II Con. Sociedade de Consumo e Psicopatologias Contemporaneas Tl

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SOCIEDADE DE CONSUMO E PSICOPATOLOGIAS CONTEMPORÂNEAS: uma reflexão sobre a formação de ideais numa cultura narcísica Maria de Fátima Vieira Severiano [1] Introdução A crescente adesão em massa dos homens à lógica do capital assumiu nas últimas décadas uma dimensão, mais intensamente, “global”. As inovações tecnológicas e os novos recursos da mídia cumprem um papel capital nas atuais exigências de integração universal, não apenas como infra-estrutura material, mas como principal promotora e divulgadora de bens simbólicos. Os produtos são fabricados globalmente não apenas para serem consumidos por seu “valor de uso” ou funcionalidade, mas traduzem, principalmente, um novo “estilo de vida”, no qual os indivíduos passam a se reconhecer, a se “diferenciar”, enfim, a constituir suas identidades e ideais a partir das imagens do consumo. Na qualidade de instância simbólica, a publicidade, mobiliza intensamente o desejo do consumidor atomizado, conferindo-lhe uma certa “estabilidade social” (ORTIZ, 1994, p. 120) e referência de identidade, veiculando códigos de consumo que não são neutros: são códigos morais e éticos próprios de uma “Cultura do Narcisismo”, os quais, fundamentalmente, perpetuam o sistema que a instituiu. A “Cultura do Narcisismo” (LASCH, 1983) refere-se à forma que as culturas capitalistas modernas assumiram, principalmente a partir das últimas duas décadas. Consiste basicamente numa preocupação acentuada, proveniente de todos os campos, com a realização individual privada em estreita ligação com as opções do consumidor, em detrimento dos ideais coletivos. Ou seja, ocorre um desinvestimento do mundo e um retorno ao próprio eu, onde a beleza, a juventude, a felicidade, a

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  • SOCIEDADE DE CONSUMO E PSICOPATOLOGIAS

    CONTEMPORNEAS: uma reflexo sobre a formao de ideais numa

    cultura narcsica

    Maria de Ftima Vieira Severiano[1]

    Introduo

    A crescente adeso em massa dos homens lgica do capital assumiu nas

    ltimas dcadas uma dimenso, mais intensamente, global. As inovaes

    tecnolgicas e os novos recursos da mdia cumprem um papel capital nas atuais

    exigncias de integrao universal, no apenas como infra-estrutura material, mas

    como principal promotora e divulgadora de bens simblicos. Os produtos so

    fabricados globalmente no apenas para serem consumidos por seu valor de uso ou

    funcionalidade, mas traduzem, principalmente, um novo estilo de vida, no qual os

    indivduos passam a se reconhecer, a se diferenciar, enfim, a constituir suas

    identidades e ideais a partir das imagens do consumo.

    Na qualidade de instncia simblica, a publicidade, mobiliza intensamente o

    desejo do consumidor atomizado, conferindo-lhe uma certa estabilidade social

    (ORTIZ, 1994, p. 120) e referncia de identidade, veiculando cdigos de consumo

    que no so neutros: so cdigos morais e ticos prprios de uma Cultura do

    Narcisismo, os quais, fundamentalmente, perpetuam o sistema que a instituiu.

    A Cultura do Narcisismo (LASCH, 1983) refere-se forma que as culturas

    capitalistas modernas assumiram, principalmente a partir das ltimas duas dcadas.

    Consiste basicamente numa preocupao acentuada, proveniente de todos os

    campos, com a realizao individual privada em estreita ligao com as opes do

    consumidor, em detrimento dos ideais coletivos. Ou seja, ocorre um desinvestimento

    do mundo e um retorno ao prprio eu, onde a beleza, a juventude, a felicidade, a

  • segurana, o sucesso pessoal etc. so cada vez mais reivindicados pela indstria

    cultural como um bem a ser adquirido atravs do consumo. Uma enorme gama de

    novos produtos e servios passa a ser ofertada pela publicidade a um pblico cada

    vez mais segmentado, passando isso a significar: liberdade, pluralidade e

    democracia. Aqui, o objeto de consumo em sua forma fetichizada constitui-se

    numa forma de pseudo-resgate do narcisismo nocauteado.

    Nosso posicionamento a esse respeito, concordando com Lasch (1987), o de

    que, diante da perda de referenciais ticos e religiosos, da descrena nos ideais

    poltico-coletivos e do descompromisso social generalizado, os indivduos passaram

    a substituir seus ideais culturais por ideais muito particularistas, encontrando na

    ideologia publicitria do prazer e do consumo uma instncia privilegiada para um

    pseudo-resgate de seu narcisismo nocauteado[2]

    . No acreditamos, entretanto, que os

    processos de individuao e de emancipao do indivduo possam ser fundados

    graas s benesses do mercado; o que parece ocorrer, como nos alerta Lasch, uma

    confuso entre Democracia e o exerccio das preferncias do consumidor (Ib.

    p. 43).

    As transformaes histricas, sociais, econmicas e tecnolgicas

    presenciadas, principalmente, nestas ltimas duas dcadas, parecem ter

    produzido alteraes significativas nas formas de constituio da

    subjetividade humana, principalmente no que se refere a confiana dos

    homens em projetos coletivos. O colapso na f dos grandes sistemas

    filosficos explicativos como promotores de uma melhor compreenso do

    mundo moderno, e at da prpria cincia como verdade inabalvel e geradora

    de progresso, somado ao desmascaramento da mentira pblica dos

    nossos sistemas polticos cada vez mais desacreditados, o desencanto em

    relao s burocracias governamentais e empresariais, o desmantelamento do

    estado do bem-estar social, a marginalizao social de numerosos

    segmentos da populao mundial, a coexistncia de altos ndices de

  • desemprego e inflao, o aumento da mendicncia nos grandes centros

    urbanos etc, gerou uma frustrao social generalizada frente

    inacessibilidade dos ideais propostos pela cultura, abalando assim

    profundamente a crena do homem na realizao efetiva de seus ideais.

    inevitvel constatar em nossos dias o recrudescimento das mais variadas

    formas de irracionalismos: os nacionalismos, os racismos, as guerras religiosas,

    polticas e econmicas, a proliferao de seitas fundamentalistas, o retorno do

    holismo, das prticas de ocultismo, ao lado do hiper individualismo, do consumismo,

    da globalizao e de uma exacerbada competitividade que impera, principalmente,

    nos grandes centros urbanos. Elementos estes extremamente preocupantes e, por

    vezes antagnicos entre si, porque acenam, em ltima instncia, se no para uma

    possibilidade de regresso barbrie, talvez a um estado de fragmentao e pnico,

    onde predominam o descompromisso social e a arbitrariedade sobre os mais frgeis e

    impotentes.

    Diante desse quadro e ciente de que a esfera dos ideais, ao nvel da

    economia psquica, constitui-se num dos caminhos apontados por Freud para

    o desenvolvimento do ego, nossa preocupao, neste estudo, reside em

    compreender as implicaes psicossociais desse desinvestimento nos antigos

    ideais e seus possveis redirecionamentos numa cultura narcsica, em que os

    ideais do consumo passam a assumir crescente relevncia como fonte

    privilegiada de identidade e forma de mxima realizao pessoal.

    2. A Formao dos Ideais - Perspectiva Clnica

    Segundo Freud (1976, vol. 14) a formao dos ideais constitui-se num dos

    caminhos percorridos pela libido aps a constituio do ego enquanto imagem coesa,

    em seu processo de individuao e de afastamento progressivo da posio narcsica

  • originria. O ideal relaciona-se diretamente com a auto-estima e expressa as idias

    culturais e ticas do indivduo (Ib. p.110) elaboradas inicialmente na identificao

    com os pais ou figuras substitutas e, posteriormente, pelos ideais propostos pela

    cultura. Constitui-se no herdeiro do narcisismo infantil na medida em que representa

    um modelo ideal a ser atingido pelo ego adulto em suas realizaes efetivas.

    Consideramos inicialmente necessrio proceder a uma diferenciao

    categorial entre os termos ideal de ego e ego ideal. O ego ideal , na

    concepo de Costa (1991), a imagem idealizada dos traos constitutivos da forma

    egica; o outro especular do Ego narcsico, (p.119-120). Este ego originrio,

    dotado de um pensamento onipotente e de todos os poderes soberanos investidos

    narcisicamente pelos pais, tenta preservar a imortalidade do ego e aquilo que ele

    imagina ser a sua essncia, no presente. Este ego ideal no reconhece o sujeito

    como sujeito da falta, tentando a todo custo manter ntegra a representao da

    unicidade, continuidade e ipseidade do sujeito, s aceitando um outro na medida

    em que este se apresenta como uma reedio inflacionada de um trao de sua

    forma passada ou presente, isto , um outro idntico (p. 120) logo, narcsico.

    guiado por esta imagem constitutiva do ego ideal que o sujeito, acossado

    por sentimentos de impotncia/desamparo frente realidade externa, desinveste

    sua libido dos ideais e dos objetos e aciona os mecanismos de autodefesa,

    refugiando-se no ego narcsico. Esta sada regressiva diametralmente oposta ao

    caminho percorrido pela libido em direo ao ideal de ego, o qual voltado para o

    futuro, na busca de fortes gozos, exigindo sempre o reconhecimento da alteridade

    como elemento imprescindvel para o atingimento do modelo ideal. O sujeito a se

    reconhece como sujeito da falta e, por conseguinte, dependente do desejo do outro.

    A busca do atingimento do ideal do ego implica, enfim, o

    desenvolvimento, crescimento e transformao do ego narcsico; implica tambm a

    renncia e adiamento do prazer imediato em funo de um modelo ideal, ele

    prprio libidinizado, mas que aponta para projetos futuros e requer a insero do

    sujeito no real. Por outro lado, o recurso ao ego ideal consiste numa sada que

  • envolve uma renncia do enfrentamento da realidade e um fascnio por um objeto-

    engodo que encerra o sujeito num pseudo-estado a-conflitivo mediante o processo

    de idealizao.

    Na idealizao, quem participa da economia libidinal em jogo o ego

    ideal, onde a escolha de objeto se d sem considerao pela realidade e o objeto no

    avaliado pelo sujeito em suas justas propores; pelo contrrio, a escolha leva

    apenas em considerao as exigncias de um ego narcsico, elevando acriticamente o

    objeto perfeio, num processo de substituio dos ideais (de ego) que no

    conseguiram ser realizados na experincia concreta do sujeito.

    Considerando que o conflito psquico no se inscreve, unicamente, na esfera

    intrapsquica, independente das injunes externas, mas pelo contrrio, a prpria

    constituio do psiquismo humano s possvel pela mediao de um outro sujeito e

    sua insero na cultura, a partir dos quais o homem extrai seus modelos ideais e

    normas a serem seguidas no decorrer de sua vida, avaliamos ser de extrema

    importncia tambm compreender a psicopatologia do narcisismo, ao nvel da

    cultura. Nosso questionamento se expressa nos seguintes termos: visto que os ideais

    extraem seu contedo psquico, em ltima instncia, da cultura, que configuraes

    scio-culturais seriam mais potencializadoras dos distrbios narcsicos?

    A partir do referencial terico psicanaltico aqui apresentado, acreditamos ser

    pertinente uma anlise do fenmeno do narcisismo na perspectiva da cultura. A

    transposio dos conceitos da clnica para a vida cotidiana e para as formaes

    coletivas tem por modelo o prprio Freud. Resta-nos, seguindo seu exemplo,

    compreender alguns problemas da cultura contempornea, luz dos seus conceitos,

    assim como de algumas inovaes tericas propostas por autores que tematizaram a

    cultura e suas relaes com o narcisismo.

    3. A formao dos ideais numa cultura narcsica

  • Freud, em Psicologa de las Masas y analisis del Yo (1981, Vol. 3), afirma

    que somente atravs da identificao mtua entre os membros da massa e do

    controle da expanso narcsica pode haver possibilidade de coeso social. Esta tese

    parece ter sido confirmada, para infortnio da humanidade, em Auschwitz:

    A incapacidade de identificao foi, sem dvida alguma, a principal

    condio psicolgica para que algo como Auschwitz pudesse acontecer no

    meio de uma coletividade relativamente civilizada e incua

    (ADORNO,1986, p. 43).

    A anlise que Freud empreende, nesta obra, acerca da natureza dos vnculos

    que unem os membros de uma massa, nos de fundamental importncia para a

    compreenso da formao dos ideais numa cultura narcsica. No referido ensaio

    Freud sustenta a tese de que a nica fora capaz de manter a coeso entre os

    membros de uma massa Eros. Somente a natureza libidinosa desses vnculos

    justificaria a renncia que se observa nos indivduos ao que lhes pessoal, em prol

    de um consenso grupal. Tais laos libidinais possuem um duplo vnculo:

    primeiramente os vnculos que unem os membros da massa ao chefe, cujo amor se

    supe distribudo igualmente a todos da coletividade e, em segundo lugar, os

    vnculos amorosos entre os prprios membros da massa, os quais permitem a

    identificao desses membros entre si. Entretanto, e isto de grande relevncia para

    os nossos propsitos, a iluso de ser igualmente amado pelo chefe que funda a

    comunidade; ou seja, os membros de uma coletividade se tornam camaradas entre si,

    semelhantes, por imaginarem-se amados por um lder de forma igualmente justa.

    O desvanecimento dessa iluso ou a perda do lder, em qualquer sentido,

    induz ao fenmeno denominado por Freud de pnico. A essncia do pnico reside,

    justamente, na desproporcionalidade desse medo, o qual adquire dimenses

    gigantescas, em relao ao perigo que ameaa. A angstia coletiva, resultante

    desse fenmeno, explica-se em razo ruptura dos laos afetivos que garantiam a

    coeso da massa. Ou seja, o relaxamento da estrutura libidinosa, na massa, que

  • produz o pnico, provocando: la disgregacin de la multitud, teniendo por

    consecuencia, la cesacin de todas las consideraciones que antes se guardaban

    reciprocamente los miembros de la misma (p. 2581).

    Estamos a diante da elevao do narcisismo, seja atravs do incremento do

    medo, o qual leva cada um a no pensar ms que en si mismo (como ocorre no caso

    do exrcito, exemplificado por Freud), seja por meio do aparecimento de impulsos

    egostas y hostiles (no caso da desagregao religiosa). Em ambos os casos eram os

    laos amorosos que ligavam os membros da massa ao chefe que funcionavam como

    suporte para o enfrentamento do perigo (exrcito) ou para a conteno da

    manifestao de impulsos hostis (religio). Desaparecidos esses laos, desaparecem

    tambm os laos que uniam os indivduos entre si, ... y la masa se pulveriza como

    un frasquito bolos al que se le rompe la punta (p. 2581).

    Aqui se observa, muito claramente, a importncia dos vnculos libidinais para a

    limitao do narcisismo e estabelecimento de compromissos sociais numa coletividade.

    Diante do exposto, nos interessa enfatizar que essa anlise elaborada por

    Freud, no se restringe s massas que ostentam um chefe concreto e

    pessoalizado. Freud explicita muito claramente a possibilidade deste chefe ser

    substitudo por ...una idea o abstraccin (las masas religiosas, obedientes a una

    cabeza invisible, constituirn el tipo de transicin), y tambin si una tendencia o un

    deseo susceptibles de ser compartidos por un gran nmero de personas no podran

    constituir asimismo tal sustitucin (p. 2582). Essa questo formulada por Freud,

    sua poca, nos abre caminho para, em nossa contemporaneidade, acenar

    positivamente a esta questo. Dada a impessoalidade de que se travestiu o poder no

    mundo atual, acreditamos que a figura do chefe encontra-se, de fato, em grande

    medida, dissolvida e consubstanciada em tendncias e desejos compartilhados

    por grande nmero dos membros de nossa sociedade.

    Essas tendncias ns as identificamos com os ideais do consumo.

    Entretanto, diferentemente da figura do lder, tais ideais no funcionam de modo a

    provocar um declnio no narcisismo de seus membros, tampouco maior

  • comprometimento social. Pelo contrrio, o que se observa que ela promotora do

    narcisismo e fonte de competitividade, mostrando-se incapaz de prover um projeto

    identificador que vincule os membros da sociedade entre si. Diferentemente das

    instituies militares ou religiosas, exemplificadas por Freud que, de alguma forma,

    davam a iluso de amar e proteger igualmente os seus membros, fornecendo-lhes

    prescries e normas de conduta para os integrantes destes grupos, a ideologia do

    consumo, apesar de paparicar seus membros, prometendo-lhes a realizao plena

    de seus ideais, os interpela isoladamente. Tal peculiaridade de extrema

    importncia: a ideologia do consumo, expressa na publicidade, no exige

    compromisso social, no h feitos a realizar, em comum, por seus membros, sua

    nica exigncia a adeso. E , justamente, essa adeso direta aos seus cdigos e o

    investimento em desejos estritamente pessoais e imediatos, prescindindo assim de

    qualquer forma de interao humana[3]

    , o que funda a natureza fragmentria e

    narcsica do consumo. Esse lder no aponta para nenhum projeto futuro, ou seja,

    para nenhum ideal a ser realizado fora do sujeito (ideal de ego), mas unicamente

    para solues regressivas, de naturezas defensivas e orientadas basicamente pelos

    mecanismos de idealizao, confundindo, assim, a realidade com as aspiraes

    megalomanacas do ego ideal.

    Em termos frankfurtianos, podemos melhor dizer que a ocorre uma falsa

    projeo, visto que, nesse processo, no est implicada uma diferenciao entre

    sujeito e objeto, mas uma eliminao das fronteiras entre o eu e o outro, no qual um

    dos termos dissolvido. Crochk (1997) nos explica:

    A projeo e o seu controle permitem a diferenciao entre sujeito e

    objeto, entre o eu e o outro, e quando um desses elementos eliminado se

    d a falsa projeo, que se expressa ou atravs da anulao do objeto,

    quando o sujeito projeta sem limites, ou atravs da anulao do sujeito,

    quando, negando-se a projeo, passa-se a render tributos realidade tal

    como esta se apresenta, dispensando a necessidade de refleti -la (p. 70).

  • No caso dos ideais de consumo, observamos que estes estimulam, de forma

    exacerbada, uma falsa projeo dos desejos humanos em sempre novos

    objetos/signos de consumo, os quais passam a constituir-se no mais almejado ideal

    de felicidade e completude humana, respondendo assim angstia primitiva diante

    da prpria impotncia. Neste caso, ambas tendncias esto presentes: primeiramente

    no que diz respeito anulao do objeto, esta ocorre no momento em que o objeto

    desconsiderado em sua materialidade histrica e funcionalidade constitutiva, para

    significar um mero suporte para a projeo infinita de seus ideais. Isto significa

    que o homem contemporneo, na realidade, no sai de si na direo do objeto, mas

    est na realidade buscando reencontrar a si prprio atravs das miragens de ego ideal

    que a imagem do objeto encarna. Da mesma forma, esse sujeito, tambm, se anula,

    uma vez que aceita, sem refletir, a realidade da sociedade de consumo e adere aos

    seus cdigos de forma fetichizada.

    A explicao da natureza defensiva da ideologia do consumo tambm nos foi

    explicitada por Lasch (1987) e Costa (1986 e 1991), os quais, baseados no prprio

    Freud, nos alertaram para o fato dessa ideologia j se constituir em uma formao

    secundria, fruto do que denominam a cultura do narcisismo. Vejamos mais

    detidamente em que consistem suas anlises.

    Para Lasch (1987), como referido, a cultura do narcisismo definida como

    uma cultura de sobrevivncia de um mnimo eu que diante das previses

    catastrficas anunciadas neste final do sculo, ou seja, diante da iminncia da guerra

    nuclear, do sentimento de impotncia ante uma burocracia desumanizante e

    impessoal, da descrena nos ideais polticos-coletivos, do descrdito nas autoridades

    constitudas, como elemento estabilizador do caos social, do generalizado

    descompromisso social e tico e da decadncia dos prprios vnculos afetivos

    significativos, os indivduos passam a buscar solues regressivas nas quais se

    esvanecem as distines entre iluso e realidade, fortalecidas pelas tecnologias do

    self e pela ideologia publicitria do prazer e do consumo. A necessidade de iluses

    diante de um mundo que perdeu suas memrias coletivas e suas utopias se

  • intensifica cada vez mais, passando a volio individual a tornar-se todo-poderosa,

    aos moldes da onipotncia narcsica.

    Costa (1991), tal como Lasch, tambm define essa cultura em termos de uma

    cultura de sobrevivncia. Para ele, vivemos numa cultura, cujas condies

    materiais e simblicas vigentes tendem a exacerbar, num grau insuportvel, os

    sentimentos de insegurana e desamparo dos indivduos, para alm do estrutural,

    maximizando assim os efeitos da Anank e, deste modo, forando os indivduos a

    ativar suas defesas narcsicas como forma de sobrevivncia. Enfatizando o aspecto

    relacional, Costa (1991) refere-se a essa cultura como aquela, onde a experincia

    de impotncia/desamparo elevada a um ponto tal que tornou conflitante e

    extremamente difcil a prtica da solidariedade social (p. 165).

    Devemos lembrar, que, para Freud (1976b, Vol. 21), em o Mal Estar da

    Civilizao, a condio estrutural de ingresso do homem na civilizao um

    sentimento de impotncia/desamparo, advindo de trs fontes de sofrimento: o

    poder superior da natureza, a fragilidade de nossos prprios corpos e a

    inadequao das regras que procuram ajustar os relacionamentos mtuos dos seres

    humanos na famlia, no Estado e na sociedade (p. 105). Esses elementos da

    cultura, sob a forma de Anank, impem severas restries ao narcisismo humano,

    na medida em que confrontam o ego com foras poderosas, frente s quais ele tem

    que reconhecer sua relativa pequenez.

    Esse sentimento de impotncia, experimentado pelo ego, frente a alguns

    elementos da cultura tambm analisado por Costa (1986) o qual enfatiza que no

    a cultura em si que patolgica, mas sim o tipo de estratgia empregado pelos

    indivduos, dessa cultura, para atingir o tipo psicolgico ideal por ela

    prescrito. Nesse caso, a patologia somente acontece se o tipo psicolgico

    ideal proposto for consideradoinacessvel, ou seja, a patologia aqui condicionada

    ao grau de impossibilidade de alcance dos ideais propostos pela cultura.

    Isso significa que, em condies de estabilidade social, a socializao prov

    aos indivduos, de uma maneira geral, habilidades e condies mnimas para atingir

  • os modelos ideais prescritos pela sociedade. Entretanto, se as condies materiais e

    simblicas existentes numa dada sociedade no habilitam seus membros a enfrentar

    as tenses causadas pela exigncia da performance psicolgica ideal, passa a

    ocorrer... um descompasso, uma dessimetria entre as exigncias do Tipo

    Psicolgico Ideal e os meios adequados ao cumprimento destas

    exigncias (COSTA, 1986, p. 149). Quando ocorrem frustraes constantes,

    derivadas de um ideal sempre inatingvel, resulta que o indivduo pressionado a

    ativar suas defesas narcsicas como forma de sobrevivncia de um ego

    constantemente confrontado com a impotncia (Cf.COSTA, 1986 e 1991).

    As estratgias empregadas referem-se sadas regressivas, atravs das

    quais o indivduo tenta obturar a prpria falta aderindo s promessas de completude

    ofertadas pelos signos de poder, sensualidade, segurana, etc. agregados ao objeto

    de consumo. Aqui o ideal do ego substitudo pelo objeto-signo, que,

    irrealisticamente supervalorizado, atrai sobre si toda a libido do sujeito, deixando-

    lhe um ego sacrificado e empobrecido (DESSUANT, p.36).

    Tais estratgias so eficientemente utilizadas pela indstria cultural, e pela

    publicidade, em especfico, como forma de mitigar o sentimento de impotncia

    diante, seja da decrepitude do corpo, seja do fracasso no atingimento dos ideais de

    eu. Nesses casos, o processo de idealizao se faz imediatamente presente,

    passando a economia libidinal a ser gerida pelas aspiraes megalomanacas de um

    ego ideal que desconhece a falta e v na aquisio de determinados bens ou

    mercadorias-fetiches a completude imaginria de seu narcisismo infantil. Ou seja, o

    receptor/consumidor das mensagens publicitrias passa a consumir no o objeto em

    sua funcionalidade ou valor-de-uso isto se torna irrelevante mas todo um

    universo imaginrio circundante da mercadoria, ou seja, status, poder, diferenciao

    social, segurana, beleza e felicidade, numa busca de negao da condio humana

    estrutural de impotncia/desamparo diante da natureza, do prprio corpo e das

    relaes sociais (FREUD, 1976b).

  • Seno vejamos: mitigar a impotncia diante da inevitabilidade da

    decrepitude do corpo , em nossa cultura hedonista, um dos principais alvos da

    indstria publicitria, com toda uma parafernlia de instrumentos que vo desde

    os cosmticos, produtos dietticos, equipamentos de modelagem do corpo at as

    complexas cirurgias, tudo se volta para encobrir a fragilidade dos nossos

    corpos. O domnio da natureza projeto primeiro da modernidade desde o seu

    advento se evidencia ainda mais em nossa contemporaneidade ante o

    vertiginoso desenvolvimento das novas tecnologias, em especial, a

    automobilstica e a de aparelhos eletrnicos e de informtica, os quais, so

    veiculados enquanto prteses do corpo, capazes de conferir ao homem

    poderes antes inimaginveis, seja o de vencer o tempo, o espao ou quaisquer

    outros obstculos que se interponha em seu caminho. E, por fim, aquela que

    pareceu a Freud a maior fonte de sofrimento - o outro, as relaes so

    insistentemente apresentadas como facilitadas ou resolvidas, desde que

    mediatizadas pelos mais diversos produtos/servios de consumo: dos

    alimentcios s marcas de roupas, do atendimento personalisado aos cartes

    de crditos sem limites, tudo se organiza e se oferece para liquidar com a

    impotncia estrutural em relao ao outro. A promessa aqui implcita, dentre

    outras, a de conferir singularizao e pertinncia aos seus usurios.

    Atravs da apropriao dos signos do consumo, idealmente se conseguiria a

    proeza de ao mesmo tempo diferenciar-se dos outros, livrando-se assim

    da dissoluo no homogneo e de incluir-se entre os seus, livrando-se,

    desta feita, do fantasma da marginalizao e da solido. Tudo isto pelo o preo

    mdico de adeso aos cdigos do consumo.

    Ante a imaginria onipotncia restauradora do objeto ocorre, pois, uma

    tentativa de assimilao narcsica do objeto por parte do homem, o qual, numa

    espcie de tentativa de auto-obturao permanente da prpria falta, antropomorfiza o

  • objeto, ou melhor, por ele devorado, diluindo, assim, as fronteiras entre ambos, o

    qual passa a ser considerado como uma extenso de si prprio (seu ideal de eu).

    Neste sentido, ocorre uma substituio dos ideais de ego por imagens de

    ego-ideais representadas pelas promessas de beleza, sade, poder, prazer e

    felicidade, encarnadas nos modelos veiculados pelosmedia, os quais, conclamam a

    todos, a tudo fazer, a tudo comprar, a tudo poder..., alimentando, desta forma, a

    onipotncia dissociada da ao efetiva. A perseguio frentica a esses ideais

    onipotentes, que ignora os prprios limites e no encontra barreiras na frustrao,

    leva o indivduo a uma busca insacivel e neurtica daqueles atributos prometidos,

    tornando-o um eterno devedor de um ideal que no dele, mas que o faz sentir como

    o nico culpado pelo fracasso.

    Entretanto, na realidade, a funo dos ideais veiculados pela publicidade no

    a de satisfao real dos desejos suscitados, mas o de tornar este estado de busca

    narcsica um estado permanente, uma vez que justamente isto o combustvel do

    consumo. Apesar da frustrao fazer-se sempre inevitvel, esta no leva reflexo

    crtica entre a realidade e as possibilidades de onipotncia propostas. H um fluxo

    incessante de sempre novos modelos-ideais para que a idealizao seja

    permanentemente alimentada e o sujeito seja engolfado ou, como nos disse Freud,

    devorado pelos objetos.

    O resultado de tudo isso a instalao de novos mecanismos de

    sobrevivncia - defesas narcsicas geradores de ansiedade, depresso e fadigas

    crnicas; frieza afetiva e descompromisso emocional; agresso cega e

    indistintamente dirigida a tudo e a todos (p. 184), distrbios prprios da patologia

    do Narcisismo, conforme tambm a concepo de Lasch.

    Da concluirmos que as defesas narcsicas erigidas como forma de

    sobrevivncia psquica nesse mundo tumultuado e inseguro, de rpidas

    transformaes, so cada vez mais reforadas pela indstria da publicidade

    que, ao erigir sempre novos dolos ou objetos/modelos ideais a serem

  • incorporados ou copiados pelos humanos mortais, apesar de prometerem a

    realizao desse ideal, na realidade, nada mais fazem do que gerar novas

    frustraes e sentimentos de impotncia, uma vez que o ideal neles

    projetado no jamais alcanado. Existe apenas como espectro a instigar o

    consumo incessantemente mola-mestra do capitalismo.

    Referncias Bibliogrficas

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  • SEVERIANO, M. de Ftima V. Narcisismo e Publicidade: uma anlise psicossocial

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    [1]

    Psicloga, Professora Adjunto do Departamento de Psicologia da UFC e Coordenadora do Mestrado em Psicologia.

    [2] A este respeito ver a Cultura do Narcisismo, de Lasch (1983) e A Sociedade de Consumo,

    de Baudrillard (1970). [3]

    Mesmo os agrupamentos por segmentos de estilos de vida no implicam em nenhum vnculo entre os membros, apenas os diferenciam dos demais