ILHA DE LêUCADE, DEZ ANOS DEPOIS - rocco.com.br · Marcus lançou um olhar questionador para o...
Transcript of ILHA DE LêUCADE, DEZ ANOS DEPOIS - rocco.com.br · Marcus lançou um olhar questionador para o...
18
1
ILHA DE LêUCADE, DEZ ANOS DEPOIS
No início daquela manhã de verão, quando o velho
Aristides entrou correndo no pátio, Marcus sabia que have-
ria encrenca. Estava brincando com Cerberus, o cão de
caça de pelo áspero, tentando treiná-lo a obedecer aos seus
comandos de sentar e deitar. Mas Cerberus apenas inclina-
va a cabeça de lado com a língua para fora e olhava o jovem
dono com um olhar vazio. Assim que viu Aristides, correu
para o velho e sacudiu o rabo.
O pastor de cabras perdera o fôlego, então se apoiou
no cajado e engoliu em seco, a fim de recuperar o ar. Em
seguida, disse:
Gladiador-Luta_Pela_Liberdade.indd 18 05/09/13 16:50
19
– Três homens. – Ele apontou com um dedo trêmu-
lo para a trilha que subia o morro em direção a Nidri. –
Grandes... soldados, imagino.
O pai de Marcus encontrava-se sentado a uma mesa
comprida e desgastada pelo clima à sombra de uma caniça-
da entrelaçada por videiras tão grossas quanto seu pulso.
Titus Cornelius, que até aquele momento mantinha-se
ocupado trabalhando nas finanças da fazenda, abaixou a
pena sobre a tábula, levantou-se do banco e foi cruzar o
pequeno pátio.
– Você disse “soldados”?
– Sim, amo.
– Entendo. – O sorriso de Titus sumiu, mas ele mante-
ve a voz em tom ameno: – E o que você sabe sobre solda-
dos, velho? Animais, tudo bem. Mas soldados?
Aristides se empertigou e encarou seu amo.
– Dois deles têm lanças e todos carregam espadas.
Marcus olhou para o pai e notou em sua expressão
um breve indício de ansiedade. Ele nunca havia visto o
pai sequer preocupado. Seu rosto áspero era marcado por
várias cicatrizes, relíquias dos tempos em que serviu nas
legiões do general Pompeius. Ele era um centurião – um
oficial endurecido pelo combate – quando dera baixa e
deixara o exército. Comprara a fazenda na ilha de Lêucade
e se aposentara. Ali foi viver com a mãe de Marcus, que
dera à luz o menino poucos meses depois. Desde então,
Gladiador-Luta_Pela_Liberdade.indd 19 05/09/13 16:50
20
Titus tirava um rendimento estável do pequeno rebanho
de cabras cuidado por Aristides e das videiras que cobriam
sua terra. Tinha sido forçado a pegar dinheiro emprestado.
Marcus sabia que era muito – ouvira os pais sussurrando a
respeito durante a noite, quando imaginavam-no dormin-
do, e continuou preocupado com o assunto bem depois de
os dois se calarem.
O som de passos fez Marcus se virar e ver a mãe, que
surgia de seu aposento no outro lado do pátio. Ela tecia
uma nova túnica para ele, mas abandonou o tear assim que
ouviu Aristides.
– Eles têm lanças – murmurou ela, e depois olhou para
Titus. – Talvez estejam indo para as colinas caçar javalis.
– Creio que não. – O velho centurião balançou a cabeça.
– Se estão pretendendo caçar javalis, por que levariam espa-
das? Não, isso é outra coisa. Eles estão vindo para a fazenda.
– Titus deu um passo à frente e um tapinha no ombro de
Aristides. – Você fez bem em me alertar, velho amigo.
– Velho? – Os olhos do pastor de cabras brilharam bre-
vemente. – Ora, nem tenho dez anos a mais que o senhor,
amo.
Titus gargalhou, uma risada alta e forte que Marcus
conhecia a vida inteira e sempre considerara reconfortante.
Apesar de ter tido uma vida dura nas legiões, o pai sempre
fora bem-humorado. De vez em quando, Titus era severo
com Marcus ao insistir que ele encarasse as próprias brigas
Gladiador-Luta_Pela_Liberdade.indd 20 05/09/13 16:50
21
com algumas das crianças de Nidri, mas não havia como
duvidar de seu carinho.
– Por que eles estão vindo para cá? – perguntou a mãe.
– O que querem conosco?
Marcus viu o sorriso do pai sumir.
– Encrenca – rosnou. – É o que querem conosco.
Decimus deve tê-los mandado.
– Decimus? – Enquanto Livia falava, Marcus viu a mãe
levar a mão à boca, horrorizada. – Eu disse que não deve-
ríamos nos envolver com ele.
– Bem, é um pouco tarde para isso agora, Livia. Vou ter
que lidar com ele.
Marcus ficou assustado com a reação da mãe. Ele pigar-
reou.
– Quem é Decimus, pai?
– Decimus? – Titus fez uma expressão de desdém e
cuspiu no chão. – Apenas um porco sanguessuga qualquer
a quem alguém deveria ter ensinado uma lição há anos.
Marcus lançou um olhar questionador para o pai. Titus
riu e acarinhou os cachos escuros do filho.
– Ele é uma f igura, nosso Decimus. O agiota mais
rico de Lêucade e, graças à inf luência junto ao governador
romano, agora também é o cobrador de impostos.
– Uma combinação infeliz de funções – acrescentou
Livia baixinho. – Ele já arruinou vários fazendeiros ao
redor de Nidri.
Gladiador-Luta_Pela_Liberdade.indd 21 05/09/13 16:50
22
– Bem, este aqui ele não vai arruinar! – rosnou Titus. –
Aristides, traga a minha espada.
O pastor ergueu as sobrancelhas ansiosamente e, em
seguida, correu para o interior da casa. Cerberus encarou
Aristides por um momento, até voltar trotando para o lado
de Marcus, que afagou suavemente a cabeça do cachorro.
Livia segurou o braço forte do pai de Marcus.
– No que está pensando, Titus? Você ouviu o Aristides.
São três homens armados. Soldados, disse ele. Não pode
lutar contra eles. Nem sequer pense nisso.
Titus fez que não com a cabeça.
– Eu já estive em desvantagens maiores e venci. Como
você bem sabe.
A expressão da mãe de Marcus ficou mais séria.
– Isso aconteceu há muito tempo. Você não participa de
qualquer tipo de combate há mais de dez anos.
– Eu não lutarei contra eles se não for preciso. Mas
Decimus mandou os homens para cobrar dinheiro. Não
irão embora sem ele.
– Quanto dinheiro?
Titus baixou o olhar e coçou a nuca.
– Novecentos sestércios.
– Novecentos?!
– Eu atrasei três pagamentos – explicou Titus. – Estava
esperando por isso.
– Você pode pagá-los? – perguntou ela ansiosamente.
Gladiador-Luta_Pela_Liberdade.indd 22 05/09/13 16:50
23
– Não. Não há muito dinheiro no baú. O suficiente
para passarmos o inverno, e aí... – Ele balançou a cabeça.
Livia franziu a testa com raiva.
– É bom você me explicar tudo mais tarde. Marcus!
– Ela se virou para o filho. – Vá pegar o baú de dinheiro
debaixo do santuário no átrio. Agora.
Marcus concordou com a cabeça e fez menção de cor-
rer para a casa.
– Fique aí mesmo, garoto! – gritou Titus, alto o sufi-
ciente para ser ouvido a cem passos em todas as direções.
– Deixe o baú onde está. Não serei forçado a pagar uma
única moeda antes que seja preciso.
– Ficou maluco? – perguntou Livia. – Você não pode
lutar contra homens armados sozinho.
– Veremos – respondeu Titus seriamente. – Agora leve
o garoto e fique dentro da casa. Eu cuido disso.
– Você vai se machucar ou morrer, Titus. E aí, o que
será do Marcus e de mim, me diga?
– Entre na casa – ordenou Titus.
Marcus viu a mãe abrir a boca para reclamar, mas ambos
conheciam o olhar duro de Titus. Ela balançou a cabeça,
contrariada, e estendeu a mão para Marcus.
– Venha comigo.
Marcus olhou para a mãe, depois para Titus, e fi cou pa ra do,
determinado a provar seu valor para o pai.
– Marcus, venha comigo. Agora!
Gladiador-Luta_Pela_Liberdade.indd 23 05/09/13 16:50
24
– Não, eu vou ficar aqui. – Ele se empertigou e colo-
cou as mãos na cintura. – O Cerberus e eu podemos ficar
ao lado de papai, se houver uma luta. – Ele queria que as
palavras soassem corajosas, mas a voz tremeu um pouco.
– O quê? Ficar? – perguntou Titus, perplexo. – Você
não está pronto para participar de uma batalha, meu garo-
to. Vá com a sua mãe.
Marcus fez que não com a cabeça.
– O senhor precisa de mim. De nós. – Ele acenou para
Cerberus, e o cachorro ergueu as orelhas e balançou o rabo
peludo.
Antes que Titus pudesse reclamar, Aristides saiu da
casa. Segurava em uma de suas mãos o cajado; na outra,
uma bainha de espada com a alça pendurada. Titus pegou
a arma e passou a alça pela cabeça, mexeu o ombro até
se convencer de que a espada estivesse bem colocada e o
cabo, facilmente acessível. Ao chegar no portão, Aristides
passou a vigiar a estrada que descia a encosta em direção a
Nidri. De repente, Titus pegou o cabo da espada e sacou
a arma em um único movimento, tão rápido que Marcus se
retraiu. Ele soltou um ligeiro grito. Cerberus rosnou.
O pai olhou para Marcus com um sorriso e embainhou
a espada.
– Calma, eu estava apenas verificando se a espada saía
rapidamente. É por isso que mantenho a bainha e a arma
azeitadas, em caso de necessidade.
Gladiador-Luta_Pela_Liberdade.indd 24 05/09/13 16:50
25
Marcos engoliu em seco de nervoso.
– Que tipo de necessidade, pai?
– Como a que temos neste momento. Agora, deixe isso
comigo. Fique na casa até eu chamar você.
Marcus encarou Titus com um olhar de contestação.
– Meu lugar é ao seu lado, pai. Eu sei lutar. – Ele pegou
a bolsa de couro e as tiras do estilingue enfiado no cinto. –
Eu consigo acertar uma lebre a 50 passos com isso.
A mãe ficou olhando os dois e disse quase aos berros:
– Tenha dó, Marcus! Entre agora!
– Livia – interrompeu o marido. – Vá você. Abrigue-se
na cozinha. Eu falo com o Marcus. Ele irá diretamente até
você.
Ela fez menção de protestar, mas então viu o olhar
intenso do marido e deu meia-volta; as sandálias arrasta-
vam nos ladrilhos. Titus se virou para Marcus e deu um
sorriso afetuoso.
– Meu garoto, você ainda é jovem demais para lutar as
minhas batalhas. Por favor, vá com a sua mãe.
Mas era tarde demais. Antes que Titus terminasse de
falar, ouviu-se o assobio forte de Aristides. O pastor levou
as mãos em concha à boca e chamou o mais alto que
ousou se arriscar:
– Amo! Eles estão chegando!
Gladiador-Luta_Pela_Liberdade.indd 25 05/09/13 16:50