Imagens de Medeia

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Anais do XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH • São Paulo, julho 2011 1 Imagens de Medeia: Magia e Poder Amanda Maíra Steinbach 1 Universidade Federal de Uberlândia/UFU [email protected] Depois de terem atingido sua maturidade nos séculos VI e V a.C, as tragédias gregas vêm sendo adaptadas ao longo de sua milenar existência, ressignificando o próprio sentido de trágico da época. É certo que o sentido cívico e político de trágico, inspirador dos concursos de tragédias nas grandes dionisíacas (festividade que mobilizava toda a pólis), esse se perdeu ao longo do tempo, restando-nos o debate teórico sobre o que pode ou não ser uma tragédia. Distantes sob nosso olhar cristão e iluminista, racionalizadas a ponto de o erro do herói trágico clássico hoje ser entendido como culpa e de o destino pouco ter a nos dizer, as tragédias sobreviveram ao rigor do tempo, por, entre outras razões, sua estreita relação com os mitos que guardam a universalidade dos sentimentos humanos 2 . Na esteira das ressignificações do trágico e das adaptações de tragédias ao longo do tempo, destaca-se Medeia, de Eurípedes, que, revisitada por autores e diretores, teve seu texto reescrito por Sêneca no teatro romano, foi dirigida por Pasolini no cinema e, no Brasil, autores como Agostinho Neto (1957) 3 , Oduvaldo Vianna Filho (1973) 4 e Paulo Pontes e Chico Buarque (1975) 5 adaptaram-na para a realidade brasileira. Das adaptações brasileiras, chama muito a atenção a Medeia de Vianinha, escrita para ser exibida como Caso Especial na televisão, pela beleza e talentosa transposição do mundo 1 Mestranda do curso de Pós-Graduação em História Social do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia. Integrante do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura - NEHAC. 2 Sobre as aproximações e distanciamentos do trágico no mundo contemporâneo ver: GAZOLA, R. Para não ler ingenuamente uma tragédia grega. São Paulo: Edições Loyola, 2001. 3 OLAVO, A. Além do Rio. In: NASCIMENTO, A. Dramas para Negros e Prólogo para Brancos: Antologia de teatro negro brasileiro; Rio de Janeiro: Teatro Experimental do Negro, 1961. 4 VIANNA FILHO, O. Medeia. Cultura Vozes. Petrópolis-RJ, v. 93, n.5, p. 127-158, 1999. 5 BUARQUE, C; PONTES, P. Gota D’água. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

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Imagens de Media: Magia e poder.

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Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 20111 Imagens de Medeia: Magia e Poder Amanda Mara Steinbach1 Universidade Federal de Uberlndia/UFU [email protected] DepoisdeterematingidosuamaturidadenossculosVIeVa.C,astragdias gregasvmsendoadaptadasaolongodesuamilenarexistncia,ressignificandoo prpriosentidodetrgicodapoca.certoqueosentidocvicoepolticodetrgico, inspiradordosconcursosdetragdiasnasgrandesdionisacas(festividadeque mobilizavatodaaplis),esseseperdeuaolongodotempo,restando-nosodebate tericosobreoquepodeounoserumatragdia.Distantessobnossoolharcristoe iluminista, racionalizadas a ponto de o erro do heri trgico clssico hoje ser entendido como culpa e de o destino pouco ter a nos dizer, as tragdias sobreviveram ao rigor do tempo,por,entreoutrasrazes,suaestreitarelaocomosmitosqueguardama universalidade dos sentimentos humanos2. Na esteira das ressignificaes do trgico e das adaptaes de tragdias ao longo do tempo, destaca-se Medeia, de Eurpedes, que, revisitada por autores e diretores, teve seutexto reescrito por Sneca no teatro romano, foi dirigida porPasolinino cinemae, noBrasil,autorescomoAgostinhoNeto(1957)3,OduvaldoViannaFilho(1973)4e PauloPonteseChicoBuarque(1975)5adaptaram-naparaarealidadebrasileira.Das adaptaesbrasileiras,chamamuitoaatenoaMedeiadeVianinha,escritaparaser exibida como Caso Especial na televiso, pela beleza e talentosa transposio do mundo 1MestrandadocursodePs-GraduaoemHistriaSocialdoInstitutodeHistriadaUniversidade FederaldeUberlndia.IntegrantedoNcleodeEstudosemHistriaSocialdaArteedaCultura- NEHAC. 2 Sobre as aproximaes e distanciamentos do trgico no mundo contemporneo ver: GAZOLA, R. Para no ler ingenuamente uma tragdia grega. So Paulo: Edies Loyola, 2001. 3OLAVO,A.AlmdoRio.In:NASCIMENTO,A.DramasparaNegrosePrlogoparaBrancos: Antologia de teatro negro brasileiro; Rio de Janeiro: Teatro Experimental do Negro, 1961. 4 VIANNA FILHO, O. Medeia. Cultura Vozes. Petrpolis-RJ, v. 93, n.5, p. 127-158, 1999. 5 BUARQUE, C; PONTES, P. Gota Dgua. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1979. Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 20112 clssico grego para o subrbio carioca da dcada de 1970, perodo de ditadura militar no Brasil. A tragdia grega que inspira Vianinha foi representada pela primeira vez em 431 a.C.Nela,Medeia,umagrandefeiticeirabrbara,repudiadaporseuesposogrego, Jaso,queresolvedesposarafilhadoreideCorinto.Tomadapelodio,Medeiase vinga do repdio sofrido, matando seus prprios filhos. SobottuloMedeia:UmaTragdiaBrasileira,Vianinhaadaptaotextogrego para o subrbio carioca6. A pea trata, metaforicamente, de um poder discricionrio em tornodoqualorbitamtrsformasdistintasdeconvivncia:aresignaodeEgeue Dolores, a negociao ou cooptao de Jaso e o enfrentamento, a subverso de Medeia.Em sua Medeia, Oduvaldo mantm-se fiel aos objetivos de levar s telas o povo brasileiroeseusproblemas,buscando,apartirdaarte,mostrarpossibilidadesde sobrevivnciadessepovo.EstetrabalhoconsiderarapersonagemdeMedeiaemtrs momentosnosquaissolevadoscenaseusconhecimentosreligiosos,tentando entender o relacionamento que a comunidade tem com essa personagem e o motivo que a leva aplicao de tais conhecimentos para se vingar de Jaso. Vianinhainiciaseuscriptdescrevendodoiscenriosdistintos:um,externo,no qual acontecem os preparativos dos festejos do casamento e, contrapondo-se a este, um segundoquedescreveacasadeMedeia.Noprimeiro,Viannanostransportaparao ambienteexternodoconjunto,descrevendo-osemprecomoumlugardemuito movimento,depessoasqueouvemmsicaaltoedecrianasaosgritos.Neleocorrea festa de casamento de Jaso, que, com antecedncia, anunciada, por voz vinda de um alto-falante,paratodaacomunidade.Nesseannciosodescritosospreparativosda festa,ascomidasaseremservidas:muitochope,cabrito,leitoegalinhapreparados pelasmulheresdacomunidade.Umafestasuburbana,regadaasambaecerveja.Na 6NotextodeOduvaldo,asacerdotisadaantiguidadedlugaraumamulherdaumbanda;oreinode Corintopassaaserumconjuntohabitacional;Creonte(reideCorinto)agoraSantana,donoda escoladesambaedascasasdoconjunto;eJaso(maridodeMedeia)umsambistaquetemo primeiro samba fazendo sucesso nas rdios. Egeu, rei de Atenas, agora um taxista vizinho de Medeia emaridodeDolores,queassumenatramaopapeldaama,edocoroformadopelasmulheresde Corinto na tragdia clssica. Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 20113 peaoriginalnohdescriodospreparativosdocasamentodeJasocomafilhado rei de Corinto, mas Vianna, fiel sua preocupao de levar o que ele considerava ser o povo brasileiro ao palco, nos brinda com uma descrio pormenorizada de uma festa numacomunidadecarioca.Ele,alis,muitofrequentouasfavelasdoRiodeJaneiro, procurando a fonte de inspirao para o que concebia como sendo o verdadeiro povo brasileiro. Emseguida,tem-seadescriodoapartamentodeMedeia.Neleoautornos chamaaatenoparaalgunsobjetos:umpacotedevelas,alguidar,dlias,farofa, imagensdeumbanda,umExu7,umOgum8,levando-nosaperceberqueasacerdotisa brbaradotextoantigo,nanovaverso,tornou-semedesanto.Nodecorrerdapea, Vianinhaconfirmaessaopo.CientedocasamentodeJasoedominadapelodio, Medeiasegueaocemitrioeldispeosobjetosdemagiaumatoalhacomponto traado de Omolu9. Coloca o alguidar com a comida. Coloca Dlias. Velas... Abre uma garrafadecachaa...Medeiatiraumpanoquecobreumaimagem,umExu.Medeia batecabea10pedindo,pelaprimeiravez,aintervenodomal.Sopalavrasda personagem: MEDEIA: Vim pedir o dio. Vim pedir a coragem da vingana! Quero vingana, seu Ganga! Vingana o nico alento do oprimido, sua nica esperana!Vingana,seGanga,querominhacabeafervendo!Gosto desanguenaminhaboca.Ohomempaidosmeusfilhos,queajudei comaminhajuventude,vaisecasarcomoutra.Eleviajouseismeses, voltou no deu sinal, foi na boca annima que ouvi que ele ia se casar - pelomeuhomemconfieinestavidatosobressaltadaeagoraeis-me abandonada,comdoisfilhos,semdinheiro,semparenteparame receber e chorar a minha raiva mais do que eu... Eu j estou morta. Mas a morte s no basta. Eu quero o vento da desgraa11. 7 Caractersticas de seus filhos: apaixonados, espertos, criativos, persistentes, impulsivos e brincalhes (ABREU, J. V. de. Os Orixs Danam no Planalto Central. Braslia: Fundao Cultural Palmares, 2006., p. 44). 8 o deus da guerra, desbravador, conquistador. Seus filhos so corajosos, aventureiros, explosivos, mas debomcorao.(ABREU,J.V.de.OsOrixsDanamnoPlanaltoCentral.Braslia:Fundao Cultural Palmares, 2006, p. 48). 9 Senhor da sade e da doena. (ABREU, J. V. de. Os Orixs Danam no Planalto Central. Braslia: Fundao Cultural Palmares, 2006. p. 43). 10 VIANNA FILHO, O. Medeia. Cultura Vozes. Petrpolis-RJ, v. 93, n.5, p. 127-158, 1999. P. 135 11 VIANNA FILHO, O. Medeia. Cultura Vozes. Petrpolis-RJ, v. 93, n.5, p. 127-158, 1999. P. 135. Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 20114 Essa cena intercalada com a cena de Creusa provando o vestido de noiva, mostra-seocontrastedadordeMedeiacomafelicidadedanoiva.Contudo,aofinaldafalade Medeia,Creusasenteumafortedornopeitoecaidesmaiada.SantanaeJasoso chamados.AochegarSantanasedesesperaemandachamaromelhormdicodacomu-nidade, ao que a esposa o alerta que aquilo pode ser obra de Medeia. Surpreso ele ordena: Chamem a Nininha, quero ela de branco pra fazer um descarrego na minha filha12. Emfunodomal-estardafilha,SantanadecideexpulsarMedeiada comunidade, manda que seus homens a busquem em casa. Medeia retirada fora de casa e se encontra com Santana. Nesse encontro ele manda que ela arrume as coisas e v embora,poiseleateme.Medeiasuplicaporpermanecermaisumdiaparapoder encontrar um lugar para onde ir com os filhos. Em considerao a Jaso, Santana cede e sai. Medeia, cada no cho, grita a sua raiva. Vozes vindas dos apartamentos pensam ser umbbadofazendobadernaegritamparaquesilencie.SurgeEgeueanunciaqueali est Medeia e o coro de vozes demonstra seu carinho pela personagem, gritam: ... estou rezando por voc, Medeia - Tome cuidado, amiga Medeia - Melhor ir dormir, Medeia, descansa. Isso passa. Cicatriza. Tudo cicatriza 13. Egeu tenta ajud-la a levantar e, nesse momento, Medeia, que j tem parte da sua vinganaarquitetada,lhepedeajuda.Temeroso,Egeuresponde:Medeia,porfavor, nomeponhanissoparaacenderfogueira,passeitodaminhavidaaprendendoame alimentar de cinza14.Diante da resistncia de Egeu, ela o incita a recordar do quanto as rezas e ervas dela o ajudaram: MEDEIA: Egeu, eu te ajudei, Egeu... EGEU:Maisqueajudou,salvouminhavida.Minhasdoresno terminavam, j quase no podia trabalhar no meu txi! Vivia a misrianafrentedosmeusdias.Teuspasses,tuareza,tuaservasme ressuscitaram... 15 12 VIANNA FILHO, O. Medeia. Cultura Vozes. Petrpolis-RJ, v. 93, n.5, p. 127-158, 1999. P. 137. 13 VIANNA FILHO, O. Medeia. Cultura Vozes. Petrpolis-RJ, v. 93, n.5, p. 127-158, 1999. P. 140. 14 VIANNA FILHO, O. Medeia. Cultura Vozes. Petrpolis-RJ, v. 93, n.5, p. 127-158, 1999. P. 141. 15 VIANNA FILHO, O. Medeia. Cultura Vozes. Petrpolis-RJ, v. 93, n.5, p. 127-158, 1999. P. 141. Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 20115 Egeu resolve ajudar Medeia e aceita esperar por ela no descampado, prximo ao apartamentodeambos,nofinaldatardedodiaseguinte.AcompanhadadeEgeu, Medeiasegueparaseuapartamento.LencontraJasopelaprimeiravez.Osdois conversam e as desculpas dadas por Jaso s aumentam a raiva deMedeia. Ao sair do apartamento ele abraa os filhos e, nesse momento, Medeia, perplexa, percebe qual ser o desfecho da sua vingana. Adicionalmente ao plano de eliminar Santana e sua filha, comamortedosprpriosfilhosqueavinganasefardesesperadamentedesumana para Jaso. Medeia deixa a noite findar e na manh do dia seguinte segue para a penso onde Jaso termina de se arrumar para o casamento.AvisodeJasoemtrajedecasamentoafazsofrer,umsofrimentoquea ansiedade de Jaso no v. Decidida, ela d prosseguimento ao seu plano, esconde o seu sofrimentoedissimuladamenteaceitaasrazesenumeradasporJaso.Empazcoma prpria conscincia, Jaso aceita que os filhos levem os doces preparados por Medeia festa de casamento. Medeia se despede e segue para casa. L chegando, escolhe ervas, pegaumramodecomigo-ningum-podeamassa-otirandoosumovenenosoquese misturaaoseuinconformismo,misturaovo,cocoraladoelevaaoforno.Aslgrimas escorrem por seu rosto, e ela ouve ao longe os fogos de artifcio que indicam a sada dos noivos da igreja. Medeia sofre, j no h o que ser feito. Jaso, que nunca tornara legal a unio deles, agora est casado, o destino no tem volta. Elachoraaoolharparaosfilhosarrumadosparairemfestadecasamentodo pai,semsaberemquelevamemsuasmos,nopacotededocesfeitospelame,a vingana de Medeia.AscrianaschegamfestacomDoloreseentregamopresenteaopai.A vinganadeMedeiaseconcretiza.OsfilhosretornamparacasaeMedeiaresolvesair emumpiqueniquecomeles.Enquantosaidecasa,elaouvedabocadeumdos convidadosanotciadequeSantanaeCreusaforamenvenenados.Porummomento, Medeia tem amenizada sua dor e agradece: Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 20116 MEDEIA:Obrigada,senhordetodasasencruzilhadas,senhorde todososretornos,obrigada.Paraquemsofrenohnadamais suave doqueosofrimentodequemteoprime.Morrelentamente,Santana. Porfavor,Santana,morredevagar...Obrigada,senhordetodasas encruzilhadas...16. Elasaicomosfilhos,chegaaodescampado,desfazatrouxacomosdoces. ComoaMedeiadeEurpedes,elavesmorecerseumpetodevingana.Aidiade matarosprpriosfilhosafazinfelize,porummomento,elapensaemdesistir.Mas, assim como a Medeia clssica, a fraqueza momentnea, ela entrega um doce para cada filhoejustificaseuatocomosendoaquelequeoslivrardeumavidademisriae humilhaes.Deixaosfilhose,semolharparatrssegueaoencontrodeEgeu.A multido a procura gritando: Ela no pode ter evaporado! Ela tem parte com o demo! Cuidado! Ela feiticeira. Cuidado. Tomem cuidado! 17. Medeia entra no carro de Egeu e, ciente do que acabou de fazer, decide se matar, antes, porm, pede que Egeu jogue seu corpo no mar para que aqueles que a oprimiram pensem que os que tm direito vingana sobrevivem a ela18. VianinharetrataemsuaMedeiaarelaodospersonagenscomodivino, respeitando a ambigidade prpria dessa relao. Quando Medeia vai ao cemitrio fica claroqueatentoelanuncahaviausadodeseusconhecimentosparaomal,masela sabe que o mal possvel atravs deles. O segundo momento em que o conhecimento de Medeia mencionado ocorre na mesmacena,quandoCreusacaidesfalecidaapsodespachodeMedeianocemitrio. Santana pensa ser um mal sbito devido ao casamento, mas, alertado pela esposa de que aquiloeraobradeMedeia,eleordenaquechamem,juntamentecomummdico,uma benzedeira para fazer um descarrego na filha. O temor toma conta de Santana, um temor provenientedopoderdoconhecimentodeMedeia.Ele,poderoso,decidemandar 16 VIANNA FILHO, O. Medeia. Cultura Vozes. Petrpolis-RJ, v. 93, n.5, p. 127-158, 1999. P. 152. 17 VIANNA FILHO, O. Medeia. Cultura Vozes. Petrpolis-RJ, v. 93, n.5, p. 127-158, 1999. P. 158. 18HumavariaonodesfechodaadaptaodeVianinha.Se,napeaoriginal,Medeiafogeviva,no carro do deus sol, levando os corpos dos filhos, no texto de Vianinha, ela morre - ainda que na mente da populao fique a certeza de que ela sobrevive - e seus filhos so mantidos vivos. Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 20117 emboraaquelamulherpobreeabandonadasortepelomarido,porquetemenelaum poder que ele no tem como enfrentar, mas tambm se vale desse poder de Medeia para justificar os seus desmandos19.Observa-se, ao final dessa cena, o carinho que os moradores tm por Medeia, o sentimentodesolidariedadequeemergedocorodevozesquecompostopor moradoresdacomunidade.Percebe-se,tambm,comoasrezasdeMedeiaforamteis paraEgeu.IssosuscitaaidiadequeMedeiatinhautilidadenaquelacomunidade carente, que, a exemplo do que ocorre ainda em muitas comunidades no Brasil, ela era esperana de cura das doenas daquela populao. Aquivaleumparnteseparadestacar,maisumavez,aambigidadequese estabelecenaspessoasdiantedasvriasreligies.Michelet20,historiadordosculo XIX,chamaaateno,noseulivrosobreasfeiticeiras,afirmandoqueestassempre existiram,poissempreexistiuanecessidadematerialnahistriadahumanidade.Tal afirmao,tomandooenredocriadoporVianinha,earealidadedoprpriopas, verdadeira,masmerececomplemento,afeiticeira,asacerdotisa,oorculo,amede santoetantasoutrasrepresentaesdotranscendentesoteis,semdvida,paraa parcelamaishumildedapopulao,mastambmosoparaaquelesquetmpossese que, como Santana, podem pagar um mdico, mas tambm recorrem a uma benzedeira. Cometidososdelitos,Medeiaperseguidapelamesmapopulaoqueoutrora foisolidriaaela e,nessemomento,comoseemtribunaldeinquisio,ela acusada deterpartecomodemo,deserfeiticeira.Aquelesqueusufruramdeseus conhecimentos a renegam, porque no entendem que para Medeia essa era a nica arma a ser usada. 19Sobreopoderqueemanadaquelesqueconhecemosobrenaturaleousoquedelefazemparase defenderemdentroderelaesdepoderdesiguais,LauradeMelloeSouza,aoestudararelao senhor e escravo no Brasil Colnia, citando Roger Batiste, esclarece: ... no seio do sistema escravista, a cultura africana deixou de ser a cultura comunitria de uma sociedade global para se tornar a cultura exclusivadeumaclassesocial-deumnicogrupodasociedadebrasileira,explorado economicamente, subordinado socialmente. Neste contexto, a magia malfica, ou feitiaria, tornou-se umanecessidadenaformaosocialescravista.Elanoapenasdavaarmasaosescravospara moveremumalutasurda-muitasvezesanicapossvel-contraossenhorescomotambm legitimava a represso e a violncia exercidas sobre a pessoa do cativo. (SOUZA, Laura de Melo e. O Diabo na Terra de Santa Cruz. So Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 204) 20 MICHELET, J. A Feiticeira. Traduo: Ana Moura. So Paulo: Aquariana, 2003. Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 20118 NasvriasMedeias,retomadasaolongodotempo,aquestodafeitiaria denunciadoradaprpriacondiofeminina.Durantesculos,coubesmulheresa resignao.Paraasmaisrebeldes,cientesdesuavulnerabilidade,anicamaneirade enfrentamento era a unio com outro homem21 ou o uso dos conhecimentos que tinham. Conhecimentos adquiridos do trato cotidiano com ervas e plantas22.Iniciou-seestetrabalhochamandoaatenoparaauniversalidadedosmitos, motivo por que eles fazem sentido em sociedades to distantes daquelas em que foram forjados.Atentoaisso,Vianinhalevaparaatelevisoodioencarnadonafigurade Medeia. Por ela, ele desvela parte do universo religioso e cultural popular do Brasil. Um universo que se conjuga, que no se separa, como bem ressalta Brando Talvezamelhormaneiradesecompreenderaculturapopularseja estudarareligio.Alielaaparecevivaemultiformee,maisqueem outrossetoresdeproduodemodossociaisdavidaedeseus smbolos,elaexisteemfrancoestadodelutaacesa,orapor sobrevivncia, ora por autonomia, em meio a enfrentamentos profanos esagradosentreodomnioeruditodosdominanteseodomnio popular dos subalternos23. Sensvelaesseuniversopopulareslutasneleestabelecidas,pormeiodos sofrimentosdeMedeia,Vianinhadenuncia,emplenoregimemilitar,asmazelasde grandepartedopovobrasileiroeaspossibilidadesdeenfrentamentodessemesmo povo. Como bem ressalva Maria Helena Dutra, no pior perodo de censura, a televiso admitiaaintelignciadeVianinhaporque:...semfazercomciosouquererbrigarna rea do impossvel e do proibido conseguiu realizar um trabalho, no qual, sob o manto 21 Tal recurso utilizado por vrias personagens clssicas: Clitmnestra se une ao seu amante para matar Agamemnom,Electra(natragdiahomnimadeEurpedes)arquitetaoassassinatodaprpriame, mas seu irmo Orestes quem o executa. 22NotextodeEurpedes,apsconseguirmaisumdiaemCorinto,Medeiaarquitetaofimdosseus inimigos.Oprimeiropensamentomat-loscomumpunhalnamo.Percebesuavulnerabilidadee retrocede:Masumadvidameocorreemedetm:seeuforsurpreendidatraspassandoaportana tentativadeatingi-loscommeusgolpes,rirodemim,vendo-memorta,osinimigos.Melhorser seguirdiretamenteaviaquemeusconhecimentostornammaissegura:venc-los-eicomosmeus venenos(EURPEDES.MEDIA;HIPLITO;ASTROIANAS.Traduo,introduoenotas: Mrio da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1991., p.34 versos 427\436) 23BRANDO,C.R.OsDeusesdoPovo:UmEstudosobreaReligioPopular.Uberlndia:EDUFU, 2007. (p. 19) Anais do XXVI Simpsio Nacional de Histria ANPUH So Paulo, julho 20119 dapeaedomitogrego,mostroucomforaarealidadedopasedesenhavasem paternalismo ou arqutipos o perfil de seus oprimidos e contraditrios habitantes 24 24 PELEGRINI, S. C. A Teledramaturgia de Oduvaldo Vianna Filho. Da tragdia ao humor: utopia da politizao do cotidiano. Tese (Doutorado em Histria Social) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2000. P. 147.