Imagens que pensam, que sonham, que sentem. Uma proposta ousada?

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    BAGGIO, A. T. Imagens que pensam, que sonham, que sentem. Uma proposta ousada? Galaxia. (So Paulo, Online),

    n. 25, p. 211-216, jun. 2013.211

    Imagens que pensam, quesonham, que sentem.

    Uma proposta ousada?

    Adriana Tulio Baggio

    SAMAIN, E. (Org.).

    Como pensam as imagens.

    Campinas: Editora da Unicamp, 2012

    Resumo: As imagens podem pensar, de maneira independente, como se fossem sujeitos? Para apre-

    sentar e discutir essa ideia, Etienne Samain reuniu textos prprios e de mais nove autores.

    Inspirados pelos conceitos de Aby Warburg, Gregory Bateson e Didi-Huberman, os artigos

    tratam de uma teoria da imagem e sua operao metodolgica e analtica, especialmenteem relao fotograa. Os textos esto organizados em trs partes e se complementam,dialogam e at mesmo se opem, formando um panorama rico e consistente de outra pro-

    posta epistemolgica da comunicao.

    Palavras-chave: imagem; fotograa; epistemologia da comunicao

    Abstract: Images that think, that dream, that feel. A bold proposal?Are images independently

    sentient, like individuals? To present and discuss this idea, Etienne Samain put together a

    collection of his own texts and those of nine other authors. Inspired by the concepts of Aby

    Warburg, Gregory Bateson and Didi-Huberman, these articles discuss an image theory and

    its methodological and analytical operation, particularly with regard to photography. Organi-

    zed in three parts, the texts complement, dialogue and even differ from each other, creatinga rich and consistent panorama of a another epistemological proposal of communication.

    Keywords: image; photography; epistemology of communication

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    Recebo o livro organizado por Etienne Samain e me encanta a capa ilustrada por

    uma borboleta. O ttulo instigante, mas a fotograa suga primeiro a ateno. Vejo olhos

    de coruja nas asas do inseto e, talvez, a cabea de uma serpente na extremidade dessas

    asas. Sensao de beleza e perigo.

    Abro o livro. Abandono as exploraes do imaginrio e envolvo-me com o aspecto

    racional. Dizer que as imagens pensam ao contrrio de dizer que nos fazem pensar

    sugere um carter de autonomia, de independncia, de livre-arbtrio. como se as

    imagens tivessem vida prpria, como se fossem sujeitos, e no produtos. Seria isso que o

    organizador quis dizer? Ou trata-se de uma prosopopeia, de um recurso estilstico para

    nos lembrar a importncia das imagens em nossa cultura?

    J nos agradecimentos e na apresentao, Samain revela a inspirao terica dos

    textos includos no livro: Gregory Bateson, que concebe a comunicao humana tantocomo um fato cultural quanto como uma orquestrao ritual, sensvel e sensorial, sempre

    inserida num contexto, e Aby Warburg, que exuma e reaviva, nas obras de arte e outros

    grandes movimentos da histria, as formas [frmulas] de pattico, presentes em todas

    as culturas humanas (p. 14).

    da articulao e da empatia entre as ideias desses dois gigantes que surge, para

    Samain, a questo de como pensam as imagens. O telogo, antroplogo, fotgrafo e

    professor da ps-graduao em multimeios da Unicamp, belga radicado no Brasil, pro-

    pe que as imagens nos fazem pensar porque, ao se associarem, tornam-se portadorasde pensamento, constituem-se em formas que pensam. Ver as imagens dessa maneira

    seria, assim, uma forma de reavaliar [...] a epistemologia da comunicao, ameaada

    na dubitvel matriz logocntrica de nosso Ocidente (p. 17).

    Os onze captulos do livro esto divididos em trs partes: Pensar por imagenstraz

    textos que exploram a questo epistemolgica central, com base nas propostas de Bateson,

    Warburg e Didi-Huberman; Quando ardem as imagensagrupa artigos que falam sobre

    imagens consumidas, reavivadas por um sopro da memria, da articulao com a fala,

    da associao com outras imagens. So trabalhos em que possvel perceber a operao

    da epistemologia das imagens pensantes sobre objetos como fotograas de famlia e

    artsticas; a terceira parte mostra a Cumplicidade das imagens. Nesse ltimo conjunto,

    os textos propem percursos crticos entre modo de ver e modo de pensar, o que as

    matrizes comunicacionais buscam nos oferecer na atualidade (p. 16). Um caderno em

    papel cuch, no nal do livro, traz reprodues coloridas das imagens impressas em preto

    e branco que ilustram os artigos.

    As imagens que pensam

    Alm de organizar o livro, Etienne Samain assina dois de seus artigos, ambos na

    primeira parte. Em As imagens no so bolas de sinuca. Como pensam as imagens,

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    o autor enxerga as imagens como coisas vivas. nesse texto que Samain defende a ideia

    de imagens pensantes, a partir de trs argumentos: de que toda imagem nos oferece algo

    para pensar, seja ligado ao real, seja ligado ao imaginrio; de que as imagens so porta-

    doras de pensamentos porque veiculam pensamentos de quem as produziu e incorporam

    pensamentos daqueles que as observaram (conceito aprofundado e bem exemplicado

    por Jorge Coli, em outro texto integrante da primeira parte), congurando-se como um

    lugar de memria coletiva; e de que as imagens so formas que pensam, dialogam e se

    comunicam, independentemente de ns.

    J em Aby Warburg. Mnemosyne. Constelao de culturas e ampulheta de mem-

    rias, Etienne Samain apresenta o historiador, o contexto em que viveu e tambm sua

    obra: o atlas de imagens Mnemosyne, uma histria de arte sem palavras ou, ainda, uma

    histria de fantasmas para pessoas adultas (p. 52).

    Mnemosyneconsiste em um conjunto de 79 painis de fundo preto sobre os quais

    Warburg distribuiu aproximadamente novecentas imagens fotograas em p&b, em sua

    maior parte, retiradas de um arquivo de mais 25 mil exemplares. O trabalho comeou

    em 1924 e foi interrompido com a sua morte, em 1929. Warburg organizava as imagens

    nos painis de forma que pudessem dialogar com as demais e todas entre si. a partir

    da constituio desses painis que emergem dois importantes conceitos: Pathosformeln

    (forma ou frmula do pattico) e Nachleben (o aps-viver ou supervivncia). De

    maneira bastante supercial: as formas do pattico se referem s emoes profundasdo ser humano, como o medo, o terror, a paixo, a seduo, a felicidade, enquanto as

    supervivncias so as imagens do pattico humano. Imagens que se pensam e dialogam

    no tempo, mas no em uma linearidade histrica; elas abrem e desdobram a histria,

    a descobrem ou a encobrem, a reencontram e a ressuscitam, a fazem viver e existir (p.

    58). Esses conceitos cam mais claros a partir do relato das experincias de Warburg

    no territrio dos ndios Hopi, no Novo Mxico (EUA), no nal do sculo XIX. Warburg

    observou o ritual no qual os ndios comparavam a serpente a um raio. O fundamento

    do ritual est em que, ao domar a perigosa serpente algo que os ndios podem fazer ,

    seria possvel controlar o raio incontrolvel. Para esses ndios, o raio que corta o cu

    a serpente que foge: ambos so o perigo, o terror, e assumem a mesma forma de zigue-

    zague quando em movimento.

    O alerta para a ousadia de sua proposta, que Samain expe na apresentao do livro,

    retomado quando o autor exercita suas prprias referncias a outras imagens de formas

    do pattico: as placas de trnsito que anunciam um trecho sinuoso e perigoso da estrada,

    o sinal telegrco de perigo SOS duas serpentes prontas a dar o bote ladeando outra

    serpente, enrolada , a serpente de Esculpio, que simboliza a medicina e a farmcia, as

    serpentes de Laocoon, a serpente do den.Quando cheguei a esse ponto do livro, lembrei da sensao que tive ao pensar ter

    visto uma cabea de serpente nas asas da borboleta que ilustra a capa. Ser que, ento,

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    eu mesma no estaria entendendo as imagens a partir do que pretendia Warburg? Por

    uma lgica do sensvel, do sensorial e do imaginrio, em adio (e sem se opor) lgica

    da razo?Esta primeira parte traz ainda um breve artigo em que Sylvain Maresca prope que

    as imagens, especialmente a fotograa, no dizem nada. A princpio, parece que Mares-ca contradiz o pensar das imagens. No entanto, o autor ressalta que as imagens no somudas. Elas no falam porque no querem, so mticas: prescindem das legendas, das

    explicaes e dos signicados. Quando so denidas por eles, como se se apagassem.Maresca pede que no se encontrem signicados to rapidamente, que no se interpre-tem as fotograas to imediatamente. Para ele, o fotgrafo deve procurar ver sem saber,ver mais de perto, descrever sem logo interpretar e aceitar a heterogeneidade das coisas.

    J falamos antes sobre a ideia de que as imagens trazem no s o pensamento dequem as produziu, mas tambm daqueles que as olharam. Jorge Coli diz, em A obraausente, que as obras de arte se constituem como tal pela percepo de quem as obser-

    va, e ainda por sua insero no tecido mais amplo de outras obras, da realidade e da

    memria. Problematizando a famosa questo de Walter Benjamin, tambm fazem parteda obra as suas reprodues, imitaes e pardias. Para Jorge Coli, em alinhamento s

    ideias de Warburg, tais associaes se do pela forma.

    No ltimo texto da primeira parte, Marie-Anne Lescourret mostra como a tenso entre

    apolneo e dionisaco, razo e sentimento, inteligvel e irracional, prpria do pensamento

    de Warburg, aparece tambm nas cincias histricas. Lescourret enxerga nas concepesdas Escolas dos Anais o dionisaco em tenso com o apolneo da histria positivista. Oreexo dessa concepo a rejeio de Warburg viso da histria da arte como umasucesso de escolas. No lugar das relaes lineares, temporais, geogrcas e formais das

    escolas, prope-se uma aproximao sensvel e antropolgica das obras artsticas.

    As imagens que sentem e sonham

    Dos trs trabalhos da segunda parte, dois mostram como pensam (ou sentem?) aquelas

    imagens envolvidas por ternura e afeto: as fotograas de famlia. Uma antropologia das

    supervivncias: as fotobiograas, de Fabiana Bruno, exemplar, alm de outros moti-

    vos, por apresentar claramente uma metodologia de pesquisa desse tipo de imagem. Se

    no trabalho de Bruno as imagens sentem, em Uma foto familiar: aprisco de emoes

    e pensamentos (Anotaes delirantes sobre [a]sombrograa) a fotograa da famlia de

    Eduardo Peuela Caizal est entre aquelas que sonham. Ao observar a imagem de

    seus pais e irmos, o autor percebe que o inconsciente tico se apresenta como artifcio

    capaz de efetuar a transformao do latente em manifesto (p. 122).

    O terceiro artigo, de Ronaldo Entler, fala sobre as lacunas e os silncios que com-pem as imagens. Retomando as concepes de textos anteriores, como os de Semain

    e Coli, Entler diz:

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    Se a imagem um lugar de articulaes, ela tambm um lugar de conitos: nela

    se cruzam autores, uma sociedade, um momento histrico, uma tcnica, o objeto de

    representao e tantos outros olhares dedicados a ela ao longo do tempo e, assim, outras

    sociedades etc., coisas que no so necessariamente solidrias entre si na produo deum sentido comum (p. 133).

    As imagens que nos fazem ver de outro modo

    Na terceira parte do livro, trs textos apresentam outras maneiras de pensar as

    imagens que pensam, no sentido de sua autonomia e de seu papel de sujeito de aes

    no mundo. Helouise Costa, em Surpresas da objetiva: novos modos de ver nas revistas

    ilustradas modernas, lana suspeitas sobre a aparentemente inocente relao entre os

    preceitos da nova viso, manifestao de uma proposta fotogrca de vanguarda, e o

    papel de pedagogas do olhar assumido pelas revistas ilustradas da primeira metade do

    sculo XX. Com exemplos de fotograas jornalsticas e publicitrias retiradas das revistas

    Life, Vue O Cruzeiro, Costa defende que a nova viso proposta por essas publicaes no

    pode ser considerada exatamente uma pedagogia, devido falta do aspecto crtico que

    seria inerente aos processos pedaggicos. A estetizao e o inusitado das fotograas da

    nova viso deixavam de fazer o observador pensar sobre o mundo e passavam a faz-lo

    pensar sobre elas prprias (p. 168). Passa-se do objetivo de alienao quando do usodesse tipo de esttica pelas imagens da propaganda poltica sovitica para o objetivo

    de seduo para o consumo.

    Tal crtica pretensa pedagogia do olhar suscitada pelas imagens da nova viso no

    aparecem no artigo de Annateresa Fabris Uma sensao estranha, que faz pensar ,

    talvez porque a autora fale de imagens artsticas, e no da apropriao da esttica para o

    uso no jornalismo e na publicidade (porm, seria fcil discernir claramente tais limites?).

    O texto mostra a relao entre as categorias estabelecidas por Lszlo Moholy-Nagy e as

    duas grandes reas de atuao da fotograa propostas por Thomaz Farkas na revista ris,

    em 1948. Fabris vai discorrer sobre como tais preceitos conduziram as discusses sobre

    fotograa, inuenciando fotgrafos brasileiros (ou que atuavam no pas) na busca por deses-

    tabilizar a percepo corriqueira, estimulando o pensamento por meio do estranhamento.

    O ltimo artigo, de Kati Caetano, revela como o pensar das imagens se insere nos

    caminhos tericos trilhados pela autora. Como pregnantes de qualidades sensveis, as

    imagens nos fazem chegar ao cognitivo pelo estsico, quando nos suscitam emoes.

    O espectador integrado: modos de gurao da fotograa fala do acaso como fonte

    destinadora de sentido a partir da interao do sujeito com a fotograa.

    A ideia de imprevisibilidade acidental analisada a partir de trs prticas fotogr-

    cas: a esttica do instante decisivo, de Cartier-Bresson, a esttica do isso foi atuado,

    de Franois Soulages, e a fotograa ps-moderna, de Dominique Baqu. Com base

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    em exemplos em que o espectador entra na imagem, ou quando exterior e interior se

    confundem nela, Caetano desconstri a ideia da fotograa como sendo puramente visual.

    Os sentidos das imagens, alm de no serem previamente dados, so apreendidos pelo

    sentir com os demais sentidos.

    Quem v nesse ltimo postulado a inuncia de um pensar sociossemitico sobre

    as trs prticas fotogrcas no se engana. O estudioso dessa teoria vai reconhecer seus

    pressupostos no percurso trilhado por Kati Caetano em suas reexes, por meio de marcas

    bvias e outras mais sutis um bnus para o leitor, que ter a oportunidade de apreender

    a cincia e uma das formas de sua metodologia no momento em que frui de sua operao.

    Para concluir

    Est claro que fui atrada pelas ideias propostas nos textos desse livro. No entanto,

    visto que Samain faz mais de um alerta para a ousadia das suas propostas, talvez esteja

    se preparando para os questionamentos daqueles que encaram a apreenso do cogni-

    tivo pelo sensvel como uma forma de impressionismo, desvalorizando e at mesmo

    desqualicando as interpretaes oriundas desse tipo de abordagem. Se ele estiver certo

    e o leitor vier a pensar dessa forma, no ser, no entanto, pela falta de consistncia,

    coerncia ou articulao dos onze captulos que compem a coletnea. Tratando da

    teoria, da metodologia, apresentando sua operao em diferentes objetos ou mostrandoo dilogo com outras linhas de pensamento, os textos oferecem uma abordagem bastante

    pertinente para os estudos, por exemplo, das imagens da imprensa e da publicidade. Essa

    ltima, especialmente, se ressente mais de uma certa falta de referncias prprias da

    epistemologia da comunicao. No seria esse pensar das imagens outra possibilidade

    epistemolgica vlida?

    Adriana Tulio Baggio doutoranda do Programa de Estudos

    Ps-Graduados em Comunicao e Semitica (PEPG-COS)e pesquisadora do Centro de Pesquisas Sociossemiticas

    (CPS) da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    (PUC-SP).

    [email protected]