Imagens Da Violência e Violência Das Imagens

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  • maria rita kehl | imagens da violncia e violncia das imagens

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    Imagens da violncia e violncia das Imagens

    Maria Rita Kehl

    Devo abordar o assunto a partir de uma afirmao categrica: toda imagem

    tem um potencial de violncia. Agora trato de me explicar. A imagem tem um poder

    comunicativo extraordinrio. Se todo signo ocupa o lugar de uma coisa ausente, a

    imagem o que mais se parece com a presena da coisa. Quanto mais mimtica a

    imagem, maior este poder. Se ele existe na pintura figurativa e na fotografia por

    exemplo, que dizer do poder de representar o real das imagens cinematogrficas?

    Estamos diante de pessoas vivas, agindo e falando como ns, em ambientes que, a

    depender da inteno do cineasta, podem ser idnticos aos que conhecemos. O crtico

    pode alis, deve problematizar as pretenses naturalistas no cinema; mas no se

    pode minimizar o impacto desses filmes sobre o espectador. A imagem cinematogrfica

    trabalhada segundo uma perspectiva realista o que mais se parece, para quem a

    assiste, com a traduo exata de aspectos da vida.

    Qual a violncia desse impacto? A violncia prpria de todas as formaes

    do imaginrio. O imaginrio o terreno psquico das significaes estveis. A imagem

    traduz a coisa como se fosse a expresso da sua verdade. O imaginrio, escreveu Freud

    em um texto sobre O Inconsciente, o campo das primeiras e verdadeiras relaes de

    objeto. Forma-se antes que o contato dos humanos com o real seja mediado pela

    palavra. Se o real nos invade de forma traumtica, as representaes imaginrias so os

    recursos mais primitivos que desenvolvemos para aplacar esta invaso. Elas nos

    fornecem uma matriz de compreenso (aspas necessrias) anterior ao pensamento;

    para o resto da vida, diante de imagens familiares, sentimo-nos confortavelmente

    dispensados de ter que pensar. Como se elas nos apresentassem a plenitude do real

    dispensado tanto de seu carter de enigma quanto de seu efeito traumtico; o real

    traduzido em imagem de si mesmo. O imaginrio, nesse sentido, nos dispensa da falta.

    Da falta da coisa e da falta de verdade. o campo da certeza e das iluses totalizantes.

  • concinnitas | ano 16, volume 01, nmero 26, julho de 2015

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    No preciso dar um passo muito grande para entendermos que o

    imaginrio o campo sobre o qual ergue-se a fortaleza protetora do narcisismo.

    campo das identidades, que sustentam a miragem do ser. O campo em que se

    constituem, por efeito de espelhamento, todas as identificaes humanas. Ou seja: no

    possvel dispensar o imaginrio. No d para viver no mundo sem acreditar, na maior

    parte do tempo, que as coisas so como so, isto , so como se apresentam

    imaginariamente a ns. No d para viver na ausncia de sentido, no arbtrio do

    significante, na pura dimenso simblica que por sinal a dimenso fundamental do

    pensamento. O imaginrio essencial ao funcionamento psquico. Por outro lado,

    tambm no possvel viver sob o domnio absoluto de seu efeito totalizador.

    Isto porque o poder reconfortante da imagem diretamente proporcional

    sua violncia. Pois no terreno em que as coisas so como so, s resta ao homem

    conformar-se com elas. No terreno em que o pensamento dispensado, diria Hanna

    Arendt, os homens tornam- se dispensveis; e onde os homens so dispensveis, a

    violncia domina com facilidade o lao social. Refiro-me violncia gratuita, a violncia

    como forma predominante de reao presena do outro, diante das divergncias e dos

    conflitos que o outro nos traz; se o imaginrio o campo que estrutura a fortaleza do

    narcisismo do eu, a relao com o outro nos termos do imaginrio fica inevitavelmente

    paranoica. Na sociedade do narcisismo, o outro representa sempre uma ameaa de

    invaso. Quero reter esse aspecto fundamental: em uma sociedade que se organiza

    predominantemente pela lgica das imagens, a relao com o outro fica marcada pela

    paranoia.

    O outro aspecto da violncia do imaginrio a violncia como expresso do

    sentimento de impotncia, de inutilidade dos homens diante da realidade que se

    apresenta como totalitria pela fora da imagem. A facilidade com que a imagem nos

    apresenta uma verso do real diretamente proporcional opresso que este real

    imaginarizado, desprovido de contradio, produz em ns.

    Escrevi que no possvel viver sob domnio absoluto do efeito totalizador

    da imagem. Se todas as dimenses da vida social nos fossem apresentadas como fatos

    consumados, sob a tica do que porque , o conformismo que se produziria seria to

    avassalador, to opressivo, que tornaria obsoleta a criatividade dos homens. Seguindo

    um pouco mais a trilha aberta por Arendt, o homem diferencia-se da natureza em

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    funo de sua infinita capacidade de criar, de dar origem ao que no existe, de

    inaugurar o novo. A natureza conserva, reproduz, perpetua; o homem, esse

    desnaturado, inventa, inaugura. Em um mundo estabilizado pela fora da imagem, no

    h o que inaugurar.

    Por isso em todas as sociedades, o poder se vale do espetculo para se

    consolidar nos coraes dos sditos. O espetculo muito mais eficiente, para

    estabilizar o poder, do que as armas. Ele capaz de dotar o poder de visibilidade, torn-

    lo convincente, consistente, necessrio. Dos czares romanos aos monarcas absolutistas,

    de Hitler a Stlin, de Bush a Lula, o poder sempre dependeu de uma boa dose de

    espetacularizao, de uma grande produo imaginria para se estabilizar, apesar da

    incompatibilidade entre o fascnio da publicidade e a aridez da negociao poltica. Ou

    melhor: por isso mesmo.

    Em todas as pocas o poder se faz representar em imagens; mas nossa

    poca a nica capaz de produzir imagens em escala industrial, com possibilidade de

    difuso planetria. A nica capaz de produzir imagens para todos os fenmenos da vida

    social, imagens simultneas aos acontecimentos, tradues do real editadas e emitidas

    to depressa que imagem e real, trauma e sentido se confundem na percepo do

    espectador. Em todas as pocas o poder se traduz em imagens, mas nossa poca a

    nica em que o eixo central do poder, que j no a poltica mas o capital, concentra-se

    sobretudo nos plos de produo e difuso de imagens.

    A imagem capaz de proporcionar, aos pobres humanos desamparados no

    reino arbitrrio da linguagem, pelo menos duas modalidades de gozo. O gozo do sentido,

    que se d no momento em que a errncia do significante se detm no encontro com a

    imagem da coisa. O gozo do sentido explica porque o sonho e a fantasia tm para a

    psicanlise o estatuto de realizao de desejos. que o desejo no se realiza no encontro

    com um objeto real, mas em sua representao. A representao do desejo pelo

    significante j seria suficiente para sua realizao; mas o encontro com a imagem

    potencializa este pequeno gozo, fornece-lhe uma consistncia de coisa, uma aparncia

    de verdade que confortadora e extremamente prazerosa. isso! diria, com jbilo, o

    sujeito do desejo ao encontrar sua representao imaginria.

    O outro tipo de gozo proporcionado pela imagem, que um desdobramento

    do anterior, o gozo da identificao. Escrevi logo acima que o imaginrio o campo da

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    construo das iluses identitrias, que se formam pela via das identificaes. A

    identidade uma iluso que nos sustenta. Ningum idntico a si mesmo, nem ao

    conjunto de significantes que o representa nome prprio, profisso, gnero, etc mas

    a constituio de um campo de identificaes estvel resolve, ainda que precariamente,

    nossas interrogaes sobre o ser. O imaginrio o campo das identificaes. A presena

    do corpo do outro, do olhar, das expresses do outro, mais impactante para o

    psiquismo do que nossa prpria existncia. A imagem do outro existe para mim mais

    do que eu mesma. Por isso ela desperta cimes, escreveu Lacan; um cime existencial,

    que no se confunde com o cime que sentimos ante a iminncia de perda de um objeto

    de amor. Cime de nossa prpria imagem, ofuscada pela presena da imagem do outro.

    O movimento seguinte, reparador dessa perda, a identificao. Sou este!, sente o

    pobre eu, desestabilizado diante da fora da imagem de um outro.

    Se isso ocorre na relao cotidiana com nossos semelhantes, que dizer da

    relao com as imagens fulgurantes produzidas pela indstria cultural? As imagens do

    cinema, da televiso, dos outdoors, se apresentam a ns revestidas de uma outra

    espcie de aura, que no se confunde com a aura que emana das obras de arte. No eixo

    da produo, a imagem industrializada mercadoria, revestida do brilho do fetiche sob

    o qual se oculta a mais valia, tempo de vida expropriado aos homens que trabalharam

    para produzi-la. No eixo do consumo, aura dos objetos da indstria cultural produzida

    por efeito dos milhares, milhes de olhares que estes objetos atraem. Ao contrrio da

    experincia solitria que o encontro com uma obra de arte, em sua estranha

    singularidade, pode proporcionar, o encontro com um objeto da cultura industrializada

    nos remete diretamente ao espao onde todos esto. O valor de uma imagem

    diretamente proporcional a esse efeito de covalidao social de seu poder de verdade.

    Ver o filme que todos esto indo ver, assistir a telenovela de maior Ibope, no so

    apenas meios de incluso do annimo habitante da sociedade de massas nos termos

    imaginrios que regem a vida social. So tambm os meios atravs dos quais se

    produzem elementos para as identificaes que homogeneizam subjetivamente a

    sociedade. A identificao com a imagem industrializada uma forma ampliada do

    mesmo gozo flico que participa dos outros processos de identificao. Ampliada,

    porque a imagem que atrai os olhares de todos, funciona como semblante do poder.

    So nossos olhos, multiplicados aos milhares, que fazem a aura da imagem

    industrializada. Ela nos fascina na exata medida em que reproduz nossa alienao.

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    Antes de entrar diretamente na questo do cinema brasileiro, vale uma

    ressalva: nem toda imagem industrializada opera da mesma maneira. Pensemos no

    cinema de Godard, por exemplo: ele trabalha as imagens a partir de outra lgica. Em

    Godard, o gozo esttico promovido pela imagem cinematogrfica no da mesma

    ordem da produo de identificaes; ele parece, alis, trabalhar propositadamente

    contra o jogo de espelhos que propicia a identificao, sobretudo nos filmes produzidos

    do final da dcada de 1990 e no incio dos anos 2000. A recusa em apresentar os atores

    em close, a parca iluminao da maior parte das cenas, o atravessamento entre as falas

    e as imagens, que nos impedem de saber quem diz o que, so recursos, a meu ver,

    contrrios aos mecanismos de identificao do pblico com os personagens. Alis, quem

    so os personagens dos filmes mais recentes de Godard?

    Arrisco dizer que em Godard as imagens no so compostas de acordo com

    as leis de plena visibilidade, de produo de sentido, de efeito de realidade, que regem o

    imaginrio; em Godard as imagens tm funo simblica. So como significantes que

    combinam-se de modo a produzir, no significao, mas enigma. Os filmes de Godard

    teriam maior parentesco com a pintura abstrata do que com a figurativa.

    Uma outra tica da imagem possvel no cinema como tambm j provou

    Glauber Rocha. Mas esta no certamente a tica da grande indstria cinematogrfica,

    a tica do bom encontro entre a arte e o capital.

    O cinema brasileiro desse incio do sculo XXI talvez o cinema mais

    potente que o pas j produziu, no s em termos da potncia das imagens mas tambm

    em termos de seu impacto sobre a vida social. So filmes que tematizam a misria, a

    violncia urbana, a excluso, a corrupo das elites, a injustia, os abusos de poder, a

    privao dos direitos humanos mais elementares, etc. Filmes que buscam, com maior ou

    menos humor, com maior ou menor dramaticidade, alertar a sociedade para esses

    problemas. Ou que procuram, no mnimo, contribuir para torn-los pensveis, para

    incluir a violncia da misria no mapa imaginrio do Brasil das elites quero dizer, das

    elites que vo ao cinema.

    Temo que os filmes que espetacularizam a violncia dificultem a discusso

    que pretendem implementar. No Brasil, alm da forte penetrao do cinema norte

    americano, estamos h trinta anos sob a influncia do padro Globo de qualidade.

    Ambos tornaram o pblico extremamente exigente quanto ao realismo das obras, e

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    terminaram por afastar os cineastas da busca de outras possibilidades experimentais no

    trato com a imagem. A realidade, no cinema contemporneo, tem que passar toda pelo

    crivo da visibilidade. De acordo com essa lgica do espetculo diramos (pensando em

    Guy Dbord), que s faz parte do real, s existe, o que se d plenamente a ver. A

    realidade humana sempre efeito da linguagem que utilizamos para abord-la. A

    realidade uma conveno de luz foi o ttulo de um trabalho que escrevi sobre o filme

    Lcio Flvio, passageiro da agonia, de Hector Babenco, para um curso de mestrado

    que fiz com Ismail Xavier, em 1980. O perigo do abuso das imagens de explicitao da

    violncia que ele inclui a violncia nos termos da linguagem que compe o senso de

    realidade normal, cotidiana, da sociedade.

    A maior parte desses filmes tem forte repercusso nacional e internacional.

    No vou reduzir toda essa filmografia ao rtulo de cinema de denncia, nem gosto da

    expresso cosmtica da fome, cunhada pela Ivana Bentes, porque a qualidade artstica

    dessa safra de filmes ultrapassa estes clichs os melhores deles, por sinal no

    representam a misria maquiada. Talvez at enfatizem demasiadamente o horror. O que

    pretendo discutir o efeito problemtico de se discutir a violncia utilizando

    predominantemente as imagens da violncia.

    Da dcada de 80 para c, foi preciso que o cinema brasileiro apagasse por

    completo todos os traos de identificao com a esttica do Cinema Novo que tambm

    propunha outra tica para a relao entre a imagem e a violncia social para que se

    tornasse, finalmente, um cinema de massas.

    Outro problema da espetacularizao da violncia, acrescida do tratamento

    realista da imagem, que ela desfaz grande parte do efeito tico desses filmes,

    produzindo, alguns efeitos colaterais importantes O mais bvio a elevao de nosso

    patamar de tolerncia emocional para com a violncia. A exposio exaustiva de nossa

    sensibilidade a cenas de horror, viso do sofrimento de nossos semelhantes,

    contemplao de corpos maltratados, feridos, destroados, termina por nos tornar

    relativamente indiferentes. Cria-se um crculo vicioso: na medida em que nos

    acostumamos com a exposio s cenas mais tenebrosas, a indstria cinematogrfica

    apela para efeitos espetaculares mais violentos, mais assustadores. evidente que o

    efeito de conscientizao contra a violncia, se algum dia existiu, j foi substitudo

    pelo efeito de gozo com a violncia que pretende denunciar. Alm disso, essas imagens

  • maria rita kehl | imagens da violncia e violncia das imagens

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    convidam o espectador a gozar com a violncia; em uma sociedade regida pelo

    imperativo do gozo, como as sociedades de mercado contemporneas, o gozo da

    violncia a resposta mais imediata violncia do imperativo do gozo.

    Em segundo lugar, produz-se a identificao do pblico com os prprios

    personagens violentos, alm de um fascnio inconsciente pelos atos de violncia, que ficam

    associados, a partir dessas narrativas, a caractersticas de poder, ousadia, fora, coragem,

    em contextos em que apenas quando se traduzem em atos de violncia essas qualidades

    humanas so capazes de produzir alguma transformao. Seria injusto dizer que o

    cinema, ou a televiso, produzem a violncia social que atormenta a vida dos brasileiros.

    Acho mais apropriado dizer que participam da mesma lgica que produz esta violncia. A

    coero econmica que est na base da produo de obras para o cinema e a televiso,

    impede ou pelo menos dificulta que uma outra lgica venha a se instalar. Seriam

    necessrias mais duas ou trs voltas nesse parafuso para demonstrar que a lgica da

    violncia, afinal de contas, a prpria lgica da concentrao do capital. Por enquanto, no

    tenho todos os meios necessrios para executar essa pirueta terica.

    Para terminar, quero mencionar rapidamente alguns filmes produzidos nos

    ltimos dois anos nos quais, apesar de no escaparem dos problemas que apontei, percebo

    algumas tentativas de elaborar uma tica para a abordagem da violncia social.

    O Invasor, de Beto Brant (2001), relativiza o impacto da violncia com

    recursos de ironia. Alm disso, tem o mrito de deslocar o foco narrativo, apontando a

    origem da violncia no no submundo de onde o senso comum acredita que ele se origina,

    mas no campo feroz da concorrncia e da ilegalidade entre as elites. O filme de Beto Brant

    joga uma isca para pegar o espectador incauto. Desde o trailer, somos predispostos a

    esperar que a violncia venha de onde acreditamos que ela sempre esteve: Ansio, o

    matador de aluguel encenado por Paulo Miklos, aparece em cortes rpidos e ameaadores,

    o olho mau, as linhas duras do rosto iluminadas de modo a endurec-lo ainda mais, o

    sorriso cruel, o parabelo imaginrio apontado para a cmera (o pblico): clcl!

    Mas a expectativa criada em torno da crueldade do matador de aluguel no se

    confirma. Uma vez executado o servio para o qual foi contratado, Ansio invade a vida

    de seus parceiros burgueses, que esperavam poder voltar ao normal depois do crime.

    Como se mandar matar um parceiro incmodo fosse uma espcie de medida provisria,

    um estado de exceo a que se recorre em momentos difceis para depois retornar, sem

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    manchas, s instituies democrticas da vida: famlia, boates, academia, negcios. S que

    no existe mais normalidade para onde voltar: o invasor no invade a vida de seus

    comparsas para inferniz-los, mas porque quer se tornar um burgus como eles. Como o

    escravo de Hegel, Ansio volta para ensinar aos empresrios (seus senhores) quem eles

    realmente so.

    Tarefa inglria, como toda a pedagogia. Os empresrios/matadores no

    querem se reconhecer no matador que contrataram. O matador, por sua vez, descobre que

    a vida de empresrio lhe cai como uma luva. Conquista a filha adolescente da vtima.

    Aparece na firma, sem mais nem menos. Finge que trabalha l. Vai entrando. Vai ficando.

    Ns, na plateia, esperamos a continuao da escalada da violncia. Quando que Ansio

    vai endurecer o jogo? Quando que as cabeas vo comear a rolar?

    S que este no um filme americano. No O cabo do medo. No Atrao

    fatal. O filme no vai saciar nosso desejo de ver Ivan (Marco Ricca), o empresrio

    arrependido, estourar os miolos do abusado Ansio, nem vai tentar justificar moralmente o

    nosso impulso assassino. Com muita relutncia, comeamos a entender que o invasor no

    o personagem mais violento do filme. s o personagem mais feio. s o mais pobre. A

    raiz da violncia? Est onde sempre esteve: do lado das elites. Na falta de escrpulos

    justificada pela lgica do capital. Na impunidade. Na ganncia.

    Mais, ainda: a violncia est, principalmente, no anseio de todos, adolescentes

    e adultos, pobres e ricos, por um gozo sem limites, sem fim. No vemos tiros no filme. No

    vemos sangue, surras, coronhadas. As cenas mais violentas, mais perturbadoras de O

    Invasor, so as festas a que a adolescente rica leva o novo namorado. Ali, embalada pelo

    ecstasy, a juventude dos Jardins mimetiza excitada o som e a fria da cidade, que os

    seguranas contratados por seus pais suam para manter do lado de fora .

    J em Cidade de Deus, de Fernando Meirelles (2002), a matriz violncia foi a

    ao do Estado, que remanejou fora os favelados da zona Sul do Rio de Janeiro, nos anos

    60, para despej-los nos casebres construdos s pressas em um terreno rido,

    desprovidos das mnimas condies de urbanizao, longe dos locais de trabalho dos

    moradores, sem asfalto, luz, saneamento, transporte. O Estado inventou a Cidade de Deus

    e radicalizou as condies de marginalidade dos seus habitantes, removidos para l como

    lixo indesejvel na paisagem da cidade. A origem da violncia social a segregao,

    denunciada logo nos primeiros minutos de filme. S que a velocidade da edio das

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    imagens, mais violenta para a sensibilidade do espectador do que o seu contedo (por isso

    mesmo o filme de Meirelles conquistou as geraes de adolescentes criados pela televiso)

    nos faz esquecer desse nexo essencial.

    Em Cidade de Deus, assim como no filme de Beto Brant, a maioria dos

    assassinatos ficam fora do quadro. Mas no preciso ver corpos mutilados para

    presenciar o horror. O medo estampado no rosto dos personagens, a crueldade sem

    limites do Z Pequeno que em poucos minutos somos levados a odiar o choro

    desesperado da criana condenada a levar um tiro, a pulsao mais que nervosa,

    aterrorizada, do filme um filme em fuga acelerada, magistralmente tenso incluem o

    espectador na violncia que pretende demonstrar. A briga entre os dois grupos de

    traficantes vai ficando to tensa, to ameaadora, que ao final estamos esperando,

    antegozando a morte do terrvel Z Pequeno. O espectador engolido pela lgica da

    violncia. Queremos explodir com tudo aquilo. S a execuo do bandido nos redimir. Ao

    contrrio do Invasor, que por fora da ironia impede o gozo da violncia, Cidade de Deus

    nos convoca a participar imaginariamente dela. Somos todos exterminadores potenciais

    de Z Pequeno. No entanto, sou forada a parafrasear Eugnio Bucci em sua crnica para o

    Jornal do Brasil: que filme magnfico; que vida escrota.

    Carandir, de Hector Babenco (2002) mantm o estilo mais convencional do

    diretor, desde Lcio Flvio e Pixote, respectivamente de 1977 e 1980. Fiel narrativa de

    Druzio Varela, Carandir nos oferece a crtica da opresso temperada por doses

    reconfortantes de cordialidade. Nos relatos em flashback dos prisioneiros a violncia

    institucional nos parece suportvel, carregada de afeto, quase doce, at que as cenas do

    massacre venham cortar nosso barato. Podemos argumentar que a cordialidade

    humaniza os personagens, aproxima os prisioneiros de seu pblico o que verdade.

    mais provvel que o espectador da classe mdia se identifique com os bandidos de

    Babenco do que com os de Meirelles. Aqui todo mundo inocente, doutor, diz

    ironicamente o veterano Seu Chico (Milton Gonalves) ao mdico recm chegado.

    De fato, parece que o nico agente da violncia, em Carandir, o prprio

    presdio. No final, depois das cenas do massacre, o horror novamente contrabalanado

    pela postura olmpica do mdico (Luiz Carlos Vasconcelos), antes que o pblico tenha tido

    tempo de chorar os mortos. Estranhamente este belo filme, que tem a grandiosidade rara

    de um pico brasileiro, termina colocando um blsamo na ferida que ajudou a abrir. A

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    vida assim mesmo, pacincia, parece nos dizer, sem ironia, o sorriso complacente de

    Luiz Carlos Vasconcelos ao deixar o presdio, dias depois do massacre.

    Por fim, quero mencionar uma produo pernambucana: trata-se Amarelo

    Manga (2003), do estreante Cludio Assis. um filme que, assim como O Invasor, no

    cumpre o que promete. Frustra nossa expectativa, forjada diante de centenas de filmes

    semelhantes, de um desfecho violento para as vrias situaes de tenso que vai nos

    apresentando. Peo perdo por ter me esquecido dos nomes dos personagens; vou passar

    por eles referindo-me aos atores. A primeira parte do filme nos faz esperar que o

    aougueiro ciumento e de maus bofes (Chico Diaz) v passar algum na sua peixeira: a

    esposa infiel (Dira Paes), a amante, o homossexual (Matheus Nachtergale) apaixonado por

    ele. O conflito entre a dona do boteco (Leona Cavali) e o hspede necrfilo do hotel (Jonas

    Bloch) tambm parece que vai terminar em sangue. As coisas no se desenvolvem

    conforme o esperado. Os personagens no vo s ltimas consequncias com suas

    ameaas. O anticlmax a que o filme conduz tem um verdadeiro efeito de corte, no sentido

    psicanaltico do termo, sobre nossa expectativa de gozar com a violncia. Em Amarelo

    Manga se encontra uma proposta, talvez ainda um tanto tmida, de abordar a violncia

    social a partir de uma outra lgica, que dispensa o gozo do espectador diante das

    tradicionais cenas de ao, cuja funo aliviar as tenses produzidas pela narrativa.

    Nesse filme, a barbrie social no se apresenta sob a forma de tiros e pancadarias mas de

    uma estagnao sem esperana e sem futuro na qual todos, personagens e pblico, so

    mergulhados.

    No se trata de uma proposta condescendente. A violncia fundamental nesse

    filme irredutvel a qualquer contemporizao; ela est na pobreza dos cenrios, na

    sujeira grudada em todas as paredes velhas, na pasmaceira da vida, na expresso vazia dos

    ndios que comem bolachas diante da televiso na saleta imunda do Texas Hotel. Est na

    falta de alento dos personagens. Primeiro vem o dia, diz Leona Cavalli na abertura do

    filme, antes de abrir mal humorada o mesmo bar sujinho de todas as manhs. A acontece

    tudo. E sem parar. (...) depois chega a noite. Essa a melhor parte. Depois vem o outro

    dia. A tudo outra vez...

    Talvez a diferena entre Amarelo Manga e os outros trs filmes que abordei

    que os personagens vivem no centro velho de Recife que, embora caindo aos pedaos, faz

    parte do circuito nevrlgico da cidade. Ao contrrio dos favelados de Cidade de Deus, dos

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    habitantes da periferia de So Paulo em O Invasor e dos presidirios do Carandir, os

    personagens de Amarelo Manga pertencem cidade; esto territorializados. O centro de

    Recife, alis, o grande personagem do filme. Vemos suas cores, sua comida, o falatrio

    nas caladas, ouvimos a mixrdia sonora de dezenas de rdios ligados ao mesmo tempo

    em estaes diferentes quase sentimos o cheiro meio podre da cidade, dos restos de lixo

    do cho misturado com o bafo do mangue. No meio dos destroos da cidade decadente, os

    personagens conservam um resto de dignidade: eles pertencem cidade e a cidade lhes

    pertence. O contraste entre Amarelo Manga e os filmes precedentes nos faz pensar se a

    violncia mais insuportvel e mais cruel no a da segregao. Mas este no um efeito

    do filme: efeito da comparao entre este e os anteriores.

    Por fim, fica uma sugesto de pauta para um prximo artigo: vale a pena fazer

    uma anlise comparativa entre nibus 174 e O Bandido da Luz Vermelha, ressaltando o

    papel da narrativa jornalstica a televiso no filme de 2002, os programas policiais de

    rdio no filme de 1968 na urdidura da recepo em relao aos crimes que

    aconteceram de fato e foram reconstitudos ficcionalmente por Jos Padilha em 2002 e

    Rogrio Sganzerla em 68. verdade que em nibus 174 a reportagem televisiva contribui

    com o tratamento realista da narrativa, enquanto o acompanhamento radiofnico no

    Bandido... de Sganzerla mais que irnico: elemento central na construo da linguagem

    debochada do filme. Mas a comparao se justifica porque ambos os filmes colocam em

    questo a participao da indstria cultural na disseminao da violncia ao fazer dela no

    um acontecimento noticioso, mas um estilo de abordagem da realidade.