ILSE LOSA, em Caminhos sem Destino
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ILSE LOSA
(1913-2006)
A.A. ~ 2010-2011
Prof.ª eli
Ilse Losa: aqui
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O SOBREVIVENTE
OU
BUCHENWALD
Onde quer que o sobrevivente se encontre, à sua
volta, tal um círculo amaldiçoado e intransponível, há
um campo de sepulcros e de ruínas: o seu lugar de
referência de onde ajuíza e avalia, com o qual associa
tudo a quase tudo.
Günter Kunert, Ziellose Umtriebe
«A História é a História da crueldade e não a do
amor com pensam os bem intencionados».
Saul Bellow, Herzog
Estava sentado num cadeirão de verga. Junto de si tinha um
cesto de vime, cheio até cima, onde se distinguiam, rente às bordas,
algumas barras de chocolate.
– Vieste de longe para me ver. Obrigado. – disse enquanto
envolvia o cesto com um braço, cuja mão se fechava em volta da
asa.
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Teria medo que lho roubasse? Creio que adivinhou a minha
estranheza, pois apressou-se a explicar:
– As minhas compras pessoais. Maçãs, laranjas, bolachas,
conservas, chocolate…
– Ah – interrompi-o, para mostrar interesse.
– Não concluas que aqui não me dão de comer. Dão, dão. Mas o
seguro morreu de velho. E há gulodices de que já nem conhecia o
cheiro.
A seguir uma gargalhada cáustica, em nada semelhante às que
lhe conhecia, francas, comunicativas.
– Queres?
Estendeu-me uma barra de chocolate. Bitter, lia-se sobre o
lustroso papel castanho escuro. Aceitei: – Obrigada – para não o
magoar, mas logo em seguida vieram-me dúvidas se uma recusa o
teria magoado.
– Bitter – disse ele, e era como se dissesse uma data de coisas
medonhas. – Preferias doce?
– Não, de maneira nenhuma. Acho enjoativo.
– A fome é inimiga da virtude. Sabias? (Não esperou que lhe
dissesse que sim, que sabia.) Saber em teoria é o mesmo que não
saber nada. Toma nota disso. E agora conta coisas.
Eu, contar coisas? O que se podia contar a alguém como ele?
Coisas tristes? Mas comparadas com as que ele tinha para contar, o
que eram coisas tristes? E as agradáveis? Não o ofenderiam? E se lhe
pedisse: conta antes tu? Estaria disposto a expor as suas chagas? Os
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meus olhos caíram sobre o aparelho de televisão e, para me livrar do
embaraço, perguntei:
– Costumas ver televisão?
– Filmes de animais. E as notícias. Estas por masoquismo.
E, de novo, uma gargalhada cáustica.
Fui à mala buscar a prenda que lhe destinara:
– Para ti.
Tirou o braço do cesto. Com dedos trémulos, de ambas as mãos,
desatou o fio, desdobrou o papel de embrulho, apertou as duas
cartolinas e, com ténue alegria na voz, disse:
– Um cavalo. Um andaluz. Fogo nos movimentos. Combinação
feliz de graça e de força. Um belo desenho. Porque é que mo
trouxeste?
– Porque não me esqueci da tua paixão pelos cavalos. Dizias: o
paraíso da Terra fica no dorso dos cavalos.
– Maomet. Foi Maomet, apaixonado de cavalos, quem o disse. Eu
limitava-me a papaguear.
Breves momentos de suspensão. E continuou:
– Lá (disse «lá») cheguei a sonhar com cavalos. Um dia, ou
talvez uma noite, que diferença fazia?, disse a um companheiro meu:
se nos caísse do céu um cavalo, desses com asas que voam sobre
muros e cercas de arame farpado, electrificado… E achou ele: «Então
lá fora («lá fora») iam tomar-nos pelos cavaleiros do Apocalipse». De
tal maneira já o tinham convencido de que éramos malditos.
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Vi-lhe o tormento no rosto. Nesse rosto comprido que tantas
vezes afagara com as minhas então ainda inábeis mãos de criança.
Tornou:
– O que lá vai, lá vai. É o que dizem. E também dizem: não
olhes para trás, olha para a frente. Repara bem: não olhes para trás!
(Um riso que me constrangiu de tão dissonante). Enxotar as
recordações como se enxotam as moscas. Apagá-las com um sopro
como se apagam as velas. Pois sim! Que me demonstrem como isso
funciona, os sabichões duma trampa, os impostores que se querem
dar ares. Não olhes para trás… E sabem tão bem como eu que as
recordações são irrecusáveis. Que estão como pedra e cal no tempo
de cada um. As agradáveis fazem boa companhia, as ruins
deprimem, as sinistras são uma condenação.
Silêncio espesso. Pensei que devia diluí-lo, mas que dizer que
não fosse escusado?
Foi ele quem retomou a palavra:
– De resto, o que seríamos sem as nossas recordações? Amibas?
Ou menos que amibas? Não que lá («lá») não tivesse sido benéfico,
isso de cada momento extinguir o momento anterior para que ficasse
um vácuo entre o antes e o depois, como acontece nas operações
com o tempo entre a anestesia e o acordar. Mas para os infernos da
nossa vida não há anestesias. Sabes, não sabes?
– Sei – respondi, e pensei: como é que se aguenta sobreviver ao
inferno? E terá isso algum sentido?
Como se quisesse responder aos meus pensamentos ele disse:
– Alguém chegou a afirmar, não me lembro quem foi, que a
História dos Homens é feita de crueldades. E acertou. As crueldades
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engancham-se umas nas outras, no mais pesado grilhão que os
homens arrastam consigo e do qual só se libertarão no dia do Juízo
Final. É o único sentido que há em tudo isso.
– Viste coisas terríveis, imagino.
– Não imaginas, não. Nem em dez séculos de uma vida como a
que tu levas chegarias a imaginar o que eu vi. Também não chegarias
a alargar os teus conhecimentos sobre a nossa espécie chamada
humana como eu os alarguei nesses anos, poucos na contagem
formal dos calendários, mas na realidade tão inumeráveis como as
estrelas do céu.
Alguém entrou para nos trazer chá.
– Certa vez – disse ele – deram-nos a beber água salgada,
durante cinco dias. Depois colocaram tinas de água doce na nossa
frente. Os sequiosos mais irreflectidos beberam com tanta
sofreguidão que rebentaram. Literalmente: rebentaram.
Disse aquilo como quem reza uma lengalenga. Depois, e apesar
de no tabuleiro de chá haver um pratinho com bolachas, desencantou
do seu cesto uma caixa que me estendeu:
– Waffeln. Com recheio.
Finalmente comecei a contar coisas. Mas só me apercebi de que
ele me estava a escutar quando, na altura em que falei de crianças,
me interrompeu:
– Eu via levarem crianças às carradas para a câmara da morte
com acompanhamento de música sinfónica.
Ao despedir-me afaguei-lhe, ao de leve, o rosto amargurado de
tanto saber e deixei-o, na solidão, com os seus monstros.
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Tive notícias de que morreu e de que no último ano da sua
existência de sobrevivente lhe fora concedida a clemência de uma
segunda meninice. Tudo o resto apagara-se-lhe da memória. Ainda
via os filmes de animais, mas não se flagelava com o noticiário para
se certificar de que a História dos Homens é feita de crueldades.
Montava cavalos, picava-os com esporas e gritava: Anda! Houp!
Também dizia a pequena oração da noite, que a mãe lhe ensinara e
que acabava assim: «Protege-me, Senhor, para que nada de mal me
aconteça no dia de amanhã. Amen».
Ilse Losa, “O Sobrevivente ou Buchenwald»,
in Caminhos sem Destino
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in memoriam
biobibliografia
Ilse Losa