Ilse Losa

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Ilse Losa

Biografia

Obra

Sobre a obra

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Biografia

Ilse Lieblich Losa, escritora portuguesa de origem alemã e de ascendência judaica, nasceu a 20 de Março de 1913, em Bauer, uma cidade perto de Hanover. A primeira infância foi passada com os avós paternos. Frequenta o liceu em Osnabrük e Hildesheim e o Instituto Comercial em Hanover.

Em 1930 está em Londres onde toma conta de crianças durante um ano. De regresso à Alemanha e devido à sua condição de judia é perseguida pela Gestapo e tem de abandonar o seu país, refugiando-se em Portugal onde chega em 1934, radicando-se no Porto. Casa com o arquitecto Arménio Losa e adquire a nacionalidade portuguesa.

A sua obra inclui romances, contos, crónicas, trabalhos pedagógicos e literatura para crianças.

Paralelamente à sua actividade de escritora desenvolveu outras ocupações quer no domínio da tradução, quer como colaboradora em jornais e revistas, alemães e portugueses, de que salientamos o Jornal de Notícias, o Comércio do Porto, o Diário de Notícias, Neue Deutsche Literatur, entre outros.

Ilse Losa está também representada em várias antologias de autores portugueses, tendo ela própria colaborado na organização e tradução de antologias de obras portuguesas publicadas na Alemanha. Traduziu do alemão alguns dos mais consagrados autores.

Em 1984 recebeu o Grande Prémio Gulbenkian, pelo conjunto da sua obra para crianças.

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Em 1998 recebeu o Grande Prémio de Crónica, da APE (Associação portuguesa de Escritores) por À Flor do Tempo.

Obra

As experiências da nazificação do seu país natal e as dificuldades de adaptação à sua pátria de exílio constituem alguns dos motivos das suas obras, entre as quais se contam:

O Mundo em Que Vivi (1949, volume de estreia), Histórias Quase Esquecidas (1950), Rio Sem Ponte (1952), Aqui Havia Uma Casa (1955), Sob Céus Estranhos (1962), Encontro no Outono (1965), Estas Searas (1984), Caminhos sem Destino (1991) e À Flor do Tempo (1997, Grande Prémio da Crónica de 1998).

Distinguiu-se como autora de literatura infantil, com os livros A Flor Azul (1955), Na Quinta das Cerejeiras (1984), A Visita do Padrinho (1989) e Faísca Conta a Sua História (1994).

Escreveu ainda uma obra de crónicas de viagem, Ida e Volta — À Procura de Babbitt (1959).

Em 1984, a Fundação Calouste Gulbenkian atribuiu-lhe o Grande Prémio de Livros para Crianças, pelo conjunto da sua obra.

Page 4: Ilse Losa

Sobre a obraSob Céus Estranhos

Este livro da prestigiada autora tem por tema a adaptação de um refugiado judeu em 1948. É, por isso, uma narrativa que revela uma grande preocupação com o factor humano. A acção centra-se na figura de Josef Berger, um alemão judeu que após conseguir fugir ao nazismo se radicaliza na cidade do Porto. Aos poucos, e com grande dificuldade, Josef vai-se adaptando ao modus vivendi português, que constitui a antítese perfeita do ritmo europeu de então. O resultado é um progressivo amolecimento físico, intelectual e espiritual.

Há, aliás, uma frase - ou melhor, um desabafo - a dada altura do livro que reflecte este estado de espírito característico da vida portuguesa em pleno Estado Novo: "Já basta de tanta pasmaceira!". É através do interesse por escritores e pintores, que Josef tenta compensar a lenta adaptação a este ritmo de vida.

O percurso narrativo de "Sob Céus Estranhos" tem por base um acontecimento essencial: o nascimento do filho do herói. É a partir daqui que toda a acção se desenrola, através de situações e reminiscências que tanto focam o presente da narração, como operíodo da guerra e a vida anterior na Alemanha.

São estes os três planos do livro, na base dos quais encontra-se a experiência vivida pela própria autora. Com um estilo tão simples, quanto directo e cativante, a linguagem de Ilse Losa obriga-nos a verificar que aquelas pessoas existem e que nós temos de participar nas suas vidas. Sentir com elas, para então tentar compreendê-las. De destacar que estamos perante o mais perfeito retrato da cidade do Porto dos anos 40. Um retrato cuja actualidade estende-se aos anos 60 e talvez até aos anos 80.

"Para contar o mundo em que viveu, Ilse Losa conjuga o saber da memória com um outro: o que nos chega através da tradição literária, um dos muitos filtros através dos quais podemos ver a verdade da nossa vida."

Maria Lúcia Lepecki in Diário de Notícias, 1987

Page 5: Ilse Losa

«Temporalmente localizado em 1948, numa altura em que o grande holocausto havia já terminado, Sob Céus Estranhos conta-nos a história de José (Josef) Berger, um alemão judeu refugiado que na, cidade do Porto se radicaliza. O movimento narrativo deste romance se inicia e se confina em um ponto comum: o nascimento do filho do herói.

Uma tal estrutura, desde logo, nos remete para o sábio e avançado domínio que das coisas literárias a autora possuía, já que a intercircularidade romanesca a partir de um dado evento era ainda, entre nos, caso raro. É pois com base neste acontecimento, melhor, no espaço que medeia entre as dores do parto de Teresa e o nascimento do filho de ambos, que toda a acção se desenvolve através de reminiscências, retrospectivas me-moralistas, que tanto focam a vivência do autor na sua terra natal quanto na terra em que se acolhe».

Ramiro Teixeira in Jornal de Noticias, 1986.

«É um dos romances mais interessantes e valiosos, no contexto da actual produção na-cional, o que Ilse Losa publicou recentemente sob o título sugestivo de Sob Céus Estranhos. Avulta este livro pelo interesse humano do seu tema, tanto como pelo grau de segurança da sua elaboração técnica e estilística. Com ele atinge Ilse Losa um dos pontos altos, senão o mais alto, da carreira até agora realizada.

Sob Céus Estranhos é um livro que mergulha visivelmente as suas raízes na experiência vivida, sem deixar de ser obra de imaginação”.

Rogério Fernandes in Seara Nova, 1963

«Sob Céus Estranhos é um livro extraordinário. (...) É um romance cheio de sortilégios: molha-nos como um dia de cacimba, lava-nos como uma manhã de sol. Toda aquela gente “existe” e obriga-nos a participar das suas vidas. Há muito que não lia uma obra que tanto me agradasse».

Fernando Namora, 1962

Page 6: Ilse Losa

Será preciso chegar a autora de Sob Céus Estranhos para nos dar, a propósito do tema da adaptação de um imigrado judeu, o mais perfeito retrato da cidade do Porto dos anos 40 (para não dizer o único retrato), que continua a estar certo para a cidade do Porto dos anos 60, como talvez venha a estar certo para a dos anos 80, ou mesmo mais.

Porém, a personagem que a autora nos apresenta — Josef Berger — vai-se adaptando à vida portuguesa. A pouco e pouco deixa-se invadir pela frouxidão, pelo ritmo não-europeu que a caracteriza. Interessa-se pela nossa literatura e chega a pensar fazer-se editor. Dir-se-ia entrar, entretanto, nas calhas do ramerrão do mundo lusitano de viver, o ramerrão que explica o desabafo do velho Lindomonte que exclama, ao tomar a decisão de partir para o Brasil: “Já basta de tanta pasmaceira!’.

Tal temática conduz-nos a afirmar que llse Losa conseguiu não se repetir, perigo que aliás vive espreitando-a. Todavia, a autora contornou-o com talento suficiente para podermos considerar Sob Céus Estranhos um livro nova na sua bibliografia e, sem qualquer exagero, um belo livro. Beleza que não é a aparente dos estilos laboriosos, engalanados, de ver a Deus, mas a que resulta duma linguagem simples, linear, discretamente poética, façanha sempre singular quando brota de alguém que só na idade adulta ouviu pela primeira vez o idioma que nessa linguagem se vazou».

Alexandre Pinheiro Torres in Jornal de Letras e Artes, 1962

Textos online

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O Mundo em que Vivi

Sob Céus Estranhos __________________________

Ilse Losa, capa de "O Mundo em que Vivi"

Excertos

O primeiro dia da escola. A saca às costas, caminhei ao lado da minha mãe, cheia de curiosidade e de receios. O sr. Brand, o professor, distribuía sorrisos animadores aos meninos, que o fitavam com desconfiança. A barba grisalha e o colarinho engomado davam-lhe um ar de austeridade, mas os olhos alegres protestavam contra tal impressão. Começou por nos falar, e doseava serenidade com humor para afugentar os nossos medos. De todas as escolas por que passei, a de que verdadeiramente gostei foi a escola primária. Quando o sr. Brand tomou nota do meu nome ninguém se virou para mim com sorrizinhos por soar a judaico, ninguém achou estranho eu responder «Israelita» à pergunta do sr. Brand à minha religião. Fora a mãe que me recomendara: «Quando o sr. Brand te perguntar pela religião, diz-lhe que és israelita. Soa melhor do que judia». Eu não concordava, porque achava «israelita» uma palavra estranha que não parecia pertencer à minha língua e, por isso, corei de embaraço ao pronunciá-la. E quando o sr. Brand quis saber a profissão do meu pai respondi «negociante de cavalos». Coisa natural. Muitos alunos eram filhos de lavradores e conheciam o meu pai. Não me sentia envergonhada daquilo que eu e o meu pai éramos, como aconteceria mais tarde, no liceu, quando a minha mãe me recomendou que às perguntas respondesse, além de «sou israelita», que o meu pai era «comerciante».

O liceu ficava em L..., a cidade onde havia o teatro e a sinagoga. Tomávamos, manhã cedo, o comboio e, com gesto arrogante, estendíamos o passe anual ao revisor.

No primeiro dia de aulas tivemos de dizer o nosso nome e profissão do pai e a religião. Conforme recomendação da minha mãe eu disse:

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- O meu pai é comerciante. Sou israelita.

Na escola primaria tudo fora natural. No liceu colegas viraram-se e olharam-me. Mais duas judias faziam parte da turma e uma delas, Hanna Berg, respondeu à pergunta com voz firme: «Sou judia». Os gestos de Hanna eram extraordinariamente vivos e comunicativos, enquanto nos seus olhos havia a expressão dessa melancolia penetrante das seculares lendas de sabedorias e flagelos.

Hanna propôs-me que a acompanhasse a uma reunião dos sionistas. E nessa tarde. em que conheci o grupo juvenil a que ela pertencia, compreendi por que razão dissera com tanta firmeza: «Sou judia».

Numa sala espaçosa vi rapazes e raparigas de blusa branca e gravata azul e, encostada a um canto, a bandeira azul e branca. Hanna saudou o grupo com «Shalom», «paz», e todos lhe responderam do mesmo modo.

Desprendeu-se do grupo um rapaz. Bateu palmas. Fez-se silêncio, e ele disse:

- Vamos começar.

Hanna indicou-me uma cadeira e segredou-me:

- É o Bertold. Repara bem nele.

Bertold: alto, de calções de camurça, expressão franca e decidida. Levantou a mão para dar sinal de começar e vi que era uma mão larga e forte. No momento em que Bertold dobrou os ombros para trás, endireitou o tronco e moveu a mão, os rapazes e as raparigas começaram a falar em coro: primeiro um murmúrio crescente, depois vozes altas, vigorosas, que pareciam vir duma grande massa de gente. Diziam de injustiças, de orgulho, de expectativa duma vida livre em Israel. Como um chefe de orquestra, Bertold regia-os. Juntava as mãos em concha para em seguida as erguer num movimento rápido: as vozes elevavam-se; abria os braços como quem pedia para recuarem: as vozes baixavam; rasgava o ar com as mãos: as vozes emudeciam. As frases esperançosas, a convicção com que eram ditas, isso impressionava-me fortemente. Concluí que aniquilaram todas as dúvidas e resignação dos velhos, que encontraram rumos novos. «Devemos ter orgulho por sermos judeus», diziam os velhos, mas na verdade procuravam apenas consolo. Esses jovens, porém, esses sim orgulhavam-se deveras.

Depois das declamações começaram a dançar a «horra». Deitando os braços pelos ombros uns dos outros formavam um círculo, rodavam para a esquerda sempre para a esquerda, alegres e entusiásticos. Cantaram a comunicativa melodia da «hatikwah», a canção da «esperança».

Excitada, falei em casa da reunião. Tencionava voltar lá para aprender a falar em coro, dançar a «horra» e cantar a «hatikwah». Mas tanto o meu pai como a minha mãe acharam que não, que isso não me servia. Só me meteria na cabeça a emigração para a Palestina e eu, como boa alemã, não devia abandonar a pátria a que pertencia.

Quando falei ao sr. Heim, sorriu um tanto triste:

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- Repara, Rose, o meu rapaz também anda com os sionistas e por isso há discórdia em casa. Ele e a mãe quase que não se falam

Sob Céus Estranhos

Excerto 1 Ah, é você! [...]

Excerto 2 As senhoras em casa do Sousa [...]

Excerto 3 Como hóspedes aprecio os estrangeiros[...]

Excerto 4 Gosto de observar Teresa a corrigir [...]

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Excerto 1

— Ah, é você! Pode entrar — disse ela com aquela voz aguda que lembrava amarelo-esverdeado e que sempre o irritava. Nunca o tratava por tu, apesar de ele ser seu genro.

Simulando bom humor e despreocupação encaminhou-se, de passo desembaraçado, para junto da cama branca de ferro esmaltado. A lamparina, presa a um varão, espalhava uma luz débil. Por que éque Teresa tinha a cara tão arroxeada?

— Teresa!

— Não é nada, José. Todas as mulheres passam por isto.

Mas em seguida a cara torceu-se-lhe de dor.

— Dona Marcelina! Dona Marcelina!

Dona Marcelina, a parteira, empurrou-o para o lado.

— O senhor é melhor sair daqui — disse naquele tom próprio das pessoas que se sentem seguras de si quando estão a trabalhar. —Dê um passeio ou vá para casa. Isto ainda demora. Telefone sempre que quiser. E quando voltar basta tocar a campainha do portão.

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Viu-se outra vez na saleta sem porta. Imóvel, o homem de bigode à Kaiser contemplava os cravos de papel em cima da mesinha. Taque, taque, taque... sempre taque, taque, taque. Tornava-se insuportável. De facto o melhor era ir dar um passeio.

Uma noite branda, de princípio de Outono. Melancólica e suave a natureza agonizava, ajustava-se à índole do país. A natureza agonizava, mas a morte não se cumpria: uma vez caídas as folhas, começavam a abotoar as camélias, desafiando ventos e chuva, e as laranjas e os limões fulguravam entre a sua folhagem sempre verde. Agonia que não levava à morte.

Solução caridosa, prorrogação perpétua. Não havia ressurreição. Era assim, também, que a Primavera em Portugal não lhe queria parecer uma Primavera a valer, mas antes a continuação mais exuberante do inverno das camélias. Sempre que se aproximava a Primavera não podia deixar de sentir a nostalgia dos dias muito frios em que o assombrava a luta da primeira campânula com a terra ainda coberta de neve, a vitória do frágil rebento sobre a morte. Agora vivia ao calor dum sol mais generoso, conhecia invernos benevolentes, mas os contrastes perdiam os contornos. Desceu a Avenida. A iluminação fraca dos candeeiros não deixava realçar a desproporção agressiva dos edifícios de granito. Os reclamos luminosos, na Praça, de tão pobres amorteciam este centro em vez de o animarem.

«Diáaaaario de Lisboa! Olh’o Popular! Diáaario!». Tinha, portanto, chegado o rápido. Comprou um jornal e entrou num café.

ILSE LOSA, SOB CÉUS ESTRANHOS, Edições Afrontamento, 1992, pp. 8, 9.

Excerto 2

As senhoras em casa do Sousa interessavam-se muito pouco pelo decurso da guerra que, graças a Deus, se passava lá longe, e quando muito se fazia sentir pelo racionamento

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dos víveres e pelo florescimento dum mercado negro tão descarado que coisas cor-riqueiras como o azeite e o açúcar começaram a ficar raras em sua casa. O aparelho de rádio servia-lhes, como de costume, para distracção, com música ligeira e peças radiofónicas, e sempre que o Sousa e eu escutávamos avidamente as notícias elas conversavam a um canto da sala sobre as suas preocupações quotidianas, tristes sem dúvida.

Sousa, pelo contrário, seguia os acontecimentos como que num delírio. Fixou um mapa da Europa por cima do rádio e marcava os campos de batalha com lápis azul e vermelho. Punha-se sempre ao corrente, para poder tomar parte nas conversas e discussões dos amigos do café que, por causa das vitórias do Diabo, com quem Deus pelos vistos tinha firmado um pacto, se viam defraudados nas suas esperanças do mundo que idealizavam. Quando, certo dia, se noticiou a invasão da França, Sousa levou as mãos à cabeça e soluçou:

— A França! A França! Malditos boches!

Mas, de repente, olhou embaraçado para mim, coitado do Sousa.

— Não se preocupe comigo, Sousa — disse eu.

E enquanto ele saltitava apressadamente escada abaixo para ouvir o que se dizia no Infante sobre o ocorrido, fiquei imóvel diante do aparelho de rádio. «Não se preocupe comigo, Sousa», dissera. E porque havia ele, o Sousa, de se preocupar por os acontecimentos terem destruído tão cruelmente todos os fundamentos daquilo que fora a minha vida? O que sabia o Sousa duma casa de telhado de duas águas, duma igreja cujos sinos tangiam como mais nenhuns outros, do pequeno bosque em redor, do antigo solar de Fenne onde uma cegonha regressava sempre para o seu ninho, no cimo da velha torre? Malditos boches, malditos boches... E, de súbito, senti inveja daquelas mulheres ao canto da sala, que se exaltavam a discutir se o óleo de amendoim tinha de facto qualidade para substituir o azeite.

ILSE LOSA, SOB CÉUS ESTRANHOS, Edições Afrontamento, 1992, p. 73.

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Excerto 3

— Como hóspedes aprecio os estrangeiros — disse D. Branca com um ar circunspecto, que contrastava com a sua cara maquilhada à maneira das actrizes em cena, quando a informamos de que íamos casar. Prefiro-os aos hóspedes portugueses. É que para os estrangeiros basta fazer um prato só, não exigem mais. Não são como o Sr. Simão, sempre a criticar: que a casa tem mau cheiro, que a criada lhe faz nervos com o seu passo pesadão — já se ouviu coisa semelhante? —, que o café tem mais cevada e chicória do que café, e coisas do género. Até o Sr. Capitão custa a aturá-lo com as suas esquisitices. Tudo isso é assim. Mas para marido da minha filha sempre preferia um homem cá dos nossos. Como explicar? Enfim, um estrangeiro é um estrangeiro, sente as coisas de outra maneira. Sabe-se lá se não se lhe mete na cabeça abalar dum momento para o outro! Não estão ligados a isto, como a gente. Bem os tenho visto a desaparecerem da cidade sem dizer água-vai.

Estas e outras coisas alegou D. Branca antes de dar, com fingida generosidade, o seu consentimento. Mas quando lhe revelamos que não nos casaríamos pela Igreja, sofreu um abalo. Ainda que raras vezes fosse à missa, exclamou:

— A minha filha não casar na Igreja? A minha única filha?

Expliquei-lhe que Good Old Man fora judeu e a minha mãe protestante.

Ai!, protestante! Cada vez pior! — encolerizou-se ela, para quem os protestantes eram piores do que os judeus ou os espanhóis. Tinha-os como pouco mais do que a escumalha da humanidade.

Severino propôs que me baptizasse. Achava que se estava sempre a tempo. Chegou mesmo a falar num padre para me ensinar o catecismo, padre benevolente que fecharia os olhos no caso de eu não meter bem a lição na cabeça. Mas fiz-lhes ver que não estava disposto a partir-me em três. Não atingiram a ideia, porque para eles uma vez que não pertencia à sua religião não pertencia a nenhuma. Mas D. Branca acabou por se conformar com a minha «casmurrice», e os preparativos para o enxoval e para a festa foram diluindo o seu desgosto. Só numa coisa não cedia: eu tinha de ir dormit numa outra casa. Que o noivo dormisse debaixo do mesmo tecto que a noiva, considerava inadmissível.

Depois dos atritos com D. Branca, seguiu-se outro com o funcionário do Registo Civil. Minuciosamente examinou o papel que garantia a minha identidade e mais de um mês de estadia no país.

— Prolongam-lho? — perguntou.

— Até agora sempre mo prolongaram — respondi.

— Então por aqui não vejo dificuldade. Mas falta a certidão de nascimento.

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ILSE LOSA, SOB CÉUS ESTRANHOS, Ed. Afrontamento, 1992, pp. 158, 159.

Excerto 4

Gosto de observar Teresa a corrigir os cadernos escolares à luz do candeeiro. Sempre que os disparatados erros dos seus pequenos alunos a fazem sorrir, ela inclina a cabeça sobre o ombro, as pálpebras descem-se-lhe ligeiramente e o rosto ganha uma graça meiga e quente. Talvez no conceito geral Teresa não seja uma mulher bonita:

tem feições pouco regulares, a boca muito carnuda, o nariz comprido demais e quando lhe estremecem as narinas faz lembrar um coelhinho. Mas tudo isso se harmoniza com o corpo esbelto de porte direito, com o pescoço alto, a cabeça estreita, o cabelo dum negro brilhante e espesso que ultimamente junta num puxo arrepanhado na nuca.

Teresa dá aulas na escola primária duma zona pobre, num edifício velho, quase a cair, onde largas frinchas por debaixo das portas e das janelas provocam constantes correntes de ar. Se ao princípio manifestara entusiasmo pelo curso, embora apenas o tirasse porque Severino achava ser o curso que levava menos tempo, ficava barato e proporcionava rapidamente o ganha-pão, pouco a pouco foi ficando desiludida.

«As colegas mais velhas batem naquelas pobres crianças a torto e a direito», diz. «Eu só me resolvo a bater-lhes, mas apenas nas mãos, se me aparecem com as orelhas sujas ou piolhos na cabeça depois de as ter repreendido repetidas vezes». Por vezes ela chega desanimada a casa, dizendo não suportar por muito mais tempo o ensino a crianças que, de tão carecidas de carinho e de alimentação, nem conseguem prestar atenção às suas explicações. E começamos a fazer planos para uma livraria, num bairro afastado do centro e de como haveremos de juntar o dinheiro para isso. Teresa ajudar-me-á na arrumação dos livros, no balcão, na caixa.

Dentro de dois ou três anos começaremos a editar uma colecção de livros de pequeno formato, de preço módico, mas de muita qualidade. E havemos de contratar óptimos tradutores para os livros estrangeiros, apresentar capas de bom gosto, havemos de nos

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prestigiar para progredir depressa, poder dispensar a loja e dedicar-nos exclusivamente às edições. E Teresa gostaria de organizar uma colecção para crianças, com gravuras coloridas, e sempre que estamos com o Renato aconselha-se com ele sobre o assunto... Planos, planos, planos... E depois tudo continua na mesma, Teresa a tentar ensinar as crianças cheias de fome e piolhos e eu a traduzir cartas comerciais a troco de remuneração mais ou menos razoável e livros de ficção por remuneração humilhante, porque o comércio governa e a literatura vegeta.

ILSE LOSA, SOB CÉUS ESTRANHOS, Ed. Afrontamento, 1992, pp. 166, 167

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Biografia

Ilse Lieblich Losa, escritora portuguesa de origem alemã e de ascendência judaica, nasceu a 20 de Março de 1913, em Bauer, uma cidade perto de Hanover. A primeira infância foi passada com os avós paternos. Frequenta o liceu em Osnabrük e Hildesheim e o Instituto Comercial em Hanover. 

Em 1930 está em Londres onde toma conta de crianças durante um ano. De regresso à Alemanha e devido à sua condição de judia é perseguida pela Gestapo e tem de abandonar o seu país, refugiando-se em Portugal onde chega em 1934, radicando-se no Porto. Casa com o arquitecto Arménio Losa e adquire a nacionalidade portuguesa. 

A sua obra inclui romances, contos, crónicas, trabalhos pedagógicos e literatura para crianças. 

Paralelamente à sua actividade de escritora desenvolveu outras ocupações quer no domínio da tradução, quer como colaboradora em jornais e revistas, alemães e portugueses, de que salientamos o Jornal de Notícias, o Comércio do Porto, o Diário de Notícias, Neue Deutsche Literatur, entre outros. 

Ilse Losa está também representada em várias antologias de autores portugueses, tendo ela própria colaborado na organização e tradução de antologias de obras portuguesas publicadas na Alemanha. Traduziu do alemão alguns dos mais consagrados autores.

 Em 1984 recebeu o Grande Prémio Gulbenkian, pelo conjunto da sua obra para crianças. 

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 Em 1998 recebeu o Grande Prémio de Crónica, da APE (Associação portuguesa de Escritores) por À Flor do Tempo.

 

    

 

 

 

 

Obra

As experiências da nazificação do seu país natal e as

dificuldades de adaptação à sua pátria de exílio

constituem alguns dos motivos das suas obras, entre as

quais se contam:

O Mundo em Que Vivi (1949, volume de estreia),

Histórias Quase Esquecidas (1950), Rio Sem Ponte

(1952), Aqui Havia Uma Casa (1955), Sob Céus

Estranhos (1962), Encontro no Outono (1965), Estas

Searas (1984), Caminhos sem Destino (1991) e À Flor

do Tempo (1997, Grande Prémio da Crónica de 1998).

Distinguiu-se como autora de literatura infantil, com os

livros A Flor Azul (1955), Na Quinta das Cerejeiras

(1984), A Visita do Padrinho (1989) e Faísca Conta a

Sua História (1994). 

Escreveu ainda uma obra de crónicas de viagem, Ida e

Volta — À Procura de Babbitt (1959).

  Em 1984, a Fundação Calouste Gulbenkian atribuiu-lhe o Grande Prémio de Livros para Crianças, pelo conjunto da sua obra.

 

 

    

      

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Sobre a obraSob Céus Estranhos

Este livro da prestigiada autora tem por tema a adaptação de um refugiado judeu em 1948. É, por isso, uma narrativa que revela uma grande preocupação com o factor humano. A acção centra-se na figura de Josef Berger, um alemão judeu que após conseguir fugir ao nazismo se radicaliza na cidade do Porto. Aos poucos, e com grande dificuldade, Josef vai-se adaptando ao modus vivendi português, que constitui a antítese perfeita do ritmo europeu de então. O resultado é um progressivo amolecimento físico, intelectual e espiritual. 

Há, aliás, uma frase - ou melhor, um desabafo - a dada altura do livro que reflecte este estado de espírito característico da vida portuguesa em pleno Estado Novo: "Já basta de tanta pasmaceira!". É através do interesse por escritores e pintores, que Josef tenta compensar a lenta adaptação a este ritmo de vida. 

O percurso narrativo de "Sob Céus Estranhos" tem por base um acontecimento essencial: o nascimento do filho do herói. É a partir daqui que toda a acção se desenrola, através de situações e reminiscências que tanto focam o presente da narração, como operíodo da guerra e a vida anterior na Alemanha. 

São estes os três planos do livro, na base dos quais encontra-se a experiência vivida pela própria autora. Com um estilo tão simples, quanto directo e cativante, a linguagem de Ilse Losa obriga-nos a verificar que aquelas pessoas existem e que nós temos de participar nas suas vidas. Sentir com elas, para então tentar compreendê-las. De destacar que estamos perante o mais perfeito retrato da cidade do Porto dos anos 40. Um retrato cuja actualidade estende-se aos anos 60 e talvez até aos anos 80.

"Para contar o mundo em que viveu, Ilse Losa conjuga o saber da memória com um outro: o que nos chega através da tradição literária, um dos muitos filtros através dos quais podemos ver a verdade da nossa vida."

Maria Lúcia Lepecki in Diário de Notícias, 1987

 

«Temporalmente localizado em 1948, numa altura em que o grande holocausto havia já terminado, Sob Céus Estranhos conta-nos a história de José (Josef) Berger, um alemão judeu refugiado que na, cidade do Porto se radicaliza. O movimento narrativo deste romance se inicia e se confina em um ponto comum: o nascimento do filho do herói.

Page 19: Ilse Losa

Uma tal estrutura, desde logo, nos remete para o sábio e avançado domínio que das coisas literárias a autora possuía, já que a intercircularidade romanesca a partir de um dado evento era ainda, entre nos, caso raro. É pois com base neste acontecimento, melhor, no espaço que medeia entre as dores do parto de Teresa e o nascimento do filho de ambos, que toda a acção se desenvolve através de reminiscências, retrospectivas me-moralistas, que tanto focam a vivência do autor na sua terra natal quanto na terra em que se acolhe».

 

Ramiro Teixeira in Jornal de Noticias, 1986.

 

 

 

«É um dos romances mais interessantes e valiosos, no contexto da actual produção nacional, o que Ilse Losa publicou recentemente sob o título sugestivo de Sob Céus Estranhos. Avulta este livro pelo interesse humano do seu tema, tanto como pelo grau de segurança da sua elaboração técnica e estilística. Com ele atinge Ilse Losa um dos pontos altos, senão o mais alto, da carreira até agora realizada.

Sob Céus Estranhos é um livro que mergulha visivelmente as suas raízes na experiência vivida, sem deixar de ser obra de imaginação”.

 

Rogério Fernandes in Seara Nova, 1963

 

 

 

«Sob Céus Estranhos é um livro extraordinário. (...) É um romance cheio de sortilégios: molha-nos como um dia de cacimba, lava-nos como uma manhã de sol. Toda aquela gente “existe” e obriga-nos a participar das suas vidas. Há muito que não lia uma obra que tanto me agradasse».

 

Fernando Namora, 1962

 

 

Será preciso chegar a autora de Sob Céus Estranhos para nos dar, a propósito do tema da adaptação de um imigrado judeu, o mais perfeito retrato da cidade do Porto dos anos 40 (para não dizer o único retrato), que continua a estar certo para a cidade do Porto dos anos 60, como talvez venha a estar certo para a dos anos 80, ou mesmo mais.

Porém, a personagem que a autora nos apresenta —

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Josef Berger — vai-se adaptando à vida portuguesa. A pouco e pouco deixa-se invadir pela frouxidão, pelo ritmo não-europeu que a caracteriza. Interessa-se pela nossa literatura e chega a pensar fazer-se editor. Dir-se-ia entrar, entretanto, nas calhas do ramerrão do mundo lusitano de viver, o ramerrão que explica o desabafo do velho Lindomonte que exclama, ao tomar a decisão de partir para o Brasil: “Já basta de tanta pasmaceira!’.

Tal temática conduz-nos a afirmar que llse Losa conseguiu não se repetir, perigo que aliás vive espreitando-a. Todavia, a autora contornou-o com talento suficiente para podermos considerar Sob Céus Estranhos um livro nova na sua bibliografia e, sem qualquer exagero, um belo livro. Beleza que não é a aparente dos estilos laboriosos, engalanados, de ver a Deus, mas a que resulta duma linguagem simples, linear, discretamente poética, façanha sempre singular quando brota de alguém que só na idade adulta ouviu pela primeira vez o idioma que nessa linguagem se vazou».

 

Alexandre Pinheiro Torres in Jornal de Letras e Artes, 1962

 

 

 

   

 

 

 

 

 

Textos online

 

O Mundo em que Vivi

Sob Céus Estranhos

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Ilse Losa,  capa de "O Mundo em que Vivi"

 

Excertos

O primeiro dia da escola. A saca às costas, caminhei ao lado da minha mãe, cheia de curiosidade e de receios. O sr. Brand, o professor, distribuía sorrisos animadores aos meninos, que o fitavam com desconfiança. A barba grisalha e o colarinho engomado davam-lhe um ar de austeridade, mas os olhos alegres protestavam contra tal impressão. Começou por nos falar, e doseava serenidade com humor para afugentar os nossos medos. De todas as escolas por que passei, a de que verdadeiramente gostei foi a escola primária. Quando o sr. Brand tomou nota do meu nome ninguém se virou para mim com sorrizinhos por soar a judaico, ninguém achou estranho eu responder «Israelita» à pergunta do sr. Brand à minha religião. Fora a mãe que me recomendara: «Quando o sr. Brand te perguntar pela religião, diz-lhe que és israelita. Soa melhor do que judia». Eu não concordava, porque achava

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«israelita» uma palavra estranha que não parecia pertencer à minha língua e, por isso, corei de embaraço ao pronunciá-la. E quando o sr. Brand quis saber a profissão do meu pai respondi «negociante de cavalos». Coisa natural. Muitos alunos eram filhos de lavradores e conheciam o meu pai. Não me sentia envergonhada daquilo que eu e o meu pai éramos, como aconteceria mais tarde, no liceu, quando a minha mãe me recomendou que às perguntas respondesse, além de «sou israelita», que o meu pai era «comerciante».

O liceu ficava em L..., a cidade onde havia o teatro e a sinagoga. Tomávamos, manhã cedo, o comboio e, com gesto arrogante, estendíamos o passe anual ao revisor.

 

No primeiro dia de aulas tivemos de dizer o nosso nome e profissão do pai e a religião. Conforme recomendação da minha mãe eu disse:

- O meu pai é comerciante. Sou israelita.

Na escola primaria tudo fora natural. No liceu colegas viraram-se e olharam-me. Mais duas judias faziam parte da turma e uma delas, Hanna Berg, respondeu à pergunta com voz firme: «Sou judia». Os gestos de Hanna eram extraordinariamente vivos e comunicativos, enquanto nos seus olhos havia a expressão dessa

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melancolia penetrante das seculares lendas de sabedorias e flagelos.

Hanna propôs-me que a acompanhasse a uma reunião dos sionistas. E nessa tarde. em que conheci o grupo juvenil a que ela pertencia, compreendi por que razão dissera com tanta firmeza: «Sou judia».

Numa sala espaçosa vi rapazes e raparigas de blusa branca e gravata azul e, encostada a um canto, a bandeira azul e branca. Hanna saudou o grupo com «Shalom», «paz», e todos lhe responderam do mesmo modo.

Desprendeu-se do grupo um rapaz. Bateu palmas. Fez-se silêncio, e ele disse:

- Vamos começar.

Hanna indicou-me uma cadeira e segredou-me:

- É o Bertold. Repara bem nele.

Bertold: alto, de calções de camurça, expressão franca e decidida. Levantou a mão para dar sinal de começar e vi que era uma mão larga e forte. No momento em que Bertold dobrou os ombros para trás, endireitou o tronco e moveu a mão, os rapazes e as raparigas começaram a falar em coro: primeiro um murmúrio crescente, depois vozes altas, vigorosas, que pareciam vir duma grande massa de gente. Diziam de injustiças, de orgulho, de expectativa duma vida livre em Israel. Como um chefe de orquestra, Bertold regia-os.

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Juntava as mãos em concha para em seguida as erguer num movimento rápido: as vozes elevavam-se; abria os braços como quem pedia para recuarem: as vozes baixavam; rasgava o ar com as mãos: as vozes emudeciam. As frases esperançosas, a convicção com que eram ditas, isso impressionava-me fortemente. Concluí que aniquilaram todas as dúvidas e resignação dos velhos, que encontraram rumos novos. «Devemos ter orgulho por sermos judeus», diziam os velhos, mas na verdade procuravam apenas consolo. Esses jovens, porém, esses sim orgulhavam-se deveras.

Depois das declamações começaram a dançar a «horra». Deitando os braços pelos ombros uns dos outros formavam um círculo, rodavam para a esquerda sempre para a esquerda, alegres e entusiásticos. Cantaram a comunicativa melodia da «hatikwah», a canção da «esperança».

Excitada, falei em casa da reunião. Tencionava voltar lá para aprender a falar em coro, dançar a «horra» e cantar a «hatikwah». Mas tanto o meu pai como a minha mãe acharam que não, que isso não me servia. Só me meteria na cabeça a emigração para a Palestina e eu, como boa alemã, não devia abandonar a pátria a que pertencia.

Quando falei ao sr. Heim, sorriu um tanto triste:

- Repara, Rose, o meu

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rapaz também anda com os sionistas e por isso há discórdia em casa. Ele e a mãe quase que não se falam

 

      

 

 

Sob Céus Estranhos

             

 

Excerto 1 Ah, é você! [...]

 

Excerto 2 As senhoras em casa do Sousa [...]

 

Excerto 3 Como hóspedes aprecio os

estrangeiros[...]

 

Excerto 4 Gosto de observar Teresa a corrigir

[...]

 

     

   

   

   

   

   

   

   

   

   

   

   

    

 

Excerto 1

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— Ah, é você! Pode entrar — disse ela com aquela voz aguda que lembrava amarelo-esverdeado e que sempre o irritava. Nunca o tratava por tu, apesar de ele ser seu genro.

Simulando bom humor e despreocupação encaminhou-se, de passo desembaraçado, para junto da cama branca de ferro esmaltado. A lamparina, presa a um varão, espalhava uma luz débil. Por que éque Teresa tinha a cara tão arroxeada?

— Teresa!

— Não é nada, José. Todas as mulheres passam por isto.

Mas em seguida a cara torceu-se-lhe de dor.

— Dona Marcelina! Dona Marcelina!

Dona Marcelina, a parteira, empurrou-o para o lado.

— O senhor é melhor sair daqui — disse naquele tom próprio das pessoas que se sentem seguras de si quando estão a trabalhar. —Dê um passeio ou vá para casa. Isto ainda demora. Telefone sempre que quiser. E quando voltar basta tocar a campainha do portão.

Viu-se outra vez na saleta sem porta. Imóvel, o homem de bigode à Kaiser contemplava os cravos de papel em cima da mesinha. Taque, taque, taque... sempre taque, taque, taque. Tornava-se insuportável. De facto o melhor era ir dar um passeio.

Uma noite branda, de princípio de Outono. Melancólica e suave a natureza agonizava, ajustava-se à índole do país. A natureza agonizava, mas a morte não se cumpria: uma vez caídas as folhas, começavam a abotoar as camélias, desafiando ventos e chuva, e as laranjas e os limões fulguravam entre a sua folhagem

sempre verde. Agonia que não levava à morte.

Solução caridosa, prorrogação perpétua. Não havia ressurreição. Era assim, também, que a Primavera em Portugal não lhe queria parecer uma Primavera a valer, mas antes a continuação mais exuberante do inverno das camélias. Sempre que se aproximava a Primavera não podia deixar de sentir a nostalgia dos dias muito frios em que o assombrava a luta da primeira

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campânula com a terra ainda coberta de neve, a vitória do frágil rebento sobre a morte. Agora vivia ao calor dum sol mais generoso, conhecia invernos benevolentes, mas os contrastes perdiam os contornos. Desceu a Avenida. A iluminação fraca dos candeeiros não deixava realçar a desproporção agressiva dos edifícios de granito. Os reclamos luminosos, na Praça, de tão pobres amorteciam este centro em vez de o animarem.

 «Diáaaaario de Lisboa! Olh’o Popular! Diáaario!». Tinha, portanto, chegado o rápido. Comprou um jornal e entrou num café.

 ILSE LOSA, SOB CÉUS ESTRANHOS, Edições

Afrontamento, 1992, pp. 8, 9. 

       

  Excerto 2 

As senhoras em casa do Sousa interessavam-se muito

pouco pelo decurso da guerra que, graças a Deus, se

passava lá longe, e quando muito se fazia sentir pelo

racionamento dos víveres e pelo florescimento dum

mercado negro tão descarado que coisas corriqueiras

como o azeite e o açúcar começaram a ficar raras em

sua casa. O aparelho de rádio servia-lhes, como de

costume, para distracção, com música ligeira e peças

radiofónicas, e sempre que o Sousa e eu escutávamos

avidamente as notícias elas conversavam a um canto

da sala sobre as suas preocupações quotidianas, tristes

sem dúvida.

Sousa, pelo contrário, seguia os acontecimentos como

que num delírio. Fixou um mapa da Europa por cima do

rádio e marcava os campos de batalha com lápis azul e

vermelho. Punha-se sempre ao corrente, para poder

tomar parte nas conversas e discussões dos amigos do

café que, por causa das vitórias do Diabo, com quem

Deus pelos vistos tinha firmado um pacto, se viam

defraudados nas suas esperanças do mundo que

idealizavam. Quando, certo dia, se noticiou a invasão da

França, Sousa levou as mãos à cabeça e soluçou:

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— A França! A França! Malditos boches!

Mas, de repente, olhou embaraçado para mim, coitado

do Sousa.

— Não se preocupe comigo, Sousa — disse eu.

E enquanto ele saltitava apressadamente escada abaixo

para ouvir o que se dizia no Infante sobre o ocorrido,

fiquei imóvel diante do aparelho de rádio. «Não se

preocupe comigo, Sousa», dissera. E porque havia ele,

o Sousa, de se preocupar por os acontecimentos terem

destruído tão cruelmente todos os fundamentos daquilo

que fora a minha vida? O que sabia o Sousa duma casa

de telhado de duas águas, duma igreja cujos sinos

tangiam como mais nenhuns outros, do pequeno

bosque em redor, do antigo solar de Fenne onde uma

cegonha regressava sempre para o seu ninho, no cimo

da velha torre? Malditos boches, malditos boches... E,

de súbito, senti inveja daquelas mulheres ao canto da

sala, que se exaltavam a discutir se o óleo de

amendoim tinha de facto qualidade para substituir o

azeite.

 ILSE LOSA, SOB CÉUS ESTRANHOS, Edições

Afrontamento, 1992, p. 73. 

      

   Excerto 3 

— Como hóspedes aprecio os estrangeiros — disse D.

Branca com um ar circunspecto, que contrastava com a

sua cara maquilhada à maneira das actrizes em cena,

quando a informamos de que íamos casar. Prefiro-os

aos hóspedes portugueses. É que para os estrangeiros

basta fazer um prato só, não exigem mais. Não são

como o Sr. Simão, sempre a criticar: que a casa tem

mau cheiro, que a criada lhe faz nervos com o seu

passo pesadão — já se ouviu coisa semelhante? —, que

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o café tem mais cevada e chicória do que café, e coisas

do género. Até o Sr. Capitão custa a aturá-lo com as

suas esquisitices. Tudo isso é assim. Mas para marido

da minha filha sempre preferia um homem cá dos

nossos. Como explicar? Enfim, um estrangeiro é um

estrangeiro, sente as coisas de outra maneira. Sabe-se

lá se não se lhe mete na cabeça abalar dum momento

para o outro! Não estão ligados a isto, como a gente.

Bem os tenho visto a desaparecerem da cidade sem

dizer água-vai.

Estas e outras coisas alegou D. Branca antes de dar,

com fingida generosidade, o seu consentimento. Mas

quando lhe revelamos que não nos casaríamos pela

Igreja, sofreu um abalo. Ainda que raras vezes fosse à

missa, exclamou:

— A minha filha não casar na Igreja? A minha única

filha?

Expliquei-lhe que Good Old Man fora judeu e a minha

mãe protestante.

Ai!, protestante! Cada vez pior! — encolerizou-se ela,

para quem os protestantes eram piores do que os

judeus ou os espanhóis. Tinha-os como pouco mais do

que a escumalha da humanidade.

Severino propôs que me baptizasse. Achava que se

estava sempre a tempo. Chegou mesmo a falar num

padre para me ensinar o catecismo, padre benevolente

que fecharia os olhos no caso de eu não meter bem a

lição na cabeça. Mas fiz-lhes ver que não estava

disposto a partir-me em três. Não atingiram a ideia,

porque para eles uma vez que não pertencia à sua

religião não pertencia a nenhuma. Mas D. Branca

acabou por se conformar com a minha «casmurrice», e

os preparativos para o enxoval e para a festa foram

diluindo o seu desgosto. Só numa coisa não cedia: eu

tinha de ir dormit numa outra casa. Que o noivo

Page 30: Ilse Losa

dormisse debaixo do mesmo tecto que a noiva,

considerava inadmissível.

Depois dos atritos com D. Branca, seguiu-se outro com

o funcionário do Registo Civil. Minuciosamente

examinou o papel que garantia a minha identidade e

mais de um mês de estadia no país.

— Prolongam-lho? — perguntou.

— Até agora sempre mo prolongaram — respondi.

— Então por aqui não vejo dificuldade. Mas falta a certidão de nascimento.  ILSE LOSA, SOB CÉUS ESTRANHOS, Ed. Afrontamento,

1992, pp. 158, 159.   

     

   Excerto 4

 

Gosto de observar Teresa a corrigir os cadernos escolares à luz do candeeiro. Sempre que os disparatados erros dos seus pequenos alunos a fazem sorrir, ela inclina a cabeça sobre o ombro, as pálpebras descem-se-lhe ligeiramente e o rosto ganha uma graça meiga e quente. Talvez no conceito geral Teresa não seja uma mulher bonita:

tem feições pouco regulares, a boca muito carnuda, o nariz comprido demais e quando lhe estremecem as narinas faz lembrar um coelhinho. Mas tudo isso se harmoniza com o corpo esbelto de porte direito, com o pescoço alto, a cabeça estreita, o cabelo dum negro brilhante e espesso que ultimamente junta num puxo arrepanhado na nuca.

Teresa dá aulas na escola primária duma zona pobre, num edifício velho, quase a cair, onde largas frinchas por debaixo das portas e das janelas provocam constantes correntes de ar. Se ao princípio manifestara entusiasmo pelo curso, embora apenas o tirasse porque Severino achava ser o curso que levava menos tempo, ficava barato e proporcionava rapidamente o ganha-

Page 31: Ilse Losa

pão, pouco a pouco foi ficando desiludida.

«As colegas mais velhas batem naquelas pobres crianças a torto e a direito», diz. «Eu só me resolvo a bater-lhes, mas apenas nas mãos, se me aparecem com as orelhas sujas ou piolhos na cabeça depois de as ter repreendido repetidas vezes». Por vezes ela chega desanimada a casa, dizendo não suportar por muito mais tempo o ensino a crianças que, de tão carecidas de carinho e de alimentação, nem conseguem prestar atenção às suas explicações. E começamos a fazer planos para uma livraria, num bairro afastado do centro e de como haveremos de juntar o dinheiro para isso. Teresa ajudar-me-á na arrumação dos livros, no balcão, na caixa.

Dentro de dois ou três anos começaremos a editar uma colecção de livros de pequeno formato, de preço módico, mas de muita qualidade. E havemos de contratar óptimos tradutores para os livros estrangeiros, apresentar capas de bom gosto, havemos de nos prestigiar para progredir depressa, poder dispensar a loja e dedicar-nos exclusivamente às edições. E Teresa gostaria de organizar uma colecção para crianças, com gravuras coloridas, e sempre que estamos com o Renato aconselha-se com ele sobre o assunto... Planos, planos, planos... E depois tudo continua na mesma, Teresa a tentar ensinar as crianças cheias de fome e piolhos e eu a traduzir cartas comerciais a troco de remuneração mais ou menos razoável e livros de ficção por remuneração humilhante, porque o comércio governa e a literatura vegeta.

 ILSE LOSA, SOB CÉUS ESTRANHOS, Ed. Afrontamento,

1992, pp. 166, 167  

   

     

 

    

 

      

      

 

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