II Seminário Brasileiro Livro e História Editorial · Magalhães, Maria das Graças Sandi -...
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II Seminário Brasileiro Livro e História Editorial
“Indispensáveis em todos os lares!” Educação, saúde e ciência nas edições populares da primeira metade do século XX Magalhães, Maria das Graças Sandi1 UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas Rocha, Heloísa Helena Pimenta2 UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas Resumo Durante as primeiras décadas do século XX no Brasil, várias editoras empregaram o conceito de utilidade em diversas publicações destinadas às camadas populares. Identificar as representações em torno da concepção de conhecimento útil nesse período é um dos objetivos desse texto. Representações que se vinculavam ao ideário médico-higienista e à vulgarização de conhecimentos científicos, com o intuito de interferir não só no comportamento relacionado aos cuidados com o corpo, mas também no que se convencionou chamar higiene mental. Contando com um arco amplo de assuntos e organização pelos editores de séries, coleções e bibliotecas, os termos ciência, educação e cultura se revezavam em publicações de baixo custo e que definiam o público alvo com expressões como “para todos”, “leitura privada” ou “indispensáveis em todos os lares”. A análise desse material procura contribuir com os estudos que tratam da história da leitura, da produção e da circulação dos livros, enquanto uma das esferas da educação pública na primeira metade do século XX. Palavras-chave - LEITURA POPULAR; EDUCAÇÃO; HIGIENISMO
1Doutoranda em educação na UNICAMP, sob orientação da Profa. Dra. Heloísa Helena Pimenta Rocha,
professora do ensino médio na rede pública estadual de São Paulo. E-mail: sandimagalhã[email protected]. 2
Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Professora da Faculdade de Educação da Universidade
Estadual de Campinas, coordenadora do Grupo Memória, História e Educação, membro do comitê gestor do Centro de Memória da Educação. E-mail: [email protected].
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“Indispensáveis em todos os lares!” Educação, saúde e ciência nas edições populares da primeira metade do século XX Magalhães, Maria das Graças Sandi - Unicamp Rocha, Heloísa Helena Pimenta - Unicamp
Este texto é parte do desenvolvimento de projeto de doutorado que analisa as
representações da infância em publicações sobre saúde, dirigidas em especial ao público
feminino. As produções recentes no campo da história da educação, que envolvem debates
em torno da História Social e da História Cultural, permitem identificar novos objetos e
sujeitos como fontes de estudo e, além disso, têm apresentado perspectivas diferenciadas de
análise para objetos tradicionalmente estudados nesse campo. Os procedimentos de
pesquisa, ao possibilitar o cruzamento em torno do interesse editorial, do público alvo e do
pertencimento do autor a um determinado campo intelectual, produzem elementos
diferenciados de análise que remetem não só ao impresso em si, mas procuram iluminar
aspectos relativos à sua circulação e apropriação.
Identificar as representações em torno da concepção de conhecimento útil
empregada por editores brasileiros, no início do século XX, é um dos objetivos desse
trabalho. Representações vinculadas ao ideário médico-higienista e à vulgarização de
conhecimentos científicos, com o intuito de modificar o comportamento relacionado aos
cuidados com o corpo, mas também introduzir o que se convencionou chamar higiene
mental. Ao tomar como objeto e fonte de estudo dez livros publicados entre 1901 e a
década de 1950 procurou-se investigar mudanças e permanências em relação às edições
populares, em uma conjuntura de expansão do mercado editorial brasileiro.
A produção e circulação de livros destinados às escolas primárias e à leitura familiar
e doméstica ampliaram-se nesse período. Várias editoras produziram no Brasil um conjunto
de livros comum a esses dois universos, que contava com um amplo arco de assuntos,
organizado pelos editores em séries, coleções e bibliotecas. Nesses impressos os termos
ciência, educação e cultura se revezavam em publicações de baixo custo e que definiam o
público alvo com expressões como “para todos”, “leitura privada” ou “indispensáveis em
todos os lares”.
Uma discussão sobre leituras populares, como a que é proposta por essa
comunicação, implica em permitir-se correr riscos, uma vez que o adjetivo por si só tem
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sido objeto de polêmica no campo da história, pelo menos desde a década de 1960.
Segundo Jacques Le Goff,
No âmago da designação de uma obra, de um objeto, de uma literatura, de uma arte, de uma religião ou de uma cultura como “popular” há em verdade uma rejeição: o “popular” é sobretudo aquilo que não é (erudito – científico, racional –, nobre, etc.) Se existe, em diversos momentos da história, uma predileção pelo “popular”, é por reação a um julgamento qualitativo – no caso, de depreciação – emitido contra o popular que essas empresas de valorização quase sempre se desenvolveram (1998, p.VII).
O autor situa o tema, localizando-o historicamente como parte do processo de
difusão dos livros impressos, no início da Idade Moderna. Introduz, porém, uma questão
ideológica, por meio de um binômio dicotômico entre níveis de conhecimento: o prático e
útil ligado às camadas populares; o liberal - científico e literário - associado ao
conhecimento dos clássicos gregos e latinos (Burke, 2003). Para Geniève Bollème,
pesquisadora dos almanaques franceses dos séculos XVII e XVIII, o caráter popular refere-
se “a um modo de enunciar o que concerne ao povo e que é, com efeito, objeto de toda uma
política implícita nesse enunciado e que diz respeito à língua que falamos” (1988, p.1). O
interesse desse texto reside em refletir justamente sobre essa política implícita, a partir de
publicações brasileiras que foram tomadas como objeto e fontes para essa pesquisa.
Nas últimas décadas, alguns autores têm se preocupado em estudar a ampliação do
público leitor brasileiro no final do século XIX. Para Ana Luiza Martins, nesse período, o
“tripé indispensável à sustentação da grande empresa editorial se erguia. Configurava-o,
basicamente, [...] a evolução técnica do impresso, o investimento na alfabetização, os
incentivos à aquisição e/ou fabricação de papel” (2001, p.166).
A gradual consolidação de um mercado editorial, durante as primeiras décadas do
século XX, permite indagar sobre as diferentes estratégias adotadas por editores para a
disputa dos leitores que se segmentavam cada vez mais, com a intensificação do processo
de urbanização durante a Primeira República, especialmente no Sudeste. A produção
variada de revistas de diferentes estilos, em São Paulo, nesse período, foi bastante
documentada por Martins (2001), em seu estudo sobre esse tipo de impresso. Ampliando a
reflexão sobre esse processo de expansão para o universo dos livros, cabe questionar os
significados do aumento de títulos que buscavam novos leitores, acrescendo às leituras
“úteis” um novo repertório, associado aos discursos higiênicos e moralizadores, que
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predominaram na época. Indagar sobre os vestígios do impacto produzido pela divulgação
desses impressos é um desafio de investigação, que busca uma análise menos uniforme do
processo de medicalização da população brasileira.
“Vende-se tudo isso?”
Recorrer a depoimentos e à literatura tem se tornado um recurso para uma
aproximação ao que seriam formas de leitura e apropriação dos diferentes materiais
impressos que circularam no Brasil desde a Colônia. Um exemplo que trata dos leitores do
Rio de Janeiro, do começo do século XX, encontra-se na obra do jornalista Paulo Barreto,
mais conhecido como João do Rio. O trecho do livro A alma encantadora das ruas nos
revela aspectos do que seria o gosto popular:
Exatamente na esquina do teatro São Pedro, há dez anos, Arcanjo, italiano, analfabeto, vende jornais e livros. É gordo, desconfiado e pançudo. Ao parar outro dia ali, tive curiosidade de ver os volumes dessa biblioteca popular. Havia algumas patriotadas, a Questão da Bandeira, o Holocausto, a D. Carmem de B. Lopes, a Vida do Mercador e de Antônio de Pádua, o Evangelho de um Triste e os Desafogos Líricos. Estavam em exposição, cheios de pó, com as capas entornadas pelo sol. - Vende-se tudo isso? - Oh! Não. Há quase um ano que os tenho. Os outros sim: modinhas, orações, livros de sonhos, a História da princesa Magalona, o Carlos Magno, os testamentos dos bichos... Levantei as mãos para o céu, como pedindo testemunho do alto. As obras vendáveis ao povo deste começo de século eram as mesmas devoradas pelo povo dos meados do século passado! (1997, p. 136 e 137).
Também tratando do mesmo período, Luiz Edmundo acrescenta, no livro O Rio de
Janeiro do meu tempo, um apanhado das obras vendidas nas ruas da então capital federal:
Também vende, o preto, folheto de cordel: A História da princeza Magalona, o João de Calais, a Vida de S. Francisco de Assis, o Testamento do gallo, bem como as “últimas vontades” de todos os animaes e ainda aquella literatura que o Quaresma então espalha, pelas portas de engraxates e que se vende a cavallo, num barbante, ao lado do Livro de S. Cypriano e do Diccionario das flores, das fructas ou linguagem dos namorados (1938, p.134).
Podemos encontrar aqui a referência a uma das editoras que desde o final do século
XIX dominava o mercado de publicações de baixo custo. Fundada em 1879, a Livraria do
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Povo, de Pedro Quaresma, editou além da Folhinha do Povo, bastante requisitada durante
décadas, inúmeros títulos que circulavam inclusive no mercado informal das ruas do Rio de
Janeiro, de acordo com o relato de Edmundo.
A Bibliotheca da Livraria do Povo constava de obras como o Trovador de Esquina
“ou repertorio do capadocio contendo canções populares, fandangos, sambas fadinhos (sic),
desafios, cantigas que prendem as raparigas, cantatas que deleitam as mulatas, modinhas
que chocam as crioulinhas” (Conegundes, 1901). Nessa edição, a 15ª, anunciava-se
também O livro do feiticeiro e o Livro de S. Cypriano, importado de Lisboa.
Além da Livraria do Povo, outros editores, como os irmãos Laemmert,
estabelecidos no Rio de Janeiro desde 1833, disputavam os leitores brasileiros. Segundo
Arroyo, em 1906, a E. & H. Laemmert já havia editado “1440 obras de autores nacionais e
tinham traduzido cerca de 400 obras de autores franceses, ingleses, alemães e italianos”
(1990, p.21).
Em São Paulo, na década de 1920, mais de uma dezena de editores publicavam
anualmente cerca de 200 títulos, com tiragem aproximada de 1,9 milhões de exemplares, o
que indica um crescimento do mercado editorial na cidade. Um dos exemplos de uma
política comercial mais agressiva é a experiência de Monteiro Lobato como editor. Nas
cartas endereças ao escritor e amigo Godofredo Rangel, é possível identificar elementos de
uma estratégia editorial destinada a um público mais amplo: “Ponha de preferência um
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nome feminino, [...] porque, em cheirando mulher lá dentro, os leitores concupiscentes
compram por ver. Editar é fazer psicologia comercial” 3.
Histórias picarescas, previsões, astrologia e feitiços, indicações para o jogo do
bicho, canções, frases e orientações curtas para diferentes situações do cotidiano, como o
namoro, o casamento ou atividades domésticas e agrícolas, detinham a preferência popular.
Os depoimentos da época, embora ricos nos detalhes, também traziam consigo uma visão
depreciativa sobre essa preferência. As críticas à ingenuidade, a uma moral menos rígida e
à superstição presentes nas obras populares surgem nos relatos, como se pode observar no
excerto da obra de João do Rio, citada anteriormente.
Ao mesmo tempo, os detalhes de um comércio livreiro, do qual podiam participar
imigrantes analfabetos, e a menção a uma “biblioteca popular” que rejeita assuntos mais
“sérios” são indícios de que fora do ambiente mais sofisticado das livrarias e salões de
leitura, outras práticas e outros leitores se organizavam. A própria relação de “patriotadas”,
epíteto de João do Rio para obras cívicas ou mais eruditas, também suscita reflexões sobre
os conflitos em torno do que o “povo” deveria ler.
As múltiplas influências e fronteiras diluídas entre o que se convencionou chamar
cultura erudita e cultura popular foram objeto de estudo em diferentes campos e
demandariam uma discussão bastante extensa para o espaço desse texto. O que se pretende
ressaltar, entretanto, é a distinção feita pelo mercado editorial entre o que seriam
publicações populares e as diferentes obras voltadas para um público mais elitizado.
Como exemplo de uma segmentação que buscava um público com formação
acadêmica, diversas editoras organizaram, nas primeiras décadas do século XX, bibliotecas
médicas ou jurídicas, como foi o caso da Bibliotheca Médica Brasileira, da Cia. Editora
Nacional, dividida em cinco séries: Manuaes Práticos; Monographias; Compendios e
Tratados; Cursos e Lições e Cultura Médica. Sob a direção de Fernando de Azevedo, a
mesma editora, organizou a Biblioteca Pedagógica Brasileira, destinada à formação de
professores. Na década de 1940, o catálogo dessa coleção contava com 45 títulos, entre
livros de psicologia, biologia educacional, história da educação e problemas educacionais,
3 As referências foram obtidas na edição comemorativa Momentos do livro, da Editora Ática (1996, p.46 e p.67).
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de acordo com a propaganda da quarta capa do livro Educação e seus problemas (Azevedo,
1946).
No campo das edições mais baratas, a disputa editorial se acentuaria nessas décadas,
adequando-se e incorporando aos temas listados como de interesse mais amplo as novas
preocupações introduzidas pelo processo de ampliação da escolarização e atuação dos
serviços de propaganda sanitária. Numa cadeia de mútua influência, a produção de livros
populares nesse período indica, por meio de seus títulos, que o discurso médico-higienista
repercutiu para além das fronteiras acadêmicas e político-partidárias. Ao mesmo tempo,
também denota uma adequação ao interesse popular, em relação aos temas e formatos dos
impressos. Embora quase não se tenha dados sobre a circulação desses títulos, o que chama
a atenção são as diferentes estratégias para atingir camadas que se incorporavam ao
universo de leitores brasileiros.
Exemplar, nesse sentido, é a iniciativa da Livraria Francisco Alves, do Rio de
Janeiro, que, em 1912, juntamente com as Livrarias Aillaud e Bertrand de Lisboa,
apresentava a Bibliotheca da Mulher, com os seguintes volumes: Como nos devemos
alimentar; Regras e receitas de uma cozinha hygienica; O lar feliz; Os nossos filhos; A
arte da Belleza; A Arte da Saúde. Pelo exame do primeiro volume dessa coleção, pode-se
inferir que a intenção era atingir um público com um poder aquisitivo menor, uma vez que
se tratava de uma impressão sem ilustrações, em brochura, no formato 18 cm x 10 cm,
praticamente uma edição de bolso (Potocka, 1912).
Na década de 1930, a Cia. Editora Nacional de São Paulo anunciava um conjunto
de “obras sobre educação sexual, moral, physica, saúde e optimismo”4 e organizou a
Biblioteca de Medicina e Hygiene para Todos, da qual o volume um, Como desenvolver o
appetite da creança, teve sua primeira edição publicada em 1935. Em sua quarta capa
indicava como “dois livros indispensáveis em todos os lares”, O Livro das Mães 5e a
Cartilha das Mães, respectivamente de autoria dos médicos Almeida Jr. e Martinho da
Rocha. O volume brochura da primeira obra custava seis mil réis, preço que, de acordo com
Monarcha (apud Carvalho e Almeida, 2008), seria acessível a trabalhadores urbanos, como
4 Conforme consta na quarta capa de O Livro das Mamães (Almeida Jr e Mursa, 1933). Entre os livros desse catálogo, constam títulos como A cura da fealdade, de Renato Kehl; Conselhos aos nervosos e ás suas famílias, do Dr. H.Zbinden, Procreação Racional, da Dra. Maria C. Stopes, entre outros. 5 Esse livro de Almeida Jr., na segunda edição em 1933, tinha como título O livro das mamães, mas a propaganda de 1935 se refere à mesma obra como o Livro das Mães.
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era o caso de professores e normalistas, aos quais também se destinava a obra de Almeida
Jr.
A Edições Melhoramentos, de São Paulo, também na década de 1930 apresentava
aos leitores a Bibliotheca Popular de Higiene, cujo volume 17 tratava da higiene mental,
com o sugestivo título Vícios e doenças que as crianças apanham umas das outras, do
médico Sebastião Barroso. Nas décadas de 1940 e 1950, a mesma editora publicava a série
Saúde para Todos, que incluía títulos como Saúde para meu Bebê; Como devo criar o meu
filho?; Ginástica para môças e “Doutor, meu filho não come”, indicativos da disseminação
das orientações médicas, como uma fórmula publicitária importante para os editores e um
espaço de interesse intelectual e financeiro para autores que tinham atuação no campo da
literatura médica, como é o caso de Martinho da Rocha ou de Pedro de Alcântara,
professores e também tradutores.
Essa tendência foi extensiva aos editores portugueses, que também disputavam o
mercado brasileiro e, inclusive, o influenciavam. Um exemplo é o livro Tudo que o homem
casado deve saber, do médico Sykvanus Stall, publicado pela Livraria Popular de Francisco
Franco, em Lisboa, como o sétimo volume da Bibliotheca de livros úteis e scientificos. Essa
edição, sem data, trazia valores em réis brasileiros e incluía a opção de preço com a
remessa postal.
Classificar como “livros úteis e scientificos” um conjunto de obras ditas populares
indica uma política editorial que trazia, como permanência, elementos de concepções do
início da difusão da imprensa e que foram posteriormente reelaboradas pelo Iluminismo,
com a incorporação ao conceito da idéia de praticidade e de técnica (Burke, 2003) . A
análise dos exemplares mencionados nesse texto acrescenta novos elementos a esse
conjunto de idéias. Nas publicações do século XX, o conhecimento útil surge associado à
vulgarização do conceito de ciência, termo empregado cada vez com maior freqüência em
diferentes tipos de discursos no Brasil desde o final do século anterior. Sobretudo no que
concerne à educação popular, a ciência se aplicava à saúde moral e física, tanto das crianças
como dos adultos, que deveriam disciplinar suas relações familiares e de trabalho, por meio
de hábitos higiênicos. De acordo com Heloísa Rocha e José Gondra:
A doutrina da higiene, forjada nos ambientes de formação e de articulação político-científica da ordem médica, não ficou a eles circunscrita, pois a aquisição da legitimidade desejada só foi
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possível pelo emprego eficaz de estratégias de difusão de seus princípios, o que foi feito com o recurso à imprensa, folhetos, literatura, parlamento, círculos mais ou menos privados e também à escola, ao longo do século XIX e princípios do XX (2002, p.504).
Um indício desse processo de difusão pode ser encontrado na análise do índice de O
Livro do Povo publicado no Maranhão, em 1861, por Antonio Marques Rodrigues. Trata-se
de uma obra com intenção de uma dupla circulação: o ambiente familiar e as escolas
primárias. Dos dez mil exemplares, em duas edições, 5.200 foram distribuídos nas escolas.
Continha textos sobre a vida de Cristo e assuntos diversos: “páginas sobre o vigário, os
mamíferos, a estória de O Bom Homem Ricardo, as aves, o professor primário, um Hino do
Trabalho, os reptis (sic), moral prática, Evangelho dos Lavradores, máximas e sentenças,
higiene, astros, Simão de Nântua e algumas paginas de história do Brasil, com numerosas
gravuras da vida de Jesus Cristo e de animais em geral” (Oliveira apud Arroyo, 1990,
p.170). Trata-se de uma combinação entre as tradicionais predileções populares e novos
temas, entre eles a higiene, que mereceu um capítulo próprio nessa obra.
Entretanto, esses novos temas não foram introduzidos sem resistência. O
descompasso entre o “gosto popular” e o que livreiros e intelectuais - em especial
professores e médicos ligados ao sanitarismo - definiam como parâmetros para a educação
e disciplinarização da família brasileira, interferiu na elaboração e formatação desses
impressos. Embora portando “discursos civilizatórios”, a inserção de títulos chamativos, o
formato que incentiva a consulta permanente ou o esquema de cartas com perguntas e
respostas, além do recurso da imagem, apesar do barateamento das edições, são elementos
que indicam essa adaptação. Índices remissivos e inclusão de muitos subtítulos, com a
descrição dos itens tratados, possibilitavam uma leitura descontínua e garantiam a
permanência do livro no ambiente doméstico, mas também a sua adaptação ao uso escolar.
A Bibliotheca da Mulher
Um novo elemento que se acentua nesse processo é o aumento de títulos que
buscavam a leitora em especial, acrescendo aos folhetins, romances e leituras religiosas um
outro repertório, em consonância com os novos papéis que o higienismo atribuía às
mulheres. O conjunto de publicações estudadas põe em destaque esse segmento. As
orientações sobre a saúde familiar e a organização do ambiente doméstico e mesmo do
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escolar são temas recorrentes em diferentes coleções populares já citadas anteriormente.
Publicações que buscam a leitora – a noiva, a mãe de família, a professora.
Segundo Martins, “ao contrário dos segmentos de leitores que se inauguraram com a
República – do leitor de esporte ao público infantil – a mulher leitora, desde o Império, fora
presença assídua no contexto do impresso” (2001, p.371). A expansão da leitura feminina,
que no século XIX era bastante limitada e marcada por determinados gêneros literários, não
pode ser atribuída apenas à criação dos grupos escolares e das escolas normais. Como
afirma Bárbara Heller (2001, p.4):
Apesar dos baixos índices oficiais de alfabetização feminina no Brasil, a imprensa paulistana da época feita por mulheres e dirigida às mulheres é bastante fértil: além de títulos que nasceram e morreram em pouco tempo, como Álbum das Meninas (1898/1900), outros periódicos sobreviveram por bastante tempo, como a Revista Feminina (1914-1926), A Cigarra (1914-1930), entre outros. A simples variedade de títulos já é bastante sugestiva: como se pode explicar a proliferação de periódicos femininos se praticamente não havia público leitor feminino? Mais ainda: como se pode explicar a longevidade de certos títulos, como A cigarra, se a alfabetização feminina aumentava tão lentamente?
A autora discute as diferentes formas de aprendizado da leitura, que não
necessariamente passariam pela educação formal, nem constavam dos registros oficiais
sobre os índices de alfabetização. Embora a publicação não permita inferir dados sobre a
circulação ou mesmo sobre a apropriação dos livros aqui referidos, pode-se, no mesmo
caminho de Heller, refletir sobre o significado das várias edições dessas obras e da
proliferação de títulos similares em catálogos de editoras brasileiras e portuguesas durante
as décadas estudadas.
Um olhar mais detido sobre um exemplo desse tipo de impresso pode acrescentar
alguns elementos a essa interpretação. O número um da Coleção Scientifica publicada pela
Empresa Literária Universal de Lisboa chama a atenção pela capa, que reproduzimos a
seguir:
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Sem data, provavelmente da década de 1920, em sua sétima edição, circulou
também no Brasil6. A indicação “leitura scientifica privada”, presente na capa,
aparentemente serve como atenuante para o desconforto que as imagens poderiam produzir
frente à moral da época, reforçado pelo prefácio, que informava aos leitores que o livro
prestava “um relevante serviço a toda a mulher e em especial á casada”. O caráter instrutivo
da obra é ressaltado pelos editores: “Nesta obra verdadeiramente útil e instrutiva,
encontrará, pois a mulher a explicação de todos os mistérios desde a fecundação até a
explicação do dia em que deve ter a sua délivrance” (Schatf, [192?], p.6). Com muitas
ilustrações em preto e branco, vinculadas ao texto, dividido em subtítulos curtos, o livro
alterna conceitos científicos com exemplos do cotidiano e orientações higiênicas.
Ao apresentar os “órgãos da fecundação”, lançava mão de termos próprios da
anatomia e da biologia, reproduzindo imagens dos órgãos femininos, do óvulo e do embrião
acrescidas de explicações como “a cabeça do espermatozóide que penetrou no ovulo, forma
o núcleo espermatico, emquanto (sic) que a cauda é absorvida” (p.21). No tratamento das
recomendações para o período de gestação, são reproduzidos exemplos como o da jovem de
6 O exemplar foi adquirido em um sebo de Pelotas, no Rio Grande do Sul, indício de sua presença no Brasil, embora não haja outros dados mais significativos.
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20 anos que, por trabalhar em um escritório, escondia a gravidez com o auxílio do
espartilho; ou da esposa de um trabalhador rural, em sua quinta gestação, cuja “vida anti-
higienica” comprometia o desenvolvimento da criança.
Para além das intenções de autores e editores, que podem ser identificadas nas
estratégias de organização do livro, cabe uma reflexão circunscrita às apropriações desse
tipo de material impresso, pelas leitoras da época, que a ele tiveram acesso. Reconhecer o
funcionamento do próprio corpo, desmistificar os atos de geração e nascimento, são
conhecimentos que poderiam produzir outras reflexões e apropriações, além daquelas que o
ideário higiênico e eugênico propunha.
Da mesma maneira, o contato com tabelas, gráficos e outros métodos próprios dos
procedimentos científicos, presentes nos guias maternais e de saúde, não pode ser encarado
apenas como medida de controle médico sobre as ações do cotidiano. Que apropriações
desse novo repertório de conhecimentos os leitores teriam feito? Repensar a produção e
difusão do ideário higienista como uma via de mão dupla é um desafio para os que se
propõem a analisar esse tipo de publicação.
Considerações Finais
Representações múltiplas sobre educação e leitura para setores amplos da população
circularam por esse texto, acompanhando os títulos e as imagens dos livros produzidos
entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX, os quais foram conformando
essa reflexão. Mais do que oposição, parece ser a adaptação o que predominou nesse
universo dos impressos populares, durante esse período. Uma adaptação que permitiu a
convivência entre modinhas, feitiços e hábitos higiênicos, apesar dos narizes torcidos de
alguns sanitaristas e positivistas.
Concebidos como uma das esferas da educação popular durante esse período, a
análise desse tipo de material pode contribuir para os estudos que tratam da história da
leitura, da produção e da circulação dos livros em sua relação com a história da educação
no Brasil.
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