos seriados, tal como o fim do incidente de resoluo de demandas repetitivas, mas concomitantemente com o mesmo criar mecanismos que alterassem a cultura ou patologia social que se tornou a litigiosidade excessiva.

preciso desencorajar o indivduo/pessoa jurdica a ingressar em juzo. A ideia pode at parecer romntica, porm necessria recuperao do prestgio e

confiabilidade no Judicirio, que caminha rfo de tais predicados, sendo, em sntese modernamente, sinnimo do vocbulo morosidade.

Tendo em vista a magnitude e repercusso que o Projeto do Novo Cdigo de Processo Civil tem desencadeado no se pode deixar de ponderar que somente a legislao vai mudar a cultura jurdica processual j arraigada no Brasil. No se pode transmitir sociedade a falsa impresso de que a criao de um Cdigo processual novo acabe com a demorada durao das lides.

A questo delicada e envolve diversos aspectos, tais como: a falta de investimento de recursos oramentrios para o aparelhamento da Justia; falta de informatizao completa dos rgos jurisdicionais e administrativos do Poder Judicirio; falta de capacitao, motivao e remunerao dos funcionrios da Justia; quantidade relativamente baixa de magistrados; ausncia de capacitao especfica dos nossos magistrados para administrar cartrios e secretarias e falta de padronizao da rotina administrativo-cartorria.

Tais problemas de natureza administrativa esto longe de ter um fim apenas e to somente com alteraes da disciplina processual por uma lei como obra meramente normativa, posto que:

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A remodelao legislativa , enfim, a contribuio tcnica que os juristas podem emprestar luta pela melhoria da tutela jurisdicional. Sua eficcia , entretanto, pequena diante da dimenso da crise e dos gigantescos problemas pelos quais passam os servios pblicos jurisdicionais. (THEODORO JNIOR; p. 05, 2010)

Desse modo, devemos contribuir ao mximo, atravs de discusses e envio de sugestes,

para a reforma processual civil, confiante de que, no futuro, ela seja um incio de modificao, no s jurdica, mas tambm administrativa e poltica.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ROSA, Renato Xavier da Silveira. Incidente de resoluo de demandas repetitivas: Artigos 895 a

906 do Projeto de Cdigo de Processo Civil, PLS n 166/2010. Monografia. Universidade de So Paulo. Faculdade de Direito. Largo So Francisco. So Paulo Brasil. Julho, 2010.

THEODORO JNIOR, Humberto. Estaria o Brasil a exigir um novo Cdigo de Processo Civil? Curso de atualizao Novo CPC: Mudanas e permanncias. Apostila. Belo

Horizonte, 2010. __________________, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Breves consideraes da

politizao do judicirio e do panorama de aplicao no direito brasileiro: Anlise da convergncia entre o civil Law e o common Law e dos problemas da padronizao decisria. Curso de atualizao Novo CPC: Mudanas e permanncias. Apostila. Belo Horizonte, 2010.

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APONTAMENTOS CRTICOS MANUTENO DO RECURSO DE EMBARGOS DE DECLARAO FRENTE TCNICA RECURSAL E AO DIREITO FUNDAMENTAL S DECISES

RACIONALMENTE FUNDAMENTADAS

Diogo Henrique Dias da Silva1 Guilherme Csar Pinheiro2

RESUMO

Trata-se de um artigo cientfico realizado para contribuir com o debate a respeito do Projeto de Lei n 8.046/2010 sobre a Reforma do Cdigo de Processo Civil brasileiro. Pretende-se analisar especialmente o recurso de embargos de declarao e sua constitucionalidade no contexto do Estado Democrtico de Direito. Para isso, faz-se necessria uma introduo Teoria Geral dos Recursos e ideia de erro in procedendo e erro in iudicando. Em seguida, disserta-se sobre os embargos de declarao, buscando demonstrar a relao entre as hipteses de cabimento deste recurso e o chamado erro in procedendo, causa de nulidade de uma deciso judicial. Ademais, ser analisada a Teoria do Procedimento como Contraditrio para apresentar um conceito de ato decisrio adequado ao denominado Estado Democrtico de Direito. O objetivo fazer uma correlao entre o princpio do contraditrio, a garantia da no surpresa e o direito fundamental fundamentao das decises. Aps, em concluso, ficar demonstrado que o recurso de embargos de declarao deve ser extinto por ser interposto contra decises nulas, que no podem ser somente esclarecidas ou integradas, conforme prev a legislao sobre tal recurso. PALAVRAS-CHAVE: Embargos de Declarao; Processo Constitucional; Fundamentao das Decises Judiciais.

ABSTRACT

The present article intends to be a contribution on the discussion regarding Law Project number 8.046/2010, concerning the reform of the Brazilian Civil Procedure Code. Its goal is to analyze the use of motions for more definite statement (a form of appeal on the Brazilian legal procedure) and its constitutionality in the context of the Democratic Rule of Law State. In order to do this, it is necessary to draw an introduction on the general theory of appeals and the ideas of error in procedendo and error in iudicando. Following this section, we will analyze the institute of motions for more definite statements more specifically by connecting the situations in which this form of appeal occurs and the so-called error in procedendo, which is a cause for invalidation

1 Ps-graduando em Direito Processual Civil pelo CEAJUFE. Graduado em Direito pela Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais. Advogado. 2 Mestrando em Direito Processual Programa de Ps-Graduao em Direito da Faculdade Mineira de Direito da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais. Graduado em Direito pela Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais. Advogado.

APONTAMENTOS CRTICOS MANUTENO DO RECURSO DE EMBARGOS DE DECLARAO FRENTE TCNICA RECURSAL E AO DIREITO FUNDAMENTAL S DECISES RACIONALMENTE FUNDAMENTADAS

Instituto de Hermenutica Jurdica; Machado, Felipe D.A; Barros, Flaviane de M.(org). Anais do 4 Congresso Constituio e Processo: uma leitura hermenutica da (re)construo dos cdigos. Belo Horizonte : Initia Via, 2012. 978-85-64912-07-6

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of a judicial decision. In addition, we will examine the theory of procedure as contradictory to present a concept of decision that might be consonant with the premises of the Democratic Rule of Law State. The aim is to make a connection between the contradictory principle, the guarantee not to surpris and the fundamental right to the justification of the decisions. Finally, it will be shown that the aforementioned motions should be extinguished, since they would be filed against void decisions, which in essence would suffice of clarifications in light of their invalidity. KEYWORDS: Motions for more definite statements; Constitutional Process; Reason for Decisions

I INTRODUO

Desde a dcada de 1990, a legislao brasileira tem tido como um dos objetivos principais alteraes parciais das leis processuais. Narra Brtas C. Dias que o Cdigo de Processo Civil vigente sofreu cerca de 460 modificaes legislativas, por meio de 46 leis (BRTAS C. DIAS, 2009, p. 460).

No diferente com o Cdigo de Processo Penal, vez que se pretende alter-lo, parcial ou totalmente, desde 1963, quando Hlio Tornaghi elaborou um anteprojeto que nem chegou a ser encaminhado ao Congresso Nacional. Mas, j se encontram em vigncia, desde agosto de 2008, as leis de nmeros 11.689, que alterou a sistemtica do procedimento de competncia do Tribunal do Jri; 11.690, que diz respeito gesto de provas no processo penal; e 11.719, que alterou dispositivos referentes suspenso do processo, ao procedimento, a emendatio libeli e mutatio libeli; por ltimo, 12.403/2011 que dispe sobre as prises e medidas cautelares (BARROS, 2008, p. 1-3) e (BARROS; MACHADO, 2011, p. 1-9).

Essas alteraes pontuais e parciais, seja no processo civil ou no processo penal, trouxeram um problema, haja vista que as legislaes processuais se tornaram desconexas e sem coeso interna, o que dificulta a compreenso pelos prprios operadores do direito, potencializando a complexidade processual (BARROS; NUNES, 2010, p. 17).

Com efeito, o enfoque legiferante reformista deslocou-se das alteraes parciais para as reformas globais com a apresentao dos Projetos de Lei do Senado Federal n 156/2009, referente reforma do Processo Penal, e n 166/2010 atinente ao novo Cdigo de Processo Civil, convertido em Projeto de Lei n 8.046/2010 da Cmara dos Deputados. Nessa perspectiva, o objeto de discusso tambm h de sofrer mudana. Agora, preciso analisar quais os fundamentos tericos das reformas, arguindo-se a sua adequao com a Constituio Federal, que introduziu a proposta do Estado Democrtico de Direito.

O debate realmente necessrio para que a reestruturao da legislao seja realizada da melhor forma possvel, partindo, portanto, de uma participao democrtica.

Tendo em vista o contedo normativo do artigo 93, IX da Constituio vigente e as proposies cientficas desenvolvidas a partir dele, o presente artigo, oferecendo uma contribuio a este debate doutrinrio e legislativo, pretende discorrer a respeito dos Embargos de Declarao, especificamente quanto a sua desnecessidade e inadequao.

A inteno , pois, apresentar um ponto de vista que possa ser inserido na legislao processual brasileira de forma que seja adequado ao Estado Democrtico de Direito e pragmaticamente possvel, ou seja, que tenha eficcia.

Para tanto, inicia-se este trabalho com apontamentos introdutrios no tocante ao estudo do sistema recursal vigente, apresentando aspectos conceituais e legislativos dos recursos processuais brasileiros, a fim de tornar a anlise crtica mais inteligvel.

DIOGO HENRIQUE DIAS DA SILVA E GUILHERME CSAR PINHEIRO

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Em seguida, adentra-se no tema acerca dos pressupostos de cabimento dos Embargos de Declarao e sua relao, ou melhor, identidade, com os chamados error in procedendo. Pretende-se, nesse ponto, expor, de forma comparativa, quais as hipteses de cabimento dos Embargos de Declarao no Projeto de lei 8.046/2010 para, depois, demonstrar a semelhana entre tais situaes e o chamado error in procedendo.

Aps, para embasar a crtica manuteno dos Embargos de Declarao no projeto de lei j citado, discorrer-se- acerca da temtica da fundamentao das decises e sua correlao com o princpio do contraditrio.

Feitas todas essas consideraes, objetiva-se, ao final, apresentar como proposta de mudana no novo Cdigo de Processo Civil a extino dos embargos de declarao em razo de as hipteses de cabimento serem causas de anulao do ato decisrio (monocrtico ou colegiado) por violao do direito fundamental dos cidados a uma deciso devidamente fundamentada, no podendo, portanto, tal manifestao judicial ser to somente integrada ou aclarada aps a manifestao do referido recurso. II NOES INTRODUTRIAS AO ESTUDO DOS RECURSOS: conceito, objetivos e vcios da deciso.

O bloco compacto e aglutinante de direitos e garantias constitucionais expressos na Constituio brasileira em vigor (mais especificamente aqueles albergados nas normas dos artigos artigo 5 caput e incisos II, XXXIV, XXXV, XXXVII, LIII, LIV, LV e LXXVII; do artigo 93, incisos IX e X; e dos artigos 133 e 134), formatador do devido processo constitucional, traz, dentre outras, a noo de duplo grau de jurisdio conexa ao direito ao recurso que, por sua vez, coextenso da ampla defesa (BRTAS C. DIAS, 2010, p. 123-126).

Nesse contexto, frisa-se, duplo grau de jurisdio significa oferecer ao povo oportunidade de conhecimento e deciso de suas causas por, pelo menos, dois rgos judicantes hierrquicos, sucessivos e autnomos. (LEAL, 2009, p, 232). No basta, ento, a lei infraconstitucional estabelecer a possibilidade de reexame da deciso. Logo, por recurso deve-se entender o meio legal de impugnabilidade dos provimentos (decises) jurisdicionais e administrativos elencados pela legislao como suscetveis de revisibilidade em outra instncia diversa daquela em que foram exarados (LEAL, 2009, p. 233).

Classicamente, por influncia de Carnelutti, muito embora o instituto do recurso seja caracterizado como um direito constitucional (NUNES, 2006), alguns doutrinadores brasileiros consideram-no um remdio processual. Cita-se, a propsito, Nelson Nery Junior, autor de obra especializada sobre o assunto em questo:

Num sentido amplo, recurso o remdio processual que a lei coloca disposio das partes, do Ministrio Pblico ou de um terceiro, a fim de que a deciso judicial possa ser submetida a novo julgamento, por rgo de jurisdio hierarquicamente superior, em regra, aquele que a proferiu. (NERY JUNIOR, 2004, p. 204)

O que se percebe que os recursos destinam-se correo de erros contidos nas decises

judiciais. Estas so impugnadas com pretenso de serem reformadas e seus erros eliminados. Esses so os objetivos dos recursos, seja qual for a sua espcie.

Destaca-se, a respeito, que as decises judiciais podem conter dois tipos de erros: error in procedendo e error in iudicando. Este referente a equvocos na aplicao das normas de direito material compreendendo-as como as que se destinam a qualificar atos como lcitos ou ilcitos a partir do contedo das matrias expressas nas situaes jurdicas (posies subjetivas), que determinam direitos ou deveres (GONALVES, 1992, p. 49). Nesses casos, os erros relacionam-se

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com o mrito da causa e, havendo xito no recurso, isto , o seu provimento, o rgo que o reexaminou proferir nova deciso, substituindo a recorrida. Quanto aos error in procedendo, diz respeito errnea aplicao das normas de direito processual compreendendo-as como aquelas que disciplinam (regem e balizam) a atividade jurisdicional e a metodologia terica e o elemento tcnico, regente dessa funo estatal, ou seja, o processo (GONALVES, 1992, p. 49-50). Quando o recurso versar sobre este tipo de erro e for acolhido, rgo reexaminador, ao reconhecer a nulidade da deciso, declara sua invalidade e determina seja proferida outra pelo mesmo rgo judicante prolator da decisum anulada.

Posto isso, fica uma pergunta: tendo em vista o contedo normativo do duplo grau de jurisdio, bem como o fato de que os pressupostos de cabimento dos embargos de declarao referem-se a hipteses de error in procedendo (omisso, contradio ou obscuridade), coerente a sistemtica recursal criar a possibilidade de se convalidar a deciso (pelo mesmo rgo judicante que a prolatou), eivada de tais vcios, aclarando-a ou integrando-a?

Para se chegar a uma resposta mais consistente, assim como para deixar mais clara a compreenso que aqui se pretende expor, necessrio que se faa uma exposio acerca dos pressupostos de cabimentos do recurso de embargos de declarao. III SOBRE OS EMBARGOS DE DECLARAO E SUA CORRELAO COM O ERROR IN PROCEDENDO

Conforme j introduzido, os embargos de declarao so espcie de recurso utilizado para a impugnao de deciso judicial que contenha omisso, contradio ou obscuridade.

O Projeto de Lei n 8.046/2010, que pretende institui um novo Cdigo de Processo Civil brasileiro, no seu artigo 948, inciso IV3, cria a possibilidade de interposio do recurso de embargos de declarao. Mas a norma do artigo 976, incisos I, II e III4 que estabelece os pressupostos de cabimento desse recurso, os j conhecidos contradio, omisso e obscuridade. Determina-se tambm que o mesmo rgo judicante que proferiu a deciso, julgue-a novamente, a fim de eliminar qualquer dos referidos erros.

No que se refere omisso, esta ocorre quando o rgo prolator do ato decisrio no se manifesta a respeito de algum pedido, ponto ou questo trazida aos autos por uma das partes, infringindo a norma procedimental do artigo 121 5 do Projeto de Lei 8.046/2010, alm de inobservar o princpio da congruncia ou adstrio entre o pedido e a deciso. Este princpio

3 Art. 948. So cabveis os seguintes recursos: (...) IV - embargos de declarao. 4 Art. 976. Cabem embargos de declarao contra qualquer deciso monocrtica ou colegiada para: I esclarecer obscuridade ou eliminar contradio; II suprir omisso de ponto sobre o qual devia pronunciar-se o juiz ou tribunal; III corrigir erro material. 5 Art. 121. O juiz decidir a lide nos limites propostos pelas partes, sendo-lhe vedado conhecer de questes no suscitadas a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte.

DIOGO HENRIQUE DIAS DA SILVA E GUILHERME CSAR PINHEIRO

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determina que o juiz se manifeste sobre tudo o que foi pedido e somente acerca do que foi pleiteado, o que tem estrita relao com o princpio do contraditrio como influncia e no surpresa, conforme se demonstrar mais adiante.

J a obscuridade consiste na existncia de uma deciso cuja interpretao torna-se prejudicada pelo fato de sua redao ser de difcil compreenso, tornando a sua execuo ou eventual impugnao praticamente impossvel.

No caso da contradio, o que ocorre uma discordncia lgica entre a fundamentao e o dispositivo, acarretando um vcio que necessita de esclarecimento.

Ressalta-se que, no tocante existncia de obscuridade ou contradio, h violao da norma processual expressa no artigo 93, inciso IX da Constituio brasileira. Esta norma determina que todos os julgamentos sero pblicos e suas decises motivadas. A motivao destas pressupe, antes de tudo, clareza e preciso, ou seja, a anttese de obscuridade ou contradio, conforme leciona Humberto Theodoro Jnior (2009, p. 257-258):

Clareza e preciso apresentam-se como requisitos da sentena no que diz respeito exigncia constitucional de motivao dos julgados. Quem milita no foro conhece bem a dificuldade de recorrer de um decisrio carente de fundamentao lgico-jurdica. como esgrimir com fantasma, pois no se sabe onde encontrar o cerne do julgado, onde se localiza a ratio da deliberao, para atac-la e tentar reverter seu desfecho. Enfim, o direito de ampla defesa que no se consegue exercitar a contento. Sentena no fundamentada, ou inadequadamente motivada, provoca grave cerceamento do direito de defesa assegurado constitucionalmente. (THEODORO JNIOR, 2009, p. 257-258)

Assim, percebe-se que a figura dos embargos de declarao est diretamente

correlacionada s situaes de error in procedendo, sendo que as sentenas ou decises monocrticas impugnveis tecnicamente pelo recurso de embargos de declarao so hipteses claras de descumprimento de normas processuais.

Trata-se, na verdade, de vcios processuais que ensejam o reconhecimento da nulidade da deciso judicial e sua consequente invalidade, em razo de no ter sido apresentada uma soluo para todos os pedidos, pontos e questes discutidos atravs do contraditrio ou, ento, porque o ato decisrio, na medida em que foi obscuro ou contraditrio, no existiu, na realidade, por impossibilitar a interpretao e a sua eficcia.

Constata-se, portanto, que h uma violao ao direito fundamental deciso racionalmente fundamentada nas hipteses de haver contradio, omisso ou obscuridade no acrdo ou qualquer deciso monocrtica. A situao torna-se mais problemtica quando o texto constitucional preceitua serem suscetveis de nulidade os atos decisrios proferidos sem fundamentao ou com fundamentao inadequada ao Estado Democrtico de Direito.

Diante de tudo isso, o que se questiona como pode ser possvel, tcnica e teoricamente, mediante a oposio de embargos de declarao, ocorrer a validao, sem novo julgamento por rgo judicante diverso do prolator da deciso, por meio de complementao ou integrao de um ato jurdico-processual que h de ser declarado invlido. Como se recorre de uma deciso que precisa, antes de tudo, ser declarada invlida, tendo em vista seus vcios? Ao existir um error in procedendo, como o caso das hipteses de cabimento do recurso de embargos de declarao, no seria a deciso judicial suscetvel de nulidade por completo? E, assim sendo, no haveria uma impossibilidade de ser integrada, ou, vulgarmente falando, remendada?

nesse ponto que se pretende chegar. Para isso, necessrio trazer discusso a temtica da construo participada das decises

jurisdicionais, o que suscita incurses introdutrias teoria fazzalariana do processo, a fim de se

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compreender o contraditrio como influncia e no surpresa. Logo, torna-se mais fcil conceber a fundamentao da deciso como sua condio de possibilidade (STRECK, 2009, p. 17-18).

IV- A FUNDAMENTAO RACIONAL E LEGTIMA DA DECISO JUDICIAL COMO SUA CONDIO DE POSSIBILIDADE: consideraes a partir da teoria fazzlariana

Inicialmente preciso lembrar que Elio Fazzalari enunciou uma teoria do processo, cuja base terica de seu ensinamento reside na distino lgico-inclusiva 6 entre processo e procedimento. Este, que o gnero, consiste em uma srie de normas, atos e posies subjetivas, cada uma das quais reguladora de uma determinada conduta, qualificada como obrigao (dever) ou direito (faculdade ou permisso), conforme a posio subjetiva do sujeito processual em relao norma, que pressupe o cumprimento de uma atividade regulada por outra norma desta srie; tudo isso destinado formao do provimento ou de mero ato do Estado (FAZZALARI, 2006, p. 113-114).

A posio subjetiva a relao entre a norma e o sujeito participante do procedimento, relao essa que define se a conduta do sujeito processual uma faculdade ou uma obrigao, consoante leitura de Aroldo Plnio Gonalves (1992, p, 102-103). Nessa perspectiva, o processo visto como espcie do gnero procedimento, podendo ser dele distinguido por um elemento especfico: o contraditrio, que compreendido como a possibilidade dos destinatrios do provimento participarem de modo influente na formao deste.

O processo , ento, um procedimento em que os destinatrios do provimento participam de forma especial, em contraditrio, na preparao do ato do Estado, de carter imperativo, que produzir efeitos nas esferas jurdicas de seus destinatrios (aqueles que participaram em contraditrio de sua formao). , portanto, a partir desse conceito de procedimento, que se extrai um novo conceito de processo. Fazzalari incluiu, pois, o processo na classe do procedimento, caracterizando-o pelo elemento do contraditrio, entendido como a possibilidade dos destinatrios do provimento de participarem de modo a influenciar na construo deste, seja ele final ou interlocutrio. Em sntese, nos dizeres do prprio autor:

Existe, em resumo, o processo, ento, quando, em uma ou mais fases do iter de formao de um ato contemplada a participao no s e obviamente - do seu autor, mas tambm dos destinatrios dos seus efeitos, em contraditrio, de modo que eles possam desenvolver atividades que o autor do provimento deve determinar, e cujos resultados ele pode desatender, mas no ignorar. (FAZZALARI, 2006, p. 120).7

6 Segundo Aroldo Plnio Gonalves (1992, p. 64-65), Fazzalari empreende tal distino em contraposio s lies da teoria do processo como relao jurdica, vez que esta adotou o critrio teleolgico para distinguir processo do procedimento, atribuindo finalidades a aquele, a saber: meio de realizao (atuao) da jurisdio, meio de exerccio do poder do Estado, o que no ocorre com o procedimento, que compreendido, na referido teoria, como mera formalidade, sucesso de atos, prescindindo de qualquer finalidade, podendo ser tanto uma tcnica, quanto como atos de uma tcnica, ou tambm ordenao de uma tcnica. Cattoni de Oliveira (2001, p. 191-192) anota que esse critrio a base para se compreender o processo como instrumento da jurisdio. Igualmente interessante a apropriao da distino entre processo e procedimento pelo critrio lgico-inclusivo feita por Del Negri (2011, p. 89-156) para explicar como se estrutura no direito brasileiro as noes de processo e procedimento legislativo. 7 Ver tambm: GONALVES, Aroldo Plnio. Tcnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 68.

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V-se, assim, que possvel afirmar que h procedimento sem contraditrio, mas o mesmo no pode ser dito em relao ao processo. Exemplificando: no procedimento com o intuito de se conseguir a expedio de Carteira Nacional Habilitao no necessria a presena do contraditrio para sua validade. J quando se trata de processo, o contraditrio inerente a este, pois seu referente lgico-jurdico que possibilita a dialogicidade entre os interlocutores (partes) na preparao do provimento no iter procedimental em que apresentam pretenso ou resistncia, consoante destaca Rosemiro Pereira Leal (2009, p. 97).

Essas ideias, alm de esclarecerem a distino do procedimento em face do processo, possibilitam compreender este por um vis democrtico-participativo, ao contrrio das teorias antecedentes8, sobretudo a teoria do processo como relao jurdica entre juiz, autor e ru9. Dessa forma, mister compreender bem a acepo moderna de contraditrio sob a tica do processo constitucional.

Nesse eixo terico enunciativo da diferena entre processo e procedimento pelo critrio lgico-inclusivo, o contraditrio no mais pode ser compreendido apenas como bilateralidade de audincia, assentado no binmio cincia e participao, cuja origem a expresso latina audita altera pars, nem como o dizer e o contradizer acerca dos pontos controvertidos da demanda, o que pode ser melhor denominado de pseudocontraditrio. O moderno contedo de contraditrio, bem verdade, determina que se d cincia parte, permitindo, assim, sua participao no procedimento. Mas no se limita a isso: compreende-se tambm a garantia de se influenciar ativamente e de forma efetiva os magistrados na construo das suas decises (sentena, acrdo ou interlocutrias). Assim so as lies de Aroldo Plnio Gonalves (1992, p. 127):

O contraditrio no o dizer e o contradizer sobre matria controvertida, no a discusso que se trava no processo sobre a relao de direto material, no a polmica que desenvolve em torno dos interesses divergentes sobre o contedo do ato final. Essa a sua matria, o seu contedo possvel. O contraditrio a igualdade de oportunidade no processo, a igualdade de igual tratamento, que se funda na liderdade de todos perante.

8 Sobre as Teorias do Processo na Histria do Direito, Cf. LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 8. ed. So Paulo: Forense, 2009, p.77-92, oportunidade em que o autor faz descries-crticas s teorias do processo como contrato de Pothier (1800); do processo como quase-contrato de Savigny e Gunyvau (1850); do processo como relao jurdica de Blow (1868); do processo como situao jurdica de Goldschmindt (1925); do processo como instituio de Guasp (1940); do processo como procedimento em c