IMAGENS NARRADAS - EDUCAÇÃO E VIDA EM DUAS (E MAIS) FICÇÕES

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    IMAGENS NARRADAS:

    EDUCAO E VIDA EM DUAS (E MAIS) FICES

    Rita Luciana Berti Bredariolli - Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho,UNESP

    RESUMO

    Esse texto aborda os vnculos entre educao e vida, atravs de uma situao de ensino eaprendizagem de arte criada na interseco de duas fices: Tendo uma experincia deJohn Dewey e Onde fica a casa de meu amigo de Abbas Kiarostami.

    Palavras-chave: arte, educao, vida, imagens, fices

    ABSTRACT

    This paper addresses the connection between education and life, through one situation of

    the teaching and learning of art created in the interwoven of the two fictions: Having anexperience by John Dewey and Where is the friend's home? by Abbas Kiarostami.

    Key-words: art, education, life, images, fictions

    Pour savoir il faut simaginerGeorges Didi-Huberman

    O narrador retira da experincia o que ele conta:sua prpria experincia ou a relatada pelos outros.

    E incorpora as coisas narradas experincia dos seus ouvintes.Walter Benjamin

    O que uma experincia? Para Guimares Rosa, uma experincia se

    diferencia de uma aventura. No texto O Espelho, o autor expe sua experincia

    como aquilo que lhe tomou, tempo, desnimos, esforos, algo que, por essa

    natureza, preza, mas, absolutamente, no se vangloria. Resultado de sries de

    raciocnios e intuies sua experincia transforma-se em algo passvel de ser

    narrado:

    Se quer seguir-me narro-lhe; no uma aventura, mas experincia, a queme induziram, alternadamente, sries de raciocnios e intuies. Tomou-

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    me tempo, desnimos, esforos. Dela me prezo sem vangloriar-me.Surpreendo-me, porm, um tanto -parte de todos, penetrandoconhecimentos que os outros ainda ignoram. O senhor, por exemplo, quesabe, e estuda, suponho nem tenha idia do que seja na verdade umespelho? Demais, decerto, das noes de fsica, com que se familiarizou,

    as leis da ptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, alis, a ponta deum mistrio. Inclusive, os fatos. Ou a ausncia deles. Duvida? Quandonada acontece, h um milagre que no estamos vendo1.

    Clssico trecho de Guimares, usado muitas vezes, para epgrafe de trabalhos

    dedicados a investigar conhecimentos. Especialmente aqueles compreendidos em

    forma ampliada, para alm dos limites da formalidade, da sistematizao, do rigor

    na cincia2. Embora sem renunci-los. A aventura, somente se tornou

    experincia porque induzida por sries de raciocnios e intuies, em

    alternncias. Mas, as noes de fsica [...] as leis da ptica, j familiares, no sosuficientes para desvelar a verdade de um espelho. A verdade no

    desnudamento que aniquila o segredo, mas revelaes que lhe faz justia3, tudo

    seria a ponta de um mistrio, incluindo os fatos, ou sua ausncia, pois mesmo

    quando nada acontece, h um milagre que no estamos vendo.

    Nesse texto tambm ser narrada uma, considerada, experincia de ensino e

    aprendizagem sobre o ofcio de ensinar arte, consumada em uma sala de aula pela

    confluncia de imagens narradas sobre a relao entre educao e vida, entendo-a

    aqui, e naquela aula, como uma experincia singular no sentido exposto por John

    Dewey. Tais narraes foram geradas pela leitura de imagens narradas em outras

    duas fices: Ter uma experincia, texto integrante deArte como Experincia do j

    citado Dewey e Onde fica a casa de meu amigo, um filme de Abbas Kiarostami.

    Antes de comear essa narrao, esclareo o que se toma aqui por fico. Para

    isso, fao uso de uma definio elaborada pelo prof. Ulpiano de Toledo BezerraMeneses, apresentada em oposio ao que comumente entendemos pelo termo.

    Por ela, a fico recuperada em sua potencialidade de promover conhecimentos

    sobre o mundo. Conhecimentos associados imaginao, uma das matrizes da

    fico4. A fico nos permite fabricar formas

    formas verbais, conceituais, visuais, sonoras, performticas, etc. - para darsentido ao mundo, s coisas, a ns mesmos. A linguagem direta, denotativa, nod conta da realidade; a poesia d: por ela a linguagem humana capaz de dizer oindizvel [...] capaz de tornar visvel o invisvel e, mais que isso, tornar visvel oprprio visvel que nos escapa5.

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    A palavra fico teria como seu lugar de origem um verbo interessante do latim:

    fingo (seu particpio passado fictus, donde vem o substantivo fictio, fico). Fingo,

    de incio, indicava a ao do oleiro, que modelava potes, telhas e outros artefatos

    cermicos, mas que passou tambm a modelar imagens, placas com relevos6.

    Etimologicamente, portanto, fico no se ope a verdade, mas designa as

    figuras (palavra da mesma famlia de fingo) que modelamos, para dar conta da

    complexidade e vastido infinitas do mundo7. Nesse sentido, a fico se distancia

    de uma oposio ao conhecimento, tornando, pelo contrrio, um instrumento seu

    extraordinariamente eficaz8.

    Esse sentido de fico foi apresentado pelo prof. Ulpiano ao dimensionar o

    museu como um instrumento excepcional de conhecimento, sendo, pela mesma

    razo, tomado como espao de fico. Mas um espao de fico em que o

    conhecimento cientfico pode ser acoplado ao potico, fecundando-se mutuamente e

    potenciado pela afetividade da apreenso sensorial9. Vertemos, nesse texto, tal

    compreenso para o espao, aparentemente, rido da sala de aula, assumindo-a

    como espao de fico, de produo de sentidos pelo encontro de outras fices.

    Prximo ao sentido de fico, presente nesse texto, est o de imagem. Imagens

    tambm so tomadas aqui como potencialidades de conhecimentos que se

    estendem alm dos limites da denotao. Representaes modeladas para dar

    conta da complexidade e vastido infinitas do mundo.

    Para conhecer preciso imaginar. Ao estabelecer essa afirmao, Georges Didi-

    Huberman, nos reporta a esse redimensionamento da relao entre imagem e

    saber10. Diante de uma imagem, estaramos diante de uma porta aberta. Nada nosseria ocultado, mas, ao mesmo tempo, a luz que dessa abertura emerge e nos atrai,

    tambm quase nos cega, nos controla. Essa mesma abertura nos detm.

    Contemplar uma imagem desej-la, esperar, estar diante do tempo. Diante

    de uma imagem, estaramos diante do tempo. Mas que tipo de tempo? De quais

    plasticidades e de quais fraturas, de quais ritmos e de quais golpes de tempo

    podemos tratar nessa abertura da imagem? 11.

    Diante de uma imagem, o presente no deixa nunca de ser reconfigurado. Uma

    imagem sempre uma atualizao; assim como tambm incessante a

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    reconfigurao do passado, diante de uma imagem. Uma imagem s se transforma

    em algo pensvel em uma construo de nossa memria12.

    Imagens so construes de tempos heterogneos. Passado e presente seentrelaam e se reconfiguram em produes de sentido, em fices, criadas pelo

    rearranjo de um repertrio sedimentado, mas, no entanto, mobilizado pelo choque

    com outras referncias em aquisio. Imagens no so criaes alheias ao seu

    espectador, antes, necessitam de seu olhar para que aconteam. E esse

    acontecimento se d, continuamente, no encontro entre as coisas do mundo e

    nosso repertrio imagtico j sedimentado por outros encontros do mesmo tipo. As

    imagens abrem e se fecham a ns ao movimento de nossas sensaes e inteleces,

    ao movimento de nossas atualizaes e reminiscncias. Mantm-se em abertura,

    esquivando-se de uma explicao que possa interromper seu fluxo de sentidos

    mltiplos, por vezes, assumindo feies a cada novo lance de olhar, lance de

    propsitos, definidos, por vezes em desvios.

    Esse movimento incessante de criao e recriao mantido pela trama de

    tempos, do visvel e invisvel, estabelecida na relao daquele que olha com aquilo

    que olhado13, nulifica o uso da imagem como ilustrao. Uso apontado como umalimitao que relega

    a imagem a um lugar subordinado e subsidirio do conhecimentoverdadeiramente valioso, que parece estar fora e mais alm da imagem.No uso da imagem como ilustrao, ou quando a imagem se converte emum objeto que deve ser fragmentado pela anlise ou crtica ideolgica oupoltica, no alcanada a reorganizao escolar que supostamente sebusca promover14.

    Nossos interesse e inteno convergiram para a produo de sentido gerada no

    encontro entre as vrias imagens componentes das fices definidas como pontos de

    partida, como ncleos e potencialidades de conhecimento sobre um conceito o de

    experincia, como definido por John Dewey - que pde ser tambm experimentado,

    elaborado em sua relao com os acontecimentos cotidianos, com a vida de cada um

    daqueles que participavam dessa ao de ensino e aprendizagem sobre o ofcio da

    educao.

    O que uma experincia? Para John Dewey em definio quase a mesmadaquela de Guimares Rosa - uma experincia ocorre continuamente, porque a

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    interao com o ser vivo com as condies ambientais est envolvida no prprio

    processo de viver15. Porm, nem toda experincia pode ser considerada uma

    experincia, ou uma experincia singular16. Nem tudo que experimentamos

    cotidianamente, segundo Dewey, consuma-se um uma experincia. Nem sempre

    aquilo que observamos e o que pensamos, o que desejamos e o que obtemos,

    concordam entre si. Muitas vezes nossas experincias se perdem em distrao e

    disperso17.

    Em contrapartida uma experincia acontece quando o material vivenciado

    descreve seu curso at a sua concluso. Ento, e s ento, ela integrada e

    demarcada no fluxo geral da experincia proveniente de outras experincias. Assim

    como em uma obra de arte, em uma experincia,

    os diferentes atos, episdios ou ocorrncias se desmancham e se fundemna unidade, mas no desaparecem nem perdem seu carter prprio aofaz-lo tal como, em uma conversa amistosa, h um intercmbio e umamescla contnuos, mas cada interlocutor no apenas preserva seu carterpessoal, como tambm o manifesta com mais clareza do que seucostume18.

    Por essa unidade que a caracteriza, a experincia singular no pode encontrar

    seu trmino em uma cessao; seu desfecho a consumao determinada pelaintegrao das partes em um todo nico. A existncia dessa unidade constituda

    por uma qualidade mpar que perpassa a experincia inteira, a despeito da variao

    das partes que a compem. No podemos, segundo Dewey, distinguir tal unidade

    que caracteriza essa experincia nica como afetiva, prtica nem intelectual, pois

    esses termos nomeiam distines. Tampouco podemos afirmar, ainda em

    consonncia s ideias desse autor, que uma experincia o resultado da soma

    desses trs adjetivos de interpretao. Mesmo chegando constatao de certapredominncia de uma propriedade intelectiva, afetiva ou prtica usando-a como

    designao posterior para definir uma experincia vivida, nomeando-a, em sua

    significao final, como intelectual, por exemplo, no podemos desconsiderar que,

    em sua ocorrncia efetiva, tambm foram emocionais; tiveram um propsito e

    foram volitivas. Esses traos distintivos- intelectual, afetivo e prtico se perdem

    na constituio de uma experincia, por isso no a sua soma que determinar a

    qualidade mpar dessa experincia singular, e sim a sua presena ntegra e

    nica.

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    Dewey abordar a predominncia desses traos distintivos como designao

    de experincias, problematizando sua validade, pela elucidao e comprovao da

    integralidade dessas trs instncias como qualificao da experincia, como uma

    experincia singular. Inicialmente dimensiona uma experincia de pensamento,

    afirmando que nenhum pensador pode exercer sua ocupao, a menos que seja

    atrado e recompensado por experincias integrais, totais que valham a pena

    intrinsecamente. Desprovido de tais experincias, esse pensador ficaria

    completamente incapacitado de distinguir o pensamento real do artigo esprio. O

    pensamento para Dewey, se d em um fluxo de ideias; mas a formao desse

    fluxo somente possvel porque as ideias so fases, afetiva e praticamente

    distintas [...] so variaes mveis, no separadas e independentes [...] e simmatizes sutis de uma tonalidade penetrante e em desenvolvimento19.

    O trmino de uma experincia de pensamento reconhecido como tirar uma

    concluso. Porm, muitas vezes, a formulao terica desse processo feita em

    termos que escondem por completo a semelhana da concluso com a fase que

    consuma cada experincia integral em evoluo. Assim como a experincia de ver

    uma tempestade atingir seu auge e diminuir gradativamente, a experincia de

    pensamento integrada por um

    movimento contnuo dos temas. Assim como no oceano durante aborrasca, h uma srie de ondas, sugestes que se estendem e sequebram com estrondo, ou que so levadas adiante por uma ondacooperativa. Quando se chega a uma concluso, ela a de um movimentode antecipao e acumulao, um movimento que finalmente se conclui. Aconcluso no uma coisa distinta e independente; a consumao deum movimento.Portanto, uma experincia de pensar tem sua prpria qualidade esttica.

    Uma experincia, para Dewey, somente poder ser considerada umaexperincia se dotada de qualidade esttica, se possuir integrao interna e um

    desfecho atingido por meio de um movimento ordeiro e organizado. Como em uma

    estrutura artstica, tal qual a ao de um moleiro, transformando o barro em um

    pote til para guardar cereais; ele o faz de modo

    regulado pela srie de percepes que resumem os atos seqenciais [...]h em cada etapa uma antecipao do que vir. Essa antecipao o eloque liga o fazer seguinte a seu efeito para os sentidos. O que feito e o

    que vivenciado, portanto, so instrumentais um para o outro, de maneirarecproca, cumulativa e contnua20.

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    A imagem do oleiro, junto a da tempestade ou do oceano durante a borrasca,

    so imagens criadas e usadas por Dewey para corroborar sua fico.

    Alm dessas outras duas imagens so usadas por Dewey em seu texto comometforas referentes a uma experincia. Uma, a imagem de uma pedra rolando

    morro abaixo. Em apelo nossa imaginao, Dewey nos prope a partilhar o

    interesse dessa pedra pelas coisas que encontra no caminho, pelas condies que

    aceleram ou retardam seu avano, com respeito influncia delas no final. Ao final

    desse percurso descrito em ateno e interao com os obstculos e auxlios, a

    pedra atingiria seu repouso como culminao de um movimento contnuo21.

    Em contraposio essa metfora, Dewey define as experincias desprovidas

    de qualidade esttica, a maioria de nossas experincias, segundo o autor. Essas

    so caracterizadas pela ausncia de interesse pelo vnculo entre os acontecimentos,

    ou pelo controle sobre sua rejeio ou seleo, incluso ou excluso que

    comporiam uma experincia. Essas experincias inestticas so feitas de

    comeos e cessaes, mas no incios e concluses autnticos. Uma coisa

    substitui outra, mas no a absorve nem a leva adiante. So experincias frouxas e

    discursivas22. Para Dewey, os inimigos do esttico no so o prtico nem ointelectual. So monotonia, a desateno para com as pendncias, a submisso s

    convenes na prtica e no procedimento intelectual23.

    Vivenciar a experincia, como respirar, um ritmo de absores e expulses.

    Sua sequencia pontuada e transformada em um ritmo pela existncia de

    intervalos, perodos em que uma fase cessada e uma outra inicial e

    preparatria24. Como a alternncia dos vos e pousos dos pssaros, ritmados em

    vnculos, sem qualquer movimento aleatrio, outra imagem usada por Dewey, dessa

    vez, em citao a Wiliam James. Cada lugar de repouso, na experincia, um

    vivenciar em que so absorvidas e incorporadas as consequncias dos atos

    anteriores, cada um deles trazendo um significado que foi extrado e conservado.

    Mesmo considerando as diferenas de tempos e espaos entre esse texto e

    conceitos criados por Dewey nos anos iniciais da dcada de 1930 e os nossos,

    atualizamos, por essa leitura nossas prprias experincias ou nossas interaes comas condies ambientais com as quais estamos envolvidos. Para que nesse ato de

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    reconhecimento, pudssemos avaliar a interferncia da qualidade de nossas

    experincias. Escrito h quase 80 anos, o livro levanta apontamentos extremamente

    pertinentes ao nosso tempo:

    analisa e pontua o que ocorre na complexa relao entre o mundo e ocorpo, atravs dos sentidos. Dewey descreve com o termo experincia, nouma simples e corriqueira descrio de momento vivenciado, mas umaexperincia singular, onde o corpo, a mente e objetos envolvidos esto emcompleta interao. Vivenciar uma experincia viver uma intensificada,concentrada, exponenciada e consciente relao do que se passa com omundo e com ns mesmos. Essa experincia descrita apor Dewey algoque ocorre quando h uma completa fuso entre o sujeito e o objetovivenciado, um processo envolvido em conscincia corprea esentimental25 (C. X.).

    Essa atualizao, tal como esta citada acima no se fez somente por esseencontro com a fico de John Dewey, mas pelo relacionamento dessa com as

    muitas imagens da fico de Abbas Kiarostami.

    Onde Fica a casa de meu amigo? ou Khane-ye doust kodjast?, uma fico

    lanada em 1987, criada por imagens que ocupam espaos de tempo propcios

    contemplao. Imagens que se abrem ao espectador em conciso, precisas em sua

    funo como partes de uma narrativa cujo incio determinado pelo movimento de

    uma porta entreaberta, definida em planos de uma espcie de azul desgastado pelo

    tempo. No fecha tampouco se mantm ou mantida aberta, apenas bate em pulso

    determinado pela fora dos pequenos impulsos provocados pelos choques

    intermitentes. Dessa abertura instvel, escapam sons das vozes de crianas.

    Permanece assim, uma porta batente, at a chegada de algum, quando aberta em

    firme propsito.

    E ento nos tornado visvel aquilo que se mantinha atrs da porta que teimava

    no cerrar. Nos dado a ver uma sala de aula com seus alunos e as relaes que ali

    eram estabelecidas. Alunos sentados em dupla. Dois meninos. Uma tarefa no

    cumprida. A repreenso. Choro e um olhar atento. Um caderno esquecido e a

    necessidade de um encontro. O menino precisa encontrar o colega para devolver-lhe

    o caderno esquecido. Porm ele no sabe aonde mora o amigo.

    Parte, ento, em uma busca s cegas, seguindo caminhos em ziguezaguee vai-e-vem, de uma cidade a outra, se inserindo no cotidiano de pessoas

    desconhecidas, absorvendo o modo de vida destas pessoas [...] A trajetriado menino em busca de seu amigo para devolver-lhe o caderno seassemelha ao vo do pssaro [...] e as paradas nas casas e os empecilhosdurante a travessia so como os pousos (R. Z.).

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    Cada passo dado sentido, muitas vezes sofrido e transformado em novasaes num sinal de persistncia e integridade [...] Todos os pequenos fatossignificam algo no interior desse menino que quando se percebe com ocaderno de seu amigo por engano, sente-se intensamente na obrigao dedevolv-lo, mantm uma meta firme e segue adiante, seja o que acontecer

    [...] O filme se desenrola de uma maneira sutil, tanto um esforo e aomesmo tempo d uma sensao de calma, faz-nos vivenciar um poucodessa relao atenta com o tempo, uma lentido no muito comum nosfilmes mais prximos, americanos e at europeus. Tanto que sua relaosegue na mesma dinmica, uma coisa s pode acontecer depois da outra eem conseqncia delas, como o vo dos pssaros, onde est tudo ligado,cada cadncia significativa para um novo pousar ou voar [...] (Y. M.).

    Antes, porm, dessa partida, o garoto tenta, em vo, obter a permisso da me,

    porm no ouvido.

    Este apenas um dos obstculos que ele vive nesta narrativa, que por meiode sua construo como obra de arte estabelece uma relao com as ideiasde John Dewey a respeito de experincia esttica, percebidas no apenasatravs da histria do garoto como tambm da estrutura narrativa do filme[...] O diretor Abbas Kiarostami utiliza das relaes entre as pessoas dovilarejo e o menino, para de forma potica, demonstrar diferentesentendimentos a respeito do saber e do aprendizado, levando opersonagem a um percurso de conhecimento e experincias singulares [...]a experincia da histria est em seu todo carregado de suas partes quevo constituindo-se como obra, os enredos de cada situao vivida pelogaroto tm um ritmo e movimento particulares, esse ritmo observadotambm na relao de Ahmed como o senhor construtor de janelas demadeira, cada qual com seu tempo de fazer as cosias [...] Essa troca de

    portas uma bela analogia a respeito do passado e do futuro que o diretorretoma quando Ahmed retorna a vila de seu amigo, e encontra um velhomarceneiro que resolve ajud-lo a encontrar a pessoa que procura. Duranteo trajeto, este senhor narra estreita relao com o vilarejo adquirida nafeitura das portas de madeira da cidade. Todas elas teriam sido feitas porele, o que o liga diretamente com aquela comunidade e seus moradores,Suas experincias esto relacionadas com o que viveu ali [...] (V.R.).

    Nas relaes feitas durante o filme percebemos que as experincias vividaspor Ahmed, o aprendizado tanto a ele quanto para quem assiste ao filmeno se d por meio das instncias legitimadoras da educao [...] suaexperincia se d pelas relaes vividas em seu percurso cheio dedificuldades [...] O espectador tambm faz esse percurso recriando o sentido

    dado pelo diretor. Experimentamos a obra enquanto fazemos as relaesentre os acontecimentos, as metforas e as pausas visuais criadas porKiarostami e nossas prprias experincias, fazendo com que a obradependa tambm, da apreciao para ser completada (V.R.).

    Alm das experincias de Ahmed o filme nos oferece outra experincia, a deassistir a ele. Porm no assistir passivo, ao longo do filme, relaes sotraadas, experincias que j tivemos em poca de escola so revisitadas.No desenrolar das cenas, envolvemo-nos com a saga do garoto, criamoshipteses, tentamos pensar como o personagem, afligimo-nos e ao finalingerimos, digerimos e porque no regurgitamos o material visto. Assimtemos uma experincia singular, vivida de forma esttica: afetivamente,intelectualmente e de forma prtica (F. Z.).

    Sob uma viso ocidental e porque no ignorante? parece um temabanal. Porm as idas e vindas do garoto mostram muito mais do que umgesto gentil. Nos mostram um acontecimento na vida desta criana, algo

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    que se torna marcante por ser uma experincia verdadeira e nica. Nesteato de procura, o garoto implica toda sua vontade, razo e emoo [...] Aexperincia singular um movimento do ser, ou seja, sua modificao, oque o filme mostra de forma literal, fsica e espacial: o garoto desloca-se porlabirintos de construes, sobe e desce morros e escadas [...] Estamos

    acostumados a ver filmes de grandes histrias, extraordinrias, comdiversas aes e suspenses, que no encontramos em Onde fica a casa demeu amigo?. H algo que poderia ser considerado por ns comomonotonia, que causa estranhamento. O acmulo de tantas impressesquanto possvel tido como vida26. No entanto, estamos nos deparando aum encadeamento de situaes que seguem um fluxo nico e coerente, esse fluxo que nos faz interpretar as cenas como arte - como inteno dodiretor para alcanar suas pretenses e objetivos [...] surpreendente! surpreendente como podemos nos surpreender com algo to simples. A arteno est no espetculo, pode at fazer parte dele. Arte est onde henvolvimento humano, onde h humanidade, onde h humanidade em suacompletude (M. S. N.).

    Estrada em ziguezague. Ruas em labirinto. Encontros entre tempos.

    [...] O filme todo retrata um outro tempo, um tempo que nosso mundo deixoude prezar, um tempo cheio de tempo. Existe uma calma que se perdeu, umaseriedade e integridade que se desvinculou com o que realizamosatualmente [...] O filme me fez prezar e rever a tranquilidade e integridadeque perdemos, e que pouqussimas vezes vivenciei na vida (C.X.).

    Narraes. Madeira e ferro. Portas e janelas. Recortes de luzes coloridas

    projetadas na parede, o vento.

    O filme me atentou tambm para enxergar essa rede que formamos o tempointeiro, essa relao entre pessoas e experincias [...] O menino tambmentra nesse papel de obstculo, no momento em que no tem pacinciapara ouvir o velho que constri portas, achei bonita essa inverso e asimbologia da porta como algo manufaturado, experienciada emcontrapartida ao tcnico, massivo conjunto de portas de ferro (Y. M.).

    No filme pude ver na figura de um senhor, que ajudou o protagonista aencontrar a casa do amigo [...] um narrador, e para mim a figura do narrador repleto de experincias, vividas ou inventadas nas suas narraes [...]Para o protagonista o encontro com o narrador no pareceu proveitosodurante o momento que aconteceu, pois a sua preocupao em entregar o

    caderno de tarefas de seu amigo, e voltar cedo para casa, era maisimportante, o que me mostrou o quanto desperdiamos dentro de umaexperincia, onde podemos por ora focar tanto em algo e deixar coisasmuito importantes de lado, mas que pode ser retomado no final dessaexperincia, se ela for completa, como j disse, onde podemos ver oprocesso de uma forma linear e inteira, ou no to linear, mas ver tudo oque passamos [...] a ateno ao decorrer do processo da experincia, e aofinal com a reflexo sobre o que houve, essencial, a meu ver, dessaexperincia singular e esttica, diferente de uma reproduo automtica [...]Depois dessa experincia que tive com a leitura, discusso e releitura dotexto, comecei a me preocupar com o tipo de cada experincia, tornando-metambm uma espectadora de meus atos, ainda no descobri se isso algobom, mas estou gostando dessa anlise crtica, porm sutil, dos

    acontecimentos em minha vida (J.M.).

    Kiarostami cria assim uma expectativa no espectador, o que faz do filme,aparentemente montono pela falta de grandes conflitos e pela simplicidade

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    das aes de um garoto e de moradores de uma vila, vire grandesensinamentos a respeito do mundo e da educao [...] acaba voltando suacasa onde ainda triste por no concluir sua misso, recusa a comida dame, mas faz sua lio enquanto observa sua me pela janela, lutandocontra a fora do vento para pegar as roupas do varal [...] (V.R.).

    O caderno, uma flor, imagens narradas em motes para uma experincia,

    narrada em outras imagens.

    Ter uma experincia algo completo, onde juntamos os momentos deplanejamento do fazer no momento, a sensao do que est acontecendo,as lembranas que nos trazem sentimentos e nos fazem criar esse mundonico, que pode acontecer em segundos, ou ento em um longo perodo,mas que, para mim, pode ser distinguido o decorrer de tudo, com incio,meio e fim [...] (J.M.).

    O importante nessa histria no so os grandes eventos, no h nadadisso, o que interessa o caminho que feito para solucionar o problema,tudo o que o menino tem que ir superando (F. C. P.).

    [...] a trajetria feita tornou-se parte de Ahmed, a flor que deixou no cadernode Nematzadeh era uma representao disso, de todo o signficado de suaexperincia (F. C. P.).

    Tais foram algumas das imagens narradas em abertura nas duas fices de

    Dewey e Kiarostami. Imagens feitas de tempos. Dos tempos das imagens que

    compunham as duas fices, do presente de suas atualizaes, do passado que as

    reconfiguravam. Das experincias vividas e reconduzidas pela memria. Da

    experimentao de uma experincia a ser compreendida. Dessas imagens outras

    fices se modelam, dando formas complexidade e vastido infinitas do mundo.

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    1 ROSA, G. O espelho In ROSA, G. Primeiras Histrias. 49. imp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, pp. 119-

    128.2 Jorge Luis Borges narra em seu Do rigor na cincia, deixado em abertura, como as tradicionais narrativas, asedificaes de um rigor desmesurado, expondo tambm o seu contrrio. A suspenso definida pelo final emaberto, encaminhado pela ambivalncia de um rigor extremado e sua ausncia, deixa espao para aquele queparticipa com sua leitura, da compreenso dessa narrativa: ...Naquele Imprio, a Arte da Cartografia alcanoutal Perfeio que o mapa de uma nica Provncia ocupava toda uma Cidade, e o mapa do imprio, toda umaProvncia. Com o tempo, esses Mapas Desmesurados no foram satisfatrios e os Colgios de Cartgrafoslevantaram um Mapa do Imprio que tinha o tamanho do Imprio e coincidia pontualmente com ele. Menos

    Afeitas ao Estudo da Cartografia, as Geraes Seguintes entenderam que esse dilatado Mapa era Intil e nosem Impiedade o entregaram s Inclemncias do Sol e dos Invernos. Nos desertos do Oeste perduramdespedaadas Runas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos; em todo o Pas no h outra relquia dasDisciplinas Geogrficas. BORGES, J. L. Do rigor na cincia In BORGES, J. L. O Museu. Obras completas deJorge Luis Borges. So Paulo: Globo, 1999. 1 v., p. 247.3 BENJAMIN, W. apud MATOS, O. C. F. O iluminismo visionrio: Benjamin, leitor de Descartes. 1. reimp. SoPaulo: Ed. Brasiliense, 1999, p. 73.4 MENESES, U. T. B. Entrevista concedida ao jornal Cores Primrias acesso em 01/04/2012.5 Idem.6 MENESES, U. T. B. Da Arqueologia Clssica ao Patrimnio Cultural: os sentidos da cultura material e seusdesdobramentos acesso em 01/04/2012.7 Idem.8 Idem, ibidem.9 Idem, ibidem.10 O potencial da imagem como lugar de elaborao de conhecimentos, vem sendo redimensionado tambm nocampo educacional, como por exemplo, pelos estudos em torno da pedagogia do imaginrio ou a pedagogia dela imagen. Cf. TEIXEIRA, M. C. S. Pedagogia do Imaginrio e funo imaginante: redefinindo o sentido daeducao. < www.revistas2.uepg.br> acesso em 01/04/2012 e DUSSEL, I; ABRAMOWSKI, A.; IGARZBAL, B.;LAGUZZI, G. Aportes de la Imagen en la Formacin Docente: Abordajes conceptuales y pedaggicos. acesso em 01/04/2012.11 DIDI-HUBERMAN, G.Ante el Tiempo: historia del arte y anacronismo de las imgenes. Buenos Aires: AdrianaHidalgo editora, 2008, p. 31.12 Idem, p. 32.13 DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. 1. reimp. Trad. Paulo Neves. So Paulo: Editora 34,2005.14 DUSSEL, I. [et.al.]. Op.cit.15 DEWEY, J. Ter uma experincia InArte como experincia. Trad. Vera Ribeiro. So Paulo: Martins Fontes,2010, p.109.16 Em uma edio norte-americana de 2005 do texto Ter uma experincia, nos apresentada a expresso anexperience, para designar o conceito de experincia elaborado por John Dewey. Na edio brasileira de 2010,publicada pela Martins Fontes, encontramos a designao experincia singular. Cf. DEWEY, J. Art asexperience. New York: Penguin Group, 2005.17

    DEWEY, J. Op.cit.18 Idem, pp. 111-112.19 Idem, pp. 112-113.20 Idem, p. 131.21 Idem, pp. 115-116.22 Idem, p. 116.23 Idem, p.117.24 Idem, p139.25 Assim como nessa citao, tambm nas outras, que sero apresentadas nesse texto como exemplos dosresultados obtidos na ao de ensino e aprendizagem aqui descrita, sero resguardadas as identidades de seusautores, todos alunos da disciplina Didtica Geral dos cursos de licenciatura em Msica, Artes Cnicas e ArtesVisuais, durante o ano de 2011.26 DEWEY, J. Op.cit., p. 124.

    REFERNCIAS

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    BENJAMIM, W. Obras escolhidas: Magia e Tcnica, Arte e Poltica . Trad. Srgio PauloRouanet. So Paulo: Editora Brasiliense, 1996.

    ___. Origem do Drama Trgico Alemo. Trad. Joo Barrento. Lisboa: Assrio & Alvim, 2004.BORGES, J. L. Obras Completas de Jorge Luis Borges. Vol.1. So Paulo: Globo, 1999.

    DEWEY, J.Art as experience. New York: Penguin Group, 2005.___.Arte como experincia. Trad. Vera Ribeiro. So Paulo: Martins Fontes, 2010.

    DIDI-HUBERMAN, G. Ante el Tiempo: historia del arte y anacronismo de las imgenes.Buenos Aires: Adriana Hidalgo editora, 2008.

    ___. O que vemos, o que nos olha. 1. reimp. Trad. Paulo Neves. So Paulo: Editora 34,2005.

    DUSSEL, I; ABRAMOWSKI, A.; IGARZBAL, B.; LAGUZZI, G. Aportes de la Imagen en laFormacin Docente: Abordajes conceptuales y pedaggicos. acesso em 01/04/2012.

    MATOS, O. C. F. O iluminismo visionrio: Benjamin, leitor de Descartes. 1. reimp. SoPaulo: Ed. Brasiliense, 1999.

    MENESES, U. T. B. Da Arqueologia Clssica ao Patrimnio Cultural: os sentidos da culturamaterial e seus desdobramentos

    acesso em 01/04/2012.

    ___. Entrevista concedida ao jornal Cores Primrias acesso em 01/04/2012.

    RICOUER, P. A memria, a histria, o esquecimento. 1. reimp. Campinas: EditoraUnicamp, 2008.

    ROSA, G. Primeiras Histrias. 49. imp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

    TEIXEIRA, M. C. S. Pedagogia do Imaginrio e funo imaginante: redefinindo o sentido daeducao. < www.revistas2.uepg.br> acesso em 01/04/2012.

    Rita Luciana Berti Bredariolli

    Bacharel e Licenciada em Educao Artstica pela Unicamp, Mestre e Doutora em Artespela Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo, ECA-USP eatualmente professora do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Julio deMesquita Filho, IA-UNESP. autora de Das lembranas de Suzana Rodrigues: tpicos

    Modernos de Arte e Educao. Vitria: Edufes, 2007.