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    4 A TEORIA GERAL DO IMAGINRIO E O IMAGINRIO DOS JOGADORES DE ROLEPLAYING GAMES

    O fato de que no h pensamento sem imagem nos convida e entender as imagens que esto em construo em ns e em nossas obras, mesmo cientficas, para entendermos a ns mesmos, assim como o que fazemos. Danielle Pitta.

    A ligao dos jogos com a religio/religiosidade passvel de ser

    considerada histrica, pois ela pode ser sopesada pela pesquisa bibliogrfico-

    documental, portanto, utilizando-se de meios convencionais da cincia. No entanto,

    para evidenciar a necessidade de ligao do indivduo com o elemento

    transcendente, os mtodos da cincia naturalista no so suficientes.

    Para que se d mais apropriadamente o estudo de novos fenmenos

    gerados pela sociedade, necessria se faz a aplicao dos novos mtodos

    investigativos. Em nosso estudo, a investigao da mitologia e da experincia do

    sagrado nos Jogos de Roleplaying Games necessitou de instrumentos que

    possibilitassem uma aproximao com o imaginrio dos jogadores, alm da

    observao de campo, acompanhada de questionrios e entrevistas.

    Nesse sentido, buscou-se como suporte para anlise, a Teoria Geral do

    Imaginrio (TGI), proposta por G. Durand17 (2002). A TGI trata-se de uma nova

    configurao na forma de perceber e estudar a coerncia da imaginao criadora

    humana, que vem resgatar sentidos negados durante a investigao cientfica

    naturalista e estabelecer o que Bachelard (1995) denominou de observao sensvel

    dos fatos.

    Desse modo, ela torna-se, mais adequada obteno de conhecimentos

    aprofundados sobre objetos complexos como os seres humanos; como tambm dos

    fenmenos emergentes produzidos por esses indivduos na ps-modernidade,

    momento em que, segundo Maffesoli (2006, p. 6), aps a dominao do princpio do

    17 A partir desse ponto, sero usadas as letras G e Y, antes dos sobrenomes Durand, em respeito s

    normas da ABNT, para diferenciar os autores Gilbert Durand de Yves Durand.

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    logos, representante da razo mecnica, previsvel instrumental utilitria, assiste-se

    ao retorno de um princpio do eros.

    Como alerta o prprio G. Durand, o nosso tempo retomou a conscincia

    da importncia das imagens simblicas na vida mental (1995, p. 37). Dessa forma,

    alm da utilizao de outros mtodos de pesquisa, utilizou-se a Teoria Geral do

    Imaginrio, conseguiu-se uma maior aproximao com o imaginrio dos jogadores,

    ao tomar-se por base as imagens projetadas durante o processo do jogo,

    valorizando suas formas de expresso e as mensagens trazidas por elas.

    Norteando-se no fato de que essa Teoria traz um novo paradigma para a

    cincia ocidental (ao propor um exame das imagens mentais e a forma como so

    traduzidas em smbolos e cdigos), ela se adequa investigao sobre o objeto de

    estudo e hiptese levantada sobre a possibilidade dos Jogos de RPG estarem

    simulando sensaes semelhantes s vivenciadas em momentos de devoo

    religiosa, de experincia do sagrado.

    A adoo da TGI e o conjunto epistemolgico das cincias como a

    Sociologia Compreensiva e a Antropologia tornou-se possvel, na medida em que

    ela mesma composta por um entrecruzamento de diversas cincias. Assim sendo,

    j traz consigo seus mtodos de verificao sem invalid-los, como tambm uma

    convergncia de hermenuticas.

    Nesse contexto, o teste Arqutipo dos Nove Elementos tornou-se um

    instrumento vlido para a colheita de material. Com a aplicao do Teste AT-9,

    pode-se melhor avaliar o desempenho dos jogadores e se a hiptese levantada

    neste trabalho passvel de ser comprovada, pois existe uma estreita

    concomitncia entre os gestos do corpo, os centros nervosos e as representaes

    simblicas. (PITTA, 2005, p. 21-22).

    Sua aplicao enquanto teste projetivo visou identificao dos ncleos

    organizadores da simbolizao do jogo e dos universos mticos que se constituem

    nas histrias idealizadas pelos jogadores; o que possibilitou a comparao das

    estratgias usadas pelos jogadores durante as aventuras com as estratgias que os

    sujeitos encontram para resolver a angstia diante do tempo, que conduz extino

    atravs da morte, de que nos fala G. Durand (2002). A observao sensvel desses

    fatos far, portanto, que seja possvel uma maior aproximao da maneira como se

    processa o fenmeno.

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    4.1 TEORIA DO IMAGINRIO: ORIGENS E APLICAES

    Em geral, a palavra ou o conceito de imaginrio colocado em oposio

    ao de realidade, ou pior, ao que verdadeiro. No entanto, imaginrio no se trata de

    mera fico inconsistente, nem to pouco de uma forma de falsificar a realidade. A

    prpria realidade objetiva, segundo Maffesoli, acionado pela eficcia do

    imaginrio, das construes do esprito (2001, p. 75). Realidade e imaginrio so,

    por isso, dois processos indissociveis.

    O imaginrio tambm no poderia ser reduzido a outros conceitos pr-

    estabelecidos como o de cultura ou de ideologia. No que diz respeito questo da

    cultura, ele viria antes, seria a matriz ou atmosfera, o estado de esprito que

    caracteriza um povo. (MAFFESOLI, 2001, p. 75). Estaria na base da construo da

    prpria cultura, como uma fora social em forma de construo mental coletivizada,

    capaz de ser percebida, mas no de ser quantificada.

    Ele impondervel, ultrapassando o indivduo que, por sua vez, impregna

    a coletividade. Funciona como cimento social, cultura de grupo, ao mesmo

    tempo, mais do que essa cultura: a aura que a ultrapassa e alimenta.

    (MAFFESOLI, 2001, p. 76).

    Quanto diferenciao entre o imaginrio e a ideologia, existe uma ponto

    bsico que os diferencia. As ideologias so formuladas atravs da racionalizao do

    pensamento, enquanto que os processos imaginrios, embora possuam o elemento

    racional, agrega outros elementos, como o onrico, a fantasia, o ldico, o afetivo, o

    irracional e, claro, o imaginativo. O imaginrio compe e d gnese ideologia, da

    mesma forma que o faz com a cultura.

    Segundo ainda Maffesoli, o imaginrio , ao mesmo tempo, impalpvel e

    real, certamente funciona pela interao [e] envolve uma sensibilidade, o

    sentimento afetivo. (2001, p. 77). No entanto, essa sensibilidade no pode ser

    confundida com intuio. Dessa forma, o imaginrio se revela por suas produes

    (FELINTO, 2005).

    O imaginrio , segundo G. Durand (2002, p. 18), o conjunto das

    imagens e relaes de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens,

    ou ainda compreendido como um campo que se distingue pelo conjunto das

    representaes numa cultura dada. (Colquio de Washington, 1984 apud

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    LOUREIRO, 2004, p. 16). Constitui-se na relao entre as intimaes objetivas e a

    subjetividade. Relao, portanto, entre coeres sociais e subjetividades

    (MAFFESOLI, 2001, p. 80).

    O que se denomina de intimaes objetivas, so os limites e as regras de

    proceder que a sociedade impe ao indivduo. E as subjetividades so as intenes

    individuais que integram o domnio das atividades psquicas, sentimentais,

    emocionais desses mesmos indivduos, e motivam suas aes individuais ou

    coletivas.

    Como se sabe, de tempos em tempos, registra-se historicamente

    modificaes mais significativas na forma de proceder dos indivduos em relao aos

    valores e costumes sociais. Uma das motivaes mais fortes que G. Durand (2004)

    aponta para essas ocorrncias a saturao.

    A saturao, por sua vez, se d medida que em uma civilizao dada,

    as instituies no seguiram o lento movimento das vises de mundo (DURAND,

    G., 2004a, p. 17). O no acompanhamento das modificaes na forma de ver o

    mundo por parte das instituies provoca uma precipitao, uma acelerao ou

    ainda uma coagulao mtica.

    Observa-se que, de forma progressiva, desde as ltimas dcadas do

    sculo XIX, entramos por diferentes motivaes em uma zona de intensas

    remitologizaes (DURAND G., 2004a, p. 18). Esse contramovimento, insuflado

    pela saturao, deve-se ao esgotamento das possibilidades de investigao de

    fenmenos que escapam lgica dos mtodos cientficos at ento conhecidos. E,

    uma das formas de encontrar solues para questionamentos no respondidos pela

    cincia, atravs da anlise da imagem mtica, que fala diretamente alma

    (DURAND, G., 2004, p. 17), de maneira intuitiva.

    Dentro dessa configurao, a raiz da ressurgncia dos mitos na

    atualidade associa-se emergncia da imagem que, por sua vez, denota a

    necessidade da reatualizao dessa linguagem. Ambas se do na ps-modernidade,

    por ser uma poca de saturao, de esvaziamentos de contedos, o que leva

    procura de novos significados e significncias que deem sentido existncia.

    A situao atual em relao ao imaginrio social, derivada dos perodos

    de marginalizao da imagem, resumida pelo prprio G. Durand quando relata que todos esses ndices de uma alta presso imaginria e simblica na qual ns vivemos e nos agitamos so a sndrome de uma profunda

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    ressurgncia do que nossas pedagogias e os epistemas resultantes tinham cuidadosamente, durante sculos e sculos, rejeitando, ou pelo menos colocado na poro mnima. (2004a, p. 9).

    Isso indica uma situao de sintonizao com a temtica de um retorno

    do mito ou das mitologias vida cotidiana. Essa ressurgncia se d por conta da

    ecloso dessas mesmas mitologias que se encontravam em estado latente, mas que

    no haviam sido extirpadas dos imaginrios individuais e que gravitam em torno da

    galxia do imaginrio coletivo.

    Assim, o mito e a imaginao deixam de sofrer um processo violento de

    desmistificao e iconoclastia, sendo gradativamente reincorporados aos processos

    de pensamento e reflexo sobre assuntos variados, desde a arte, passando pelo

    pensamento pragmtico, at os mtodos investigativos da cincia oficial. Ao ponto

    de, na atualidade, e para explicar suas prprias orientaes, o pensamento

    cientfico v-se constrangido a pedir auxlio ao mesmo imaginrio durante tanto

    tempo reprovado (DURAND, G., 2004a, p. 71). Ou seja, No somente mitos esclipsados recobrem o mito de ontem e fundam o epistema de hoje, mas ainda os sbios na ponta dos saberes da natureza ou do homem tomam conscincia da relatividade perene do mito. O mito no mais um fantasma gratuito que subordinamos ao perceptivo e ao racional. (DURAND, 2004a, p. 20).

    O mito, ou melhor, a formao do(s) mito(s) ps-moderno(s) se d por

    sedimentao, acomodao e re-elaborao dos mitos milenares que dizem respeito

    s problemticas e aspiraes humanas relativas vida e ao viver que permanecem

    em forma de incgnitas.

    Ele(s) (so), por isso, uma forma ou metodologia ainda atual e vlida

    para pensar questes como: quem sou, de onde vim, para onde vou? Essa

    mitologias continuam, tambm, da mesma forma que no passado, podendo ser

    manipuladas para melhor ou para pior, dependendo do uso que se deseje fazer

    delas.

    Todos esses fatos, movimentos sociais e necessidades expressadas

    atravs dos mitos e ao mesmo tempo suas geradoras, acabam por dar gnese a

    estudos relativo a eles, que culminaram na elaborao de uma teoria que fosse

    capaz de explicar a forma como essas imagens, reprimidas por um perodo to longo

    de tempo, fossem capazes de sobreviver. Como tambm, fornecessem explicaes

    vlidas da forma como o imaginrio cria e interfere nas produes materiais e

    mesmo nas vivncias humanas.

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    Dessa forma, a TGI surgiu no Ocidente em um momento de retorno da

    imagem s artes e aos meios de comunicao. Diz-se retorno da imagem, pois, no

    Ocidente, houve uma separao progressiva dos poderes da imagem e dos

    poderes efetivos, iconoclastas tecnolgicos, cientficos ou polticos (DURAND, G.,

    2004a, p. 9).

    Como consequncia dessa separao, foi gerada uma viso de

    pensamento racional, onde as imagens passaram a fazer parte de um campo

    considerado inferior (DURAND, G., 2004). Sendo consideradas como delrio de

    loucos e artistas, foram relegadas marginalidade e afastadas do campo dos

    estudos e produes consideradas srias.

    Essa coincidncia entre o seu retorno ao meio das artes e da

    comunicao e o surgimento de uma teria voltada para o seu estudo no foi

    aleatria. G. Durand (2004) observou que so os artistas os primeiros a captarem o

    esprito de tempo de uma determinada poca; fato este depois pensado e estudado

    por filsofos e cientistas.

    A introduo da Teoria Geral do Imaginrio nos meios acadmicos,

    embora com restries, comprova sua importncia, ao menos no que diz respeito

    complementao dos vcuos existentes nos mtodos tradicionais de investigao

    cientfica, que no conseguem dar conta da subjetividade humana.

    Na atualidade, constatamos em todas as disciplinas do saber [...] a

    formao progressiva e no premeditada de uma cincia do imaginrio (G.

    DURAND, 2004, p. 77). O que reabilita a imagem das anteriores interdies

    enquanto componente a ser levado em conta nas investigaes de fenmenos

    vrios produzidos na esfera tanto do individual quanto do coletivo.

    No Brasil, o TGI, enquanto cincia transdisciplinar, pesquisada em

    vrios campos acadmicos, dentre eles a Antropologia, a Sociologia, a Psicologia, a

    Pedagogia e as Cincias das Religies na UFPB. Esta ltima possui o maior ndice

    de estudos no pas. As restries que so feitas a essa teoria, so feitas tambm a

    todos os novos mtodos investigativos. Sua eficcia definitiva s se dar, ento,

    pela continuidade de seu uso e dos resultados positivos obtidos atravs de seus

    mtodos.

    Por enquanto, a possibilidade aberta pela incluso do denominado

    terceiro dado (G. DURAND, 2004), j abre inmeras possibilidades de estudo antes

    circunscritos lgica bivalente de oposio/excluso dos contrrios racional-

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    positivista. A lgica do terceiro includo, sendo simblica, d coerncia aos plurais e

    transforma-os em complementariedades.

    4.1.1 A Aplicao da Teoria do Imaginrio e O Homo Symbolicus

    O imaginrio foi considerado por G. Durand (2002) o museu de todas as

    imagens passadas, produzidas e passveis de serem produzidas, nas suas

    diferentes modalidades, pelo homo sapiens sapiens. Alm disso, esse autor

    observou que o imaginrio humano, muito longe de ser a expresso de uma

    fantasia delirante, desenvolve-se em torno de alguns grandes temas, algumas

    grandes imagens que constituem para o homem os ncleos ao redor dos quais as

    imagens convergem e se organizam (apud PITTA, 2005, p. 14).

    Partindo dessa forma de perceber o imaginrio humano, surgiu a

    necessidade de classificar essas imagens, dando-lhes uma ordem e estabelecendo

    significados. Para tanto, a Teoria Geral do Imaginrio se baseou na teoria dos

    arqutipos, do inconsciente coletivo e o no estudo das mitologias para entender a

    forma como so produzidas as imagens e como elas so recebidas e/ou

    transmitidas.

    Durand percebeu que, antes de ser no mundo, o indivduo construa esse

    mundo com sua imaginao criadora e, por outro lado, tentava compreender e

    explicar o mundo a ele preexistente. Para faz-lo, lanava mo de simbolizaes

    que se expressavam atravs de mitos. Esse processo que permite a atribuio de

    sentidos s coisas existentes no mundo realiza a mediao entre o indivduo e o

    meio e foi chamado por G. Durand (2002) de equilibrao antropolgica e descreve

    uma trajetria denominada de trajeto antropolgico.

    Segundo ainda G. Durand, o trajeto antropolgico a incessante troca

    que existe ao nvel do imaginrio entre as pulses subjetivas e assimiladoras e as

    intimaes objetivas que emanam do meio csmico e social (2002, p. 41). O que

    poderia ser representado da seguinte forma:

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    Grfico 1 Conjunto imaginrio de uma poca e sociedade Fonte: Criao pessoal da autora.

    O processo de permuta constante entre o interior e o exterior, que vai do

    inconsciente especfico ao superego social, dinmico. Ele se expressa nas

    interaes que existem entre o meio e o indivduo e pode ser percebido analisando-

    se as representaes exteriores.

    A equilibrao antropolgica se d em quatro nveis: no plano biolgico,

    concedendo equilbrio vital aos indivduos; no plano psicossocial, permitindo ao

    indivduo estabelecer a sntese entre suas pulses individuais e aquelas do meio em

    que vive (PITTA, 2005, p. 37); no plano antropolgico, a nvel planetrio, facilitando,

    segundo Pitta (2005), um real ecumenismo; e, por fim, a imaginao simblica tem

    uma funo transcendental, ou seja, ela permite que se v alm do mundo material

    objetivo e que se crie um suplemento da alma (PITTA, 2005).

    No intuito de compreender como acontecia esse processo, Durand partiu

    dos estudos realizados em Leningrado sobre a reflexologia para determinar a

    influncia dos reflexos dominantes na constituio do imaginrio humano (PITTA,

    2005, p. 92), pois a escola de reflexologia havia estabelecido que a gnese do gesto

    e do meio ambiente era recproca.

    Foram detectadas inicialmente duas categorias de gestos dominantes

    observadas em recm-nascidos: a dominante reflexa postural ou de posio

    (verticalizao ascendente) e a digestiva ou de nutrio (engolimento, descida,

    aconchego). A primeira relacionada ao regime diurno da imagem sendo de

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    estrutura herica. E a segunda includa no regime noturno da imagem, relacionada

    ao microuniverso mstico.

    Posteriormente foi estudada uma terceira dominante reflexa, a cclica (de

    movimento, natural) que foi tambm relacionada ao regime noturno da imagem,

    relacionando-se ao microuniverso denominado de sinttico ou disseminatrio. Da

    constatao e estudo destas trs dominantes resulta o princpio fundamental da

    identificao das estruturas antropolgicas, distribudas em dois regimes (Noturno e

    Diurno) (LOUREIRO, 2004, p. 17).

    Como cada indivduo possui uma forma prpria de perceber o mundo,

    natural que existam diferenas entre seus modos de pensar e agir diante da

    angstia existencial provocada pelo escoamento do tempo que leva aproximao

    da morte. Os modos de agir diante dessa angstia so representados,

    respectivamente, pela classificao isotrpica das imagens em dois regimes, o

    Diurno e o Noturno, que se subdividem em trs microuniversos: herico, mstico e

    sinttico.

    Grfico 2 Classificao isotrpica das imagens. Fonte: Criao pessoal da autora.

    O tipo herico enfrenta o problema, luta contra a evidncia da finitude. O

    mstico cria um mundo em harmonia baseado no aconchego e na intimidade

    (PITTA, 2005, p. 33). Enfim, o sinttico ou disseminatrio opta por harmonizar os

    contrrios, mantendo entre eles uma dialtica que salvaguarda as distines e

    oposies (PITTA, 2005, p. 36), dialogando com a problemtica.

    Mesmo assumindo formas diferenciadas de encarar a inevitabilidade da

    morte, existem elementos comuns ao sapiens, imagens que se repetem e se

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    generalizam envolvendo a afetividade (DURAND, G., 2002), que se agrupam em

    constelaes e que so chamadas de schmes.

    Os schmes poderiam ser comparados a frmas ocas, portanto,

    generalizadas, onde podem ser colocados diversos contedos, advindos das vrias

    culturas. Dessa forma, embora os contedos colocados variem bastante, no

    deixaro de ter a forma original dada pela frma, sendo dessa frma, o esqueleto

    dinmico, o esboo funcional da imaginao (DURAND. G., 2001, p. 60).

    Os schmes seriam um vir-a-ser, uma inteno de gesto, estando na base

    das concretizaes desses gestos, das posturas e das pulses inconscientes. Na

    concepo de G. Durand (2002), as representaes concretas desses gestos e

    posturas, o esqueleto dinmico, em contato com o espao e atmosfera social em

    que o individuo se insere, originaro imagens primordiais, os arqutipos.

    Os arqutipos, por sua vez, so imagens universais que intermediam as

    imagens constantemente recebidas do meio pelo sujeito (campo da objetividade) e o

    schme, que est nos domnios de sua subjetividade. Eles so, simultaneamente,

    universais e especficos, mas jamais so ambivalentes. So universais, pois

    aparecem em todas as culturas estudadas at o momento ao redor do mundo e sua

    importncia se d, na medida em que constituem o ponto de juno entre o

    imaginrio e os processos racionais (DURAND, G., 2002, p. 60). Sua especificidade

    se d medida que so interpretados e vividos diferentemente em cada cultura.

    Juntamente com esses elementos, encontramos os smbolos, que so as

    substanciaes dos arqutipos e que possuem uma infinidade de significados em

    aberto. Como eles traduzem emoes, assumem significados que, da mesma forma

    que os arqutipos, variam conforme o contexto cultural.

    Sobre o mito, o qual j foi tema de um captulo anterior, possvel afirmar

    que ele j um esboo de racionalizao, dado que utiliza o fio do discurso, no qual

    os smbolos se resolvem em palavras e os arqutipos em idias. (DURAND, G.,

    2002, p. 63).

    Por mais diferentes e variados que possam parecer primeira vista, os

    mitos no sofreram modificaes. Ento, como explicar as aparentes diferenas

    mitolgicas? As variaes se do atravs dos mitemas. Esses, sim, variam conforme

    o tempo e as culturas e podem ser comparados s frases que compem textos que

    tm a mesma temtica, mas foram escritos por vrios indivduos, cada qual dando a

    sua interpretao, influenciados pelo esprito do tempo e da cultura em que viveram.

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    Outro fato importante em relao dinmica mitologica a substituio e

    sobreposio de um mito por outro, entrando o mito vigente em estado de latncia

    em relao ao mito ascendente, at que condies favorveis o faa reaparecer. O

    esquema a seguir representa, de forma resumida, o processo de gnese e

    decadncia dos contedos imaginrios.

    Grfico 3 : Formao dos contedos imaginrios. Fonte: Criao da autora.

    Esse processo ocorre normalmente de tempos em tempos em relao s

    narrativas mitolgicas e esta tenso dialtica, [...] sempre em busca de equilbrio,

    fonte evolutiva de mudanas (SANCHEZ TEIXEIRA, 2006, p. 218).

    Mas, como conseguir detectar esse imaginrio impalpvel humano?

    Como toda teoria inovadora, a Teoria do Imaginrio possui mtodos igualmente

    inovadores. Assim, foi proposta um novo mtodo prprio ao estudo do imaginrio,

    denominado de Mitodologia. Ele se subdivide em Mitocrtica e Mitanlise e essas

    duas modalidades de anlise so aplicadas ao estudo dos indivduos e dos

    contextos sociais em que se inserem.

    A primeira, a Mitocrtica, trata-se de um mtodo direcionado para a crtica

    de texto literrio, de estilo de um conjunto textual de uma poca ou de um

    determinado autor (MELLO, 1994, p. 47). Atravs desse mtodo, chega-se

    deteco de um ncleo mtico, de uma narrativa fundamentadora do mito, ou dos

    mitos, que atuam em conjunto para a formao na narrativa.

    J a segunda, a Mitanlise, mais abrangente, constituindo-se em uma

    metodologia usada para perceber e analisar os grandes mitos que orientam (ou

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    desorientam) os momentos histricos, os tipos de grupos e de relaes sociais

    (MELLO, 1994, p. 48).

    Grfico 4 Mitodologias. Fonte: Criao pessoal da autora.

    Observa-se, portanto, que as formas de anlise criadas por Durand

    baseiam-se no mito, porque ele capaz de explicitar um schme ou um grupo de

    schmes e se constitui em um esboo de racionalizao, pois usa o fio do discurso

    no qual os smbolos se resolvem em palavras e os arqutipos em ideias (DURAND,

    G., 2002, p. 63).

    A deteco desse imaginrio ps-moderno, como de outros imaginrios,

    vai demonstrar a existncia real de um conjunto de imagens reunidas em uma

    constelao. Essas imagens, antes de servirem de suporte, resultam do imaginrio e

    do vivido pelas coletividades e pelos indivduos participantes delas.

    A forma de elaborao das constelaes no aleatria, ela se d

    atravs do j referido trajeto antropolgico e representa, segundo G. Durand (2004,

    p. 90), a afirmao na qual o smbolo deve participar de forma indissolvel para emergir numa espcie de vaivm contnuo nas razes inatas da representao do sapiens e, na outra ponta, nas vrias interpelaes do meio csmico e social.

    O que G. Durand chama de vaivm caracterizado pela prpria forma

    como o ser humano amadurece durante a sua existncia. Sendo ele, uma criatura

    com o maior tempo de maturao que se tem conhecimento, o ambiente, em

    especial, e o meio social acabam por ter grande influncia no aprendizado cerebral.

  • 128

    Todos esses fatores so levados em considerao quando se procede

    tanto a uma mitocrtica quanto a uma mitanlise. Ambas so instrumentos que

    possibilitam a aplicao dessa teoria nos estudos dedicados anlise referentes aos

    seres humanos e ao seu comportamento social.

    O outro mtodo de anlise da Teoria do Imaginrio o denominado

    Arqutipo Teste dos Nove Elementos (AT-9); o qual foi escolhido e aplicado nesse

    estudo. Em sua gnese, foi uma montagem experimental destinada a realizar um

    estudo antropolgico amplificado das Estruturas do Imaginrio elaborada por Gilbert

    Durand (DURAND, Y., apud LOUREIRO, 2004, p. 9). Ele foi, portanto, um

    instrumento elaborado para a validao da Teoria do Imaginrio, pelo psiclogo

    Yves Durand a partir de extenso material de nvel cultural bastante alto, recolhido por

    Durand.

    Atravs dos nove elementos escolhidos intencionalmente, o teste acaba

    por revelar as estratgias que os sujeitos encontram para resolver a angstia diante

    do tempo que conduz a finitude. Os arqutipos usados no teste estimulam a

    emerso dessa conjuntura que se reflete, por sua vez, nas tticas utilizadas para

    vencer a morte.

    Ilustrao 15 Elementos do AT-9. Fonte: Criao pessoal da autora com base em desenho obtido em aplicao de AT-9 com indivduos participantes da pesquisa.

    Em resumo, o indivduo, antes de lidar com coisas e objetos, lida com os

    significados que atribui a cada uma delas, simbolizando-as. Nessa dinmica, o

  • 129

    mundo considerado real torna-se um mundo construdo atravs das percepes

    individuais que se juntam por afinidade em um todo coletivo, formando sistemas

    simblicos particulares. Essa relao que se institui com o mundo mediada atravs

    dos imaginrios e significados atribudos s coisas pela cultura e esprito de tempo

    em que se inserem os sujeitos.

    Estando os jogadores inseridos em uma conjuntura e, sendo o jogo por si

    s um processo de simbolizao e interpretao do mundo, o percurso das

    aventuras vivenciadas no jogo poderia representar a traduo ou um exerccio das

    estratgias para vencer a morte. O AT-9 torna-se, dessa forma, um instrumento

    vlido e adequado para conseguir uma maior aproximao com os imaginrios dos

    jovens indivduos pesquisados.

    Os estudos do Imaginrio alm de representarem mais uma alternativa

    metodolgica para os estudos no campo social, so uma forma de tornar os

    indivduos, enquanto seres humanos, mais conscientes das motivaes e

    interpretaes de ser no mundo, e de como eles prprios interagem e interferem at

    mesmo nas criaes materiais, atravs das ideaes simblicas que as precedem.

    4.1.2 Jogo e Imaginrio

    Logo no incio de seu livro, Pitta faz a seguinte colocao: para que a

    criao ocorra necessrio imaginar. (2005, p. 12). Imaginao um item

    indispensvel quando se joga RPG. Os jogadores e, principalmente o mestre,

    imaginam o tempo todo. Imaginam os mundos para onde se transportam

    temporariamente, imaginam as situaes por que passam os seus personagens e os

    dos outros jogadores, dentre tantos outros detalhes.

    O imaginar um processo constante enquanto durar, no s o perodo da

    sesso, mas toda uma campanha. Pois, mesmo aps concluir a sesso, ao se

    encontrarem, eles comentam as aventuras experimentadas atravs dos

    personagens como se fossem lembranas de suas prprias vidas. Conversam sobre

    as possibilidades para as prximas sesses e trocam ideias e opinies.

    Como, medida que o ato de criao um impulso procedente do ser,

    estando na raiz de tudo o que existe para o indivduo, pode-se consider-lo a prpria

  • 130

    essncia do esprito. Pois, para criar, preciso antes imaginar e, imaginar criar o

    mundo, criar o universo, seja por meio das artes, das cincias, ou por meio dos

    pequenos atos, profundamente significativos, do cotidiano (PITTA, 2005, p. 40).

    Levando-se em conta a riqueza de detalhes das aventuras concebidas

    pelos jogadores, como tambm o ato de que a imaginao simblica permite que se

    v alm do mundo material objetivo; e como, segundo G. Durand, a razo e a

    imaginao so processos inseparveis, pois o simblico se inscreve de maneira

    profunda na alma humana (GOMES, 2009, p. 27), no se torna difcil imaginar por

    que elas parecem ser to reais e atrativas.

    Mesmo que o processo imaginrio seja para o mundo real, um mundo

    surreal, este ltimo ter a mesma consistncia e realidade que o primeiro, o mundo

    real objetivo, pois, a imaginao envolve as imagens com cargas afetivas atraentes

    ou repulsivas, transformando o mundo sonhado em um mundo da alta densidade

    emocional (PITTA, 2005, p. 45).

    Depreende-se da que, enquanto os jogadores esto envolvidos com as

    questes do jogo, cada um deles, ao criar ou colaborar com a criao de uma

    realidade paralela, um mundo para o qual se transportam, est vivenciando, mesmo

    ao nvel da imaginao, uma experincia de alta densidade emocional, por isso

    mesmo intensa para quem a experiencia. Desse modo, O jogo em si no ruim nem bom, ele uma possibilidade concreta de potencializar a vida e de mltiplos sentidos que atribumos a ela. [...] aquele que joga revela um mundo de sentidos sobre si, sobre o seu universo cultural e social (RETONDAR, 2007, p. 92).

    De acordo com a Teoria Geral do Imaginrio, para fugir da

    representao da morte que a imaginao cria o mundo, um outro mundo, um

    mundo que faa sentido (GOMES, 2009, p. 84). Na definio dada anteriormente de

    RPG, aparece em primeiro plano a imaginao. essa mesma imaginao que cria

    um outro mundo que faa sentido para o sujeito da ao.

    E no justamente dessa forma que procedem os indivduos-jogadores

    quando criam os mundos imaginrios para onde se transferem nas sesses de

    RPG? Quando adentram Farun ou outros mundos sugeridos nos livros? Seus

    personagens-heris no tm a possibilidade de se eternizarem dentro desses

    mundos, atravs de suas vontades?

  • 131

    Mesmo quando acontece de seus personagens morrerem em uma

    batalha, ainda resta a possibilidade de reviverem atravs da conjurao de uma

    mago, seu companheiro de equipe, de jornada. Seus imaginrios refletem esse

    desejo comum aos seres humanos de vencer a morte; de criar mecanismos capazes

    de diminuir a angstia diante do medo da extino.

    Como o mito configura uma situao em que o mundo do indivduo e o

    mundo externo, social, se interpenetram, a vivncia das aventuras de RPG

    construdas sobre o solo firme das mitologias, confere a essas aventuras uma maior

    aparncia de veracidade.

    4.2 ETNOGRAFIA DOS JOVENS HERIS

    Nesta etnografia sero propositalmente suprimidos os procedimentos,

    visto que eles j se encontram especificados na metodologia, detalhada na

    Introduo dessa pesquisa.

    4.2.1 Os Indivduos-Jogadores

    O grupo observado composto por nove indivduos-jogadores jovens,

    todos pertencentes ao sexo masculino, cujas idades no incio da pesquisa, variavam

    entre quinze e vinte anos, estudantes do Instituto Federal de Educao, Cincia e

    Tecnologia da Paraba (IFPB) e frequentam os diversos cursos e sries oferecidos

    pela instituio.

    A inexistncia de indivduos do sexo feminino se deu, em parte, pela

    escolha do sistema de jogo escolhido para delimitar essa anlise. A presena de

    indivduos do sexo feminino mais constante nos jogos do sistema D10 e, nessa

    pesquisa, foi usado o sistema D20.

    Segundo os prprios indivduos-jogadores, os jogos do sistema D20, por

    privilegiarem as jornadas hericas, picas, mais voltadas para a ao, para as

    aventuras, mais atrativo para os indivduos do sexo masculino, enquanto que as

    jovens se sentem mais atradas pelos jogos do sistema D10, de carter mais

    introspectivo (informao verbal).

  • 132

    O que confirmado por Mattos (2006) ao afirmar que indivduos do sexo

    feminino foram condicionados culturalmente para apreciar um tipo de fico menos

    dependente da ao e mais voltado para as relaes interpessoais.

    Os indivduos-jogadores observados, alm de fazerem parte de um grupo

    social inspirado por um interesse comum, que o jogo de Roleplaying Game, so

    tambm integrantes de uma sociedade ocidental, sofrendo todas as influncias de

    sua dinmica e costumes. So jovens urbanos, absorvendo o modo de viver nesses

    grandes agrupamentos que tem sido o cadinho das raas, dos povos e das culturas

    e o mais favorvel campo de criao de novos hbridos biolgicos e culturais

    (WIRTH, 1979, p. 98).

    Se, por um lado, a cidade favorece a criao desses novos hbridos

    culturais e absorve suas expresses, permitindo uma maior liberdade da ao dentro

    da sociedade, existe um grau significativo de anomia que faz com que o indivduo

    perca a espontnea auto-expresso, a moral, e o senso de participao, implcitos

    na vida numa sociedade integrada (WIRTH, 1979, p. 101). Talvez a falta de

    integrao favorecida pelos agrupamentos menores, seja uma das chaves para o

    entendimento das causas da procura, por parte dos indivduos, de insero em

    grupos de convvio, os mais diversos possveis.

    A cidade, por possuir uma quantidade maior de pessoas jovens do que as

    reas rurais, tende a favorecer o aparecimento de novas formas de expressar a arte,

    a cultura e os modos de relacionamentos tpicos da juventude, que, em sua maioria,

    procede a uma releitura do mundo.

    Os jogadores de RPG so, em sua maioria, jovens que compem as

    tribos ps-modernas, sendo influenciados e influenciadores desse modo de vida.

    Levam, aonde forem, as formas de relacionamento tpicas do tribalismo atual,

    incluindo-se a as rodas de jogo. Ou seja, os indivduos que participam dos grupos

    estabelecem ligaes fluidas, podendo migrar para outras rodas de jogo a qualquer

    momento, de acordo com os interesses do momento. O que no significa afirmar que

    a vivncia prejudicial ou atestar que benfica. Como foi visto anteriormente na

    discusso terica a respeito do fenmeno, melhor reconhecer que, de encontro a um social racionalmente pensado e organizado, a socialidade somente uma concentrao de pequenas tribos que se dedicam, de qualquer modo, a se ajustar, se adaptar, se acomodar entre si. Heterogenizao, politesmo dos valores, estrutura hologramtica,

  • 133

    lgica contradicional, organizao fractal? Pouco importa o termo empregado (MAFFESOLI, 2006, p. 14).

    O que realmente importa nesse novo modo de viver so as modificaes

    propostas, que deixam de se basear no poder centralizado de um indivduo que

    assume o posto de comando sozinho, para a proposta de uma sociedade cuja vida

    fusional, gregria e emocional.

    Nesse sentido, o jogar transforma-se em uma ocasio de encontros.

    Constroem para isso, o que Magnani denomina de pedaos, que vm designar o espao intermedirio entre o privado (a casa) e o pblico, onde se desenvolve uma sociabilidade bsica, mais ampla que a fundada nos laos familiares, porm mais densa, significativa e estvel que as relaes formais e individualizadas impostas pela sociedade (MAGNANI, 2000, p. 32).

    Os indivduos-jogadores, como outros membros dos grupos que delimitam

    seus pedaos, vo at esses espaos, que no caso podem ser mveis, justamente

    para encontrar seus iguais, exercitar-se no uso de cdigos comuns, apreciar os

    smbolos escolhidos para marcar as diferenas (MAGNANI, 2000, p. 40). Nesses

    momentos onde se decorre o processo do jogo, aparecem, de forma subliminar,

    elementos comuns entre o jogar e alguns componentes do ritual religioso.

    4.2.2. Local e Perodo

    A maior parte da observao se deu no Instituto Federal de Educao,

    Cincia e Tecnologia da Paraba (IEF-PB), onde existe um grupo fixo de jogadores.

    O local onde se reuniam para jogar, quando se iniciou esta pesquisa, era um

    ambiente cedido por um professor da prpria instituio. A sala repleta de objetos

    os mais variados, compondo um mosaico de cores e formas que, por si s, j seriam

    o bastante para estimular a criatividade de qualquer indivduo.

    O espao do jogo em si no depende do ambiente fsico, porque aps um

    perodo eles passaram a se encontrar na casa do mestre. Assim, a circunscrio

    espao se d pela roda formada pelos jogadores e composta pelos diversos objetos

    que so trazidos por eles, tais como: mapas dos mundos imaginrios onde se daro

    as aventuras, os dados que so os mais variados em tamanho e cores os livros,

    as planilhas dos personagens e, quando possvel, um aparelho de som.

  • 134

    Ilustraes 16 e 17 Mesa do jogo. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

    As msicas colocadas durante o tempo em que esto jogando e que

    ajudam a recriar o clima ou esprito de poca que permeou a idade mdia em

    que se passam as aventuras so temticas e, em sua maioria, do gnero celta ou

    o denominado metal melodic medieval. Envolvem a todos nessa atmosfera do

    medievo, que sobrevive no imaginrio dos indivduos-jogadores, aps ter sido

    captada em filmes que se propem a sua reconstruo, muitas vezes j assistidos

    pela maioria dos indivduos-jogadores. Essas verdadeiras trilhas sonoras so, em

    sua maioria, coletadas na internet e gravadas em CDs para tal finalidade, por

    membros do grupo que tm acesso s tecnologias digitais em suas casas.

    Outra parte da observao se deu em espaos exteriores ao IEF-PB, nos

    circuitos que esses jovens indivduos-jogadores costumam frequentar, ou seja,

    eventos como o Okinawa, as mostras de jogos de vdeo-games e o terceiro RPG e

    Cultura: no oriente feudal. Eventos esses, onde se pode observar uma quantidade

    significativa de jogadores em ao.

    4.2.3 Relato

    O grupo se rene pelo menos uma vez por semana na sala cedida por um

    professor, sabendo que nesse espao de tempo se realizariam as sesses de jogo,

    que se do ao final das aulas ou atividades de que participam na instituio.

    Chegam todos muito animados, carregando nas costas suas mochilas

    apinhadas de livros de RPG, alm dos materiais escolares. Trazem lanches

  • 135

    compostos geralmente de biscoitos recheados e refrigerantes que so, segundo

    eles, comprados coletivamente; no linguajar deles, na intera. Entram, fecham a

    porta e colocam seus celulares no silencioso.

    Vestem-se informalmente ou fardados por conta das aulas. No primeiro

    dia da observao, estavam alguns com trajes formais por terem acabado de

    participar de uma feira de cincias como expositores de trabalhos. Fizeram questo

    de trocar suas camisas por outras bem esportivas, l mesmo na sala, antes mesmo

    de iniciar qualquer outra atividade.

    Observa-se, tambm, que esse espao cuidadosamente preparado

    pelos jogadores, demonstrando ser um espao simblico, um espao que possui

    significado(s). representao do lugar onde determinados sentimentos esto

    autorizados a vigorar sem causar qualquer constrangimento para os sujeitos

    envolvidos (RETONDAR, 2007, p. 30).

    A admisso no grupo um consenso entre os indivduos-jogadores, mas

    obedece a alguns critrios, como o conhecimento prvio dos livros de RPG18. O

    mestre do grupo observado, ao ser questionado a respeito do modo como se dava a

    admisso de novos membros no grupo, comentou que, a gente observa tambm os

    grupos menores que jogam campanhas curtas e conversa com os outros mestres.

    Assim a gente j sabe quem j jogou antes e a facilita (informao verbal). No h

    proibies em relao aos jogadores frequentarem mais de uma roda de jogo, eles

    podem transitar livremente entre grupos e experimentar outros estilos de jogos.

    Aparentemente no se incomodam de serem observados ou mesmo

    fotografados. O ambiente ao redor no parece fazer a mnima diferena. Talvez por

    estarem acostumados a jogar em locais pblicos quando no dispem sempre de

    um ambiente como o que foi observado.

    Os indivduos-jogadores, ao chegarem ao ambiente descrito, vo

    acomodando suas mochilas em algum lugar mesmo que seja no cho e vo logo

    sentando ao redor da mesa. Quando jogam em locais externos, sentam-se no cho

    e organizam-se em crculo. Tm preferncia pelo lugar onde costumam sentar-se.

    Essa tendncia foi registrada atravs da fala de um dos participantes, que lembrou

    ao outro: voc sabe que aquele o meu lugar (informao verbal). Os demais se

    18 Pelo menos o livro do jogador, onde esto descritas as regras bsicas de movimentao, as

    descries dos personagens, as habilidades, dentre outras.

  • 136

    envolveram na discusso dando razo ao primeiro. Em momento nenhum houve um

    tom de agressividade, mas a frase foi dita com bastante nfase.

    Antes de iniciar a roda de jogo propriamente dita, enquanto esperam a

    chegada dos demais componentes, conversam animadamente sobre e dia-a-dia e

    contam experincias com o sobrenatural moda das rodas ao redor da fogueira que

    se forma noitinha para contar causos. O clima de inquietao, de uma alegre

    expectativa.

    Aps todos estarem acomodados, passam a comentar a respeito das

    aventuras passadas19, como a relembrar uma passagem ocorrida com eles prprios.

    Falam dos perigos e superaes de seus personagens e dos demais como a relatar

    um fato acontecido no cotidiano. Os relatos de vitrias, os mais variados possveis,

    se fazem presentes, pois segundo Huizinga, em qualquer jogo, importante que

    possa gabar-se aos outros de seus xitos (2007, p. 57). Sendo esse, portanto, um

    elemento comum no mbito do jogo.

    Aquele(s) que por acaso no estiveram presentes nas sesses anteriores,

    nessa ocasio, fazem perguntas, comentrios e se atualizam a respeito do

    andamento da aventura. Interessante notar que, mesmo ao relatar as peripcias j

    ocorridas, fazem-no interpretando seus personagens da mesma forma que ocorre

    durante o perodo do jogo.

    Mesmo aps essa conversa inicial, o mestre relata que na maioria das

    sesses voc tem que criar um preldio (informao verbal). Ou seja, o mestre faz

    um resumo das aventuras que se passaram, com base nas anotaes que fez da

    sesso anterior, para que a aventura prossiga sem soluo de continuidade.

    So comuns tambm comentrios a respeito da construo dos

    personagens. Suas caractersticas, suas habilidades, suas deficincias e seus feitos.

    Quanto troca de favores entre eles, vem justamente para suprir as deficincias que

    os outros personagens possuam, sendo essencial para o enfrentamento das

    dificuldades nas jornadas propostas pelo Mestre.

    Numa das sesses, um dos componentes do grupo ficou sem participar

    por ter esquecido a ficha de seu personagem. Essa ficha essencial porque nela

    que esto registradas no s as caractersticas fsicas, mas tambm habilidades,

    19 As aventuras objetivam alcanar os fins propostos no incio da campanha, superando obstculos os

    mais diversos. Esses obstculos assemelham-se aos que aparecem nos picos da Idade Mdia.

  • 137

    tendncias e poderes. O mestre do grupo, em informao verbal, exemplifica assim

    a importncia da ficha de personagem: O que voc tem referncia o que fica no papel. Por exemplo... se voc no est com a ficha do seu personagem, voc pode esquecer um item que ele tem, uma cicatriz no rosto. A numa sesso ele t sem cicatriz, na outra aparece, puf. Algum pergunta: voc no tinha uma cicatriz no rosto? Ai voc olha na ficha. A voc diz: mesmo. E a? A cicatriz aparece de novo, puf? Tem que saber. Ele [o personagem] tem uma bagagem anterior.

    Foi justamente por esse motivo que, no tendo registros necessrios de

    seu personagem para participar da sesso, o indivduo-jogador ficou fora da roda

    somente acompanhando. O que no pareceu incomod-lo, pois interagiu o tempo

    todo com os colegas, opinando, dando informaes e fazendo crticas a alguns

    procedimentos.

    Aps esse perodo inicial, comea a sesso propriamente dita, com o

    mestre fazendo o preldio (uma breve retrospectiva do ltimo encontro, dos

    sucessos e fracassos da misso), e propondo finalmente as novas tarefas e/ou

    misses a serem cumpridas20. O jogo continuou com os jogadores bastante

    empolgados, falando alto, rindo e, muitas vezes, sobrepondo-se fala um do outro.

    Cada um procurava encontrar uma soluo para os problemas propostos pelo

    mestre.

    Alm das dificuldades a serem superadas, os personagens dos jogadores

    devem, de preferncia, se filiar a um culto religioso. O deus escolhido dentre os

    vrios apresentados nos pantees21. As divindades exigem serem cultuados em dias

    especficos, e os jogadores tm forosamente que parar para homenagear a

    divindade a que esto filiados nesses dias, tendo que cumprir as obrigaes para

    com o deus que adora, cultuando-o segundo as prescries e rituais do culto a que

    se filiou.

    Sobre esse ponto, o mestre esclarece que a maioria das divindades tem

    dias consagrados para serem cultuados e por isso, o dia significativo pra eles

    (informaes verbais). Para que o andamento da aventura no seja prejudicado, h,

    20 O RPG um jogo de percurso onde no h vencedores. Todos colaboram para o sucesso da

    misso proposta pelo Mestre, sendo esse o objetivo (ter sucesso na campanha). Contam para isso com as habilidades dos personagens. Por exemplo: se meu personagem pode fazer magias capazes de ressuscitar, quando o heri de outro jogador for abatido em combate, eu me disporei a traz-lo de volta vida.

    21 Existem tambm livros dedicados somente aos Pantees a exemplo do suplemento de Dungeons & Dragons Forgotten Realms, Os reinos esquecidos: crenas e pantees.

  • 138

    no entanto, a flexibilidade de realizar o culto antes do incio das lutas, dos combates.

    Alm disso, os deuses pedem cntico de combate (informao verbal); o que,

    obviamente, deve ser feito antes do incio da batalha. Ainda o mestre exemplifica

    esse pormenor, mencionando uma classe de criaturas presentes nos jogos: os orks param todo dia de lua nova, ento, nesses dias, eles fazem o culto logo cedo, antes da batalha. Nesses dias, eles ficam mais corajosos, porque sentem a proteo dos deuses e, muitos dizem: eu tenho a bno dos Deuses. (informao verbal).

    Alm do que, segundo nosso principal informante, so comuns nos

    cenrios de campanha as perguntas do tipo: voc fiel a que, a quem?. Esse tipo

    de questionamento tenta avaliar o nvel de proteo recebido pelo personagem, da

    divindade, como tambm o seu poder de combate. E, acrescenta em relao aos

    indivduos-jogadores, que no possuem nenhuma filiao: De uma forma ou de

    outra ele vai ser um cara totalmente isolado (informao verbal). Dando-se

    prosseguimento, encontra-se o quadro de indivduos-jogadores e suas respectivas

    filiaes religiosas.

    Quadro 5 Filiaes religiosas dos indivduos-jogadores.

    Jogadores (nome fictcio) Filiao Religiosa

    Andrus Miliaryos no

    Aoth Rammas no rbitro Morgan no Fuosyr Forja Eterna catlico Hammerock catlico NPCs no

    Strider Liadonn catlico

    William Varralo catlico

    Fonte: Elaborao da autora com base na pesquisas de campo

    Pode-se perceber que no grupo pesquisado, a proporo entre catlicos e

    sem religio igual. Em um total de oito jogadores, quatro so catlicos e quatro

    declararam no proferir nem se filiar a nenhuma denominao religiosa, perfazendo

    um total de 50% cada uma das categorias. Durante o perodo da pesquisa, um dos

    jogadores aderiu religio evanglica, o que fez com que ele abandonasse o grupo.

    Questionando o mestre a respeito da ausncia desse indivduo-jogador,

    ele respondeu que ele saiu, entrou e saiu de novo. Ele disse que Deus falou com

  • 139

    ele; a maioria deixa de jogar, porque dizem a eles que coisa do Satans

    (informao verbal). Como se pode notar, ainda existe preconceito contra essa

    modalidade de jogo, principalmente entre algumas denominaes religiosas.

    Quanto s sesses, transcorrem tranquilas, sendo as desavenas

    resolvidas em comum durante o jogo, confirmando o que foi discutido no item

    dedicado socialidade dos jogadores. O tempo de cada uma delas varivel,

    dependendo da disponibilidade dos jogadores. A seguir, a tabela demonstrativa do

    tempo de jogo por jogador:

    Quadro 6 Tempo de jogo por jogador.

    Nome Fictcio Idade Curso/Profisso Nvel Srie Qtd.

    Sesses/ semana

    Tempo de jogo/

    sesso

    Andrus Miliaryos 20 Tecnologia em Sistemas para Internet 2 grau 4 1 5h

    Aoth Rammas 18 Edificaes (concludo) - - 5 4h

    rbitro Morgan 22 Engenharia Eltrica 2 grau -

    Fuosyr Forja Eterna 17 Mecnica 2 grau 4 3 4h

    Hammerock 18 Auxiliar Administrativo - - 1 3h

    NPCs 19 Mecnica 2 grau 4 2 4h

    Strider Liadonn 18 Mecnica 2 grau 4 1 4h

    William Varralo 17 Mecnica 2 grau 4 2 4h

    Fonte: Elaborao da autora com base nas pesquisas de campo

    Observando o quadro 6, nota-se que, embora exista uma variao entre 1

    e 5 sesses por semana a mdia de duas sesses. Essa variao revela ainda

    outro dado: alguns jogadores frequentam outros grupos concomitante ao grupo

    observado. O tempo de jogo definido mais claramente em 4 horas por sesso.

    Caracteriza-se, desse modo, a mobilidade entre eles e a ausncia dos evitamento

    entre os grupos, ao menos entre os praticantes de RPG.

    Trs dos jogadores desse grupo, embora j tenham passado para o nvel

    superior de ensino, frequentando cursos universitrios, continuam jogando. Segundo

    ainda o mestre do grupo, a gente joga h trs anos... o mesmo jogo, a mesma

    campanha (informao verbal).

    A disponibilidade dos participantes para jogar, como se poderia esperar,

    diminuiu por causa das sries cursadas. Observando-se o quadro 6, nota-se que os

    componentes do grupo original que ainda se encontram no IFPB, todos cursam o

  • 140

    quarto e ltimo ano. Esse fator interfere diretamente no tempo de jogo. Os motivos

    eles mesmos relatam: tinha semana que a gente jogava quase todo dia. Agora t

    difcil. Tem TCC22; muita gente t estudando pra vestibular. Tem estgio tambm

    (informao verbal).

    Quanto reao diante da minha pretenso de jogar com eles nas

    prximas sesses, foram solcitos. O que se mostrou impossvel, dado que a

    campanha estava em andamento h bastante tempo. Como se viu, at mesmo de

    uma sesso para outra, existe a necessidade do mestre fazer um preldio que

    propicie a continuidade da campanha. O que significa dizer que a incluso de um

    novo jogador, inexperiente, iria ser muito complicada. Implicaria na paralisao

    temporria do jogo para dar as devidas explicaes, no s sobre o jogo em si, mas

    sobre acontecimentos anteriores ocorridos na campanha.

    4.2.4 Discusso

    Os jovens indivduos-jogadores espelham, atravs de seus

    comportamentos, durante o perodo que antecede e que dura o jogo, uma tendncia

    bem atual no que diz respeito formao de grupos. Organizam-se com base em

    interesses corporativos variados e parciais, ao modo das tribos ps-modernas, que

    permitem agrupar os iguais, possibilitando-lhes intensas vivncias comuns, o

    estabelecimento de laos pessoais e lealdades, a criao de cdigos de

    comunicao e comportamento particulares (MAGNANI, 2009, p. 4).

    Como j discutido anteriormente, essas tribos so grupos que se

    constituem, segundo Wirth (1979, p. 104), em um fenmeno tpico dos grandes

    agrupamentos urbanos, onde a interao social entre tamanha variedade de tipos

    de personalidades num ambiente urbano tende a quebrar rigidez das castas e a

    complicar a estrutura das classes o que induz a um arcabouo mais ramificado e

    diferenciado de estratificao social do que em sociedades mais integradas.

    Segundo ainda o mesmo autor, A crescente mobilidade do indivduo, que coloca dentro do campo de estmulos recebidos de um grande nmero de indivduos diferentes e o sujeita a um status flutuante no seio de grupos sociais diferenciados que

    22 TCC a abreviatura de Trabalho de Concluso de Curso.

  • 141

    compem a estrutura social da cidade, tende para a aceitao da instabilidade e insegurana no mundo como norma geral. [...] Nenhum grupo isolado possuidor da fidelidade exclusiva do indivduo (WIRTH, 1979, p. 104).

    Sua ligao fundamentada nos interesses comuns que so muitas

    vezes momentneos, sendo suas ideias e ideais renovados constantemente. O

    amlgama responsvel pela unio do grupo so as ideias afins. E o jogo, por si s,

    j induz constituio de grupos em torno de um objetivo comum, que no caso a

    vivncia de aventuras em mundos imaginrios paralelos realidade do cotidiano.

    Sendo a renovao de idias e ideais uma constante, os indivduos que

    participam dos grupos estabelecem ligaes fluidas, podendo migrar para outras

    rodas de jogo a qualquer momento, de acordo com os interesses do momento. O

    que no significa afirmar que a vivncia prejudicial, ou atestar que benfica: melhor reconhecer que, de encontro a um social racionalmente pensado e organizado, a socialidade somente uma concentrao de pequenas tribos que se dedicam, de qualquer modo, a se ajustar, se adaptar, se acomodar entre si. Heterogenizao, politesmo dos valores, estrutura hologramtica, lgica contradicional, organizao fractal? Pouco importa o termo empregado (MAFFESOLI, 2006, p. 14).

    O que realmente importa nesse novo modo de viver, so as modificaes

    propostas que deixam de se basear no poder centralizado de um indivduo, que

    assume o posto de comando sozinho, para a proposta de uma sociedade cuja vida

    fusional, gregria e emocional.

    Vivendo a incerteza dos tempos ps-modernos, onde a nica coisa certa

    a contnua incerteza (CROOK apud HOUTART, 2003, p. 101), onde o que conta

    o presente (HOUTART, 2003 p. 104), esses jogadores formam micro-sociedades,

    que refletem a dinmica social de seu tempo histrico.

    Os jovens que compem essas tribos so, portanto, os mesmos que

    transitam todos os dias, principalmente pelas ruas das grandes cidades, que se

    filiam s comunidades virtuais, enfim, que vivem de acordo com o esprito de seu

    tempo e que sero os formadores das rodas de jogo de RPG.

    Durante o tempo em que foi realizada a observao, notou-se que, no

    grupo observado, embora se constitua seguindo o esprito de tempo atual, ainda

    vigora a mesma motivao interior do indivduo, que busca preencher o vazio que

    deixado na ausncia desses laos afetivos constitudos por meio dos

    relacionamentos sociais.

  • 142

    Nas sociedades atuais, a falta dos locais de encontro existentes nas

    sociedades primais, que marcavam o seu centro, lugar onde se criavam, debatiam e

    negociavam normas e se fazia justia, deixa uma lacuna, ao impossibilitar a reunio

    de interlocutores numa comunidade, definida e integrada pelos critrios comuns de

    avaliao (BAUMAN, 1999, p. 32).

    O jogo , dessa forma, um desses mecanismos de estar junto

    (MAFFESOLI), de conviver com iguais, de experimentar vivncias comuns, muitas

    delas intensas, e de estabelecer laos subjetivos e fidelidades, muito embora no

    fique claro que isso no seja elaborado de forma totalmente consciente.

    Nesses momentos onde se decorre o processo do jogo, apareceram, de

    forma subliminar, elementos comuns entre o jogar e alguns componentes do ritual

    religioso. Como foi dito anteriormente, ao adentrar o ambiente do jogo, os

    participantes comeam a se transferir progressivamente para os mundos imaginrios

    propostos pelos livros de RPG: rememoram as aventuras anteriores, discutem erros

    e acertos e propem novas estratgias.

    Venham de onde vierem, o que buscam o ponto de aglutinao para a

    construo e o fortalecimento de laos (MAGNANI, 2000, 22). Apartam-se

    progressivamente da realidade exterior at que se chega a um ponto que ela parece

    desaparecer quase completamente durante o tempo do jogo.

    Passam temporariamente a habitar o que DaMatta (1997) denomina de

    outro mundo, que seria um intermedirio do espao privado representado pela

    casa; e o pblico, representado pela rua. Este outro mundo seria uma zona neutra,

    onde os discursos so diferenciados dos veiculados na casa ou na rua. So os

    espaos das crenas, onde se pode fazer individual ou coletivamente a ligao do

    conhecido com o sobrenatural.

    O fato de desligarem ou colocarem no modo silencioso seus celulares

    antes do incio da sesso mencionado no relato da observao aparece como

    outra forma de cortar a ligao com o mundo exterior, o da vida real, para estarem

    por inteiro, dedicados s aventuras.

    Semelhante comportamento se d tambm nos espaos religiosos, onde

    as experincias do cotidiano ficam em suspenso enquanto durar o tempo-espao do

    culto, acontecendo o mesmo em uma imensa variedade deles. Essa sensao se

    d, porque o momento extraordinrio nos transforma em seres exemplarmente

    coletivos [...] Essas possibilidades de transformao criam focos diferenciados,

  • 143

    fazendo com que se possa viver algo novo, excitante ou rotineiro (DAMATTA, 1997,

    p. 45).

    Pode-se encontrar outro fato que se assemelha ao encontrado nas

    religies institucionalizadas. Os personagens dos indivduos-jogadores tm que

    parar para homenagear a divindade a que esto filiados, nos dias pr-determinados

    para o seu culto. O respeito a esses momentos de culto s divindades, durante o

    perodo do jogo, pode ser comparado ao dos praticados no islamismo. A diferena

    se d na medida em que isso acontece de forma mais flexvel, podendo os horrios

    serem adaptados aos momentos vivenciados nas aventuras.

    O caso de os deuses pedirem cnticos do combate (informao verbal)

    para que eles lhe abenoem, tambm no chega a ser uma novidade. Nas batalhas

    campais da Idade Mdia, por exemplo, os guerreiros eram abenoados por

    sacerdotes antes das lutas. Esse procedimento tem a vantagem de estimular a

    autoconfiana do guerreiro, que sente-se protegido pela divindade e,

    consequentemente mais forte. Esse sentimento ficou bem claro na expresso dos

    jogadores quando afirmaram que tinham a bno dos deuses.

    A situao religiosa do personagem assemelha-se, em alguns pontos, a

    que ocorreu nesse perodo histrico onde, apesar da no existncia explcita de

    restries a quem no possusse uma religio, ele passava a ser muito mal visto

    pela sociedade, podendo se comprometer gravemente. Desse modo, ainda que

    nesse jogo nada seja obrigatrio no sentido mais literal, aquele que opta por no

    escolher uma filiao religiosa, acaba por prejudicar o desempenho do personagem.

    Pois, ele abdicar, quando da composio do mesmo, da proteo dada pela

    divindade escolhida.

    Ao observar-se tambm o cuidado com a preparao do espao do jogo

    antes do comeo das sesses, lugar onde se desenrolam as aventuras, no se pode

    deixar de lembrar a semelhana que h com a elaborao do recinto sagrado, pelo

    fiel, antes da ocorrncia da cerimnia religiosa. Esse cuidado ser um dos fatores

    responsveis por transformar o espao, fsico, em um lugar simblico de

    acolhimento, onde as aes perpetradas, da por diante, assumiro sentidos

    diversos dos que possuem no cotidiano. Local esse propcio percepo das

    hierofanias (no caso da experincia religiosa) ou das sensaes muitas vezes

    prazerosas e diferenciadas das experimentadas do dia-a-dia.

  • 144

    O uso de palavras que fazem parte do universo religioso tambm se fez

    presente durante o incidente com o professor ocorrido no hall do IFPB, quando ao

    menos um dos jogadores utilizou-se do vocbulo heresia. Para ele, como se o

    espao do jogo enquanto espao sagrado estivesse sendo profanado,

    desrespeitado, o que, por extenso, profana e desrespeita os prprios sujeitos

    (RETONDAR, 2007, p. 30). Construiu dessa forma, uma ponte imaginria que faz

    com que o objeto religioso e o livro, nesse momento, se equivalham, passando a ter

    o mesmo valor e significados, enquanto artefato sagrado.

    4.3 DESVENDANDO IMAGINRIOS ATRAVS DO AT-9

    Concludas as primeiras observaes oriundas do trabalho de campo, que

    j permitem a visualizao de alguns elementos relacionados ao proceder no campo

    religioso, no proceder dos indivduos-jogadores, sero transcritos os protocolos dos

    testes AT-9, juntamente com suas anlises.

    Elas complementaro as observaes dessa primeira etapa e um

    aprofundamento na percepo sobre a possibilidade da existncia de elementos

    rituais, mitolgicos ou at religiosos sobreviventes nos imaginrios dos indivduos-

    jogadores, medida que, segundo G. Durand (2002, p. 190), por atitudes da

    imaginao que se chega s estruturas mais gerais da representao.

    Segundo Y. Durand (apud LOUREIRO, 2004), para a realizao do AT-9

    necessria uma atividade mental de sntese, o que vai fazer com que o indivduo

    expresse nos protocolos, alm de suas produes imaginrias, as influencias e

    condicionamentos oriundos de seu meio social.

    Dessa forma, as imagens obtidas nos protocolos, ao tempo em que

    indicaro os imaginrios individuais, tambm fornecero pistas para a compreenso

    de suas vises de mundo, no que se refere religiosidade e/ou ligao com a

    transcendncia atravs de possveis simulaes da experincia do sagrado, e iro

    sugerir a emerso do imaginrio grupal.

    A anlise baseada nos protocolos, de acordo com o politesmo

    metodolgico (FILORAMO, 1999), acabou por adentrar os trs principais campos do

    conhecimento onde so aplicados os AT-9, direcionados nesta anlise ao campo

    investigativo do fenmeno religioso.

  • 145

    Adentrou-se no campo da Psicologia, quando se buscou perceber como o

    indivduo e o grupo de RPGistas percebem a angstia existencial e sua reao

    diante dela; da Sociologia (compreensiva) quando se caracterizou o indivduo-

    jogador enquanto membro influenciador e influenciado pelos seus relacionamentos

    sociais; e a Antropologia, quando foi caracterizado um grupo social especfico, que

    foi o de jogadores de RPG, posto que esse teste projetivo permite por em evidncia

    dados relativos influncias externas aos indivduos.

    A associao dos mesmos se deu de maneira natural, porque a

    dissociao dos mesmos acarretaria em uma dificuldade na interpretao dos

    protocolos, tornando-os incompletos.

    4.3.1 Imagens Simblicas dos Indivduos-Jogadores

    Nessa primeira parte, sero transcritos os resultados dos testes AT-923

    aplicados aos indivduos-jogadores, em forma de protocolos individuais. Na

    sequncia de cada transcrio, ser feita a anlise estrutural, que consiste na

    identificao dos microuniverso mticos dos mesmos.

    Para tanto, ter ateno especial a questo C do questionrio, pois nela

    aparecero os elementos essenciais em torno dos quais foram construdos o

    desenho, fornecendo uma primeira sugesto da classificao do protocolo.

    Ela se basear na classificao isotrpicas das imagens da TGI, trazendo

    consigo seus esquemas, smbolos e arqutipos que caracterizam as trs estruturas

    do imaginrio, segundo a elaborao durandiana. E ser direcionada para a busca

    de elementos rituais, mitolgicos ou at religiosos e/ou de religiosidade em seus

    imaginrios, que foco dessa pesquisa.

    23 Nesta sesso, as citaes que fazem parte da transcrio dos protocolos seguiro o modelo

    proposto no modelo anlise do teste AT-9, aparecendo apenas entre parnteses, sem a indicao informao verbal.

  • 146

    AT-9 PROTOCOLO N01

    Dados de Identificao Idade: 17 Sexo: Masculino Profisso: Estudante Nvel de Escolaridade: Mdio tcnico incompleto Religio: Catlica

    1 COMPOSIO DO DESENHO COM OS 9 ELEMENTOS24

    Micro-universo de Estrutura Sinttica do Tipo Duplo Universo Existencial Sincrnico (DUEX Sincrnico)

    2 RELATO DO DESENHO25

    Incitado pela vontade de ter a sua prpria cidade, o multimilionrio Mr. X trama um

    plano para que a cidade na qual um dia ele foi prefeito seja destruda. Tudo

    comeou com a descoberta de uma nova espcie de rptil. Com experimentos

    descobriu-se que quando expostos aos raios gama esses repteis cresciam e se

    tornavam maiores, mais violentos e mais inteligentes. Enquanto isso Mr. X se reunia

    com o presidente depois para discutir a compra de uma cidade, ao menos era isso 24 Os detalhes dos desenhos podem ser melhor visualizados no anexo C. 25 O relato baseado no desenho e as respostas dadas s questes propostas nesse protocolo de AT-9

    e nos quatro subsequentes foram transcritos da forma como foram redigidos pelos indivduos-jogadores, no tendo passado pela correo de acordo com as novas regras de ortografia, como foi o caso do texto.

  • 147

    que ele pensava. Na verdade ele faria vrias melhorias na cidade sendo ele o maior

    dono de quase tudo que havia l. Com o pedido negado, ele utilizou dos

    experimentos de seu grupo para que a cidade fosse destruda e eu a reconstrusse

    do zero. Antes disso mando exploradores para neutralizar criaturas ou qualquer

    perigo em ilhas prximas a cidade. Na primeira ilha neutralizada ele se acomodou

    at tudo passar. Apesar das conseqncias de seus atos, Mr. X pensava que aquilo

    era um bom negcio.

    I. QUESTIONRIO:

    a. Em torno de que ideia central voc construiu a sua composio? Voc ficou

    indeciso entre duas ou mais solues? Caso tenha respondido que sim, quais

    foram?

    A ideia central que para que algo acontea basta uma deciso, se que quem ou

    que for. No.

    b. Voc foi, por acaso, inspirado por alguma leitura, filme, etc? Quais?

    Sim. Vrios. Dentre os vrios: Godzila, o Nufrago, Teletubies, Final Fantasy,

    quadrinhos de super-heris, contos de vrios estilos e muito mais.

    c. Indique entre os 9 (nove) elementos da sua composio:

    1. Os elementos essenciais em torno dos quais voc construiu o seu desenho.

    O monstro que destri a cidade. O homem que descansa na ilha.

    2. Os elementos que gostaria de eliminar. Por qu?

    A espada, porque no se encaixa de forma satisfatria na historia. Foi um

    tanto forada.

    d. Como termina a cena que voc imaginou?

    De um lado a serenidade, de outro o caos e o medo, e de outro a fria.

    e. Se voc tivesse que participar da cena que voc comps, onde voc estaria? E o

    que faria?

    Estaria num avio a caminho da ilha do Mr. X, indo captur-lo.

    II. PREENCHIMENTO DO QUADRO

    1. Na coluna A, como voc representou cada elemento da composio. 2. Na coluna B, qual o papel desempenhado na composio por cada um dos 9

    elementos.

  • 148

    3. Na coluna C, o que simboliza para voc, pessoalmente, cada um dos 9

    elementos.

    Elemento Representao A Papel B Simbolismo C

    Queda A destruio da cidade Destruir a cidade Necessria para que haja uma ascenso

    Espada O guerreiro neutralizando a ilha e as naves atirando no monstro

    Mata o inimigo Imps sua vontade ao inimigo

    Refgio A ilha isolada Abriga o fugitivo e algo mais Lhe abriga e serve de consolo quando necessrio

    Monstro O godzilao monstro do mar e o mostro da ilha (que pega o gato)

    Destri aquilo que lhe desagrada

    Necessrio derrot-lo significa vencer uma etapa. Unir-se a ele seria a unio de diferentes partes de algo em comum

    Cclico A rvore Fornece comida e sombra Equilbrio

    Personagem O homem na ilha Da origem a cena Nunca existe apenas um gua O mar Divide as ilhas Passagem

    Animal O gato morto por sua curiosidade Aquele que se guia pelos instintos

    Fogo As chamas da destruio Consome os restos Destruio e renovao

    ANLISE DO PROTOCOLO N01

    Os elementos essenciais em torno dos quais o indivduo-jogador construiu

    o desenho foram, por um lado, o monstro que destri a cidade e, por outro, o

    homem que descansa na ilha. O personagem que ele destaca o homem da ilha.

    Est sozinho, deitado repousando e d origem cena.

    Embora o indivduo-jogador declare que o personagem o homem na

    ilha, ele faz uma ressalva quando diz que nunca existe apenas um e o representa

    em duplicidade no desenho, cada qual participando de um microuniverso. O

    segundo personagem, que tambm o narrador da cena, encontra-se em outra ilha,

    lutando para neutralizar os monstros.

    O homem que d origem cena poderia ser identificado tanto com a

    divindade, que aquela que d origem criao/cena, quanto como o primeiro

    homem, Ado, que estava sozinho no paraso/refgio/ilha, cujo centro era marcado

    pela rvore do bem e do mal, repleta de frutos. A prpria figura de Ado j est

  • 149

    Ilustrao 18 Sigurd: (original de 1893, produzido para edio sueca do Edda em verso). Fonte: http://pt. wikipedia. org/wiki/ Siegfried

    associada, por si s, divindade, pois ele a imagem de

    Deus e o simbolismo de sua primazia relacionado a uma

    primazia de ordem moral, natural e ontolgica

    (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 11).

    O segundo personagem, o guerreiro que foi

    identificado como sendo ele mesmo a espada e, sendo um

    servidor do homem na ilha (identificado com a divindade),

    pode ser percebido como um instrumento da vontade

    divina. Dentro dessa categoria de heri eufemizado,

    podemos encontrar Sigurd (ou Siegfried), que alia sua

    espada a capacidade de frustrar e afastar malefcios, de

    libertar, de descobrir, de acordar do transe (DURAND,

    2002).

    O elemento cclico representado pela rvore que fornece comida e

    sombra. As interpretaes para o simbolismo da rvore articulam-se em torno da

    mesma idia de Cosmo vivo, em perptua regenerao, sendo ainda smbolo de

    evoluo eterna, do aspecto cclico da evoluo csmica: morte e regenerao

    (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 84).

    A imagem da rvore da vida pode ainda ser associada do andrgino

    inicial, que alm de ser um dos arqutipos substantivos da estrutura sinttica do

    regime noturno da imagem, complementa o conjunto da cena central, e refora a

    ideia do homem na ilha/personagem; est representando o primeiro homem

    conhecido como Ado, que na tradio cabalstica seria tambm uma sntese do

    universo criado (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 13).

    O homem enquanto sntese do universo criado, tambm pode ser visto

    psiquicamente como aquele que j integrou as suas energias, tornando-se

    psicologicamente equilibrando. Colocar um Ado no centro do desenho pode estar

    refletindo um desejo por parte do indivduo-jogador de encontrar esse equilbrio,

    ascendendo a um patamar superior de humanidade.

    O refgio a ilha isolada que abriga o fugitivo e algo mais. Ao mesmo

    tempo em que desempenha seu papel, pois abriga [o personagem] e serve de

    consolo quando necessrio, refugia tambm algo mais, mantendo uma atmosfera

    de mistrio quanto a esse elemento oculto.

  • 150

    A imagem da ilha um smbolo de centro espiritual por excelncia, mais

    precisamente, segundo Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 501), do centro espiritual

    primordial, podendo ser acessada apenas depois de uma navegao ou de um

    vo. No desenho, a dificuldade de acesso concebida como a escada e, como bem

    diz Eliade (2002, p. 46), ela representa plasticamente a ruptura de nvel que torna

    possvel a passagem de um modo de ser a um outro, constituindo-se em outro

    smbolo emblemtico de ascenso espiritual.

    A dificuldade de chegar a ela, como tambm o fato de ser considerada,

    segundo os mesmos autores, um lugar de eleio, tambm pode ser comparada aos

    locais consagrados aos processos rituais, nos quais o iniciado s chega por

    caminhos que devem ser indicados pelo iniciador ritual.

    Para realizar a transio, o iniciado precisa de um guia/iniciador ritual que

    o oriente a navegar atravs das guas que circundam a ilha (caminhos complexos

    da iniciao espiritual), dando-lhe a possibilidade de l chegar/acessar um universo

    espiritual. Ao nvel psquico, acessar a ilha enquanto microcosmos encontrar o

    refgio onde a conscincia e a verdade se uniriam para escapar aos assdios do

    inconsciente (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 502).

    Sendo a miniaturizao do mundo, a imagem do cosmo completo e

    perfeito [...] Centro primordial, sagrado por definio (CHEVALIER e

    GHEERBRANT, 2009, p. 501), a imagem da ilha possui uma concentrao do valor

    da sacralidade. Ela ainda, nas tradies asiticas, um lugar que se eleva para o

    outro mundo e onde os deuses vm Terra.

    Chegar e entrar na ilha pode simbolizar o acesso a esse universo paralelo

    onde habitam os deuses, atravs da elevao espiritual. a entrada em uma nova

    etapa da existncia, encontrando metaforicamente o seu centro espiritual.

    Nesse protocolo, a ilha circundada pelo mar/gua que smbolo da

    dinmica da vida [e] ao mesmo tempo a imagem da vida e a imagem da morte

    (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 592), de onde vem vida (imagem do lquido

    amnitico) e para onde tudo retorna. Na representao grfica, ele exerce esse

    papel, medida que, segundo o indivduo-jogador, ao mesmo tempo em que divide

    as ilhas/mundos, passagem/ligao entre esses mesmos mundos.

    No somente separa e divide os mundos ao mesmo tempo, mas realiza a

    mesma tarefa em relao aos regimes da imagem. As atuaes hericas e msticas

  • 151

    so realizadas em ilhas/mundos diferentes, mas se interconectam, formando uma

    narrativa coerente. Elementos dos dois universos coexistem.

    O mesmo se deu com o elemento queda que, mesmo sendo representada

    e tendo ao mesmo tempo o papel de destruir a cidade citada como necessria

    para que haja ascenso. Nesse sentido, a queda transforma-se em apelo do

    abismo mortal, a vertigem em tentao (DURAND, G., 2002, p. 118). Ou seja, o

    indivduo-jogador tendeu novamente para a ligaao dos dois plos, das suas

    estruturas.

    A figura do monstro se desdobra em mais de uma representao. Ele o

    godzila o monstro do mar e o mostro da ilha (que pega o gato). Alm dos monstros

    nomeados pelo indivduo-jogador, ele est presente tambm no mar, onde tenta

    abocanhar o navio/recipiente e destri aquilo que lhe desagrada.

    Venc-lo significa vencer uma etapa [...] e unir-se a ele seria a unio de

    diferentes partes de algo em comum. Enfim, o monstro est em todos os lugares

    onde o personagem possa se encontrar, traduzindo bem a ideia do monstro interior,

    nico capaz de acompanhar o indivduo onde ele for. Aquele cuja vitria se d por

    etapas, cuja conquista final alcanada atravs da unificao do inconsciente com o

    consciente.

    O monstro da ilha aquele que engole o animal representado pelo gato.

    a insegurana que ronda o refgio/ilha, pois foi desenhado na elevao que

    conduz ao topo da ilha, onde o personagem descansa desfrutando da paz de um

    verdadeiro paraso.

    O gato, embora seja domstico, um smbolo teriomrfico, possui um

    simbolismo ambguo, heterogneo, oscilando entre formas positivas ou negativas de

    ser percebido conforme cultura, poca ou imaginrios individuais. Na representao

    grfica desse protocolo, ele visto de forma negativa, pois simboliza para o

    indivduo-jogador aquele que se guia pelos instintos e que morto por sua

    curiosidade. Ele pode, nesse caso, segundo Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 462),

    ser associado serpente, indicando o pecado, o abuso dos bens deste mundo.

    Mas tambm o gato neutralizado ao ser engolido pelo monstro que

    destri o que lhe desagrada. Nesse caso, o que parece desagradar o pecado, os

    instintos latentes no ntimo do indivduo-jogador. Assumindo o monstro o papel de

    eliminar a negatividade.

  • 152

    A espada concebida em duplicidade: o guerreiro neutralizando a ilha e

    as naves atirando no monstro. Elemento esse que o indivduo-jogador deseja

    eliminar, porque no se encaixa de forma satisfatria na historia. No entanto, no

    fica claro qual das duas formas de representar a espada que ele deseja suprimir.

    Caso a eliminao fosse tanto das naves quanto da espada na mo do guerreiro,

    poderia significar um desejo de pacificao.

    O fogo mais um componente que tem funo complementar nesse

    protocolo. Ele apresentado na narrao, como as chamas da destruio que

    consomem os restos. Nesse momento, ele , o fogo purificador [e] faz parte do

    simbolismo herico (LOUREIRO, 2004, p. 25). Mas, por outro lado, representado

    graficamente como um incndio decorrente de um batalha, remetendo estrutura

    sinttica, [...] mediador entre a natureza e a cultura (LOUREIRO, 2004, p. 25). Seu

    simbolismo aponta no somente para a destruio, mas tambm para a renovao.

    No mbito da religio/religiosidade, a ideia de que a destruio

    necessria para que haja uma ascenso relaciona-se diretamente aos ciclos de

    renovao moral, ciclos de morte e renascimento. Essa morte poder ocorrer de

    duas formas principais. A primeira moralmente, quando, ainda na existncia fsica

    em curso, o seguidor de uma doutrina substitui uma forma de proceder por outra

    considerada mais moralizada ou elevada espiritualmente. A segunda atravs da

    reencarnao ou transmigrao da alma, ou seja, pela morte fsica e o posterior

    renascimento em um novo corpo material.

    Pode-se encontrar ideias oriundas de concepes religiosas no imaginrio

    do indivduo-jogador que condizem com a sua filiao religiosa, pois o autor

    representa de forma negativa a interveno do homem na criao. Pode-se perceber

    esse fato quando ele relata que a modificao feita nos rpteis/monstros os tornaram

    maiores, mais violentos e mais inteligentes quando expostos expostos aos raios

    gama.

    Essa mais uma das associaes feitas ao paraso e queda da

    humanidade. O uso da inteligncia por parte do ser humano com o objetivo de

    modificar a natureza das coisas (exposio dos rpteis aos raios gama), poderia ser

    uma analogia do consumo do fruto da rvore do bem e do mal, que deu ao homem a

    racionalidade.

    De posse do conhecimento do bem e do mal, teve conscincia de sua

    realidade mortal, estava de posse da cincia (estava com cincia) e queria se igualar

  • 153

    Ilustrao 19 Mutilao de urano por saturno. Ilustrao do sculo XVI de autoria de Giorgio Vasari e Gherardi Christofano. Fonte: http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESLH/Edicoes/9/imprime89331.asp

    ao Criador. E, uma das formas de eternizar-se, justamente imaginar-se eterno

    mesmo sabendo-se finito (LOUREIRO, 2004, p. 16), que um estratagema criado

    pelo imaginrio humano para enfrentar a angstia do tempo que se escoa e o leva

    inexoravelmente finitude.

    A forma com que o indivduo-jogador articula os smbolos e arqutipos,

    parece apontar para o mito da destruio do paraso/cidade atravs do mal

    (monstros modificados pela cincia) que se origina do conhecimento que gera a

    ambio, e que, por sua vez, leva destruio (que pode ser fsica ou moral).

    Muito embora tenha se declarado catlico e tenha absorvido conceitos

    relativos a essa crena, ele tambm detm, em seu imaginrio iderios oriundos de

    mitologias politestas, como a da sucesso dos deuses. Ele relata que se tivesse que

    participar da cena estaria em um avio a caminho da ilha do Mr. X, indo captur-lo.

    Iria destronar o personagem que d origem cena, tomando-lhe o lugar, j que ele

    tinha a misso de reconstruir a cidade.

    E, aquele que d origem cena, em uma esfera mais ampla,

    denominado, dentre outras coisas, de Criador ou de Deus. A histria desse

    personagem assemelha-se, deste modo, ao mito de Saturno/Cronos que vencido

    pelo seu filho Jpiter/Zeus.

    O indivduo-jogador, parece cultivar essa nova maneira de exercer a

    religiosidade, tpica do perodo ps-moderno, onde se pinam conceitos de mais de

    uma religio/religiosidade, para compor uma forma prpria, individualizada, de se

    relacionar com o transcendente.

  • 154

    Ele constri o desenho/representao grfica em torno de duas

    polaridades, o monstro que destri a cidade e o homem que descansa na ilha.

    Nela possvel encontrar tanto elementos tpicos da estrutura herica quanto da

    estrutura mstica do imaginrio. Os elementos se combinam, sem prejuzo do

    desenrolar do enredo.

    O elemento cclico aparece relacionado ideia de progresso. O indivduo-

    jogador relata que seria feita melhoria na cidade e que a prpria destruio da

    cidade necessria para que haja asceno. E, segundo Y. Durand (apud

    LOUREIRO, 2004, p. 24), a idia de progresso parece comandar a escolha do

    arqutipo cclico.

    A maneira de relacionar os termos ascenso e destruio, dando (ou

    forando) a idia de complementariedade, igualmente tpica da estrutura sinttica

    do imaginrio, porque expressa a dialtica entre o simbolismo da fuga diante do

    tempo, e a vitria sobre o destino e a morte: a contraposio positiva ao negativo

    (LOUREIRO, 2004, p. 18). Ou seja, da vida versus a morte.

    Alm disso, no centro da representao grfica, encontra-se uma rvore,

    com seu simbolismo cclico de totalidade do cosmo na sua gnese e o seu devir

    (DURAND G., 2002, p. 341). Elemento cclico que se renova atravs dos seus

    perodos de reproduo, florao e frutificao.

    No desenho ele se apresenta frutfera e frondosa, de grandes propores,

    cuja copa cobre quase que toda a extenso da ilha. Representa, segundo o

    indivduo-jogador, o equilbrio. a prpria Axis Mundi, fornecendo comida/sustento

    e sombra/aconchego e servindo de ponte entre o cu e a terra.

    Nesse contexto, a angstia diante da morte atenuada pela ideia de

    renovao, compreendida enquanto fases que se alternam. A morte deixa de ser um

    fim e passa a ser um recomeo, tornando o tempo positivo, procura-se o dilogo ou

    a conciliao entre os opostos (LOUREIRO, 2004, p. 18-19).

    Nesse protocolo, os elementos convergem para essa harmonizao entre

    os contrrios. E, segundo Loureiro (2004, p. 26), quando no h a oposio entre a

    caracterstica herica e mstica e evidencia-se um duplo universo existencial ou

    simblico, os agrupamentos dos universos mticos se categorizam como

    Disseminatrios.

    O personagem se desdobra em dois e vive duas aes temticas ao

    mesmo tempo, que acontecem em universos mticos diferentes (um herico e outro

  • 155

    mstico), mas que fazem parte de uma mesma ideao, o que caracteriza uma

    estrutura do tipo sincrnica.

    Levando-se em conta o conjunto de elementos encontrados na narrao,

    na representao grfica, no questionrio e no quadro, a anlise estrutural realizada

    indica a existncia de uma Estrutura Imaginria Sinttica do tipo Duplo Universo

    Existencial Sincrnico (DUEX Sincrnico), participando do Regime Noturno da

    Imagem.

    AT-9 PROTOCOLO N02

    Dados de Identificao Idade: 18 anos Sexo: Masculino Profisso: Auxiliar administrativo Nvel de Escolaridade: Superior incompleto Religio: Catlico

    1 COMPOSIO DO DESENHO COM OS 9 ELEMENTOS

    Micro-universo de Estrutura Herica do Tipo Super-Herico

    2 RELATO DO DESENHO

    Um drago enfrenta o nobre guerreiro na fortaleza do penhasco e com ajuda de sua

    espada mgica derrota o drago e salva a cidade.

  • 156

    I. QUESTIONRIO

    a. Em torno de que ideia central voc construiu a sua composio? Voc ficou

    indeciso entre duas ou mais solues? Caso tenha respondido que sim, quais

    foram?

    No.

    b. Voc foi, por acaso, inspirado por alguma leitura, filme, etc? Quais?

    Sim, o senhor dos anis e Tolkien.

    c. Indique entre os 9 (nove) elementos da sua composio:

    1. Os elementos essenciais em torno dos quais voc construiu o seu desenho.

    Todos.

    2. Os elementos que gostaria de eliminar. Por qu?

    Nenhum.

    d. Como termina a cena que voc imaginou?

    Com o guerreiro derrotando o drago.

    e. Se voc tivesse que participar da cena que voc comps, onde voc estaria? E o

    que faria?

    Ajudaria o guerreiro a derrotar o drago.

    II. PREENCHIMENTO DO QUADRO

    1. Na coluna A, como voc representou cada elemento da composio. 2. Na coluna B, qual o papel desempenhado na composio por cada um dos 9

    elementos.

    3. Na coluna C, o que simboliza para voc, pessoalmente, cada um dos 9

    elementos.

    Elemento Representao A Papel B Simbolismo C

    Queda Um penhasco Enfatizar o perigo que o cavalheiro enfrenta Perigo

    Espada Espada mgica Ajudar a derrotar o drago Poder

    Refgio Castelo Proteger as pessoas Proteo

    Monstro O drago O mostro selvagem Um ser selvagem

    Cclico O fogo do drago Enfatiza o perigo para o guerreiro A vida

  • 157

    Personagem O guerreiro com a espada A esperana das pessoas O indivduo

    gua O mar Nenhum Tranqilidade

    Animal O cavalo O cavalo que acompanha o guerreiro Companheiro

    Fogo O fogo do drago Enfatizar o perigo para o guerreiro O fim

    ANLISE DO PROTOCOLO N02

    Na representao grfica, a espada est empunhada contra o

    drago/monstro e o personagem/nobre guerreiro est montado em seu cavalo,

    lutando contra a ameaa representada pelo drago. Essa figura caracterizaria o

    heri, segundo Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 201), como sendo o s