Iluminismo Rouanet Integral

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Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbárie , in Mal estar na modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45. 1 I ILUMINISMO OU BARBÁRIE A CRISE DA CIVILIZAÇÃO MODERNA Todos dizem que a modernidade está em crise. É um lugar-comum, mas como outros lugares- comuns este pode ser até verdadeiro, desde que se entenda bem o alcance do diagnóstico. O que existe atrás da crise da modernidade.é uma crise de civilização. O que está em crise é o projeto moderno de civilização, elaborado pela Ilustração européia a partir de motivos da cultura judeo-clássica-cristã e aprofundado nos dois séculos subseqüentes por movimentos como o liberal-capitalismo e o socialismo. O projeto civilizatório da modernidade tem como ingredientes principais os conceitos de universalidade, individualidade e autonomia. A universalidade significa que ele visa todos os seres humanos, independentemente de barreiras nacionais, étnicas ou culturais. A individualidade significa que esses seres humanos são considerados como pessoas concretas e não como integrantes de uma coletividade e que se atribui valor ético positivo à sua crescente individualização. A autonomia significa que esses seres humanos individualizados são aptos a pensarem por si mesmos, sem a tutela da religião ou da ideologia, a agirem no espaço público e a adquirirem pelo seu trabalho os bens e serviços necessários à sobrevivência material. Ora, esse projeto civilizatório está fazendo água por todas as juntas. O universalismo está sendo sabotado por uma proliferação de particularismos - nacionais, culturais, raciais, religiosos. Os nacionalismos mais virulentos despedaçam antigos impérios e inspiram atrocidades de dar inveja a Gêngis Khan. O racismo e a xenofobia saem do esgoto e ganham eleições. A individualidade submerge cada vez mais no anonimato do conformismo e da sociedade de consumo: não se trata tanto de pensar os pensamentos que todos pensam, mas de comprar os videocassetes que todos compram, nos aviões charter em que todos voam para Miami. 9 A autonomia intelectual, baseada na visão secular do mundo, está sendo explodida pelo reencantamento do mundo, que repõe os duendes em circulação, organiza congressos de bruxas, associa- se ao guia Michelin para facilitar peregrinações esotéricas a Santiago de Compostella e fornece horóscopos eletrônicos a texanos domiciliados no Tibet. A autonomia política é negada por ditaduras ou transformada numa coreografia eleitoral encenada de quatro em quatro anos. A autonomia econômica é uma mentira sádica para os três terços do gênero humano que vivem em condições de pobreza absoluta. Marx disse que a Alemanha tinha vivido todas as contra-revoluções da Europa e nenhuma de suas revoluções. Podemos adaptar essa frase ao Brasil: estamos vivendo a revolta antimoderna que hoje grassa no mundo sem jamais termos vivido a modernidade. O universalismo, entre nós, é sistematicamente repudiado por um nacionalismo cultural que parece ter sete fôlegos. Mal uma de suas variantes desaparece, outra toma o seu lugar. Foi assim que o nativismo setecentista foi substituído pelo indigenismo romântico, este pelo naturalismo de Silvio Romero, este pelo jacobinismo florianista, este pelo movimento modernista, este pelo nacional- autoritarismo do Estado Novo, este pelo ISEB, este pelo CPC da UNE, este pelo chauvinismo do regime militar e este pela broa de milho. Se existe tema consensual no Brasil é certamente o de que temos que desenvolver nossa própria cultura e rejeitar modelos culturais estrangeiros. A bem da verdade, uma certa esquerda intelectual já está mudando de discurso, talvez por se dar conta da origem conservadora e do funcionamento fascistizante do topos da autenticidade nacional. Este, no entanto, continua vivíssimo como atitude social, e há muito já invadiu o país, entrando nas assembléias de estudantes, nos sindicatos de dentistas, nas academias de musculação, e como verdadeiro arrastão ideológico, nas praias da Zona Sul carioca. A individualidade também não desperta entusiasmo. Em vez disso, há por lado um hiperindividualismo exasperado, mistura de lei de Gerson e de consumismo de Zona Franca. E, por outro lado, uma busca reverente de raízes, uma confusa tentativa de recriar identidades afro-baianas, uma angústia diante da individualização e uma necessidade de remergulhar em totalidades mais ou menos tribais. Nos dois casos, há uma nostalgia da condição paradisíaca, estado adamítico em que o homem aderia ao todo. Onde fica esse paraíso? Para os hebreus, o Éden ficava em algum lugar entre o Sinai e o Eufrates. A geografia do antipersonalismo brasileiro é menos prestigiosa. Para o brasileiro em busca de agasalho comunitário, o paraíso fica entre Salvador e Porto Seguro. Já para o intrépido comprador de hardware eletrônico, ele se localiza no estado da Flórida, em algum ponto entre Miami e Orlando.

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  • Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45.

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    I

    ILUMINISMO OU BARBRIE

    A CRISE DA CIVILIZAO MODERNA

    Todos dizem que a modernidade est em crise. um lugar-comum, mas como outros lugares-comuns este pode ser at verdadeiro, desde que se entenda bem o alcance do diagnstico. O que existe atrs da crise da modernidade. uma crise de civilizao. O que est em crise o projeto moderno de civilizao, elaborado pela Ilustrao europia a partir de motivos da cultura judeo-clssica-crist e aprofundado nos dois sculos subseqentes por movimentos como o liberal-capitalismo e o socialismo.

    O projeto civilizatrio da modernidade tem como ingredientes principais os conceitos de universalidade, individualidade e autonomia. A universalidade significa que ele visa todos os seres humanos, independentemente de barreiras nacionais, tnicas ou culturais. A individualidade significa que esses seres humanos so considerados como pessoas concretas e no como integrantes de uma coletividade e que se atribui valor tico positivo sua crescente individualizao. A autonomia significa que esses seres humanos individualizados so aptos a pensarem por si mesmos, sem a tutela da religio ou da ideologia, a agirem no espao pblico e a adquirirem pelo seu trabalho os bens e servios necessrios sobrevivncia material.

    Ora, esse projeto civilizatrio est fazendo gua por todas as juntas. O universalismo est sendo sabotado por uma proliferao de particularismos - nacionais,

    culturais, raciais, religiosos. Os nacionalismos mais virulentos despedaam antigos imprios e inspiram atrocidades de dar inveja a Gngis Khan. O racismo e a xenofobia saem do esgoto e ganham eleies.

    A individualidade submerge cada vez mais no anonimato do conformismo e da sociedade de consumo: no se trata tanto de pensar os pensamentos que todos pensam, mas de comprar os videocassetes que todos compram, nos avies charter em que todos voam para Miami.

    9 A autonomia intelectual, baseada na viso secular do mundo, est sendo explodida pelo

    reencantamento do mundo, que repe os duendes em circulao, organiza congressos de bruxas, associa-se ao guia Michelin para facilitar peregrinaes esotricas a Santiago de Compostella e fornece horscopos eletrnicos a texanos domiciliados no Tibet. A autonomia poltica negada por ditaduras ou transformada numa coreografia eleitoral encenada de quatro em quatro anos. A autonomia econmica uma mentira sdica para os trs teros do gnero humano que vivem em condies de pobreza absoluta.

    Marx disse que a Alemanha tinha vivido todas as contra-revolues da Europa e nenhuma de suas revolues. Podemos adaptar essa frase ao Brasil: estamos vivendo a revolta antimoderna que hoje grassa no mundo sem jamais termos vivido a modernidade.

    O universalismo, entre ns, sistematicamente repudiado por um nacionalismo cultural que parece ter sete flegos. Mal uma de suas variantes desaparece, outra toma o seu lugar. Foi assim que o nativismo setecentista foi substitudo pelo indigenismo romntico, este pelo naturalismo de Silvio Romero, este pelo jacobinismo florianista, este pelo movimento modernista, este pelo nacional-autoritarismo do Estado Novo, este pelo ISEB, este pelo CPC da UNE, este pelo chauvinismo do regime militar e este pela broa de milho. Se existe tema consensual no Brasil certamente o de que temos que desenvolver nossa prpria cultura e rejeitar modelos culturais estrangeiros. A bem da verdade, uma certa esquerda intelectual j est mudando de discurso, talvez por se dar conta da origem conservadora e do funcionamento fascistizante do topos da autenticidade nacional. Este, no entanto, continua vivssimo como atitude social, e h muito j invadiu o pas, entrando nas assemblias de estudantes, nos sindicatos de dentistas, nas academias de musculao, e como verdadeiro arrasto ideolgico, nas praias da Zona Sul carioca.

    A individualidade tambm no desperta entusiasmo. Em vez disso, h por lado um hiperindividualismo exasperado, mistura de lei de Gerson e de consumismo de Zona Franca. E, por outro lado, uma busca reverente de razes, uma confusa tentativa de recriar identidades afro-baianas, uma angstia diante da individualizao e uma necessidade de remergulhar em totalidades mais ou menos tribais. Nos dois casos, h uma nostalgia da condio paradisaca, estado adamtico em que o homem aderia ao todo. Onde fica esse paraso? Para os hebreus, o den ficava em algum lugar entre o Sinai e o Eufrates. A geografia do antipersonalismo brasileiro menos prestigiosa. Para o brasileiro em busca de agasalho comunitrio, o paraso fica entre Salvador e Porto Seguro. J para o intrpido comprador de hardware eletrnico, ele se localiza no estado da Flrida, em algum ponto entre Miami e Orlando.

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    A razo secular da Ilustrao outro valor em baixa. Mais que em outros pases, est em marcha entre ns um grande projeto de re-sacralizao do mundo. o que se nota no culto das pirmides de cristal, na seriedade com que se consultam astrlogos e videntes, e na mitologizao da psicanlise, que oscila entre os arqutipos de Jung e a reencarnao. Essas atitudes so compatveis com posies polticas de esquerda, o que uma homenagem nossa flexibilidade intelectual. Conheci um antigo guerrilheiro que descobriu, numa sesso de anlise, ser a reencarnao de Ramss, o Grande. Um amigo petista consultou o I Ching para saber se Suplicy ia ganhar em So Paulo, e pensou seriamente em fundar dentro do Partido uma nova faco, denominada Travessia Esotrica. Os sincretismos no so raros na histria das idias. No incio do sculo, por exemplo, alguns intelectuais vienenses tentaram fundir Marx com Kant. Era o austromarxismo. No Brasil, antevejo uma fuso de Marx com a astrologia: o astromarxismo.

    A experincia recente de mais de vinte anos de ditadura militar tem impedido at agora uma desiluso com as instituies democrticas. Mas a politizao no o forte das geraes mais jovens. H um certo risco de carnavalizao da poltica: uma festa em que alguns adolescentes saem periodicamente s ruas num simpaticssimo protesto contra a corrupo e as altas mensalidades escolares, e, no intervalo, a letargia. preciso convir que essa atitude aptica se justifica pela forma de funcionamento entre ns da rotina democrtica. No h como vibrar com entusiasmo cvico quando se vem as disputas parlamentares por verbas e cargos pblicos. Quando a controvrsia entre o parlamentarismo e o presidencialismo con-duzida como se fosse a competio entre dois detergentes, prefervel escolher um produto menos nocivo ao meio ambiente - por exemplo, a cerveja, tomando partido, com um chope, na guerra entre a Brahma e a Antarctica.

    Enfim, h uma grande descrena com relao ao sistema econmico. O capitalismo vivido como gerador de desemprego e de explorao, o socialismo fracassou em suas promessas de eliminar a injustia social e de promover a abundncia, e ambos se revelaram ecologicamente predatrios.

    Em suma, no Brasil e no mundo, o projeto civilizatrio da modernidade entrou em colapso. No se trata de uma transgresso na prtica de princpios aceitos em teoria, pois nesse caso no haveria crise de civilizao. Trata-se de uma rejeio dos prprios princpios, de uma recusa dos valores civilizatrios propostos pela modernidade. Como a civilizao que tnhamos perdeu sua vigncia e como nenhum outro projeto de civilizao aponta no horizonte, estamos vivendo, literalmente, num vcuo civilizatrio. H um nome para isso: barbrie. Pois o brbaro, sem nenhum ju~

    11 zo de valor, no sentido mais neutro e mais rigoroso, aquele que vive fora da civilizao.

    Diante disso, h trs reaes possveis. Podemos deixar em paz os brbaros, sem infermizar-lhes a existncia com valores civilizados. Podemos partir para um modelo civilizatrio antimoderno, que represente em tudo a anttese do projeto da modernidade. E podemos repensar a modernidade, em busca de uma alternativa neomoderna.

    No faltaro partidrios da primeira soluo. Hoje em dia a barbrie no assusta mais. Talvez ainda existam alguns nonagenrios dispostos a morrer em defesa da "deusa serena, serena forma", contra os vndalos e visigodos do verso livre. Implicncias de velho parnasiano. No excluo sequer que no fundo de alguma biblioteca semi-roda pelas traas algum professor de portugus continue babujando insultos contra os barbarismos lingsticos. Coisas de gramtico. Salvo essas hostilidades extravagantes, os brbaros em geral tm boa imagem.

    Verdade que hoje em dia os que se vem e so vistos como brbaros no vestem mais peles de urso e em vez de brandirem lanas manejam o violo, fazendo amor em vez de guerra. Alm disso, h diferenas menores - os hbitos alimentares, por exemplo. Os brbaros de hoje so vegetarianos e gostam mais da cozinha macrobitica que de javalis. No importa. O que conta a atitude contracultural. Obelix no respeitava as normas de boas maneiras de Petrnio e normalmente os brbaros brasileiros no circulam de black tie nas colunas sociais. Comum aos brbaros antigos e modernos uma ignorncia robusta, saudvel, e quase diria metdica. Nossos brbaros so to incapazes de citar o ttulo de um romance de Stendhal como um frgio do tempo de Augusto de declamar uma ode de Catulo.

    No, a barbrie no amedronta mais. Com isso, o ttulo deste ensaio (aluso ao grupo Socialismo ou Barbrie, reunido nos ps-guerra em torno de intelectuais como Castoriadis e Claude Lefort) perde grande parte do seu poder de fogo. Sem o Iluminismo at possvel que tenhamos mesmo a barbrie - e da? Na pior das hipteses, iremos todos para Porto Seguro e dormiremos na praia depois de uma bebedeira de cauim.

    Mas espero que o ttulo venha a exercer algum impacto mobilizador se refletirmos sobre a natureza da barbrie que efetivamente nos ameaa. Ela no amvel. Os verdadeiros brbaros retalham a Iugoslvia em nome da nao e assassinam milhares de homens, mulheres e crianas. Em defesa do povo matam de fome na Somlia uma populao inteira. Para maior glria do Isl condenam morte um

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    escritor sacrlego. Invocando Brama arrasam mesquitas e trucidam fiis. Na Alemanha, vo buscar obsesses imundas nas cloacas do inconsciente coletivo: estaria novamente no cio a cadela que pariu Hitler? Eles empunham na Frana o pavilho

    12 de uma xenofobia imemorial: estariam de volta os fuzilados de Vichy? Os verdadeiros brbaros so patriotas bascos, irlandeses e bretes. Como distinguir os mais patriotas? Pelo poder explosivo de suas bombas. No Brasil, crianas so sacrificadas por bruxos profissionais, em rituais de magia negra, e por justiceiros profissionais, na Baixada Fluminense. Empresrios yuppies jogam bzios, pagam comisses a corretores de verbas pblicas e financiam grupos de extermnio. Em suma, no h muita justificativa para idealizar a barbrie. Ao que tudo indica, ela no muito mais aconchegante hoje que no tempo de tila, o Flagelo de Deus.

    Eis os brbaros de carne e osso. Os que se autodesignam assim no so brbaros, e sim neo-rousseaustas cujo nico delito grave nunca terem ouvido falar em Rousseau. So pastores arcdicos, Phyllis e Ttiros que sem saberem disso migraram diretamente dos bosques de Tecrito e Virglio - "formosam resonare doces Amaryllida silvas'' - para a Floresta da Tijuca. No so de todo inocentes, porque partilham com os brbaros autnticos algumas caractersticas perigosas, como o desprezo pela razo. Nem so muito ajuizados, porque brincar com uma barbrie mtica quando uma barbrie real est rondando s nossas portas levar longe demais o mecanismo de defesa que os psicanalistas chamam de identificao com o agressor. Mas, ao contrrio dos brbaros genunos, so adeptos sinceros da paz e da justia, e portanto so aliados potenciais na luta contra a barbrie. Vale dizer que so os principais interessados na gestao de um projeto civilizatrio que incorpore aqueles valores.

    O segundo caminho seria lutar por um projeto antimoderno de civilizao. Ele seria em tudo a anttese do projeto moderno: o particularismo em vez do universalismo, o holismo em vez da individualidade, a religio em vez do desencantamento, a autoridade em vez da liberdade, e a estratificao em vez da mobilidade s cio. Em parte, esse projeto j est sendo proposto por uma aliana esdrxula de conservadores polticos, fundamentalistas religiosos e radicais ps-modernos. Como um programa desse tipo no fundo duplicaria tendncias j presentes na realidade, canonizando como valor o que j existe como fato, no parece que essa nova civilizao contribusse muito para abolir a barbrie.

    Resta o projeto de uma civilizao neomoderna, capaz de manter o que existe de positivo na modernidade, corrigindo suas patologias. Esse projeto corresponde ao que chamo de Iluminismo. O Iluminismo um ens rationis, no uma poca ou um movimento. Por isso sempre o distingui da Ilustrao, que designa, esta sim, um momento na histria cultural do Ocidente. Enquanto construo, o Iluminismo tem uma existncia meramente conceitual: a destilao terica da corrente de idias que floresceu no sculo XVIII em torno de filsofos enciclopedistas como Voltaire e Diderot, e de "herdeiros" dessa corrente, como

    13 o liberalismo e o socialismo, que, incorporando de modo seletivo certas categorias da Ilustrao, levaram adiante a cruzada ilustrada pela emancipao do homem.

    Se conseguir construir a partir dessas trs configuraes algo como uma "idia" iluminista, creio que obterei os elementos para o nosso projeto de civilizao.

    Ao selecionar a Ilustrao, o liberalismo e o socialismo como as constelaes histricas de que julgo poder decantar a idia iluminista, no estou dizendo que essas trs correntes esgotem o contedo do Iluminismo. A Antiguidade clssica, o cristianismo, a Renascena e a Reforma foram foras poderosssimas, mas de certo modo todas confluram para a Ilustrao e j esto contidas nela. No sculo XIX e XX vrias correntes estiveram em jogo, como o romantismo ou o anarquismo, mas no h dvida de que o pensamento liberal e o socialismo tm com relao s demais correntes intelectuais no somente o privilgio de terem se materializado em formas concretas de sociedade, como o de representarem, prima lacre, antes de qualquer investigao emprica, correntes em que as continuidades com a Ilustrao prevalecem sobre as descontinuidades. No nvel pr-terico em que escolhemos nossos objetos de estudo o bom senso e a intuio so to fundamentais quanto, no nvel terico em que se realiza o estudo, o rigor e o esprito de objetividade. E seria manifestamente contra-intuitivo e oposto ao senso comum incluir o fascismo, por exemplo, entre as configuraes culturais das quais esperamos extrair os contornos da idia iluminista.

    Dito isto, o primeiro passo para a construo da idia iluminista examinar o modo de funcionamento na Ilustrao, no liberalismo e no socialismo das categorias da universalidade, da individualidade e da autonomia.

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    A ILUSTRAO

    Levando s ltimas conseqncias o cosmopolitismo estico e o conceito da fraternidade crist, a Ilustrao foi verdadeiramente universalista. Para ela, a idia de que todos os homens eram iguais, independentemente de fronteiras ou culturas, estava longe de ser uma abstrao retrica. O mundo, para ela, era realmente uma civitas maxima. Nenhuma poca foi menos etnocntrica. Privados da luz da razo e submetidos impostura religiosa, todos os homens podiam ser considerados brbaros, e em primeira instncia os europeus, e todos tinham o potencial para transitarem da barbrie civilizao, e em primeira instncia os ''selvagens" da Amrica, mais prximos da natureza e portanto da verdadeira civilizao. Trata-

    14 va-se de formular princpios genricos, baseados na razo e na observao, que pudessem ajudar todos os seres humanos a acederem vida civilizada. Pressupunha-se a validade universal desses princpios por se basearem numa natureza humana igualmente universal, no sentido de que todos os homens tm uma estrutura passional idntica, com afetos e interesses constantes, e uma razo uniforme, alm de todas as variaes espacio-temporais, o que implicava a validade geral tanto das descobertas da razo terica (s existe uma geometria e a lei da gravidade vale para todos) como das intuies da razo prtica (a moral bret no difere da moral dos tupinambs). A fora libertadora desse universalismo foi real. Reafirmando a igualdade de todos os seres humanos diante da razo, ela transps para o terreno secular da luta filosfica e poltica a idia religiosa de que todos so filhos de Deus e iguais diante do Criador, o que teve conseqncias explosivas.

    Ao mesmo tempo, certo que esse universalismo no foi suficientemente atento a diferenas reais, e nisso se exps crtica herderiana e romntica de operar com um conceito abstrato de homem em geral. Contudo, justo dizer que a dimenso subversiva da Ilustrao estava justamente nessa concepo abstrata do homem, sem a qual no se teria transitado da viso nacional-conservadora de Burke (''the rights of the Englishman'') para a viso revolucionria dos direitos do homem. O universalismo ilustrado gerou efeitos polticos importantes, como a condenao de qualquer forma de racismo, de colonialismo, de sexismo. O que no exclui atitudes individuais aberrantes, como um certo anti-semitismo em Voltaire (que no entanto no tinha nenhum cunho racial, e sim religioso, pois a desmoralizao do judasmo bblico fazia parte da cruzada contra a Igreja catlica) e um certo misogenesmo em Rousseau (apesar do culto a Rousseau por mulheres eminentes como madame de Stal e George Sand).

    Outra originalidade da Ilustrao foi seu foco individualizante. Nas sociedades tradicionais, o homem s existe como parte do coletivo

    do cl, da gens, da polis, do feudo, da nao. O cristianismo e a Reforma tinham contribudo para o processo de individualizao, mas apenas no plano transcendente da relao do homem com Deus. Caberia Ilustrao, levando adiante os fermentos individualizadores da Renascena, liberar plenamente o indivduo, extraindo~o da matriz coletiva. Ela partia da hiptese de homens isolados, que se uniam por razes utilitrias para formarem a sociedade civil. Antes do contrato, o homem pr-social: um grupo de indivduos dispersos. Depois do contrato, ele pode estar sujeito a leis to severas quanto as do Estado-Leviat, mas a sociedade continua sendo pensada como uma agregao mecnica de indivduos e no como

    15 uma comunidade orgnica. No estado de natureza como no estado civil, o homem s existe como indivduo.

    O individualismo ilustrado gera conseqncias importantes. O indivduo passa a ser titular de direitos e no apenas de obrigaes, como nas antigas ticas religiosas e comunitrias. Entre esses direitos avulta o direito felicidade, o que leva difuso do eudemonismo numa escala at ento sem precedentes. O todo existe para o indivduo e no este para o todo. Alm disso, libertando os homens da insero comunitria, a Ilustrao os coloca em posio de exterioridade com relao ao mundo social, o que permite transform-los em observadores e juizes de sua prpria sociedade.

    O individualismo da Ilustrao teve portanto o mrito de colocar no centro da tica o direito felicidade e auto-realizao e o de valorizar o indivduo descentrado, o homem que se liberta dos vnculos ''naturais'' e pode situar-se na posio de formular juzos ticos e polticos a partir de princpios universais de justia, independentemente de quaisquer lealdades locais.

    Por outro lado, o individualismo degenerou facilmente, no sculo XVIII, numa apologia insensata do interesse pessoal, ignorando-se a utilidade coletiva, e do prazer hedonstico, quaisquer que fossem suas conseqncias. Alm disso, o carter atomstico desse individualismo levou a desconhecer que todo indivduo social e que o telos da individuao crescente s pode ser alcanado socialmente.

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    A autonomia intelectual estava no centre do projeto civilizatrio da Ilustrao. O objetivo bsico era libertar a razo do preconceito, isto , da opinio sem julgamento. At ento, a inteligncia humana tinha sido tutelada pela autoridade, religiosa ou secular. Durante milnios, portanto, o gnero humano tinha vivido em estado de minoridade. Tratava-se agora de sacudir todos os jugos que tolhiam a liberdade de pensar, de desprender a razo de todas as custdias, de aceder e promover o acesso condio adulta. Era importante, para isso, criticar a religio, principal responsvel pela paralisao da inteligncia, e em geral todas as idias que pretendessem substituir as igrejas em seu papel de infantilizao do homem, e que a esse ttulo funcionavam como agentes auxiliares do despotismo. Donde a importncia crucial da educao, nica forma de imunizar o esprito humano contra as investidas do obscurantismo. Donde a importncia da cincia, que substitua o dogma pelo saber, ou, para usar metforas da poca, que dissipava com a luz da verdade as quimeras e fantasias da superstio.

    O ideal da autonomia intelectual o mais alto que nos legou a Ilustrao. Mas ele repousa numa petitio principii, que pressupe como j atin-

    l6 gido aquilo mesmo que se trata de atingir: s uma razo j livre pode travar a luta pela libertao da razo. Na prtica, o paradoxo era evitado com a suposio de que alguns indivduos - os filsofos - j tinham se emancipado dos preconceitos e podiam ajudar os demais a alcanarem a mesma libertao. Pressuposto elitista, portanto, que transformava os filsofos numa vanguarda do esprito humano, mas inteiramente compatvel com o antiigualitarismo de Voltaire, para quem as verdades da filosofia no deveriam ser ensinadas canaille, e que estava convencido de que seria roubado por seu alfaiate no momento em que este deixasse de acreditar em Deus. Impertinncia talvez perdovel, se se levar em conta que foi o autor de Candide o grande lder da batalha contra a superstio, e portanto o mais vigoroso defensor do desencantamento, condio sine qua non da modernidade.

    A autonomia poltica consistia para a Ilustrao na liberdade de ao do homem no espao pblico. Numa de suas vertentes, a liberal, a Ilustrao limitava-se, para isso, a propor um sistema de garantias contra a ao arbitrria do Estado. Foi a posio de Montesquieu, de Voltaire, de Diderot. Em outra vertente, a democrtica, a Ilustrao considerava insuficiente proteger o cidado contra o governo: era necessrio que ele contribusse para a formao do governo ou, mais radicalmente, fosse ele prprio o governo. Era a posio quase solitria de Rousseau. As duas vertentes tinham em comum o valor da liberdade, tanto num sentido negativo (o homem era livre, enquanto sdito, das investidas da tirania) quanto num sentido positivo (ele era livre, enquanto cidado, para participar da gnese e do exerccio do poder poltico).

    Por isso a condenao do despotismo foi a contribuio mais forte da Ilustrao ao ideal da autonomia poltica. Da a relojoaria institucional de Montesquieu, advogando o estabelecimento de um sistema de equilbrio e neutralizao recproca de poderes; da a importncia ocasionalmente atribuda manuteno de instituies feudais, como os parlements, a ttulo de contrapoderes destinados a compensar os excessos da monarquia absoluta; da as propostas de reforma do sistema judicirio, para evitar o arbtrio dos magistrados; da a proposta rousseausta de democracia direta, pela qual o povo soberano, autogovernando-se, afasta definitivamente o espectro da tirania. certo, por outra parte, que com exceo de Rousseau, os autores da Ilustrao no foram especialmente democrticos, e acreditavam mais na liberdade para os filsofos que nas luzes do povo soberano. De resto, mesmo em Rousseau o dio ao despotismo no isento de uma certa ambigidade, pois no parece haver grande espao para os direitos humanos na sociedade constituda segundo os princpios do Con-

    l7 trato social. O antidespotismo de Helvtius e do baro Holbach apresenta tambm as suas singularidades. O tirano o governante que, por no conhecer os mveis fundamentais da psicologia humana - o prazer e a dor - e por ignorar que o objetivo bsico de todo corpo poltico assegurar o mximo de prazer para o maior nmero, conduz os homens de acordo com leis brutais, que violam o interesse pessoal da maioria. O oposto do tirano o legislador prudente, que sabe usar os dois mecanismos psicolgicos fundamentais para harmonizar o interesse de cada um com a utilidade coletiva. Esse legislador que condiciona os homens para o bem comum atravs do prazer e da dor corresponde mais imagem do cientista louco que de Slon ou Licurgo. Longe de ser um antitirano, na melhor das hipteses um bom tirano, em seu elemento no sculo que originou o tipo do dspota esclarecido.

    A autonomia econmica foi uma das preocupaes centrais da Ilustrao. Embora o igualitarismo dos filsofos fosse temperado pela convico de que o estado civilizado exigia a criao de desigualdades inexistentes no estado de natureza, todos sentiam que a misria material era um obstculo ao progresso moral e ao exerccio dos direitos e obrigaes civis. A Encyclopdie lapidar: "H poucas almas suficientemente firmes para no serem abatidas e envilecidas a longo prazo pela misria [...] A misria a

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    me dos grandes crimes; so os soberanos que fazem os miserveis, e eles respondero neste mundo e no outro pelos crimes que a misria tiver cometido''. O sibaritismo delicado de alguns filsofos, que os levava a idealizar as virtudes civilizadoras do luxo, no os impedia de lamentar os infortnios dos indigentes. Deplorar o contraste entre os palcios e as choupanas um lugar-comum das Luzes. Por isso, o ideal de Rousseau era uma ordem social em que todos pudessem satisfazer suas necessidades de alimentao, moradia e vesturio, uma ordem de igualdade relativa em que "ningum fosse to pobre que precisasse vender-se nem to rico que pudesse comprar os outros''. Mas se o ideal da autonomia econmica no sentido de segurana material era comum a todos os autores, as opinies variavam no tocante aos meios. De modo geral, os economistas setecentistas achavam que para se chegar autonomia, na acepo acima, era necessrio partir da autonomia, na acepo de liberdade para os agentes. Era um caminho individualista e antiestatizante. Foi o caso dos fisiocratas, que defendiam a ausncia de toda regulamentao governamental - a frmula do laissez faire foi uma inveno do fisiocrata Quesnay (ou de Gournay, outro fisiocrata). Foi o caso dos economistas ingleses, para os quais o intervencionismo estatal acabava gerando efeitos contrrios aos pretendidos.

    18 Mas outros autores defendiam solues no individualistas. Alis, mesmo os economistas

    aceitavam dentro de certos limites a interveno governamental no mercado - por exemplo, para mitigar os sofrimentos excessivos da classe trabalhadora. O prprio Adam Smith disse que tais sofrimentos so inevitveis, "a menos que o governo faa algo para impedi-los''. A propriedade privada nunca fez parte do repertrio de idias fixas da Ilustrao. Filsofos como Mably e Morelly, para no falar de Babeuf, pregaram a instalao da liberdade coletiva - Restif foi o primeiro a usar a palavra "comunismo" em seu sentido moderno. Rousseau no pertencia a esse nmero, pois defendia a pequena propriedade camponesa, mas foi ele quem disse que "o primeiro homem que cercou um terreno com uma cerca e disse 'isto meu', foi o verdadeiro fundador 'da sociedade civil [...] Cuidado com as palavras desse impostor1 Estareis perdidos se esquecerdes que os produtos pertencem a todos e que a terra no pertence a ningum". um grande mrito da Ilustrao ter proposto o ideal da autonomia econmica. O sculo que idealizou como nenhum outro a liberdade foi tambm o sculo do igualitarismo. Mas preciso reconhecer que os autores que pregavam a igualdade natural raramente eram apstolos da implantao efetiva, na vida social, da igualdade econmica. Por outro lado, se era geral o reconhecimento do direito de cada individuo de dispor da base material mnima para a sobrevivncia, nem sempre esse conceito de autonomia era posto em conexo com as demais dimenses da autonomia. Por exemplo, vrias utopias coletivistas, como as imaginadas por Restif de la Bretonne, asseguravam a seus habitantes a segurana econmica, mas no a liberdade poltica. Por outro lado, os grandes entusiastas do individualismo econmico foram os fisiocratas, partidrios da monarquia absoluta.

    O LIBERALISMO

    As sociedades organizadas segundo princpios liberais levaram adiante, a seu modo, o ideal universalista. -Em teoria, a natureza humana era considerada a mesma em toda parte, e embora alguns indivduos e povos fossem mais primitivos que outros, todos tinham em princpio os mesmos talentos e a mesma capacidade de progredir, independentemente de sexo ou raa. O liberalismo econmico pregava uma comunidade mundial interdependente, com base na diviso internacional do trabalho. O liberalismo poltico combatia o imperialismo, a imposio da vontade de um povo sobre outro. Na hierarquia das virtudes, o bem da humanidade tinha valor supremo e devia ser usado como critrio para determinar a validade tica de uma ao praticada na esfera da famlia ou da nao. O universalismo

    19 atingia igualmente a esfera do saber e da moral: a norma tica no era menos invarivel do que a verdade cientfica. Recorde-se, enfim, a preocupao liberal com os direitos das mulheres (Stuart Mill), dos negros (a campanha contra a escravido nos Estados Unidos e no Brasil) e dos povos subjugados (o liberalismo sempre foi anticolonialista) e ter-se- uma idia da extenso do universalismo liberal.

    Mas na prtica esse universalismo revelou-se extremamente problemtico, O evolucionismo criou uma hierarquia entre os povos, separando os europeus, que estavam no topo da escala, dos povos no-europeus. O racismo, sempre endmico no Ocidente, "legitimou-se" cientificamente com as teorias de Gobineau, que pregava a superioridade da raa branca, e vrios dos seus discpulos no sculo XX, como Chamberlain e Rosenberg na Alemanha, Galton na Inglaterra, e Stodard e Grant nos Estados Unidos. Mesmo descontando os pases, como a Alemanha e a frica do Sul, em que a discriminao racial se transformou em poltica do Estado, o racismo foi extremamente agressivo nos Estados Unidos at a

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    dcada de J970 e caracterizou em grande parte a mentalidade colonial. O cosmopolitismo da Ilustrao cedeu lugar aos nacionalismos mais estridentes, em parte justificados pela doutrina liberal da autodeterminao dos povos. No fundo o internacionalismo remanescente se limitou convico de que a expanso do capital exigia a derrubada das barreiras nacionais - de preferncia nos pases subdesenvolvidos. O pacifismo ilustrado foi substitudo pela prtica da guerra e at por sua apologia, como aplicao da doutrina darwinista da luta pela existncia e da seleo natural. O imperialismo se generalizou, contrariando o anticolonialismo da Ilustrao. O feminismo do sculo XVIII foi abafado pelo sexismo vitoriano, que, apesar de autores como Stuart Mill, de modo geral sustentava a inferioridade da mulher e hostilizava, pelo ridculo, as militantes da luta em defesa dos direitos da mulher - as sufragettes.

    Nas condies contemporneas, as conquistas do universalismo coexistem com regresses particularistas. O papel das Naes Unidas se fortaleceu, mas pode-se perguntar at que ponto o Conselho de Segurana no est sendo usado para acobertar as prticas de poder das grandes potncias, com isso recobrindo particularismos nacionais com o manto de um falso universalismo. Os movimentos de integrao regional esto levando superao do nacionalismo, mas os espasmos de patriotismo, e no apenas em pequenos pases como a Dinamarca, parecem no ser apenas emoes residuais, Nos Estados Unidos, uma poltica ativa de salva-guarda dos direitos civis das mulheres e das minorias conseguiu em grande parte inverter as atitudes e polticas discriminatrias, mas ao preo de gerar um movimento potencialmente fascista, que idealiza e perpetua a diferena, ontologizando-a, em vez de relativiz-la, como preconiza o igua-

    20 litarismo iluminista. Na Europa do Leste, os nacionalismos se desencadearam depois da derrota do comunismo e do fim da Unio Sovitica, retribalizando o antigo imprio e conseguindo o prodgio de balcanizar os prprios Blcs. Na Europa Ocidental, exacerba-se a violncia contra os trabalhadores emigrados e ressurgem as formas mais ignbeis de racismo. Feitas as contas, no se pode dizer que o universalismo esteja entre as obsesses do mundo de hoje.

    As sociedades liberal-democrticas concretizaram em grande parte o ideal individualista da Ilustrao. Nesta, esse ideal ainda estava inibido pelo carter aristocrtico do Ancien Rgime, que praticamente limitava aos nobres a possibilidade de autodesenvolvimento. A individualidade, por assim dizer, era um privilgio de classe. Com o triunfo da burguesia, a base social do individualismo tornou-se mais ampla. Ele se integrou ideologia liberal em todos os pases, e nos Estados Unidos passou a fazer parte dos mitos nacionais, como a bandeira e o hino; o "rugged individualism", a capacidade de cada office-boy de chegar Casa Branca, tornou-se um dos elementos centrais do sonho americano.

    Mas a prtica mostrou que os herdeiros de grandes fortunas tm mais chances de chegar Presidncia que os self-made men. De qualquer modo, para os grandes filsofos do liberalismo no no talento para ganhar as eleies primrias do Partido Republicano que se pe prova o valor do indivduo, e sim no pleno desenvolvimento de suas faculdades, em todas as esferas. o ideal humboldtiano da Bildung, da autoformao. Para Humboldt, "o verdadeiro objetivo do homem - no o que prescrito pelas inclinaes passageiras, mas pela razo imutvel - o desenvolvimento supremo e harmonioso de todas as suas faculdades, com vistas sua integrao num todo''.

    Ora, o que a experincia das grandes democracias parece ter demonstrado que estando formalmente autorizado a crescer em variedade e individualizao, o homem se torna cada vez mais uniforme e conformista. Como se sabe, a crtica feita pela moderna crtica da cultura, desde Riesmann, com sua denncia do other-directed man, a Marcuse, com sua anlise da sociedade unidimensional. Mas a disseco mais meticulosa das tendncias desindividualizantes da moderna sociedade de massas feita pelos prprios liberais. Tocqueville, por exemplo, descreve a "tirania da maioria'' nos Estados Unidos e mostra como as presses niveladoras da vida coletiva destroem a individualidade, transformando os homens num "rebanho de animais tmidos e industriosos''. Stuart Mill generaliza Tocqueville, indo alm dos Estados Unidos. Para ele, a tendncia imanente de toda sociedade de massas "acorrentar o desenvolvimento e se possvel impedir a formao

    21 de qualquer individualidade em desarmonia com seus hbitos''. Privados de sua individualidade, os homens esto condenados ao conformismo. "Assim a prpria mente se dobra ao jugo. Mesmo em seus prazeres, o conformismo a primeira preocupao; eles gostam do que todos gostam, s escolhem o que geralmente escolhido [...] Lem as mesmas coisas, ouvem as mesmas coisas, tm suas esperanas e temores dirigidos para os mesmos objetos."

    Que se passa, hoje em dia, com o individualismo nas sociedades ocidentais? H uma combinao de hiperindividualismo e de antiindividualismo. O primeiro se manifesta num egocentrismo radical, num frenesi de hedonismo, num delrio consumista, na busca exclusiva da prpria vantagem, na apatia mais completa com relao s grandes questes de interesse comum. O segundo se manifesta na necessidade

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    de razes, na tentativa de reinsero comunitria, na procura de uma identidade grupal, qualquer que ela seja. Nos dois casos, o resultado a asfixia da individualidade. Institucionaliza-se, nos dois casos, o conformismo, j diagnosticado em seus primrdios pelos crticos liberais, e que agora resulta, seja de uma velha conhecida dos liberais, a "tirania de maioria'' (comprar o aparelho de som que todos querem comprar), seja da identificao com o grupo. Sujeito a duas leis, ou lei da oferta e da procura ou lei da tribo, o indivduo morre duas vezes, uma vez assassinado pela sociedade de consumo e outra por lealdades coletivas. Desaparecem os dois grandes atributos do individualismo ilustrado, assumidos pela idia iluminista: o eudemonismo e o descentramento. A busca da felicidade banaliza-se no culto do prazer - um prazer heternomo, para o qual acena a indstria cultural. O descentramento se anula por um recentramento mtico, liberando o homem do mais difcil privilgio da modernidade, o de pensar e agir por si mesmo, com base em princpios gerais e abstratos.

    Generalizando o acesso escola, as sociedades liberal-capitalistas difundiram mais que em qualquer outro perodo da histria as oportunidades para que todos alcanassem o estgio da razo autnoma. A cincia assumiu crescentemente o papel antes reservado religio, com o que no somente avanou o processo de secularizao como se abriu um espao at ento inconcebvel de domnio tcnico sobre a natureza.

    Mas at que ponto foi promovido, com isso, o ideal da autonomia intelectual? A razo humana no estava mais sujeita mentira consciente, mas continuava sujeita ideologia. Agora no se tratava mais da impostura deliberada do clero, mas da falsa conscincia induzida pela ao ideologizante da famlia, da escola e da imprensa, e mais radicalmente ainda, pela eficcia mistificadora da prpria realidade - o fetichismo da

    22 mercadoria. Agora no era mais a ideologia que falsificava o real, era o real que usurpava a funo falsificadora da ideologia. nesse ponto que a crtica frankfurtiana da cultura prossegue o trabalho que a velha Ideologiekritik marxista tinha deixado incompleto. No era mais a ideologia que mascarava a realidade, era esta que sabotava a verdade contida na ideologia. Falso, na ideologia, no era seu contedo, e sim a pretenso de que esse contedo j tivesse se transformado em realidade.

    O paradoxo do liberalismo real, com efeito, que ele se apresentava como a Ilustrao realizada. Em sua auto-interpretao, ele encarnava a autonomia cultural, poltica e econmica. Ora, na medida em que essa autointerpretao era falsa, as prprias idias da Ilustrao se convertiam em legitimaes. O que para a Ilustrao era crtica da ideologia se transformava para o liberalismo real em ideologia. O que para a Ilustrao se destinava a criticar a tradio se coagulava para o liberalismo em tradio, com efeitos to conservadores quanto qualquer ideologia. O papel da crtica da ideologia, na Ilustrao, era defender a razo livre, a cidadania autodeterminada e a liberdade econmica; o papel da crtica da cultura, aplicada s modernas sociedades do capitalismo tardio, era denunciar esses mesmos valores, enquanto realizaes fraudulentas do ideal da autonomia. Para levar o paradoxo s ltimas conseqncias: no liberalismo, o prprio Iluminismo se converte em ideologia, e portanto a ultima ratio do Iluminismo consiste em arrastar o Iluminismo diante do tribunal da razo.

    Mas os que tm uma sensao de vertigem diante dos paradoxos do capitalismo tardio podem tranqilizar-se. Esses paradoxos so menos freqentes do que os especialistas da dialtica negativa querem fazer crer. O obscurantismo voltou a ser o clssico, de Torquemada, e no mais o complicado, que d dores de cabea a quem quiser entend-lo. O que est se verificando cada vez mais, como efeito, uma regresso ao estado de coisas denunciado pelos enciclopedistas. O que eles ingenuamente chamavam superstio volta em triunfo, muitas vezes aureolado com o prestgio da cincia. O presidente de uma superpotncia chama outra superpotncia de "imprio do mal'' e ameaa o mundo com o Armageddon bblico. Primeiras-damas consultam astrlogos. Gurus indianos celebram solenemente, numa igreja batista, o casamento da fsica quntica com o Rig-Veda. Cansados de investigar uma alma sedentria, os psicanalistas resolvem transform-la em viajante csmica, enquanto seus pacientes, cansados de trabalharem para a General Motors, preferem a metempsicose metapsicologia e se dedicam ao esporte de reviver vidas passadas.

    Se a crtica a face negativa da autonomia cultural, sua face positiva a cincia. Para os sbios da Ilustrao, a cincia estava a servio de um

    23 projeto geral de libertao da humanidade. Em grande parte essas expectativas se realizaram. Mas em parte, tambm, a cincia deixou de ser autnoma, sendo capturada pelo complexo industrial-militar. Nessa medida ela se desvinculou de fins ticos, pondo-se a servio da guerra e da destruio da natureza. Nesse momento ela no tem mais nada a ver com a autonomia. Pode transformar-se, ao contrrio, numa logocracia desptica, na medida em que legitima formas de organizao social baseadas em imperativos

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    tcnico-sistmicos, que devem ser obedecidos sem qualquer discusso por parte dos diretamente interessados.

    Em suma, apesar das facilidades oferecidas pelas sociedades liberais para o atingimento da autonomia cultural, as foras da heteronomia parecem mais poderosas. Quando a cincia se transforma em mito, quando surgem novos mitos e ressurgem mitos antiqssimos, quando a desrazo tem a seu dispor toda a parafernlia da mdia moderna - quando tudo isso conspira contra a razo livre, no muito provvel que o ideal kantiano da maioridade venha a prevalecer.

    As sociedades liberal-democrticas so responsveis pela institucionalizao e rotinizao da autonomia poltica. Foi uma das maiores revolues na histria da humanidade. Por mais que no incio essa revoluo tenha sido limitada em seu escopo, por mais que os direitos que ela consagra sejam "formais", essa verdade precisa ser dita, antes de qualquer avaliao crtica.

    Pago esse tributo de justia, convm recordar que a autonomia poltica dos liberais foi a princpio restrita.

    Restrita, em primeiro lugar, porque abrangia muito mais as garantias individuais contra o arbtrio do Estado que o direito de participar da gesto da coisa pblica. o que Benjamin Constant chamava a ''liberdade moderna'', em contraste com a "liberdade antiga''. Esta consistia no exerccio coletivo e direto da soberania, como nas Cidades-estados da Grcia, sem qualquer preocupao explcita com os direitos individuais. Era compatvel, portanto, com a submisso do indivduo ao poder da comunidade. Em contraste, a liberdade moderna era "o direito de todos os homens de estarem sujeitos exdusivamente lei, o direito de no serem presos, julgados, executados ou molestados, pelo capricho de meros indivduos, o direito de expressarem suas opinies, de se locomoverem, de se associarem com outros. enfim o direito de todos de influenciarem a administrao do Estado, quer pela designao de uma ou vrias de suas autoridades, quer por seus conselhos, exigncias e peties". Em suma, ao contrrio da liberdade antiga, a liberdade moderna dava menos nfase democracia, que tinha a ver com a gnese do poder, que garantia contra a

    24 ao arbitrria do Estado, que tinha a ver com as limitaes ao uso do poder. Ela assegurava tambm o direito de participar da gesto do Estado, mas com a finalidade principal de influenciar a administrao pblica, de modo a evitar ingerncias ilegtimas na esfera privada.

    Restrita, em segundo lugar, porque o acesso liberdade poltica era confinado aos proprietrios, ou aos homens instrudos, ou aos que so instrudos porque proprietrios, segundo a frmula ecltica do mesmo Benjamin Constant: para exerc-la, necessrio "o lazer indispensvel aquisio das luzes, retido do julgamento. S a propriedade assegura esse lazer, e s ela torna os homens capazes do exerccio dos direitos polticos''.

    Comum a quase toda a primeira gerao de liberais foi o temor democracia, o medo de que a tirania de um s fosse substituda pela tirania da ''vontade geral''. Mais tarde, esse receio foi se atenuando, e o conceito liberal de liberdade foi se encaminhando para uma sntese liberal-democrtica. medida que o conceito da representao das minorias ganhava legitimidade, diminua, com efeito, o temor da tirania majoritria, o grande pesadelo de liberais como Constant e Tocqueville.

    A verdade que a instituio do sufrgio universal nem teve os efeitos apocalpticos temidos pelos liberais nem foi capaz de gerar as transformaes sonhadas pelos democratas. A autonomia poltica revelou-se insuficiente para uma verdadeira alterao do status que, pela insuficincia da autonomia econmica, base material para a ao no espao pblico, e da autonomia cultural, indispensvel para que a razo pudesse devassar as legitimaes dominantes. Alguns diriam que, na ausncia dessas condies, a liberdade poltica pode ser efetivamente formal e at mesmo narcotizante. Foi o que disseram Tocqueville - os indivduos "consolam-se de estar sob tutela, pensando que escolheram eles prprios seus tutores'' - e quase nos mesmos termos, Marcuse - "a livre eleio dos senhores no abole nem os senhores nem os escravos''. No precisamos ir to longe. Sem dvida, uma liberdade truncada melhor que nenhuma, mas preciso reconhecer que uma autonomia poltica limitada liberdade de votar est muito distante do desejvel.

    Com efeito, preciso dizer e repetir que a autonomia poltica dos liberais no basta, e nisso a crtica socialista, iniciada com a Questo judaica, de Marx, mantm sua validade.

    No se trata, com isso, de desqualificar a liberdade "formal". A liberdade institucionalizada nos regimes constitucionais do Ocidente serviu de moldura para centenas de lutas sociais que redundaram na efetiva melhoria das condies da classe operria de desfrutar de fato seus direitos civis e polticos, e nesse sentido ela nada tinha de formal. Sem liberdade jurdica no h liberdade substantiva. preciso partir da liberdade, no sentido jurdico, para chegarmos liberdade, no sentido material. Sabe-

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    mos, com a superioridade que nos confere a circunstncia de termos sido contemporneos de dois totalitarismos, que todos os regimes de fora se baseiam na denncia do formalismo: todos eles querem dissipar a iluso burguesa e implantar o reino da verdadeira liberdade.

    Sim, sabemos tudo isso, mas sabemos tudo isso bem demais. Tudo isso ficou to bvio que a crtica s liberdades burguesas passou a inspirar-nos um certo tdio. Com isso, corremos o risco de ignorar o ncleo verdadeiro dessa crtica. Por mais que o discurso do formalismo tenha ficado fora de moda, continua sendo verdade que uma liberdade que no pode ser usada uma liberdade vazia, e ela no pode ser usada pelos milhes de seres humanos que vivem na pobreza absoluta. Enquanto essa situao perdurar, a denncia socialista manter sua validade, seno como plataforma, pelo menos como advertncia.

    A autonomia poltica advogada pela Ilustrao e institucionalizada pelo liberalismo s se tornar plenamente concreta quando seus titulares tiverem condies econmicas para us-la de fato, no somente enquanto fim em si, mas enquanto meio, promovendo atravs dela as transformaes sociais necessrias para que todos possam ser livres.

    Quanto autonomia econmica, preciso comear dizendo o bvio: nenhum outro regime social se aproximou tanto da mais antiga fantasia da humanidade, o sonho imemorial do Schlarafferland, do pays de cocagne: a eliminao da escassez. Em pouco mais de um sculo, o capitalismo produziu uma riqueza material que teria sido inimaginvel h trs geraes. Se levarmos em conta que essa prosperidade econmica foi acompanhada de uma melhoria simultnea nos nveis de bem-estar social, escolaridade, cultura e sade pblica, podemos julgar em seu devido valor o desempenho das sociedades liberais no terreno da autonomia material. Mas, se tudo isso evidente, evidente tambm que o preo histrico desse progresso foi um sofrimento inaceitvel para grandes parcelas da populao.

    Contemporneos da Revoluo Industrial, os primeiros liberais tinham obviamente conscincia da espantosa misria das classes trabalhadoras no incio do sculo XIX. Mas a seu ver s havia um caminho para superar essa misria, o prprio exerccio da atividade econmica livre. Se era verdade que na situao atual a grande massa dos assalariados estava excluda dos benefcios do progresso econmico, tal situao podia modificar-se se fossem eliminadas todas as restries ao dos capitalistas e dos operrios. As condies materiais dos trabalhadores melhorariam com o incremento da riqueza coletiva, resultante da liberdade de cada um de perseguir seu interesse, j que com o desenvolvimento da indstria os preos

    26 dos bens de consumo se reduziriam, o que se refletiria num aumento do salrio real. Alm de colher esse benefcio indireto da liberdade econmica, a classe operria poderia utiliz-la diretamente para melhorar suas condies de vida: liberta das restries corporativas, que reduziam sua capacidade de procurar um emprego consistente com seus interesses, e do paternalismo degradante, manifestado nas Poor Laws e outros instrumentos caritativos, que inibiam a iniciativa individual, ela poderia, por suas prprias foras, ascender socialmente, chegando segurana atravs da liberdade. Sem dvida, alguns liberais (Ricardo, Malthus) consideravam irrealizvel esse sonho de ascenso, j que as "leis de ferro'' da economia, pelas quais o progresso econmico estimularia inexoravelmente o crescimento demogrfico, impeliriam o salrio em direo a seu nvel "natural", isto , o estritamente necessrio para garantir a subsistncia dos assalariados. Mas ainda assim o laissez-faire seria mais favorvel aos operrios que qualquer medida intervencionista, pois a ausncia de uma proteo artificial os impulsionaria a autodefender-se atravs da reduo voluntria da natalidade, que por um lado diminuiria a presso sobre os salrios e por outro tornaria suprfluo o cultivo de novas terras, contribuindo para a diminuio dos preos dos alimentos.

    Assim, a teoria legitimava uma prtica desumana. Os captulos do Capital em que Marx descreve as condies de vida da classe operria inglesa nas fases iniciais da acumulao primitiva so at agora insuperveis em exatido e dramaticidade.

    Em grande parte a dinmica do capitalismo e sobretudo a ao de mecanismos alheios ao mercado, como o movimento sindical e a interveno do Estado, contriburam para desmentir as previses pessimistas dos economistas do sculo XIX. No houve uma pauperizao irreversvel, e a crise geral do capitalismo ainda no est vista. Ao contrrio, o padro de vida mdio nos pases de capitalismo avanado aumenta de ano para ano e a poltica econmica do Estado consegue bem ou mal minorar as flutuaes da conjuntura.

    Mas com isso fica ainda mais difcil compreender a persistente sobrevivncia da pobreza nos pases desenvolvidos. Estimativas confiveis apontam para a existncia, nos Estados Unidos, de vrios milhes de americanos vivendo em nveis de pobreza absoluta.

    E absolutamente inconcebvel a misria macia que s faz agravar-se no resto do mundo. Os contrastes de renda e de bem-estar aumentam no somente entre pases ricos e pobres, como dentro dos

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    prprios pases subdesenvolvidos. Assim como explora a mo-de-obra sem reservas ticas, o capitalismo explora a natureza sem escrpulos ambientais. Segundo

    27 seus crticos, ele se baseia num modelo produtivista intrinsecamente perdulrio e destrutivo dos recursos naturais e dos ecossistemas.

    A despeito do extraordinrio progresso material ocorrido nos pases industrializados, portanto, podemos dizer que globalmente o modelo liberal-capitalista est muito longe de ter aproximado a humanidade como um todo do ideal da autonomia econmica.

    O SOCIALISMO

    Se a Ilustrao pregava uma universalidade genrica, e o liberalismo uma universalidade que passava pelo reconhecimento da nao livre como elo entre o indivduo e a espcie, o socialismo insistia numa concretizao ainda maior do conceito de universalidade, em que o critrio diferenciador fosse a classe social, e no a nao. Tambm o marxismo partia da concepo de uma natureza humana universal - a de um ser em metabolismo ( Wechselstoffl com a natureza, que em todo e qualquer modo de produo produz e reproduz, pelo trabalho, suas condies materiais de existncia. Mas num sentido menos antropolgico, a unidade da espcie no era um dado, e sim uma conquista. Era a misso do proletariado, classe universal cujos interesses transcendiam todas as fronteiras nacionais. Sua misso era auto-abolir-se como classe e, nessa medida, abolir em geral a sociedade de classes, emancipando o gnero humano enquanto sujeito unitrio da histria.

    Em sua concretizao no socialismo real, o ideal universalista foi primeiro negado e depois pervertido. Ele foi negado com a poltica do socialismo num s pas, adorado pela URSS, e com a dissoluo do Cominterm. Foi pervertido com a doutrina Brejnev, que sob a etiqueta de ''internacionalismo proletrio'' nada mais era que a justificao do imperialismo sovitico. E nada faz supor que o envio de tropas cubanas para ajudar guerrilhas marxistas na frica seja muito mais "internacionalista" que o envio de ''contras'' Nicargua para desestabilizar um governo de esquerda.

    Ao contrrio do que se poderia supor, os principais socialistas no foram antiindividualistas. Fourier usou a palavra (surgida por volta de 1830) num sentido positivo, e para Jaurs o socialismo completa o individualismo, em vez de neg-lo, A crtica de Marx ao ''indivduo egosta'' das Declaraes dos Direitos Humanos no envolve nenhuma crtica ao conceito de indivduo em si. Ela a crtica de uma concepo que v o indivduo como simples mnada que se agrega mecanicamente a outras mnadas

    28 para compor a sociedade, ignorando o fato de que o indivduo est sempre inserido num conjunto definido de relaes sociais. Na sociedade capitalista, essas relaes levam ao declnio do indivduo e atrofia de suas potencialidades. Mudar essas relaes libertar o indivduo. No se trata, portanto, de dissolver o indivduo na sociedade, mas de dissolver uma certa sociedade para emancipar o indivduo. O indivduo plenamente emancipado a personalidade mltipla, alm da diviso de trabalho, sonhada pela utopia comunista - o homem novo que pesca de manh, caa de tarde e compe sinfonias noite. Por tudo isso um autor "holista" como Louis Dumont no hesita em dizer, desaprovadoramente, que "o socialista Marx cr no indivduo de uma maneira que no tem precedentes em Hobbes, Rousseau, Hegel, nem mesmo, diramos, em Locke".

    De novo, o ideal da individualizao socialista foi profundamente deturpado pela prtica do socialismo real. De certo modo, tambm surge nesses pases, como no Ocidente, uma coexistncia do antiindividualismo com o hiperindividualismo.

    O antiindividualismo um elemento importante da prpria doutrina oficial. Cada homem membro de sua classe antes de ser um indivduo; sua vontade subordina-se do partido, e cada membro do partido funcionrio do todo. O antiindividualismo mobilizado para a disciplina do trabalho, vista como indispensvel construo do socialismo. H um bilho de formiguinhas azuis na China Popular marchando unidas contra o individualismo burgus. a volta consciente psicologia da horda.

    Mas por outro lado h tambm o hiperindividualismo, que como reao ao "holismo" oficial se manifesta pelo oportunismo, pelo carreirismo, e pelo consumismo histrico. Um clebre niilista russo disse que um par de botas valia mais que Shakespeare. Qualquer turista que na praa Vermelha tenha trocado um oratrio bizantino por uma cala Lee est convencido de que essa opinio partilhada por 100 milhes de russos.

    O socialismo real assumiu em parte a bandeira da autonomia intelectual. Como para a Ilustrao, essa autonomia se afirma, exemplarmente, atravs da crtica da religio - o crasez l'infme, de Voltaire,

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    tem sua realizao plena no atesmo de Estado da Unio Sovitica: a Entzauberung, de Weber, levada s ltimas conseqncias.

    Mas a crtica da tradio (seja ela religiosa ou secular) no pode mais ser, para uma sociedade que se v como marxista, uma simples crtica das idias errneas. O erro no est mais radicado na ignorncia e na m-f, na impostura dos sacerdotes e dos tiranos, e sim numa constelao de classe que condena a razo a uma opacidade necessria - a doutrina da falsa conscincia. A heteronomia o destino cognitivo dos que no se liberta-

    29 ram da falsa conscincia. A autonomia s poder ser alcanada pelos membros da classe proletria que completaram seu processo de tomada de conscincia e pelos membros de outras classes que assumiram a perspectiva proletria. A crtica da tradio se transforma assim em crtica da ideologia (concebida como um conjunto de representaes estruturalmente falsas), inclusive da ideologia ilustrada e da liberal, cujos ideais so vistos como expresses particularistas de um interesse de classe. Nesse sentido, a autonomia reivindicada pela Ilustrao e pelo liberalismo ela prpria heternoma - seus porta-vozes tm razo em propor a autonomia intelectual como um telos da humanidade, mas no em supor que ela j foi ou pode ser alcanada sem uma crtica radical da ideologia em que esto imersos.

    Sem dvida, um avano terico. Mas uma doutrina desse tipo, assumida por um regime ditatorial, tem terrveis implicaes totalitrias. Ele considera a Ideologiekritik sria demais para ser confiada a amadores. Tarefa especializada, ela s pode ser exercida por profissionais. So os funcio-nrios do partido, instncia coletiva em que est depositado o saber absoluto da histria, e que detm portanto a competncia exclusiva para fazer a partilha entre a iluso e a realidade. Indo alm do seu papel desmistificador, esses burocratas da verdade podem tambm criar ideologias, diretamente ou atravs de escribas assalariados que se chamam, justamente, idelogos. A autonomia intelectual no abolida; ela simplesmente passa jurisdio de comissrios que a administram. O ideal da razo livre gerido por um estrato tcnico cuja funo tutelar a razo para que ela alcance a verdadeira liberdade. Cabe a esses tutores mostrar aos menores sob custdia - a populao inteira - a maneira correta de provar que atingiram a maioridade. Basta que pensem pensamentos adultos - os prescritos pelo partido. A frmula sapere aude, com que Kant definiu a liberdade intelectual, no desativada, e sim redefinida. "Ousar saber'' agora significa saber at onde lcito ousar.

    Sabemos que a cincia a dimenso positiva da autonomia intelectual, em oposio sua dimenso crtica. Guiado pela cincia, o homem tem acesso verdade e consolida seu poder sobre a natureza. O socialismo real tem pela cincia um temor reverencial puramente oitocentista, semelhante ao de Marx e de monsieur Homais. Afinal, no por acaso que sua base terica o socialismo cientfico. Em seu aspecto construtivo, essa venerao pela cincia se traduziu em progressos importantes na rea das cincias exatas e biomdicas e na pesquisa espacial. Grande parte do esforo cientfico se canalizou para a esfera militar, mal afinal essa militarizao da cincia no foi monoplio do campo socialista.

    Por outro lado, h um aspecto negativo, caricato e perigoso ao mesmo tempo, no culto socialista da cincia. sua interpenetrao com a ideologia. A cincia ideologizada, como ocorreu com a biologia "prolet-

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    ria'' de Lysenko. E a ideologia adquire a dignidade da cincia. O marxismo estendido natureza. As leis da dialtica passam a valer no somente para a histria como para a matria: o diamat, o materialismo dialtico, que passa a englobar o materialismo histrico, como o todo engloba a parte. Baseada em Engels, a contribuio especificamente sovitica filosofia marxista. Seu efeito prtico dissolver a histria humana na histria natural, e eliminar os ltimos resduos de liberdade que o determinismo histrico ainda deixara subsistir. Censurada por burocratas ou sujeita a determinismos naturais, o mnimo que se pode dizer que a razo livre da Ilustrao passou por estranhas vicissitudes na vigncia do socialismo real.

    Desde sempre o socialismo criticou o conceito burgus de autonomia poltica: privada de uma base material e dissociada das outras dimenses da autonomia, ela era uma fraude para a maioria da populao. Vimos que essa crtica era perfeitamente justa. Restava aos socialistas demonstrar que surgida a oportunidade poderiam implantar uma verdadeira autonomia poltica.

    Sabemos que o contrrio se deu. No houve substituio de uma liberdade burguesa, formal, por uma liberdade proletria, rica de substncia: o que ocorreu foi simplesmente a substituio da liberdade tout court pela tirania sans phrase. Os direitos humanos (que no entanto eram reconhecidos pela Constituio sovitica) foram violados metodicamente, da liberdade religiosa liberdade de ir e vir. A democracia se limitava ao direito de escolher representantes oficialmente aprovados, cuja independncia

  • Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45.

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    de julgamento podia ser avaliada pelos aplausos obedientes durante os discursos do secretrio-geral e pelas decises unnimes do Soviete Supremo.

    Quanto autonomia econmica, a principal contribuio do socialismo foi ter transitado do conceito de autonomia como liberdade para o conceito de autonomia como segurana: autnomo no quem tem o direito abstrato de atuar como agente econmico mas quem tem o poder efetivo de obter pelo trabalho os bens necessrios prpria sobrevivncia.

    certo que essa guinada j tinha ocorrido no prprio pensamento liberal. Por volta de 1880, alguns filsofos idealistas de Oxford passaram a defender um liberalismo "organicista", segundo o qual a liberdade era redefinida como o potencial de cada indivduo de crescer e desenvolver-se - ''to make lhe best and most of himself' - e no apenas, negativamente, como a ausncia de coao. Para assegurar o exerccio dessa liberdade orgnica, o Estado deveria intervir sempre que necessrio.

    31 Mas foram os autores socialistas que consolidaram a nova nfase. Sua argumentao continua

    rigorosamente vlida. O direito de fundar um banco uma zombaria de mau gosto para quem o banco um guich, uma fila, uma espera de oito horas e uma aposentadoria no valor de dois salrios mnimos. A autonomia econmica entendida como o direito de comprar um iate uma caricatura para quem no pode pagar uma passagem de barca para Niteri. Na ausncia de medidas alheias ao mercado, portanto, a segurana nunca poder ser alcanada pela liberdade, que s para alguns privilegiados real.

    Da as grandes expectativas que o pensamento progressista depositou na revoluo bolchevista. Mesmo quando o regime revelou seu rosto totalitrio, continuou sendo possvel perdoar a ausncia de liberdade poltica (privao transitria, ao que se dizia) em vista das conquistas sociais, que pareciam evidentes - emprego, sade, educao e moradia para todos. O regime podia no oferecer nem autonomia intelectual, nem poltica, nem econmica, entendida como liberdade de agir, mas certamente oferecia segurana econmica.

    Mas o conceito de segurana econmica no inclui apenas o acesso a vantagens sociais, mas tambm a bens e servios. Nisso o regime falhou miseravelmente. Foi a essa a causa mortis do socialismo real. Ele no morreu, lamentavelmente para os idealistas, por ter asfixiado a autonomia intelectual e a poltica, mas por no ter conseguido produzir mercadorias em escala comparvel do capitalismo.

    luz da teoria marxista, essa morte tem algo no de inesperado, mas de irnico. Marx justificava a necessidade da passagem do capitalismo ao socialismo pela circunstncia de que as relaes de produo baseadas na propriedade privada estavam bloqueando o desenvolvimento das foras produtivas. A mudana de modo de produo no se destinava em primeira linha a melhorar as condies de vida da classe operria, e sim a liberar as foras produtivas inibidas pelo capitalismo. Vale dizer que o teste do sucesso do socialismo estava justamente na rea em que seu fracasso se revelou mais contundente: na esfera da produo. So as foras produtivas que julgam as relaes de produo. Citadas a esse tribunal, mais exigente que o tribunal da histria, as relaes de produo do socialismo foram condenadas e as do capitalismo triunfalmente absolvidas. Mas se assim, a condenao do socialismo real foi justa, segundo Marx. A ironia est em que, se essa condenao j estava inscrita na prpria lgica do materialismo histrico, o colapso do socialismo refora o marxismo, em vez de enfraquec-lo, pois confirma o acerto de uma de suas teses fundamentais, a dialtica entre as foras produtivas e as relaes de produo.

    32 A IDIA ILUMINISTA

    Temos agora os elementos para construir a idia iluminista. Partimos da Ilustrao, do liberalismo real e do socialismo real, investigamos seus aspectos positivos e negativos, e tendo examinado, confrontado e criticado o funcionamento em cada uma dessas constelaes histricas dos principais elementos do projeto da modernidade, produzimos a idia iluminista.

    Para ela, (J) todos os homens e mulheres, de todas as naes, culturas, raas e etnias, (2) desprendendo-se da matriz coletiva e passando por processos crescentes de individualizao, devem alcanar (3) a autonomia intelectual, ou seja, o direito e a capacidade plena de usar sua razo, libertando-se do mito e da superstio, sujeitando ao crivo da razo todas as tradies, seculares ou religiosas, problematizando todos os dogmas, criticando todas as ideologias, e desenvolvendo livremente a cincia, o pensamento especulativo e criatividade artstica, o que pressupe um sistema cultural que tenha institucionalizado e dado condies efetivas de exerccio liberdade de pensamento e de expresso, (4) a autonomia poltica, ou seja, o direito e a capacidade plena de participar dos processos decisrios do Estado, o que pressupe um sistema poltico que tenha institucionalizado e dado condies efetivas de funcionamento democracia e aos direitos humanos, e (5) a autonomia econmica, ou seja, o direito e a capacidade plena de obter, sem prejuzo para os outros indivduos e sem danos para o meio ambiente, os

  • Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45.

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    bens e servios necessrios ao prprio bem-estar, o que pressupe um sistema econmico que tenha institucionalizado e dado condies efetivas de funcionamento aos direitos dos agentes econmicos, dentro dos limites compatveis com os objetivos superiores da justia social e da preservao da natureza.

    Em suma, a idia iluminista prope estender a todos os indivduos condies concretas de autonomia, em todas as esferas. Em outras palavras, ela (J) universalista em sua abrangncia - ela visa todos os homens, sem limitaes de sexo, raa, cultura, nao -, (2) individualizante em seu foco - os sujeitos e os objetos do processo de civilizao so indivduos e no entidades coletivas -, e emancipatria em sua inteno - esses seres humanos individualizados devem aceder plena autonomia, no trplice registro do (3) pensamento, da (4) poltica e da (5) economia.

    Vejamos mais de perto esses vrios elementos. 33

    Universalidade: para a idia iluminista, o horizonte da emancipao humana o da unidade da espcie, o que gera conseqncias em vrias esferas.

    l) O Iluminismo transcende as fronteiras nacionais, e nesse sentido assume sem complexos a herana cosmopolita da Ilustrao, condenando todos os nacionalismos como provincianos e potencialmente geradores de guerra. At certo ponto, no entanto, ele incorpora a doutrina liberal da autodeterminao dos povos, ao recusar qualquer tentativa de unificao poltica de uma regio ou do mundo que no resulte do consentimento explcito dos habitantes das comunidades nacionais envolvidas, o que significa o mais inequvoco repdio de qualquer forma de imperialismo. Do socialismo, ele absorve uma determinao mais concreta do ideal cosmopolita, que no pode ser definido nos termos puramente hedonistas em que s vezes o concebia o sculo XVIII - ubi bene, ibi patria - mas como um verdadeiro internacionalismo, que ao contrrio do malfadado "internacionalismo proletrio'' do socialismo real, teria como foco os interesses da humanidade como um todo e no os objetivos estreitamente partcularistas de uma superpotncia.

    2) Assim como transnacional, o Iluminismo tambm transcultural. Isto quer dizer que ele aceita em substncia o ponto de vista da Ilustrao e no v na variedade das culturas a prova de que o homem mltiplo, mas a demonstrao de que atrs da variedade emprica das culturas existe uma uniformidade fundamental. Essa uniformidade tem a ver com a unidade da natureza humana, que em toda parte produz e reproduz suas condies de existncia com base numa estrutura psquica comum e de uma razo que no varia essencialmente conforme as culturas. Ao mesmo tempo, o Iluminismo tempera o que poderia haver de nivelador nessa perspectiva com a valorizao do pluralismo, herdado da antropologia liberal: as aspiraes e necessidades universais do homem so expressas e simbolizadas de modo diverso segundo as diferentes formas de vida, e essa variedade, alm de esteticamente enriquecedora, eticamente valiosa, desde que as prticas particulares no violem princpios universais de justia.

    3) O Iluminismo adere ao igualitarismo ilustrado no que diz respeito ao relacionamento entre os sexos. Homens e mulheres so iguais em direitos e aptides, e no existem diferenas, alm das puramente anatmicas, que justifiquem conceitos como o de "alma feminina'' ou "psicologia feminina". Nisso o feminismo liberal e o socialista no trouxeram modificaes de vulto - mas o primeiro chamou ateno para a necessidade de eliminar na luta poltica cotidiana a discriminao jurdica a que est su- jeita a mulher, e o segundo teve o mrito de estudar o cruzamento da opresso sexista com a opresso social - a opresso sobredeterminada da mu-

    34 lher proletria, duplamente explorada, e a libertao paradoxal da mulher burguesa, cuja condio de possibilidade a prpria existncia da sociedade de classes.

    4) Assim como rejeita, no que diz respeito mulher, qualquer diferencialismo essencialista radicado na biologia, o Iluminismo rejeita esse mesmo diferencialismo no que respeita a raas ou etnias. o grande igualitarismo da Ilustrao, para o qual os indivduos so brancos e negros por acidente, e homens por natureza. O liberalismo ensinou o Iluminismo a pensar politicamente, nas sociedades modernas, a luta para implantar uma igualdade de fato, e no apenas filosfica, entre indivduos de diferentes raas. O socialismo mostrou as razes sociais e econmicas do preconceito, cuja remoo integral no depende, portanto, apenas de uma reforma das conscincias, mas tambm de profundas transformaes sociais.

    Individualismo: o Iluminismo considera o aparecimento do indivduo uma ocorrncia epocal na histria da humanidade. um dos aspectos mais libertadores da modernidade. Ela permite pela primeira vez na histria pensar o homem como ser independente de sua comunidade, de sua cultura, de sua religio. O homem deixa de ser seu cl, sua cidade, sua nao e passa a existir por si mesmo, com suas exigncias prprias, com seus direitos intransferveis felicidade e auto-realizao.

  • Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45.

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    Haurida na Ilustrao, essa crena se refora com os liberais, para os quais o grande mrito da liberdade permitir o desdobramento mltiplo e pluralista da individualidade. O Iluminismo partilha, portanto, o temor dos liberais com as presses niveladoras da sociedade de massas, que levam ao conformismo e contribuem para a desindividualizao crescente do homem, fazendo sua a Kulturkritik de autores como Tocqueville e Mill, que antecipam em seus libelos contra a massificao a denncia de Marcuse e Adorno contra a "sociedade unidimensional". O Iluminismo recebe do socialismo uma viso mais concreta do indivduo, que no apenas uma mnada abstrata, mas existe sempre inserido num conjunto definido de relaes sociais, o que significa que sua proposta de emancipao do indivduo tem que levar em conta uma dimenso necessariamente extra-individual.

    Dizer que todo individuo social dizer que sua libertao passa por um processo social de individuao, pela qual os indivduos saem dos seus guetos privatistas e se comunicam com outros indivduos, reconhecendo-os como indivduos e sendo confirmados em sua individualidade. O individualismo iluminista, nesse sentido, nada tem a ver com o individualismo associal estigmatizado pela esquerda, mas sobretudo pela direita.

    35 No entanto, sua conscincia da dimenso social no impede que o Iluminismo seja

    absolutamente alheio a qualquer considerao holista, a qualquer viso "orgnica" que atribua prioridade a uma instncia coletiva grupo, cultura, Estado - ou que diga que a verdade da parte est em sua insero no todo. O Homo sapiens no um protozorio - esse sim, anima1 holista por excelncia - nem Apis mellifera zumbindo conscienciosamente pelo bem da colmia. Se o homem mais individualizado que o inseto, o homem moderno certamente mais individualizado que o antigo, como este era mais individualizado que o da pr-histria. A humanidade percorreu uma longa trajetria desde a horda primitiva; o caminho foi longo, como sabia Freud, da psicologia coletiva psicologia individual, e qualquer tentativa de reinserir o indivduo no todo significa um retrocesso obscurantista. A nostalgia do difuso, do indiferenciado, do orgnico - h nomes para isso. Quando um fato biolgico, chama-se pul-so de morte. Quando um fenmeno social, chama-se fascismo.

    O individualismo iluminista no desconhece a existncia de coletividades particulares, mas proclama que em ltima anlise no so elas que so titulares de direitos e sim os indivduos que as compem. No se trata, fundamentalmente, de defender os direitos dos negros ou dos judeus enquanto grupos tnicos e religiosos, e sim de defender indivduos, titulares de direitos universais, entre os quais o direito de no-discriminao por motivos de raa ou religio. Os direitos desses indivduos incluem no somente o de ter uma religio especfica ou de conservar a cultura em que foram socializados como o direito de recusar essa religio ou cultura. Pois para o Iluminismo a dignidade mais alta do indivduo est em sua capacidade de passar por descentramentos sucessivos, superando, se assim o desejar, vnculos que no foram escolhidos por sua razo - a famlia, o grupo, a cultura. Para o Iluminismo o indivduo constri sua prpria identidade, em vez de herdar dos pais uma identidade pr-fabricada. Seu estatuto tnico, cultural ou nacional resulta de uma escolha adulta, no do fato aleatrio, pelo qual ele no responsvel, de ter nascido num certo pas, dentro de uma cultura determinada. Atribuir valor moral ao episdio contingente da natalidade um trao da tica feudal, contra a qual se insurgiu a Ilustrao e se insurge o Iluminismo.

    o que deixa muito claro Beaumarchais, nessa mquina de guerra antifeudal que o Mariage de Figaro. Eis como nosso barbeiro subversivo exprime seu ressentimento contra o conde Almaviva, o grande de Espanha que quer roubar~lhe a mulher: "Noblesse, fortune, un rang, des places [...] Qu' avez-vous fait pour tant de biens? Vous vous tes donn la peine de naitre, et rien de plus". Com essas palavras, Figaro falou em nome do Ilurninismo como um todo. O Iluminismo questiona sistematicamente o estatuto imposto a cada um pelas circunstncias do seu nascimento.

    36 O ideal iluminista o da autoformao, da Bildung individual, o que pressupe a apropriao da cultura pr-existente, mas pressupe tambm a possibilidade permanente de romper com os modelos e normas dessa cultura.

    Autonomia: para o Iluminismo, ela tem dois estratos, a liberdade e a capacidade. A liberdade tem a ver com os direitos, e a capacidade com o poder efetivo de exerc-los. No h autonomia se um dos dois estratos est ausente. No sou autnomo se no sou livre para exercer uma atividade e se no tenho condies materiais para fazer uso dessa liberdade. Esse conceito de autonomia em dois estratos distingue fundamentalmente a acepo iluminista da liberal, que via de regra s considerava a autonomia como liberdade.

    A concepo iluminista individualista e social. A autonomia a autonomia do indivduo, o que coerente com o foco individualizante do Iluminismo. Mas com a incluso do conceito de capacidade na definio de autonomia, Iluminismo incorporou a seu corpo terico um elemento extra-individual, vindo

  • Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45.

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    da tradio socialista: a distino entre os direitos "formais" e os "substantivos". Alm disso, em sua formulao mesma o conceito de autonomia remete sempre ao social. Cada dimenso da autonomia se enraza no sistema social como um todo e mais especificamente naquele segmento da sociedade com que tem afinidades especficas: a autonomia intelectual, a poltica e a econmica se vinculam, de modo preferencial, ao sistema cultural, poltico e econmico, respectivamente. Quero sinalizar com isso que existe uma relao dialtica entre indivduo e sociedade, nas duas direes. A autonomia individual precisa, para concretizar-se, de dispositivos sociais que a assegurem, e esses dispositivos se reforam com a ao do indivduo autnomo.

    A autonomia intelectual o ideal mais irrenuncivel do Iluminismo. Ele o recebeu da Ilustrao, atravs dos filsofos do sculo XVIII e sobretudo atravs de Kant, que formulou para seu tempo e o nosso o grande objetivo da maioridade cultural, da recusa de todas as tutelas, e o resumiu na palavra de ordem que est inscrita no prtico da cidade iluminista: sapere aude, "ousa servir-te de tua razo". Aprendeu a transform-lo em prtica poltica corrente com o liberalismo, que institucionalizou nas sociedades democrticas modernas a liberdade de expresso e de criao cultural e difundiu nas escolas e universidades a tica do livre exame, que a Reforma luterana legou Ilustrao e esta transmitiu a seus herdeiros. Recebeu, enfim, do socialismo e da moderna crtica da cultura, uma lio de sobriedade, que serviu no para temperar o entusiasmo ilustrado-liberal pelo ideal da razo autnoma, mas para indicar a necessidade de dar-lhe fundamentos mais slidos: para esses crticos, a razo no assim to au-

    37 tnoma para os que carecem de condies econmicas e educacionais para exerc-la e para os que tm sua conscincia bombardeada pela ao mistificadora da mdia e outros ''aparelhos ideolgicos de Estado''. Uma razo que tenha passado pela experincia do marxismo, como a razo iluminista, no pode se dar ao luxo de ignorar a teoria da ideologia, julgando, como a Ilustrao, que o erro contingente, provocado pela impostura do clero e dos tiranos. A falsa conscincia uma estrutura de ocultao sistemtica, e no pode ser removida por atos pontuais de conscientizao. Conseqentemente, o Iluminismo sabe que embora a educao para a liberdade seja um caminho importantssimo para o atingimento da autonomia intelectual, ela precisa dar-se no bojo de um processo global de emancipao, abrangendo, solidariamente, todas as formas de autonomia.

    Quanto autonomia poltica, o Iluminismo recolhe do pensamento ilustrado a oposio incondicional ao despotismo sob todas as suas formas. Aprende com o liberalismo o valor da liberdade civil, entendida como a faculdade que tem o homem, enquanto particular, de agir no espao privado sem interferncias ilegtimas, e o da liberdade poltica, entendida como a faculdade que lhe assiste, enquanto cidado, de agir no espao pblico. Aprende, enfim, com o socialismo, a refletir sobre a questo das condies materiais para o exerccio da autonomia poltica.

    Podemos dizer, portanto, que a autonomia poltica do Iluminismo incorpora, sincronicamente, diversas vagas que na histria real foram sucessivas. Como essas vagas foram freqentemente contraditrias entre si, elas foram assimiladas pela idia iluminista numa unidade tensa, e no numa sntese harmonizadora. Houve uma vaga liberal, mais preocupada com o direito de propriedade, de ir e vir, de associar-se, de no ser preso arbitrariamente, que com a formao do governo pelo voto popular; uma vaga democrtica, mais preocupada com as prerrogativas eleitorais da maioria que com as garantias individuais; e uma vaga socialista, mais preocupada em assegurar uma autonomia "substantiva" que em salvaguardar seja a liberdade, seja a democracia. Os liberais foram antidemocratas por elitismo; os democratas foram muitas vezes antiliberais em nome da vontade geral; empunhando a bandeira dos direitos concretos da classe operria, muitos socialistas foram antiliberais e antidemocrticos.

    Essas contradies se atenuaram nos regimes social-democratas modernos, mas no h dvida de que a virtualidade do conflito est sempre presente. S numa repblica de anjos os que detm posies de poder sero totalmente democratas, concordando em reparti-las com todos; os que se elegeram pelo voto majoritrio sero totalmente liberais, dispondo-se a morrer pela defesa dos direitos da minoria; e os que representam as classes populares sero totalmente liberais, lutando at a ltima gota de sangue pelo direito de O Estado de S. Paulo publicar um editorial contra

    38 o PT, e totalmente democratas, saudando com delrio cvico a vitria nas urnas de uma coligao conservadora.

    Como as coisas no se passam assim na vida real, nem deveriam passar-se, e como de qualquer modo os anjos no precisam de repblica (por tudo o que se sabe, inclinam-se muito mais pela monarquia de direito divino), precisamos recolher na idia iluminista os momentos de antagonismo que existem na vida poltica real. Eles devem permanecer intactos, coexistindo, opondo-se, sem banalizao, sem amlgama, sem sntese. S a esse preo o conceito iluminista de autonomia poltica pode incorporar-se idia iluminista, servindo de padro de medida para denunciar situaes geradoras de heteronomia. Entras

  • Rouanet, Sergio Paulo, Iluminismo ou barbrie , in Mal estar na modernidade, S. Paulo, Cia das Letras,1993, pp 9-45.

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    estas, esto o uso antiliberal da democracia e o uso antidemocrtico do liberalismo; o uso das instituies liberais e democrticas como fachadas para camuflar a injustia social; e o uso da injustia social como libi para suspender as instituies liberais e democrticas.

    O conceito iluminista de autonomia econmica pode ser compreendido mais claramente se voltarmos aos dois estratos que compem, em geral, a autonomia iluminista: a liberdade e a capacidade.

    Do ponto de vista da liberdade, e por simetria com a autonomia cultural, que inclui o direito dos agentes de usarem livremente sua razo, e com a autonomia poltica, que inclui o direito de atuar livremente no espao pblico, podemos dizer que a autonomia econmica envolve o direito de livre participao na esfera da produo, da circulao e do consumo. Ou seja, simplificando muito, assim como a autonomia cultural compreende o direito de fazer cultura e de us-la e a autonomia poltica o direito de votar e ser votado, a autonomia econmica compreende o direito de produzir e consumir bens e servios.

    Do ponto de vista da capacidade, a autonomia econmica o atributo de quem dispe das condies necessrias para usar efetivamente os direitos econmicos. De acordo com essa segunda acepo, os milhes de miserveis numa economia de mercado no so autnomos, por mais que disponham de direitos econmicos formais. Liberais e socialistas podem concordar nesse diagnstico. Mas enquanto os primeiros acham que o apoio autonomia-liberdade a melhor forma de aumentar a riqueza coletiva, estendendo a um nmero cada vez maior de pessoas os benefcios da autonomia-capacidade, os segundos consideram necessria, para esse fim, a interveno do Estado. Qual a posio iluminista?

    O Iluminismo v a autonomia econmica como v a autonomia em geral, isto , no prisma da autodeterminao humana e como a negao de qualquer forma de tutela ou de limite no aceito pela prpria razo. Isto significa, concretamente, que no pode aceitar nem a ditadura do Estado nem a do mercado. A primeira cerceia politicamente a liberdade de

    39 agir, e a segunda, transformando regularidades econmicas em leis, converte a sociedade em natureza e sujeita o indivduo a determinismos sobre os quais tem to pouco controle como sobre o movimento das mars. Contra as duas heteronomias, o Iluminismo afirma os valores originais da liberdade, e ope a ambos os fetichismos uma razo desmistificadora capaz de derrubar os dois dolos gmeos do foro e da feira.

    O Iluminismo condena de modo visceral e irreversvel uma sociedade em que milhes de crianas e adultos esto condenados doena e morte por inanio. A incorporao desses deserdados ao sistema econmico um dos componentes mais fortes do ideal civilizatrio do Iluminismo.

    Mas se os fins so unvocos, o Iluminismo flexvel quanto aos meios.Exatamente por no idolatrar nem o Estado nem o mercado, o Iluminismo pode aceitar que em casos concretos prevaleam solues liberais puras, em outros solues governamentais e em outros ainda solues mistas, com a nica reserva de que em nenhum caso sero tomadas medidas patemalistas, revelia dos diretamente interessados.

    A autonomia-capacidade o critrio da verdadeira autonomia: esta ser abstrata se o indivduo no for capaz de us-la. Se a autonomia-liberdade for efetivamente um meio hbil para alcan-la, como afirmam os liberais, o iluminista no ter nenhuma objeo, porque tem afinidades eletivas com todas as doutrinas favorveis ao desdobramento livre da atividade individual. Mas, como os socialistas, ctico quanto competncia do mercado para assegurar aos que j no dispem da autonomia-capacidade o uso efetivo da autonomia-liberdade. Em outras palavras, no se trata de ignorar a autonomia-liberdade, como fazem os socialistas, nem de admitir que ela j existe para todos ou se generalizar a longo prazo pelo simples jogo espontneo das foras econmicas, como fazem os liberais, mas de incluir no conceito de autonomia a enunciao das condies objetivas para que a liberdade se transforme em capacidade.

    bvio que essas condies extravasam o mbito do mercado. Elas incluem medidas de carter jurdico, coibindo os oligoplios e portanto facilitando a atuao das micro e pequenas empresas; medidas de formao bsica e profissional, destinadas a preparar os pequenos empresrios para enfrentarem a competio; e medidas financeiras, visando o financiamento das novas atividades. Alm dessas medidas, so importantes, em geral, medidas tendentes a melhorar as condies materiais de vida das pessoas de baixa renda, com as quais se reforaria a capacidade do individuo de usar na prtica sua autonomia-liberdade. Quebra-se, assim, a situao circular em que a autonomia-liberdade, considerada indispensvel para alcanar a autonomia-capacidade, por sua vez pressupe esta ltima para se tornar efetiva.

    40 Tudo isso presume uma forte presena do Estado, o que no constitui nenhum escndalo para o

    Iluminismo. Ele contra a ao patemalista de um Estado ditatorial, que pretende defender o povo sem sua participao, e no contra a ao do prprio povo agindo atravs do poder pblico. Uma coisa a

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    interveno do Estado, e outra a interveno no Estado e atravs do Estado, pela mediao de representantes legitimamente eleitos, tanto no Executivo como no Parlamento. Vale dizer que essa interveno sempre poltica, sempre desejada expressamente pelos prprios interessados, e nunca administrativa, imposta de cima para baixo por elites autodesignadas.

    Dentro desses limites, o Estado investe maciamente no setor social - educao, sade, transporte, saneamento bsico, previdncia, e adota polticas fiscais destinadas a melhorar a distribuio de renda. Com isso, aumenta a autonomia-capacidade de um nmero cada vez maior de indivduos, isto , refora-se e irradia-se socialmente o poder dos indivduos de funcionarem como verdadeiros agentes econmicos, tanto como produtores quanto como consumidores, tanto como empregadores quanto como assalariados, em toda a faixa do agir econmico, estabelecendo atividades produtivas, consumindo, poupando e investindo.

    Alcanada a autonomia econmica, em seu sentido completo, as demais formas de autonomia adquirem uma base concreta. Desse modo, as liberdades "formais" deixam de ser vazias. Os homens no somente tm o direito de agir na esfera cultural e na poltica - a liberdade

    como adquirem o poder efetivo de agir - a capacidade